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Processo n.º 114/2005
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade foi
proferida a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Relação de Coimbra, em que figura como recorrente A. e como
recorridos o Ministério Público e B., o recorrente interpõe recurso da sentença
de 9 de Fevereiro de 2004 do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda que o
condenou como autor material de um crime de difamação previsto e punido pelos
artigos 180º, nº 1, 182º, 183º, nº 1, alínea a), 184º e 132º, nº 2, alínea f),
do Código Penal, com referência ao artigo 30º da Lei nº 2/99, de 13 de Janeiro.
Nas respectivas alegações (fls. 449 e ss.) afirmou que a sentença recorrida
violou vários preceitos constitucionais e infraconstitucionais. Não suscitou,
porém, qualquer questão de constitucionalidade normativa.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 13 de Outubro de 2004, julgou
improcedente o recurso.
O recorrente arguiu a nulidade do acórdão de 13 de Outubro de 2004, arguição
indeferida por acórdão de 5 de Janeiro de 2005.
2. A. interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
A., não se conformando com o Douto Acórdão que confirmou a Sentença de primeira
instância, vem do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que
faz nos seguintes termos:
1. O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n° 1 do art. 70° da Lei n°
28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n° 85/89, de 7 de Setembro,
e pela Lei n° 13-A/98, de 26 de Fevereiro;
2. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do art. 180° do
Código Penal, na interpretação que lhe é dada pelo Douto Acórdão, o qual
confirma a Sentença de primeira instância, segundo a qual se aplica às figuras
públicas, quando visadas nessa qualidade, a mesma tutela dos direitos de
personalidade que se aplica ao comum dos cidadãos;
3. Essa interpretação viola a liberdade de expressão consagrada no art. 37° da
Constituição da República Portuguesa.
4. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada no recurso deduzido da
sentença de primeira instância.
Termos em que requer seja admitido o recurso, seguindo-se os demais termos
legais.
Cumpre apreciar e decidir.
3. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea
b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é
necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão
de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De
acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se
pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente
identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma
constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que
sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma
questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a
afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem
indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a
inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão
de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão
recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se
considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade
normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade
ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre
muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
O recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional uma dada
interpretação do artigo 180º do Código Penal. Afirma que suscitou tal questão
nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.
No entanto, em tais alegações apenas se imputa o vício decorrente da violação de
artigos constitucionais à própria decisão então recorrida e não a uma norma
jurídica.
Por outro lado, não foi proferida qualquer decisão objectivamente imprevisível
ou inesperada.
Não se verifica, nesta medida, o pressuposto processual do recurso interposto,
consistente na suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade
normativa [artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional], pelo
que não se tomará conhecimento do objecto do recurso.
4. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso de constitucionalidade.
O recorrente reclama, agora, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos:
A., não se conformando com a decisão sumária ao abrigo do disposto no artigo
78°-A da Lei do Tribunal Constitucional, que decidiu não tomar conhecimento do
objecto do recurso de constitucional idade vem reclamar dessa decisão nos termos
e com os fundamentos seguintes:
1. Refere a decisão sumária que “O tribunal Constitucional tem entendido este
requisito (que a questão de constitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo) num sentido funcional. De acordo com tal entendimento, uma questão de
constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo
processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera
inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera
violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da
inconstitucionalidade arguida”
2. No ponto 7 das conclusões da defesa do recorrente apresentada junto do
Tribunal da Relação de Coimbra é referido que:
“Violou a Douta Sentença recorrida as seguintes disposições legais: artigos 180°
e 186° do Código Penal; 49°, 374º e 379° do Código de Processo Penal, 10° da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 37° da Constituição da República
Portuguesa”.
3. É aí identificada a norma constitucional que se considera violada, ou seja o
artigo 37° da Constituição.
4. No ponto V do mesmo recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra é referido
que:
“Têm os tribunais decidido que, no confronto entre a liberdade de expressão e o
direito ao bom-nome, ambos direitos constitucionalmente protegidos, o primeiro
deve ceder perante o segundo. Já não há a mesma uniformidade de opiniões quando
a pessoa ofendida seja uma figura pública.
Aqui, por vezes mais do que os direitos das pessoas em confronto, está também em
jogo o interesse geral, perfeitamente legítimo, em fiscalizar a forma como está
a ser gerida a coisa pública. Assim, em sede de análise da dimensão substantiva
da liberdade de expressão, Jónatas E. M. Machado (In Liberdade de Expressão,
Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, Boletim da
Faculdade de Direito de Coimbra, p. 783), entende que “Relativamente à
realização de interesses legítimos, deve referir-se, [...] que, do ponto de
vista das liberdades da comunicação e das finalidades constitucionais
substantivas que lhes estão subjacentes, deve ser dado todo o relevo à
construção de uma esfera de discurso público “desinibida, robusta e amplamente
aberta”, onde se proceda ao debate dos temas de interesse geral e a partir da
qual seja feita, em termos autónomos, a formação da opinião pública e a
realização do controlo democrático e público do funcionamento das instituições
públicas e das demais entidades que actuam nos diferentes subsistemas de acção
social”.
Foi esse discurso público desinibido, robusto e aberto que conduziu o Recorrente
ao banco dos Réus. E foi aí que morreu o controlo democrático de uma instituição
como o C..
O Recorrente, por outro lado, acabou por ser condenado pelos juízos de valor
proferidos num artigo de opinião, fazendo o Tribunal silêncio sobre o restante
conteúdo do documento, pejado de afirmações de facto que, a serem falsas, seriam
elas sim claramente difamatórias. Mas sobre estas não houve queixa nem
acusação...
“Apesar de o legislador penal proceder à sua equiparação [entre afirmações de
facto e juízos de valor], do ponto de vista da realização do tipo de ilícito, de
um modo geral tende a reservar-se uma maior margem de manobra para os segundos,
na medida em que os mesmos decorrem de uma apreciação subjectiva ineliminável,
de um elemento de tomada de posição, de reacção ideológica, emocional, moral ou
estética, ao passo que as afirmações de facto ou são verdadeiras ou falsas,
surgindo naturalmente como carecidas de prova. Num contexto de confronto de
ideias e opiniões em plena autonomia, a expressão de juízos de valor é
justamente um dos objectivos pretendidos, assumindo o maior relevo, quer como
elemento essencial do livre desenvolvimento da personalidade, quer do ponto de
vista da dinamização comunicativa dos diferentes subsistemas de acção social,
que não apenas do sistema político-democrático” (obra citada, pág. 786-87).
Por outro lado, e seguindo a mesma obra, deve “dar-se uma margem de tolerância
substancialmente maior para as opiniões e os juízos de valor em questões de
interesse público, ainda que os mesmos surjam como exagerados, preconceituosos,
obstinados e infundados. Por maioria de razão assim deverá ser se os mesmos
tiverem um fundamento minimamente sério, razoável ou provável, em termos
objectivos ou intersubjectivos, sendo susceptíveis de acolhimento por pessoas
razoáveis e intelectualmente honestas.”
Este tem sido o entendimento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, como por
exemplo nas acções em que o Estado Português tem sido condenado, tal como na
“AFFAIRE LOPES GOMES DA SILVA c. PORTUGAL (Requête nº 37698/97)”, de que se
transcrevem os princípios orientadores da decisão tomada:
«La liberté d’expression constitue l’un des fondements essentiels d’une société
démocratique et l’une des conditions primordiales de son progrès et de
I’épanouissement de chacun. Sous réserve du paragraphe 2, elle vaut non
seulement pour les «informations» ou «idées» accueillies avec faveur ou
considérées comme inoffensives ou indifférentes, mais aussi pour celles qui
heurtent, choquent ou inquietent. Ainsi le veulent le pluralisme, la tolérance
et l’esprit d’ouverture sans lesquels il n’est pas de « société démocratique».
Comme le précise l’article 10, l’exercice de cette liberté est soumis à des
formalités, conditions, restrictions et sanctions qui doivent cependant
s’interpréter strictement, leur nécessité devant être établie de manière
convaincante (voir, parmi d’autres, les arrêts Jersild c. Danemark, 23 septembre
1994, série A nº 298, pp. 23-24, § 31 ; janowski c. Pologne [GC], no 25716/94, §
30, CEDH 1999-1; Nilsen et Johnsen c. Norvege [GC], nº 23118/93, § 43, CEDH
1999-VIII).
ii. Ces principes revêtent une importance particulière pour la presse. Si
celle-ci ne doit pas franchir les bornes fixées en vue, notamment, de «la
protection de la réputation d’autrui», il lui incombe néanmoins de communiquer
des informations et des idées sur les questions politiques ainsi que sur les
autres themes d’intérêt général. Quant aux limites de la critique admissible,
elles sont plus larges à I’égard d’un homme politique, agissant en sa qualité de
personnage public, que d’un simple particulier. L’homme politique s’expose
inévitablement et consciemment à un contrôle attentif de ses faits et gestes,
tant par les journalistes que par Ia masse des citoyens, et doit montrer une
plus grande tolérance, surtout lorsqu’il se livre luimême à des déclarations
publiques pouvant prêter à critique. II a certes droit à voir protéger sa
réputation, même en dehors du cadre de sa vie privée, mais les impératifs de
cette protection doivent être mis en balance avec les intérêts de la libre
discussion des questions politiques, les exceptions à la liberté d’expression
appelant une interprétation étroite (voir, notamment, l’arrêt Oberschlick c.
Autriche (nº 2) du 1er juillet 1997, Recueil des arrêts et décisions 1997-IV,
pp. 1274-1275, § 29).
iii. La vérification du caractère «nécessaire dans une société démocratique» de
l’ingérence litigieuse impose à la Cour de rechercher si celle-ci correspondait
à un «besoin social impérieux», si elle était proportionnée au but légitime
poursuivi et si les motifs fournis par les autorités nationales pour la
justifier sont pertinents et suffisants (arrêt Sunday Times c. Royaume-Uni (nº
1) du 26 avril 1979, série A nº 30, p. 38, § 62). Pour déterminer s’il existe
pareil «besoin» et quelles mesures doivent être adoptées pour y répondre, les
autorités nationales jouissent d’une certaine marge d’appréciation. Celle-ci
n’est toutefois pas illimitée mais va de pair avec un contrôle européen exercé
par la Cour, qui doit dire en dernier ressort si une restriction se concilie
avec la liberté d’expression telle que la protege l’article 10 (voir, parmi
beaucoup d’autres, l’arrêt Nilsen et Johnsen précité, § 43). La Cour n’a point
pour tâche, lorsqu’elle exerce cette fonction, de se substituer aux juridictions
nationales: il s’agit pour elle de contrôler, sous l’angle de l’article 10 et à
la lumière de l’ensemble de l’affaire, les décisions rendues par celles-ci en
vertu de leur pouvoir d’appréciation (ibidem).»
Significa isto que no caso das figuras públicas e nos assuntos de interesse
público, há que ter uma interpretação muito mais restritiva das excepções à
liberdade de expressão. Não foi este o caso do tribunal no presente caso, razão
pela qual a decisão recorrida viola directamente o art. 37° da Constituição da
República Portuguesa”.
5. Resulta deste texto não só a fundamentação clara da alegada
inconstitucionalidade como também se depreende que pelo facto de o recorrente
ter sido condenado em primeira instância pela aplicação do artigo 180° do Código
Penal, ser precisamente a interpretação dada a esse artigo na decisão da
primeira instância que é inconstitucional ao não considerar as diferentes
tutelas da honra que deverão ser dadas consoantes os alegados ofendidos sejam ou
não figuras públicas.
6. O recorrente alegou no recurso apresentado ao Tribunal da Relação de Coimbra
a violação do artigo 10° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sendo que
esse tribunal não reconheceu a violação suscitada.
7. O Tribunal Constitucional é competente para análise e decisão sobre essa
mesma violação com base nas alegações apresentadas na defesa do recorrente junto
do Tribunal da Relação de Coimbra e aqui integralmente reproduzidas no ponto 4.
8. Não sendo reconhecida, por parte do Tribunal Constitucional, a violação no
presente processo do artigo 10° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o
recorrente irá interpor um recurso junto do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem contra o Estado português.
Conclusões:
1. O recorrente suscitou durante o processo uma inconstitucionalidade.
2. Identificou a norma violada como sendo o artigo 37° da Constituição.
3. Apresentou as alegações que fundamentavam essa violação.
4. Identificou a interpretação dada ao artigo 180° do Código Penal na sentença
que o condenou em primeira instância como sendo inconstitucional ao não
considerar as diferentes tutelas da honra que deverão ser dadas consoante os
alegados ofendidos sejam ou não figuras públicas.
5. Foi violado o artigo 10° da Convenção dos Direitos do Homem, devendo tal
violação ser analisada pelo Tribunal Constitucional.
Termos em que se requer a aceitação do presente recurso.
O Ministério Público pronunciou-se do seguinte modo:
1. A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2. Na verdade, o reclamante não suscitou, durante o processo e em termos
processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa,
idónea para servir de base ao recurso interposto para este Tribunal
Constitucional.
Cumpre apreciar.
2. A Decisão Sumária considerou que o reclamante não suscitou antes da prolação
da decisão recorrida uma questão de inconstitucionalidade normativa.
O reclamante sustenta que das suas alegações se “depreende” uma questão de
inconstitucionalidade reportada ao artigo 180º do Código Penal.
Ora, das transcrições constantes da presente reclamação resulta inequivocamente
que o reclamante durante o processo se insurgiu contra a decisão (v. nº 2 da
reclamação) ou, dito de outro modo, contra a condenação concreta (v. transcrição
do nº 4 da reclamação).
Nunca identificou uma norma ou dimensão normativa aplicada nos autos.
Como se referiu na Decisão Sumária, o recurso interposto tem por objecto normas
jurídicas e não decisões judiciais.
Refira-se ainda que a exigência que o reclamante não satisfez (a suscitação de
uma questão de constitucionalidade normativa) tem por finalidade possibilitar o
tribunal a quo pronunciar-se sobre a questão de inconstitucionalidade normativa,
cabendo então ao Tribunal Constitucional a última decisão sobre a questão. Mas,
repete-se, tratar-se-á de uma questão que tem necessariamente por objecto uma
norma jurídica e não uma decisão, já que no sistema português não é consagrado o
chamado “recurso de amparo”.
Assim, é manifesto que não se verificam os pressupostos do recurso interposto.
Quanto à alegada violação do artigo 10º da Convenção dos Direitos do Homem, mais
uma vez o recorrente se insurge contra as decisões proferidas nos autos e não
contra uma norma ou dimensão normativa.
Não poderá, portanto, o Tribunal Constitucional apreciar tal questão no presente
recurso.
Improcede, pois, a presente reclamação.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação, confirmando a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 27 de Abril de 2005
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos