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Processo n.º 310/2005
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figuram como recorrente A. e outro e
como recorridos o Ministério Público e outros, foi requerida a abertura da
instrução pelos recorrentes, na qualidade de assistentes, em processo crime a
correr termos no 4º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. Tal
requerimento foi rejeitado, por não cumprir o exigido no artigo 283º, nº 3,
alíneas b) e c), para as quais remete o nº 2 do artigo 287º do Código de
Processo Penal.
Os assistentes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa,
sustentando a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual não há lugar
à prolação de um despacho de aperfeiçoamento do requerimento para a abertura de
instrução apresentado pelo assistente no caso de não serem cumpridas as
exigências do nº 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal.
O Tribunal da Relação de Lisboa considerou o seguinte:
APRECIANDO,
O presente recurso vem interposto do despacho da Sr.a Juiz que entendeu faltar
objecto à instrução pretendida pelos Assistentes, porquanto, os factos relatados
no requerimento de abertura de instrução não constituem uma acusação de forma a
permitir a imputação aos arguidos da prática de um crime, nos termos dos artsº
287º, nº 2, e 283º, nº 3, als. b) e c) do CPP, e, nessa medida, ser a mesma
inadmissível face ao teor do artº 287º, nº 3, do mesmo diploma.
Os Recorrentes reconhecem a existência de imprecisões formais no requerimento de
abertura de instrução, mas não aceitam que não lhes seja dada oportunidade para
procederem ao aperfeiçoamento.
Vejamos.
Nos termos do disposto nos artsº 286º, nº 1, e 287º, nº 1, al. b), do CPP, a
abertura de instrução pode ser requerida pelos assistentes se o procedimento
criminal não depender de acusação, relativamente a factos pelos quais o
Ministério Público não tenha deduzido acusação e visa a comprovação judicial da
decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, tendo em vista submeter
ou não a causa a julgamento.
Ora, no caso de haver sido proferido despacho de arquivamento, como acontece nos
presentes autos, porque o objecto do processo ficará delimitado pelo
requerimento de abertura de instrução, este deve conter 'a narração, ainda que
sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de
uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação
da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer
circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser
aplicada' e 'a indicação das disposições legais aplicáveis' - artsº 287º, nº 2,
e 283º, nº 3, als. b) e c), do CPP.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, in 'Do Processo Penal Preliminar',
fls. 254, 'o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente
constitui, substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento) ou à
acusação decididos pelo Ministério Público”).
E Souto Moura in 'Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de
Processo Penal', ed. Almedina, 1988, pág. 120, 'se o assistente requerer a
instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-se versar, a
instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que
factos é que o assistente gostaria de ver acusados. Aquilo que não está na
acusação e que no entendimento do assistente lá devia estar pode ser mesmo muito
vasto. O juiz de instrução 'não prossegue' uma investigação nem se limitará a
apreciar o arquivamento do MP, a partir da matéria indiciária do inquérito. O
juiz de instrução responde ou não a uma pretensão'.
O requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente, na sequência
de um despacho de arquivamento do Ministério Público, é mais que uma forma de
impugnar o despacho de arquivamento do Ministério Público (para o qual existe a
reclamação hierárquica), consubstanciando uma verdadeira acusação que é dada a
conhecer ao arguido e que constituirá objecto da instrução. Sem a narração,
ainda que sintética, dos factos concretos que fundamentam a aplicação ao arguido
de uma pena ou de uma medida de segurança, a instrução não tem objecto, ou seja
não pode haver instrução, E sem instrução, o debate e a decisão instrutória
constituem uma impossibilidade jurídica e os actos instrutórios actos inúteis,
sendo que ainda que fossem apurados factos os mesmos se viessem a constar da
decisão instrutória esta seria nula, por violação do disposto no artº 309° do
CPP.
Compulsando o referido requerimento de abertura de instrução, verifica-se que
efectivamente, não apresenta os requisitos mínimos exigidos pelas mencionadas
normas legais nos termos especificados no despacho sob recurso, sendo os
próprios Recorrentes a reconhecer as imprecisões formais que fundamentam esse
despacho.
Pelo que, a decisão recorrida não violou qualquer disposição legal,
designadamente o invocado artº 287°, nºs 2 e 3, do CPP, pois, a indicação
concreta de tais factos, é determinante para deferir o requerimento de abertura
de instrução.
Seria, então, caso de mandar 'aperfeiçoar' o requerimento de abertura de
instrução?
A Jurisprudência não tem tratado de forma uniforme esta questão.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa têm sido proferidas decisões no sentido de
não haver lugar a formulação de convite e em sentido contrário.
Nas primeiras, defendendo-se que o convite para o aperfeiçoamento traduzir-se-ia
numa intromissão do tribunal, que envolveria, de alguma forma, uma 'orientação
judicial' reconduzível a procedimento próprio de processo de tipo inquisitório,
configuraria violação dos princípios do acusatório e do contraditório e mesmo
uma injustificada restrição das garantias de defesa do arguido, para além de
violação do prazo peremptório para apresentação de tal requerimento (cfr. Acs
de: 15-05-03, in Proc. 2698/03, 9ª); 19-03-2003, in Proc. 99/03, 3ª;
13-03-2003, in Proc. 10503/02; 05-12-2002, in Proc. 8097/02, 9ª).
Sendo em sentido contrário, as decisões em que se defende que, verificando-se
insuficiência de factos, bem como da indicação de quem são os seus autores e
circunstâncias de tempo e de modo daqueles que são imputados aos arguidos não
pode daí resultar a imediata rejeição do requerimento para abertura de instrução
dado o apertado regime das causas de rejeição. A omissão de requisitos
legalmente exigíveis pelo artº 283° do CPP configurará uma irregularidade que o
juiz de instrução deverá mandar reparar ao abrigo do disposto no artº 123°, nº
2, do CPP, notificando o requerente para a suprir e só em caso de não ser
sanada, deverá ser rejeitada a abertura da instrução (cfr. Acs de: 30-04-2003,
in Proc. 2273/03, 3ª; 05-02-2003, in Proc. 8565/02, 3ª; e 19-03-2003, in Proc.
587/03, 3ª).
Ora, uma vez que o requerimento de abertura de instrução formulado pelos
Assistentes constitui substancialmente uma acusação alternativa (ao arquivamento
ou à acusação deduzida pelo MP) que dada a divergência com a posição assumida
pelo Ministério Público, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial,
se o juiz não pode convidar o MP à reformulação da acusação (nos termos do artº
303° do CPP a alteração dos factos da acusação só podem resultar da instrução ou
do debate instrutório), não poderá igualmente fazê-lo relativamente aos
Assistentes sob pena de tratamento desigual de sujeitos processuais e criar uma
inadmissível desigualdade formal.
Assim, embora não sujeito a formalidades especiais, o requerimento para abertura
de instrução tem de obedecer ao exigido no artº 283°, nº 3, alíneas b) e c), do
CPP, para onde remete o nº 2 do artº 287º do mesmo diploma.
E o nº 3 do artº 287° do CPP, ao tipificar os casos de rejeição, tem obviamente
como pressuposto que tal requerimento reúne os requisitos de forma e de fundo
legalmente consignados, sem os quais se verifica inadmissibilidade legal da
instrução. Em face do que, quando, como no caso dos autos, se verificar
inadmissibilidade legal da instrução, o requerimento para a abertura da mesma
terá que ser rejeitado, atento o teor do nº 3 do artº 287° do CPP, não havendo
lugar a qualquer convite para aperfeiçoamento.
Pelo que a Sr.ª Juiz 'a quo', ao considerar que, por falta de objecto, a
instrução é inadmissível, decidiu correctamente, nos termos do disposto no artº
287°, nº 3, b) e c), do CP, rejeitando o requerimento em causa.
Nestes termos o recurso não pode proceder.
2. Os assistentes interpuseram recurso de constitucionalidade, concluindo o
respectivo requerimento nos seguintes termos:
a) O convite ao aperfeiçoamento não está previsto nas disposições aplicáveis,
mas tem perfeito cabimento constitucional, aliás, como acontece relativamente ao
artigo 412º do CPP, quanto ao recurso e à possibilidade do convite ao
aperfeiçoamento das alegações, faltando qualquer dos requisitos aí previstos,
seja por deficiência ou obscuridade, seja por falta dos requisitos exigidos, com
base no nº 4 do artigo 690º do CPC;
b) Não são inconstitucionais as exigências formais de um recurso, previstas no
artigo 412º do CPP, nem as exigências formais de um requerimento de abertura de
instrução, mas se forem interpretadas no sentido que o seu não cumprimento leve
à rejeição liminar, sem que haja convite ao aperfeiçoamento e suprimento das
deficiências que estejam em causa, até porque os normativos contêm suficiente
espaço de interpretação para possibilitar um entendimento conforme à
Constituição, aí sim, serão;
c) O raciocínio aplicado ao recurso em processo penal deve ser aplicado ao
requerimento de abertura de instrução em processo penal, ou seja, se é
inconstitucional a interpretação de que a falta dos requisitos exigidos para a
interposição de recurso (artigo 412º CPP) implica a sua rejeição liminar sem
convite ao aperfeiçoamento também o deve ser relativamente ao requerimento de
abertura de instrução (artigo 287º do CPP);
d) Assim, o artigo 287º do CPP, ao não permitir o convite ao aperfeiçoamento,
ou as interpretações nesse sentido são em si, e provocam que as decisões
judiciais daí decorrentes violem
– artigos 2º, 3º-2, 20º, 32º, 202º-1 e 2, 203º, e 221º da CRP;
– artigos 1º, nº 1 do artigo 6º, 8º, nº 2 do artigo 9º, nº 1 do artigo 10º,
13º e 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigo 1º do Protocolo nº
1 Adicional à convenção supra mencionada;
– alínea d) do artigo 668º do CPC.
Junto do Tribunal Constitucional, os recorrentes apresentaram alegações que
concluíram assim:
a) O convite ao aperfeiçoamento não está previsto nas disposições aplicáveis,
mas tem perfeito cabimento constitucional, aliás, como acontece relativamente ao
artigo 412º do CPP, quanto ao recurso e à possibilidade do convite ao
aperfeiçoamento das alegações, faltando qualquer dos requisitos aí previstos,
seja por deficiência ou obscuridade, seja por falta dos requisitos exigidos, com
base no nº 4 do artigo 690º do CPC;
b) Não são inconstitucionais as exigências formais de um recurso, previstas no
artigo 412º do CPP, nem as exigências formais de um requerimento de abertura de
instrução, mas se forem interpretadas no sentido que o seu não cumprimento leve
à rejeição liminar, sem que haja convite ao aperfeiçoamento e suprimento das
deficiências que estejam em causa, até porque os normativos contêm suficiente
espaço de interpretação para possibilitar um entendimento conforme à
Constituição, aí sim, serão;
c) O raciocínio aplicado ao recurso em processo penal deve ser aplicado ao
requerimento de abertura de instrução em processo penal, ou seja, se é
inconstitucional a interpretação de que a falta dos requisitos exigidos para a
interposição de recurso (artigo 412º do CPP) implica a sua rejeição liminar sem
convite ao aperfeiçoamento, também o deve ser relativamente ao requerimento de
abertura de instrução (artigo 287º do CPP);
d) Assim, o artigo 287º do CPP, ao não permitir o convite ao aperfeiçoamento,
ou as interpretações nesse sentido são em si e provocam que as decisões
judiciais daí decorrentes violem
– artigos 2º, 3º-2, 20º, 32º, 202º-1 e 2, 203º e 221º da CRP;
– artigos 1º, nº 1 do artigo 6º, 8º, nº 2 do artigo 9º, nº 1 do artigo 10º,
13º e 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigo 1º do Protocolo nº
1 Adicional à convenção supra mencionada;
– alínea d) do artigo 668º do C PC.
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, formulando estas conclusões:
1 - A norma constante dos artigos 287° e 283° do Código de Processo Penal,
interpretada em termos de não impor a formulação de um convite ao
aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução, apresentado pelo
assistente, ferido de verdadeira ineptidão, por não conter uma descrição dos
factos imputados ao arguido, delimitando o objecto fáctico da pretendida
instrução, não viola o direito de acesso à justiça por parte do ofendido.
2 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Maria Argentina da Silva Simões também contra-alegou concluindo o seguinte:
Nestes termos e nos melhores de direito, as normas constantes dos artigos 283º e
287º, ambos do C.P.P., não podem ser interpretadas no sentido de possibilitar um
convite ao aperfeiçoamento ao requerimento de abertura de instrução apresentado
pelo assistente, uma vez que a instrução não tem objecto porque não houve uma
descrição dos factos imputados ao arguido.
Assim, deverá o presente recurso ser considerado improcedente.
Os demais recorridos não contra-alegaram.
Cumpre apreciar.
II
Fundamentação
4. Os recorrentes submetem à apreciação do Tribunal Constitucional a norma
constante dos artigos 287º e 283º do Código de Processo Penal, segundo a qual
não é obrigatória a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento
para abertura da instrução, apresentado pelo assistente, quando esse
requerimento não contém uma descrição, ainda que mínima, dos factos imputados ao
arguido. Os recorrentes consideram que tal interpretação é materialmente
inconstitucional, por violar o direito de acesso à Justiça do ofendido.
Nas alegações do seu recurso de constitucionalidade, os recorrentes invocam
vários Acórdãos do Tribunal Constitucional relativos a questões de
constitucionalidade de normas reguladoras do estatuto do arguido. No
desenvolvimento dos seus argumentos, os recorrentes invocam ainda um acórdão
deste Tribunal sobre matéria de direito processual laboral (o Acórdão nº 299/93)
e outro sobre matéria contra-ordenacional (o Acórdão nº 319/99). Todos os
arestos invocados têm por objecto normas relacionadas com a prolação do despacho
convite para aperfeiçoamento de alegações de recurso (nos que se referem ao
processo penal e ao processo contraordenacional, os recursos em questão foram
apresentados pelo arguido).
No presente caso está em causa o requerimento para abertura da instrução
apresentado pelo assistente.
Ora, o estatuto do assistente não é equivalente ao do arguido. Desde logo, a
Constituição, a par da consagração de todas as garantias de defesa do arguido
(artigo 32º, nº 1), determina que “o ofendido tem o direito de intervir no
processo, nos termos da lei” (artigo 32º, nº 7). É, pois, constitucionalmente
reconhecida uma ampla margem de conformação legislativa da posição processual do
assistente (ofendido) que inviabiliza uma abstracta equiparação entre o estatuto
do assistente e o do arguido.
Tal diferenciação é naturalmente reconhecida pela jurisprudência constitucional,
que reiteradamente tem realçado, a propósito de várias questões relacionadas com
o estatuto do assistente, a diferença entre as posições processuais dos dois
sujeitos do processo penal (cf., a título meramente exemplificativo, os Acórdãos
27/2001 e 259/2002, que serão de novo referidos infra).
Assim, o que é afirmado a propósito das garantias de defesa do arguido não tem
necessariamente aplicação tratando-se do assistente, pelo que a jurisprudência
invocada pelo ora recorrente não tem pertinência significativa nos presentes
autos.
Aliás, em matéria de recursos, a Constituição consagra um direito de defesa do
arguido – de forma expressa após a Revisão Constitucional operada pela Lei
Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, e, segundo a jurisprudência
constitucional constante e unânime, de forma implícita já antes disso –,
enquanto apenas contempla um direito genérico, que não pode ser suprimido in
totum, à impugnação judicial das decisões dos tribunais ou a um duplo grau de
jurisdição nos restantes domínios (o que, à luz do nº 1 do artigo 20º da
Constituição, não inviabiliza, por exemplo, a fixação de uma alçada para a
primeira instância em matéria civil).
5. Importa sublinhar, por outro lado, que no presente processo o requerimento
apresentado pelo assistente não contém os factos cuja prática gera
responsabilidade criminal, ou seja, o requerimento não contém a menção, ainda
que imprecisa, dos fundamentos da responsabilidade criminal do arguido. Desse
modo, o requerimento apresentado não permite a delimitação, em termos
minimamente adequados e inteligíveis, do objecto da instrução cuja abertura foi
requerida.
Não existe, assim, qualquer analogia com as situações (subjacentes a alguns dos
arestos invocados pelo recorrente) em que o recorrente dá cumprimento às
exigências fundamentais a que deve obedecer uma alegação (nomeadamente o ónus de
impugnar os fundamentos da decisão recorrida ou o ónus de formular conclusões) e
apenas se verificam deficiências formais, tais como a especificação nas
conclusões daquilo que já constava das alegações.
No presente caso, a peça processual apresentada não tem, como se referiu, a
virtualidade de desempenhar a função que legalmente lhe é atribuída
(possibilitar a abertura da instrução, fixando o respectivo objecto). Trata-se,
nessa medida, de um requerimento “inepto”. Qualquer convite que fosse formulado
traduzir-se-ia na concessão da possibilidade de repetição do acto (não seria,
portanto, confundível com um mero convite para aperfeiçoamento de acto
anterior).
Assim sendo, é manifesto que nenhum preceito constitucional (ou de outra
natureza) impõe a possibilidade de o assistente praticar de novo um acto que já
praticou no respectivo prazo de modo absolutamente inadequado. O requerimento
apresentado é pois um requerimento “não aperfeiçoável”.
6. Cabe ainda realçar que a representação do assistente por advogado (artigo
70º do Código de Processo Penal) visa garantir uma utilização tecnicamente
adequada dos mecanismos processuais por esse sujeito.
Na verdade, o direito de acesso à Justiça no contexto destes autos concretiza-se
na consagração do direito a requerer a abertura da instrução. Uma vez que é
representado por advogado, o assistente dispõe das condições necessárias para o
exercício de tal direito. Tais condições são, porém, delimitadas por outros
princípios processuais, tais como a celeridade ou a proibição de actos inúteis.
A prática de actos (no caso, a apresentação de um requerimento) de modo a não
permitir a intelegibilidade do núcleo essencial da peça processual produzida não
justifica nem legitima a imposição de um convite ao aperfeiçoamento (que, como
se disse, seria antes a concessão da possibilidade de renovação do acto).
7. Por fim, deve ter-se presente que o reconhecimento da possibilidade de
“renovação” do acto em questão implicaria uma compressão dos direitos de defesa
do arguido, já que a consagração de um prazo para o assistente requerer a
abertura da instrução concretiza a garantia de defesa inerente à fixação da
situação processual do arguido que a não pronúncia origina.
Ora, não se vislumbra fundamento legítimo para tal compressão, já que a
instrução não teve lugar devido a uma actuação processual dos assistentes
manifestamente deficiente (de resto, os próprios assistentes reconhecem nos
presentes autos as deficiências do requerimento apresentado). Nessa medida, a
aludida compressão não é admissível (cf., em sentido próximo, o Acórdão nº
27/2001, já citado).
8. O sentido geral da jurisprudência anterior deste Tribunal aponta para a não
inconstitucionalidade da norma em crise. Com efeito, o Tribunal Constitucional,
no Acórdão nº 259/2002, decidiu não julgar inconstitucionais as normas do artigo
412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a
falta de determinadas menções legalmente exigidas nas conclusões e na
fundamentação das alegações de recurso do assistente não justifica a realização
de um convite para o aperfeiçoamento da peça processual.
E já no Acórdão nº 27/2001 o Tribunal Constitucional apreciara uma questão de
constitucionalidade, reportada ao artigo 287º do Código de Processo Penal,
relativa à decisão que, julgando nulo o requerimento para abertura de instrução
apresentado pelo assistente, impediu este sujeito processual de repetir o acto,
uma vez que já havia decorrido o respectivo prazo. Neste aresto, no qual foi
formulado um juízo de não inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional
entendeu o seguinte:
Assim, no caso em apreço, o assistente defende um interesse constitucionalmente
protegido e, para além disso, o nº 4 do artigo 32º, também da Constituição,
estabelece que “toda a instrução é da competência de um juiz (...)”. É certo que
este preceito constitucional se refere à judicialização da instrução no processo
penal, mas é manifesto que o assistente, em caso de crime público em que o
Ministério Público se pronunciou pelo arquivamento do processo de inquérito, tem
o direito de requerer a abertura da instrução, para assim controlar
judicialmente a posição do Ministério Público. Este direito integra-se
indubitavelmente no conjunto dos diversos poderes de intervenção processual do
assistente e inclui-se no interesse constitucionalmente protegido de uma
intervenção mais eficaz do ofendido no processo penal.
Porém, o que está em causa nos presentes autos é a questão de saber se o decurso
do prazo peremptório para requerer a abertura da instrução impede a renovação de
um requerimento que, tendo sido apresentado com aquela finalidade, foi
considerado nulo. Ou seja, na formulação do recorrente, a questão de saber se o
direito do assistente de requerer a acusação foi desproporcionadamente
restringido.
A este respeito, importa reconhecer que a dimensão garantística do processo
penal, face à sua repercussão nos direitos e liberdades fundamentais do arguido,
obsta, por um lado, a um entendimento de tal processo como um verdadeiro
processo de partes e, por outro, não proporciona uma perspectiva de total
simetria entre os direitos do arguido e do assistente no que se refere ao modos
de concretização das garantias de acesso à justiça.
Ora, nos casos de não pronúncia de arguido e em que o Ministério Público se
decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é
reconhecido ao assistente – e que deve revestir a forma de uma verdadeira
acusação – não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual
acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a
sua apresentação.
O estabelecimento de um prazo peremptório para requerer a abertura da instrução
– prazo esse que, uma vez decorrido, impossibilita a prática do acto – insere-se
ainda no âmbito da efectivação plena do direito de defesa do arguido. E a
possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de
instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder ainda repetir, de novo, um tal
requerimento para além do prazo legalmente fixado, é, sem dúvida, violador das
garantias de defesa do eventual arguido ou acusado. Com efeito, a
admissibilidade de renovação do requerimento não permitiria que transitasse o
despacho de não pronúncia, assim desaparecendo a garantia do arguido de que, por
aqueles factos não seria de novo acusado.
Se se focar, agora, a perspectiva do direito da assistente de deduzir a acusação
através do requerimento de abertura da instrução, a não admissibilidade de
renovação do requerimento por decurso do prazo não constitui uma limitação
desproporcionada do respectivo direito, na medida em que tal facto lhe é
exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível
concretização - uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido.
Dir-se-á, por último, que do ponto de vista da relevância constitucional merece
maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que
protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias
decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do
arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes
para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito.
Este balanceamento dos interesses em causa basta para mostrar que a aceitação da
exclusão do direito de renovar um requerimento nulo pelo decurso do prazo
peremptório fixado não desencadeia uma limitação excessiva ou desproporcionada
do direito de acusar do assistente, pelo que o recurso de constitucionalidade
não pode proceder.
Tais considerações são também aplicáveis, com as necessárias adaptações, no
presente processo.
Conclui-se, por tudo o que foi dito, pela não inconstitucionalidade da norma
apreciada.
III
Decisão
9. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional
a norma constante dos artigos 287º e 283º do Código de Processo Penal, segundo a
qual não é obrigatória a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do
requerimento para abertura da instrução, apresentado pelos assistentes, que não
contenha uma descrição dos factos imputados ao arguido, negando,
consequentemente, provimento ao recurso e confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 14 de Julho de 2005
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos
Tem voto de conformidade o Excelentíssimo Senhor Conselheiro Benjamim Rodrigues,
que não assina por não poder estar presente.
Maria Fernanda Palma