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Processo n.º 185/04
1.ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. recorre, ao abrigo do disposto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, impugnando decisões do Supremo Tribunal de Justiça. Convidado, neste Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no n. 5 do artigo 75º-A da LTC, a completar o seu requerimento – pois quando “o recorrente questiona uma certa interpretação de uma determinada norma legal aplicada na decisão recorrida, impõe-se que indique com precisão esse mesmo sentido em termos que permitam ao Tribunal enunciá-lo exactamente na decisão que proferir, por forma a que se saiba qual o sentido da norma que não pode ser adoptado por ser incompatível com a Constituição” – concretizando quais “as interpretações normativas que, aplicadas na decisão recorrida, pretende impugnar”, respondeu, em suma, pretender:
1. “que o Tribunal Constitucional verifique e se pronuncie sobre se o entendimento normativo construído pelo Tribunal a quo, com base no citado artigo
177°, nº1, do EMJ – que não poderá deixar de ser conjugado com os artigos 52° da LPTA e 152° do CPC, por força do disposto no artigo 178° daquele Estatuto – é compatível com os princípios constitucionais do contraditório, da tutela efectiva dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos (e até do próprio direito ao recurso contencioso), que são estruturantes de toda a actividade administrativa e, por maioria de razão, de qualquer processo judicial de partes num Estado de Direito/Estado de Justiça, inquestionavelmente consagrados, nomeadamente, nos artigos 2°, 9°, alínea b), 20º, 202°, nº2, e 268°, nº 4, da CRP.”
2. “que o Tribunal Constitucional verifique e se pronuncie sobre se o entendimento normativo do STJ, construído e aplicado contra o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 1°, nº1, 27°, nº1, 61°, e 62° do CPA, 11°, nº1, e 46°, nº1, da LPTA, 68° do RSTA, 156° nº4, 174° n°2 e 177° n°1 do EMJ – expressamente invocados nos articulados e nos requerimentos atrás referidos – é compatível com os princípios e as normas constitucionais consagradas, nomeadamente, nos artigos 2°, 9°, alínea b), 20°, nºs 1 e 4 , e 268°, nºs 1 e 4, da CRP.”
3. “que o Tribunal Constitucional verifique e se pronuncie sobre o entendimento normativo do STJ, construído e aplicado contra o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 52°, nº1, do EMJ 3°, 4°, 5° e 6° do CPA e contra os princípios fundamentais que regem os concursos curriculares em geral – expressamente invocados nos articulados – é compatível com os princípios
(transparência, imparcialidade e legalidade) e as normas constitucionais consagradas, nomeadamente, nos artigos 2°, 9°, alínea b), 13°, 266° e 268°, nº3, da CRP.”
4. “que o Tribunal Constitucional verifique e se pronuncie sobre se o entendimento normativo do STJ, construído e aplicado com base no citado artigo
52°, nº1, do EMJ, é compatível com os princípios constitucionais (legalidade, transparência, clareza, isenção, justiça e imparcialidade) e as normas consagradas, nomeadamente, nos artigos 266°, nº2, e 268°, nº 3, da CRP.”
5. “que o Tribunal Constitucional verifique e se pronuncie sobre se o entendimento normativo do STJ, construído e aplicado contra o disposto nos artigos 2°, 7°, 8° e 100º a 105º do CPA, é compatível com os princípios e as normas consagrados, nomeadamente nos artigos 266º e 267º, n.º 5, 2ª parte da CRP.”
Foi, no entanto, lavrada decisão sumária, nos termos do artigo 78º-A n. 1 da LTC, a não conhecer do recurso, com o seguinte fundamento:
Todavia, o recurso não poderá prosseguir.
É que, conforme este Tribunal tem repetidamente afirmado, o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC tem uma configuração própria, pois apenas cabe das decisões que aplicam normas acusadas de inconstitucionais, é restrito à questão da inconstitucionalidade, cingindo-se o seu objecto à norma ou normas aplicadas na decisão recorrida com o sentido que incumbe ao recorrente enunciar. Acontece que através do presente recurso o Recorrente submete à apreciação do Tribunal a decisão recorrida em si mesma considerada. Na verdade, o recurso pretende impugnar decisões do Supremo Tribunal de Justiça que, na óptica do Recorrente, julgaram em desconformidade com a Constituição e, até, em desconformidade com a lei infra-constitucional. Não está, em suma, identificada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que possa ser conhecida por este Tribunal.
O recorrente reclama desta decisão, com os seguintes fundamentos:
1. Por despacho do Ex.mo. Conselheiro Relator, de 22 de Julho de 2004, foi o recorrente convidado a «concretizar as interpretações normativas que, aplicadas na decisão recorrida, pretende impugnar», e isto porque, «quando o recorrente questiona uma certa interpretação de uma determinada norma legal aplicada na decisão recorrida, impõe-se que indique com precisão esse mesmo sentido em termos que permitam ao Tribunal enunciá-lo exactamente na decisão a proferir por forma a que se saiba qual o sentido da norma que não pode ser adoptado por ser incompatível com a Constituição» . O recorrente correspondeu a esse convite através de resposta apresentada em 24 de Setembro de 2004, e está convicto de que, com tal resposta, deu integral satisfação ao solicitado, uma vez que a subsequente Decisão Sumária de não conhecimento do objecto do recurso não se baseia na falta ou insuficiência de identificação das interpretações normativas impugnadas, mas antes num diverso fundamento: serem arguidas de inconstitucionais, não normas ou interpretações normativas, mas directamente decisões judiciais, em si mesmas consideradas. Isto é: podendo, em abstracto, a decisão de não conhecimento do recurso fundar-se em duas causas - (i) imputação da violação da Constituição a decisões judiciais, em si mesmas consideradas, e não a normas ou a interpretações normativas; e (ii) falta ou insuficiência de identificação da interpretação normativa impugnada -, o Ex.mo. Conselheiro Relator, no despacho de 22 de Julho de 2004, apenas admitiu a possibilidade de se verificar esta última causa e convidou o recorrente a supri-la, o que este fez com sucesso, pois a Decisão Sumária ora reclamada não se baseia nessa causa para decidir pelo não conhecimento, mas sim na primeira causa aludida (imputação da violação da Constituição a decisões judiciais, em si mesmas consideradas). Entende, porém, o recorrente que esta causa de rejeição do recurso não se verifica,
2. É conhecida a dificuldade de, em muitos casos, se distinguir a arguição de inconstitucionalidade de interpretações normativas acolhidas na decisão recorrida e a arguição de inconstitucionalidade da decisão judicial, em si mesma considerada, O critério da distinção passa pela verificação, no primeiro caso, da adopção, pelo Tribunal recorrido, de um critério normativo, dotado de generalidade e abstracção (e, por isso, susceptível de aplicação no futuro a outras situações, a que depois se submete o caso concreto sub judice), enquanto no segundo caso a questão de inconstitucionalidade suscitada está indissociavelmente ligada às particulares especificidades do caso concreto. Ora, pelo menos quatro das interpretações normativas que o recorrente arguiu de inconstitucionais (as indicadas em primeiro, terceiro, quarto e quinto lugar no requerimento inicial de interposição do recurso), adoptadas pelas decisões recorridas, são dissociáveis do caso concreto, e surgem como critérios normativos gerais e abstractos que o Tribunal recorrido adoptou e a que depois subsumiu o caso dos autos.
3. Relativamente à primeira questão de constitucionalidade suscitada, ela tem por objecto a interpretação do artigo 177°, nº1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, acolhida pelo Tribunal recorrido, segundo a qual nos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça das deliberações do Conselho Superior da Magistratura não há lugar a alegações complementares, mesmo que nas respostas da entidade recorrida e dos contra-interessados ou nas alegações do Ministério Público se suscitem questões novas ou se juntem novos elementos. Sustenta o recorrente que esta interpretação normativa viola o princípio fundamental do direito ao contraditório, estruturante de qualquer processo judicial de partes, e as normas dos artigos 2°., 9°., alínea b), 20° nºs. 1, 4 e
5, 202°., nº.2, e 268°., nº 4, da CRP . Trata-se, obviamente, de uma questão de inconstitucionalidade normativa, e não da imputação de violação da Constituição directamente a uma decisão judicial.
4. Relativamente à terceira questão de constitucionalidade suscitada, ela tem por objecto a interpretação dos artigos 11º. , n.º, 1 , e 46°, , nº.1, da LPTA, conjugados com os artigos 174° nº.2, e 177° nº.1, do EMJ, acolhida pelo Tribunal recorrido, segundo o qual o Conselho Superior da Magistratura, enquanto órgão instrutor e decisor do Concurso Curricular de acesso ao STJ não está obrigado a facultar, ao recorrente particular, para este fundamentar a sua petição, e a remeter, ao Tribunal competente para conhecer do recurso, todos os documentos e elementos de trabalho utilizados nas operações de avaliação, nomeadamente, as notas, sínteses ou relatórios feitos sobre os trabalhos apresentados, as votações dos membros do júri, as classificações numéricas parcelares atribuídas a cada um dos factores de avaliação e a classificação numérica global. Sustenta o recorrente que esta interpretação normativa viola os princípios constitucionais da transparência, da legalidade, da obrigação de cooperar com os tribunais e do próprio direito ao recurso, bem como as normas dos artigos
2°.,20° nºs, 1 e 4, 202° nº.3, 266° nº.2, 267°., nº. 5, e 268°., nºs, 1, 3 e 4 da CRP . Trata-se obviamente de uma questão de inconstitucionalidade normativa, e não da imputação de violação da Constituição directamente a uma decisão judicial.
5. Relativamente à quarta questão de constitucionalidade suscitada, ela tem por objecto a interpretação das normas do artigo 52°., nº.1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, interpretada no sentido de que consente ao Conselho Superior da Magistratura a adopção de «critérios de avaliação e classificação» dos candidatos aos concursos curriculares de acesso a juiz do Supremo Tribunal de Justiça, feita não só em momento posterior à apresentação das candidaturas mas até em momento posterior ao sorteio e distribuição dos trabalhos dos candidatos e dos seus processos individuais pelos diferentes membros do júri, com redução desses critérios a meras tabelas de valoração numérica e consentindo o atendimento de outros factores de correcção e ponderação não especificados. Sustenta o recorrente que esta interpretação normativa viola os princípios constitucionais da transparência, da imparcialidade, da isenção e da igualdade, bem como as normas dos artigos 2°., 9°., alínea b), 13°., 20°., n°, 1, 266°., nº.2, e 268°., nº. 3, da CRP. De novo se trata do acolhimento de um critério normativo, que não se liga às especificidades do caso do recorrente, antes surge como susceptível de aplicação a todos os candidatos a estas espécies de concurso.
6. Relativamente à quinta questão de constitucionalidade, ela tem por objecto a interpretação dos artigos 2°. e 100°. a 105°. do Código do Procedimento Administrativo, acolhida pelo acórdão recorrido, no sentido de que no processo de concurso curricular para juiz do Supremo Tribunal de Justiça nunca há lugar a audiência prévia dos interessados. Sustenta o recorrente que esta interpretação normativa viola claramente o princípio constitucional da colaboração entre a Administração e os particulares e o direito constitucional destes a participarem nas decisões dos procedimentos em que são interessados, bem como o disposto no artigo 267.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa. Como nos casos anteriores, trata-se de uma interpretação de norma legal, aplicável a uma generalidade de casos, e não indissociavelmente ligada às especificidades do caso concreto do ora recorrente. Em suma: a) Resulta da Decisão Sumária ora reclamada que se considerou que o recorrente, na resposta ao convite que lhe foi efectuado, satisfez cabalmente o ónus de identificação das interpretações normativas impugnadas, uma vez que não foi com esse fundamento que se veio a decidir pelo não conhecimento do objecto do recurso; b) Pelo menos, relativamente às primeira, terceira, quarta e quinta questões de constitucionalidade suscitadas, é manifesto que o que o recorrente impugna são interpretações normativas, dotadas de generalidade e abstracção, acolhidas nas decisões recorridas, não sendo exacto que impute a violação da Constituição directamente a essas decisões judiciais, em si mesmas consideradas; c) De qualquer modo, num Estado de Direito/Estado de Justiça, uma eventual deficiência, meramente formal e instrumental, não pode servir de fundamento válido para inutilizar o conteúdo essencial de um direito fundamental- o direito ao recurso. Nestes termos e nos demais de direito que Vossas Excelências se dignarão suprir, não se suscitando qualquer dúvida quanto à intenção do recorrente e quanto à substância do objecto da pretensão recursal, deve ser deferida a presente reclamação, ordenando-se o prosseguimento do recurso, assim se fazendo Justiça.
Cumpre decidir.
O reclamante nada adianta quanto à segunda “questão” de inconstitucionalidade, razão pela qual nada mais se dirá, sobre o assunto, para além do que vem referido na decisão em reclamação.
Quanto ao resto, importa começar por referir que o convite feito ao recorrente nos termos do artigo 75º-A n. 5 da LTC visa apenas dotar o requerimento de interposição de recurso dos elementos essenciais, de natureza formal, que ele deverá conter antes que seja proferida uma decisão quanto ao seu seguimento. Ora, quando o requerente, aceitando embora o convite para circunscrever a norma que acusa de inconstitucional, deficientemente exposta, não é ainda assim capaz de isolar uma formulação que concretize uma determinação jurídica geral e abstracta aplicada na decisão como ratio decidendi da solução concreta, impor-se-á proferir decisão a não conhecer do recurso, por carência de objecto, sabido, que é, que o recurso previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC visa impugnar decisões que hajam aplicado normas acusadas de inconstitucionais. E é bem certo que o recorrente não definiu oportunamente as normas cuja conformidade constitucional agora pretende ver analisada, pois limitou a pretensão ao “entendimento normativo construído pelo Tribunal a quo” com base em determinado preceito legal, sem especificar qual fosse esse entendimento normativo concreto, assim encarregando o Tribunal de definir a norma e, por esta via, o próprio objecto do recurso que lhe cumpre apreciar. O que, como é sabido, é inadmissível.
É que, ao contrário do que sustenta o recorrente, não se trata de uma mera formalidade oficiosamente sanável. Essa tarefa visa definir o objecto do recurso, pelo que constitui actividade substantiva essencial que incumbe exclusivamente ao recorrente, pois só a ele a lei confiou a faculdade de circunscrever o âmbito do próprio recurso.
Em face de exposto, decide-se indeferir a reclamação, mantendo a decisão de não conhecimento do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050058.html ]