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Processo n.º 503/04
3.ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. instaurou acção ordinária contra B., pedindo que fosse
“decretada a cessação do contrato de arrendamento” comercial da loja n.º ---, do prédio com os números -- a --, sito na Rua ----------------- (antiga Rua do
-----------), freguesia do -----------------, em Lisboa e que se condenasse a Ré a restituir o locado e a pagar à autora a quantia de Esc. 2.000.000$00, por prejuízos até então sofridos, acrescida de Esc. 200.000$00 mensais, até à restituição da loja. Alegou a autora, em síntese, que a loja foi dada de arrendamento à ré, por escritura pública outorgada em 15 de Junho de 1959, que o artigo 1025º do Código Civil (aplicável de acordo com o respectivo artigo 12º) “estabeleceu o limite de
30 anos para a duração máxima da locação” e que o arrendamento pode cessar, nos termos do artigo 50º do Regime do Arrendamento Urbano, “por outras causas determinadas na lei”, para além do acordo das partes, da resolução, da caducidade ou da denúncia.
Por sentença da 3ª Secção da 1ª Vara Cível da Comarca de Lisboa de
24 de Fevereiro de 2003, de fls. 121, a acção foi julgada improcedente, com a seguinte justificação:
“Nos termos do artigo 1º do RAU «arrendamento urbano é o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição». Já no Código Civil de Seabra, de 1867, o arrendamento era um contrato temporário, que podia fazer-se pelo tempo que aprouvesse aos estipulantes (artº
1600º), com um prazo supletivo de seis meses (artº 1623º); e chegado ao seu termo presumia-se renovado «se o arrendatário se não se tiver despedido ou se o senhorio o não despedir» (artº 1624º). Durante a 1ª Grande Guerra, a Lei n.º 828, de 28-9-1917, proibiu «aos senhorios
(...) intentarem acções de despejo que se fundem em não convir-lhes a continuação do arrendamento, seja qual for o quantitativo das rendas» (artº 2º, n.º 5). A Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, manteve a regra da renovação automática, permitiu a actualização das rendas fora de Lisboa e Porto e «congelou-as» nestas duas cidades. Este esquema foi mantido no Código Civil de 1966 (artº 1105º e artº 10º, este último do Decreto-Lei n.º 47.334, de 25 de Novembro de 1966). Nos termos do artº 1025º do Código Civil de 1966 a locação não pode celebrar-se por mais de 30 anos. Todavia, como advertem P. de Lima e A. Varela (in Código Civil Anotado, 4.ª ed., vol. II, págs. 348 e 509), o limite máximo de 30 anos não pode aplicar-se à duração locatícia proveniente da renovação do contrato, por força do disposto no artº 68º do R.A.U., visto serem distintas as circunstâncias em que o contrato se inicia, na exclusiva disponibilidade das partes e as condições em que a relação se prorroga, por força da lei. E quase sempre não é permitido ao senhorio denunciar o arrendamento (cfr. artºs
68º e 69º do R.A.U.). Por outro lado, o artº 6º do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30/9, determina a não aplicação das normas do actual artº 118º do R.A.U. (que se refere a prazo para denúncia do contrato de arrendamento para comércio ou indústria) aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor. Assim, e não se enquadrando o caso em análise em nenhum dos casos dos artºs 68º,
69º, 118º do R.A.U., julgo improcedente a acção, absolvendo a ré dos pedidos.”
2. Inconformada, A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, chamando nomeadamente a atenção para que se não tratava de uma acção de denúncia do contrato de arrendamento, como erradamente tinha entendido a sentença da 1ª instância. Assim, nas alegações então apresentadas, a autora acusou tal sentença de, “ao julgar assim, enferma[r] de ilegalidades e erros de julgamento, decorrentes desde logo de se erigir no equívoco de erradamente supor que se trata, no caso presente, de uma denúncia do contrato por conveniência do senhorio, quando na realidade se trata de cessação imperativa do contrato por determinação de ordem pública decorrente do artigo 1025º do Código Civil (...)”, cessação essa que, embora “conceptualmente” possa ser classificada como de caducidade, não se enquadra no âmbito dos artigos 1051º ou 1056º do Código Civil mas, diferentemente, entre as “outras causas determinadas na lei” para a extinção do contrato, nos termos do disposto no artigo 50º do Regime do Arrendamento Urbano.
Aliás, alegou ainda a autora, sendo exigível “escritura pública para a validade dos arrendamentos comerciais”, nos termos do disposto no “artigo
1029º do C. Civil e 7º-2-b) da anterior redacção do RAU', uma vez “que (...) se extinguira por força do artigo 1025º do C. Civil”, nunca o arrendamento se poderia ter renovado, “pelo que, ao julgar que o arrendamento se renovou, a douta sentença incorreu em erro de julgamento e violação dessas normas”.
A autora insistiu, assim, ao longo das referidas alegações – de acordo, naturalmente, com os termos em que propusera a acção – que “o caso dos autos não é um caso de denúncia, mas de extinção do arrendamento por limite do tempo máximo da sua duração, não sendo regulado pelo instituto da denúncia do arrendamento, mas imperativamente imposto pelo artigo 1025º do C. Civil (...)”.
Por acórdão de 9 de Julho de 2003, de fls. 160 e seguintes, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, afirmando, após ter concluído que
“aquele limite máximo de trinta nos, valendo para a estipulação do prazo do contrato, não abrange as renovações impostas por lei”, o seguinte:
“Não se discute que a não aplicação do limite temporal previsto no artº 1025º do CC à duração da relação locatícia – nesse sentido interpretando as normas do direito do arrendamento que impõem ao senhorio a renovação do contrato no termo do prazo –, se configura como limitação ao direito de propriedade, sendo como é elemento essencial deste direito a livre disponibilidade da própria propriedade.
Todavia, convém lembrar que, tal como acontece com os demais, também o direito de propriedade comporta limites, sobretudo quando em colisão com outros direitos fundamentais e igualmente merecedores de protecção jurídica.
Por isso, enquanto legítimo definidor e prossecutor dum projecto económico-social comum, com tradução na Lei Constitucional, cabe ao Estado intervir de forma a harmonizar todos os interesses com vista à realização desse projecto.
Nesse enquadramento, é lícito entender que estando em causa interesses gerais da comunidade e tão caros a esta como são os interesses económicos e sociais que subjazem a todas as relações locatícias, o Estado, no exercício da actividade legislativa, possa consagrar limitações ao direito de propriedade privada, na regulamentação que lhe cabe no âmbito do direito do arrendamento, nomeadamente, dentro de um objectivo de protecção do arrendatário, como parte institucionalmente mais fraca, assegurando, por essa forma, o equilíbrio de interesses em conflito, no sentido do favorecimento deste, pela sua não colocação, sem violação contratual, no sempre difícil mercado da locação, sobrando, como contrapartida, para o senhorio a actualização ordinária ou extraordinária da respectiva renda.
Nesta perspectiva não nos parece, salvo o devido respeito, que o entendimento defendido viole as normas e princípios do direito constitucional que a recorrente, de forma enunciativa, refere.”
3. Ainda inconformada, A. interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça. Frisando, mais uma vez, que “o caso dos autos não é de denúncia”, nem, aliás, como acrescenta, de resolução do contrato, e que o arrendamento em discussão se extinguiu por decurso do prazo de 30 anos previsto no artigo 1025º do Código Civil, escreveu então a autora:
“Note-se, determinantemente, que a incidência do artigo 1025º do C. Civil é diferente da denúncia por conveniência do senhorio. O caso de extinção por decurso da duração máxima estabelecida pelo falado artigo 1025º não é de denúncia, sendo uma modalidade sui generis de extinção do arrendamento por imposição legal de ordem pública. Esse fundamento tem, aliás, encaixe no artigo
50º do RAU, conjugando-se com ele, quando aí se enumera como causa de extinção do arrendamento ‘ou por outras causas determinadas na lei’. Mas não seria necessário que (...) tivesse enquadramento no RAU, porque se trata, no caso do artigo 1025º, de uma norma marcadamente estruturante e de ordem pública de força superior, espécie de ‘grundnorm’ da duração do arrendamento, a que se subordinam as demais normas limitadoras ou condicionantes dessa duração, o que, no sistema normativo vigente, se traduz em as normas determinantes da renovação dos contratos e de proibição do despejo operarem plenamente até ao limite de 30 anos, momento em que o arrendamento se extingue, não por denúncia, mas por imperativo de ordem pública decorrente do artigo 1025º do C. Civil, sendo despropositado chamar à liça o artigo 68º do RAU ou outras normas sobre o instituto da denúncia ou da resolução”. E veio ainda sustentar que “as normas dos artigos 50º, 64º e 68º do RAU e 1025º do Código Civil interpretadas no sentido de que o arrendamento se prorroga ou renova automática e indefinidamente contra a vontade do senhorio, mesmo para além do somatório de 30 anos de duração do arrendamento resultante das sucessivas prorrogações ou renovações, são ilegais e inconstitucionais, por violação dos princípios do Estado de Direito, designadamente dos da igualdade, proibição de arbítrio, proporcionalidade, e do conteúdo do direito de propriedade, violando, designadamente, as normas e princípios dos artigos 2º,
3º-2, 13º , 16º, 17º, 18º-2 e 3, 62º da CRP e 14º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (‘Convenção Europeia dos Direitos do Homem’) e do artigo 1º do seu Protocolo Adicional sobre a protecção da propriedade”.
Por acórdão de 2 de Março de 2004, de fls. 203, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, pelos seguintes motivos:
“2. Cessação do contrato de arrendamento: O ajuizado contrato de arrendamento comercial foi celebrado pelo prazo de seis meses, prorrogável, e já dura há mais de 30 anos . Sustenta a recorrente que o limite do prazo de 30 anos previsto no art. 1025 do Cód. Civil vale não só para a constituição do contrato de locação, como também para a sua renovação . Daí defender que o objecto do contrato em análise se extinguiu decorridos que foram 30 anos sobre o início da vigência do Cód. Civil de 1966, ou seja, em
1-6-97, por força das disposições combinadas dos arts 1025 e 297 do C.C..
Todavia, o Acórdão recorrido (tal como a primeira instância), decidiu que o limite do referido prazo de 30 anos apenas vigora para a constituição do contrato e não também para sua renovação, pelo que a vigência do contrato se mantém. Que dizer ? A razão está do lado da Relação. Dispõe o art. 1025 do Cód. Civil que a locação não pode celebrar-se por mais de
30 anos; quando estipulada por tempo superior, ou como contrato perpétuo, considera-se reduzida àquele limite . Deve entender-se que o mencionado preceito se refere aos prazos por que os contratos de arrendamento são celebrados e não aos prazos da sua duração, por motivo de sucessivas renovações, pois o citado art. 1025, tal como resulta da sua epígrafe, estabelece apenas o prazo de duração máxima que as partes podem convencionar, o que não abrange as renovações impostas por lei, funcionando a favor do inquilino . Com efeito, os contratos de arrendamento urbano renovam-se automaticamente – arts 68 e segs do RAU e 1054 do C.C., embora possam ser celebrados contratos para habitação de duração limitada por prazo não inferior a cinco ou três anos, desde que a respectiva cláusula seja inserida no texto escrito do contrato, assinado pelas partes – art. 98 do RAU; e, também, de duração limitada, para comércio, indústria, profissões liberais ou outra aplicação lícita do prédio, por prazo não inferior a cinco anos – arts 117, 118, 121 e 123 do RAU.
Não há prazos mínimos para a duração dos contratos de arrendamento, o que não podem é celebrar-se por mais de 30 anos . Quando estipulada por tempo superior, a locação considera-se reduzida àquele limite . Como observam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª ed., págs. 348 e 509), o limite máximo de trinta anos não pode aplicar-se à duração locatícia proveniente da renovação do contrato, por força do disposto no art. 68 do RAU, visto serem manifestamente distintas as circunstâncias em que o contrato se inicia, na exclusiva disponibilidade das partes, e as condições em que a relação se prorroga, por força da lei. No mesmo sentido, opina o Conselheiro Aragão Seia (Arrendamento Urbano, 7.ª ed., pág. 497 e 638), quando escreve que o art. 1025 do C.C. 'vale apenas para a constituição do contrato, mas já não para a renovação do mesmo.
Ou seja, não se pode celebrar um contrato de arrendamento para habitação por prazo superior a 30 anos, o que é um modo de defender o arrendatário que, sendo no contrato a parte mais fraca, podia ver-se coagido a aceitar arrendamentos por prazos que lhe retiravam toda a liberdade. As prorrogações do contrato essas já não estão sujeitas a esse limite de duração: desde logo, porque elas funcionam a favor do inquilino, e, para acautelar a imposição do senhorio, é suficiente a possibilidade de denúncia do contrato, verificadas as condições legais, ou da sua resolução quando ocorra motivo de despejo '.
Considerações idênticas valem para o contratos de arrendamento para comércio, pois a lei não impõe para tais arrendamentos de pretérito diferente disciplina em matéria de renovação . Anote-se que o art. 118 do RAU é um preceito novo, que foi introduzido pelo dec-lei 257/95, de 30 de Setembro, não aplicável aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, por força do disposto no art. 6 do referido dec-lei.
É obvio que a não aplicação do limite temporal do art. 1025 do C.C. à duração da relação locatícia se configura como uma limitação ao direito de propriedade do senhorio, pois é elemento essencial deste direito a sua livre disponibilidade . No entanto, não pode olvidar-se que o direito de propriedade também comporta limites, designadamente quando colide com direitos dos inquilinos, igualmente merecedores de tutela jurídica . Neste enquadramento, como já se salienta no Acórdão recorrido, 'é lícito entender que estando em causa interesses gerais da comunidade e tão caros a esta, como são os interesses económicos e sociais que subjazem a todas as relações locatícias, o Estado, no exercício da actividade legislativa, possa consagrar limitações ao direito de propriedade privada, na regulamentação que lhe cabe no âmbito do direito de arrendamento, nomeadamente, dentro de um objectivo de protecção do arrendatário, como parte institucionalmente mais fraca, assegurando, por essa forma, o equilíbrio dos interesses em conflito, no sentido do favorecimento deste, pela sua não colocação, sem violação contratual, no sempre difícil mercado da locação' (fls 166). Para acautelar a posição do senhorio, fica a possibilidade de actualização da renda e a denúncia do contrato, verificadas as condições legais, ou da sua resolução, quando ocorra motivo de despejo. A solução legal é materialmente fundada em razões que a justificam. Por isso, não é arbitrária. Ora, o arbítrio é que é repudiado, em última instância, pelos princípios do Estado de Direito, designadamente, pelos princípios do conteúdo do direito de propriedade, da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade. Por isso, os arts 50°, 64° e 68° do RAU e 1025, do C.C., na interpretação defendida, não são inconstitucionais. Não se mostram violados os invocados arts 2°, 3º, nº 2, 13º, 16°, 17°, 18°, nos
2 e 3, e 62° da Constituição da República Portuguesa, nem o art. 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nem o art. 1º, do seu Protocolo Adicional, sobre a protecção do direito de propriedade. Termos em que negam a revista.
(...)”
4. Novamente inconformada, A. veio recorrer para o Tribunal Constitucional “ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da LTC”. Pretende a recorrente que o Tribunal aprecie a constitucionalidade das normas dos “artigos
50º, 64º e 68º do RAU, e 1025º do C. Civil, interpretadas com o sentido com que as interpretou o acórdão recorrido, segundo o qual o arrendamento se renova automática, obrigatória e indefinidamente, se o inquilino o não denunciar, mesmo para além da duração de 30 anos estabelecida no artigo 1025º do C. Civil, resultante do somatório das várias prorrogações ou «renovações», sendo que tais normas, assim interpretadas com esse sentido, violam as normas e princípios do Estado de Direito, designadamente dos da igualdade, proibição do arbítrio, proporcionalidade, e do conteúdo do direito de propriedade, e violando assim as normas e princípios dos artigos 2º, 3º, n.º 2, 13º, 16º, 17º, 18º, n.º 2 e n.º
3, 62º da CRP e 14º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e do artigo
1º sobre a protecção do direito de propriedade, do seu Protocolo Adicional”.
Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações.
A recorrente formulou as seguintes conclusões:
“...
3. Ao contrário do que decidiu o acórdão recorrido, a determinação do artigo
1025º do C. Civil impõe imperativamente, por razões de interesse e ordem pública, que o arrendamento não pode durar mais que trinta anos, sendo fraudulenta a interpretação acolhida no acórdão, segundo a qual, o prazo de 30 anos pode ser ultrapassado indefinidamente pela estipulação de prazo menor, prorrogável! Tal interpretação é como se, para não pagar IRS, se dividisse o rendimento por tantas declarações quantas as necessárias para cada uma delas só conter rendimento mínimo isento de tributação!
4. Efectivamente, o normativo do artigo 1025º do Código Civil é estruturante, de interesse e ordem pública, e a «grundnorm» da temporalidade do arrendamento, pelo que quaisquer normas modeladoras ou condicionantes da duração da locação, designadamente as que proíbem a denúncia pelo senhorio e determinam a renovação do arrendamento, têm que se harmonizar com ele e operarem o seu horizonte temporal, e onde já não for possível a harmonia, por exaustão do tempo máximo de
30 anos, cederem perante ele.
5. O arrendamento objecto da presente acção extinguiu-se, decorridos que foram
30 anos sobre o início de vigência do Código Civil de 1966, ou seja, em 1 de Junho de 1997, por força do falado artigo 1025º.
6. As normas dos artigos 50º, e 68º, n.º 2, do RAU e 1025º do Código Civil, e quaisquer outras referentes ao arrendamento, interpretadas no sentido em que, implícita ou explicitamente, as interpretou o acórdão recorrido, de que o arrendamento se prorroga ou renova automática, obrigatória e indefinidamente contra a vontade do senhorio, mesmo para além dos 30 anos de duração resultante do somatório das sucessivas prorrogações ou renovações, são ilegais e inconstitucionais, por violação das normas e princípios do Estado de Direito, designadamente dos da igualdade, não discriminação, proibição do arbítrio, legalidade democrática, necessidade e proporcionalidade, e do conteúdo do direito de propriedade, violando, assim, designadamente as normas e princípios dos artigos 2º, 3º, n.º 2, 13º, 16º, 17º, 18º, n.º 2 e n.º 3, 62º da CRP e 14º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e do artigo 1º do seu Protocolo Adicional, sobre a protecção do direito de propriedade (artigo 8º da CRP).
7. Com efeito, nessa interpretação, um tal regime de arrendamento forçado e tendencialmente eterno, decorrente de renovações ou prorrogações forçadas indefinidamente a favor do inquilino, constitui para o senhorio uma situação discriminatória de servidão e de limitação desnecessária e injustificada do seu direito de propriedade, em violação dos referidos normativos constitucionais que pressupõem, além do mais, os limites em que o referido artigo 1º do Protocolo Adicional à Convenção de Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (que é direito interno – cfr. artigo 8º da CRP) o consente, dado que não é do interesse geral nem é função social do direito de propriedade, que o senhorio seja obrigado a manter um arrendamento perpétuo e de renda de favor, independentemente da condição social do inquilino e do senhorio, e em concreto, a favor de uma sociedade comercial, de óbvios fins lucrativos.
8. Efectivamente, a conjugação dos mecanismos normativos de imposição ao senhorio da continuação indefinida do arrendamento e da renda simbólica irrealista a favor do inquilino, conforme os factos, aliás notórios e, por isso, insonegáveis, alegados nos artigos 9º a 11º da p. i., que aqui se dão por reproduzidos, bem como da ficção da personalidade jurídica da sociedade arrendatária, e da consequente possibilidade de substituição ou mudança dos respectivos sócios sem extinção nem transformação da sociedade, tornam, na realidade, a situação da relação de arrendamento numa servidão pessoal do senhorio, e num esvaziamento injustificado do direito de propriedade, degradando-o e pervertendo-o numa condição de servidão do seu titular a favor do inquilino, grosseiramente mascarada por um simulacro formal de existência do direito.
9. Aliás, o acórdão recorrido, ditou que o artigo 1025º do C. Civil foi instituído para proteger o inquilino, e cita, nesse sentido, o ditame da anotação de A. Varela ao referido artigo 1025º, na 4.ª do seu Código Civil Anotado, a qual é inconsequentemente oportunista, em enigmática oposição às anotações anteriores do mesmo autor, nas edições anteriores da mesma obra, como se vê da anotação por ele feita ao falado artigo, na 3.ª ed., e que se transcreve:
«Os contratos celebrados por mais de trinta anos não são nulos: consideram-se reduzidos ao limite legal. Não se verifica, porém, um fenómeno de redução, tal como está previsto no artigo 292º, pois a limitação do prazo impõe-se, mesmo que não seja essa a vontade conjectural das partes. Trata-se de uma redução que exprime uma limitação de ordem pública. Entende-se haver inconvenientes, quer no aspecto económico, quer no plano social, em que o gozo de determinada coisa seja obrigatoriamente concedido para um período demasiado dilatado de tempo a quem não seja o seu proprietário ou usufrutuário» (sic).
10. Mas a situação decorrente da interpretação feita dos referidos normativos pelo acórdão recorrido, não se traduz apenas numa usurpação da propriedade, mas pior ainda, numa condição de servidão do senhorio, injustificadamente onerado a favor de outrem, com vínculos e encargos discriminatórios que não atingem a generalidade dos cidadãos, sendo, assim, uns cidadãos mais cidadãos e iguais que outros, o que no mínimo atinge o princípio da não discriminação inerente ao princípio do Estado de Direito e, aliás, explícito no artigo 26º da CRP e profuso no seu artigo 13º.
11. Aliás, o artigo 18º, n.º 3, da CRP diz que «as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais», sendo que a generalidade e abstracção têm que ser materializadas de forma que não consintam interpretações de normas que onerem arbitrariamente grupos específicos de cidadãos em vez da repartição equitativa dos encargos pela generalidade dos mesmos, acrescendo que a situação do arrendamento objecto dos autos diminui acentuadamente o alcance dos preceitos constitucionais que enumeramos como violados.
12. Ninguém se esqueça, nem perverta, que, nos termos do artigo 18º, n.º 2, da CRP, as restrições aos direitos devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e que só por facciosismo, preconceito, ou cegueira intelectual, se pode balbuciar que o quadro situacionista do caso equacionado traduza a medida necessária de restrição dos direitos do proprietário para salvaguarda de qualquer outro legítimo direito, designadamente de suposto direito do inquilino
(na realidade de sucessores do inquilino) à ocupação forçada, eterna e tendencialmente gratuita do locado. Chamamos, pois, aqui à liça o pudor, que, tal como a Moral, entendemos que também, não foi banido da ordem interna portuguesa.
...”
A recorrida não alegou.
5. Cumpre começar por precisar o objecto do recurso, tendo em conta que se trata de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Como se sabe, este recurso destina-se a que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b) citada), e não das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da Constituição e da lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr. a título de exemplo, os acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de
1995 e 16 de Maio de 1996).
É, ainda, necessário que tal norma tenha sido aplicada com o sentido acusado de ser inconstitucional, como ratio decidendi (cfr., nomeadamente, os acórdãos nºs
313/94, 187/95 e 366/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de
1996); e que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo”
(citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), como se disse, o que significa que há-de ter sido colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”
(nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82). Para além disso, o Tribunal Constitucional tem também repetidamente observado que o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica, como se sabe, que é condição de conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão do julgamento que nele venha a ser efectuado na decisão recorrida (cfr., além do citado acórdão n.º 366/96, o acórdão n.º
463/94, Diário da República, II série, de 22 de Novembro de 1994).
6. Tendo em conta o que acabou de se recordar, passa-se então precisar o objecto do recurso, susceptível de ser apreciado pelo Tribunal Constitucional.
Assim, e em primeiro lugar, não vai o Tribunal Constitucional discutir qual a melhor interpretação das normas de direito ordinário aplicável, como a recorrente entendeu fazer nas suas alegações. Há que tomar como objecto do recurso as normas tal como foram interpretadas e aplicadas pela decisão recorrida, por um lado, e impugnadas, por outro, e analisá-las à luz das regras e princípios constitucionais pertinentes.
Em segundo lugar, e justamente porque no recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade apenas se podem questionar e apreciar normas, e não decisões, o Tribunal Constitucional não pode tomar em conta as inconstitucionalidades apontadas em particular nas conclusões 11 e 12, para justificar a violação dos n.ºs 2 e 3 do artigo 18º da Constituição, definidas em termos indissociáveis da decisão do caso.
Em terceiro lugar, não é exacto que o acórdão recorrido tenha aplicado as normas constantes dos preceitos indicados no requerimento de interposição de recurso – os artigos 50º, 64º e 68º do Regime do Arrendamento Urbano e 1025º do Código Civil – considerando que das mesmas resultava “que o arrendamento se renova automática, obrigatória e indefinidamente, se o inquilino o não denunciar, mesmo para além da duração dos 30 anos estabelecida no artigo
1025º do C. Civil (...)”, como ali se indica ao definir o objecto do recurso.
É certo que o acórdão recorrido aplicou o artigo 1025º do Código Civil, conjugado com os outros preceitos, para concluir que o prazo de 30 anos ali previsto “se refere aos prazos por que os contratos de arrendamento são celebrados e não aos prazos da sua duração, por motivo de sucessivas renovações”. Mas é igualmente certo que, nem considerou relevante saber se a denúncia podia provir do inquilino ou do senhorio, nem afirmou, como se vê, que o senhorio tinha ou não direito de denúncia; note-se, aliás, que é o que está de acordo com a acção que a autora propôs, em cujo contexto qualquer distinção de poderes entre as partes, no que respeita à duração do contrato, é irrelevante.
Por esse motivo, e porque ainda se pode considerar contida no objecto do recurso que a autora defende, o Tribunal Constitucional apenas vai conhecer das normas referidas na dimensão em que foram aplicadas, ou seja, enquanto interpretadas no sentido de o prazo de 30 anos previsto no artigo 1025º do Código Civil apenas valer para a constituição do contrato, e não para a sua duração total, resultante de sucessivas renovações, como entendeu o acórdão recorrido.
Em quarto lugar, cabe também desde já esclarecer, tendo em conta a apontada característica da instrumentalidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, que só vai ser considerada a argumentação que possa relevar para apreciar a conformidade com a Constituição das normas referidas enquanto entendidas no sentido de que o arrendamento se pode manter por mais de 30 anos. É que, como a autora por diversas vezes observa, e como se pode verificar pelas transcrições atrás efectuadas, a acção proposta não é uma acção de denúncia, e assenta na extinção – imperativa para ambas as partes do contrato – por mero decurso do prazo de 30 anos, por efeito automático do artigo
1025º do Código Civil. Seria, pois, inútil, do ponto de vista do julgamento do recurso de constitucionalidade, analisar quaisquer normas (ou considerar quaisquer argumentos) que definam regimes de denúncia diversos para o senhorio e para o inquilino. Note-se, aliás, que, em coerência com os termos em que propôs a acção, a autora não questiona, nem na acção, nem no recurso de constitucionalidade, as limitações legais ao direito de denúncia pelo senhorio, que, como se sabe, e diversamente do que sucede com o inquilino, não tem o poder de se opor à renovação do contrato, invocando apenas o termo do prazo em curso. Assim, não integrando o objecto do presente recurso as normas relativas ao regime da denúncia, e não podendo o Tribunal Constitucional ir além do objecto definido pelo recorrente, não se vai colocar no âmbito deste recurso qualquer dúvida sobre a sua constitucionalidade. A outra conclusão não nos leva, seguramente, o facto de a recorrente, nas conclusões das alegações de recurso, se limitar a referir o n.º 2 do artigo 68º do Regime do Arrendamento Urbano, relativo à denúncia pelo senhorio, parecendo querer deixar de fora o n.º 1, respeitante à denúncia pelo arrendatário. É que, se foi esse o objectivo da discrepância com o requerimento de interposição de recurso, não pode o Tribunal Constitucional aceitar tal alteração. Em primeiro lugar, porque não se trataria de uma mera redução do objecto do recurso, mas de uma alteração, impossível nas alegações; em segundo lugar, porque, se tal alteração pudesse ser atendida, então o recurso deixava de ter utilidade, nos termos já apontados.
Finalmente, e por estas mesmas razões, sobretudo por também não terem sido incluídas no objecto do recurso quaisquer normas que lhe digam respeito, o Tribunal Constitucional não pode tomar em consideração os comentários feitos pela recorrente sobre o regime de renda do contrato de arrendamento.
Em resumo, a questão de constitucionalidade a tratar consiste em saber se não viola a Constituição entender que o prazo máximo de 30 anos constante do artigo 1025º do Código Civil apenas vale para a “constituição do contrato de locação” e não para o prazo “da sua duração, por motivo de sucessivas renovações”, sendo certo que “os contratos de arrendamento [se] renovam automaticamente – arts 68 e segs do RAU (...)”, como se escreveu no acórdão recorrido.
O que está em julgamento é um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade e não uma apreciação, em abstracto, do regime do arrendamento urbano, nem mesmo do arrendamento para fins comerciais.
7. Foi com a entrada em vigor do Código Civil de 1966, como se sabe, que a lei introduziu como limite à “duração máxima” do contrato de locação o prazo de 30 anos. Segundo o texto do artigo 1025º, cuja epígrafe é, justamente,
“Duração máxima”,
“A locação não pode celebrar-se por mais de trinta anos; quando estipulada por tempo superior, ou como contrato perpétuo, considera-se reduzida àquele limite”.
Tal como foi interpretada pela decisão recorrida, este preceito tem por objectivo excluir a possibilidade de estipular como prazo de duração do contrato – sendo a locação um contrato temporário por definição (artigo 1022º do Código Civil) – um prazo superior a 30 anos; se as partes convencionarem um prazo superior, ou um contrato perpétuo, passa a valer automaticamente aquele prazo, sem necessidade de se verificarem os requisitos gerais de redução dos negócios jurídicos (artigo 292º, também do Código Civil).
Ainda que se possa ver nesta norma uma intenção de protecção dos interesses do locatário, à primeira vista, pelo menos, é o locador que sai protegido por uma regra que o impede de onerar a sua propriedade por tempo superior.
Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que este artigo não tem também como efeito o de impedir que os contratos de locação, por funcionamento dos mecanismos de renovação no termo do prazo – tratando-se de arrendamento urbano, previstos no artigo 68º do Regime do Arrendamento Urbano –, venham a permanecer em vigor durante tempo superior; e é essa interpretação que a ora recorrente contesta.
Contesta-a, desde logo, do ponto de vista da interpretação das diferentes normas de direito ordinário, que considera deverem subordinar-se
àquele limite máximo. Essa subordinação, sustenta a autora, implica que, decorrido o prazo de 30 anos, o contrato se extinga imperativamente; se pretenderem continuar com o arrendamento, as partes têm, então, de celebrar, segundo a forma legalmente exigida (escritura pública, no arrendamento comercial), um novo contrato. Mas a verdade é que, ainda que assim se não entenda, não perde naturalmente sentido a determinação da impossibilidade de convencionar um prazo de duração superior a 30 anos, tendo naturalmente em conta a possibilidade que as partes têm, embora em termos significativamente diferentes, de pôr termo ao contrato no fim de cada prazo.
A recorrente considera é que só a interpretação que perfilha é que é permitida pelos princípios constitucionais que enumera, e que são violados por aquela que o acórdão recorrido fez prevalecer.
8. A recorrente aponta à norma em apreciação neste recurso a violação “dos princípios do Estado de Direito, designadamente dos da igualdade, proibição do arbítrio, proporcionalidade, necessidade, e do conteúdo do direito de propriedade, violando, designadamente as normas e princípios estatuídos nos artigos 2º, 3º-2, 13º, 16º, 17º, 18º-2 e 3, 62º da CRP e 14º” da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e “do artigo 1º do seu Protocolo Adicional sobre a protecção da propriedade (artigo 8º da CRP)”.
Desta afirmação e da subsequente argumentação depreende-se que a acusação de violação “dos princípios do Estado de Direito” se traduz na infracção dos princípios constitucionais que a seguir enuncia.
Assim, a recorrente invoca a violação do princípio da igualdade e da não discriminação, referindo-se aos artigos 13º e, na conclusão 10º, ao artigo
26º da Constituição.
Deixando de lado a referência ao artigo 26º, não concretizada e cuja pertinência não se afigura clara, a recorrente situa a infracção da regra da igualdade e da não discriminação no plano da comparação entre a posição do senhorio-proprietário e dos demais proprietários, por um lado, e das partes concretas do contrato, por outro.
Sucede que, relativamente aos primeiros, não concretiza a comparação que faz, tornando impossível a análise da questão que coloca. Para além disso, basta atentar nos regimes definidos pela lei civil, por exemplo, para os direitos reais menores – que, tal como o arrendamento, podem ser constituídos por contrato –, para a oneração que implicam para o proprietário e para a duração possível dessa oneração, para verificar que, na falta de explicitação da desigualdade apontada, não é possível ao Tribunal Constitucional concluir pela inconstitucionalidade por este fundamento.
Quanto à segunda, já se disse não ter sentido no presente recurso, tendo em conta os termos em que a acção foi proposta pela ora recorrente.
9. Sustenta seguidamente a recorrente que ocorre também a violação dos princípios da “proporcionalidade, necessidade, e do conteúdo do direito de propriedade”, à luz, quer da Constituição (artigos 17º, 18º e 92º), quer do artigo 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem “do artigo 1º do seu Protocolo Adicional sobre a protecção da propriedade (artigo 8º da CRP)”.
Começando por este segundo ponto, cabe notar que, uma vez mais, a recorrente está a pretender que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre um fundamento de uma (alegada) inconstitucionalidade cuja apreciação não é possível no recurso que interpôs. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente, após a alteração da Lei nº 28/82, operada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, a sua competência na fiscalização concreta da compatibilidade de normas de direito ordinário português com uma convenção internacional circunscreve-se, nos termos da alínea i) do nº 1 do artigo 70º daquela Lei, aos casos de decisões 'que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional'. No actual panorama jurídico-constitucional, o Tribunal Constitucional não tem poderes para, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso, fiscalizar uma eventual inconstitucionalidade indirecta (por violação do artigo 8º da Constituição) de uma norma de direito ordinário, com fundamento na contrariedade ao direito convencional.
Neste sentido se pronunciaram, entre outros, os acórdãos nº
354/97 (Diário da República, II Série, de 8 de Junho de 1997 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º, pág. 931 e segs.), 122/98 Diário da República, II Série, de 29 de Abril de 1998), 624/98 e 650/98 (disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
10. Resta, pois, analisar a questão de constitucionalidade que constitui o objecto do presente recurso à luz da tutela constitucional do direito de propriedade, já que a recorrente sustenta que foram violados os n.ºs
2 e 3 do artigo 18º e do artigo 62º da Constituição, entendendo-se a referência ao artigo 17º como pretendendo dar a entender que aplica tal regime por se tratar de um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias.
Como se disse já, não tem cabimento no âmbito do recurso interposto a apreciação da questão colocada nas conclusões 11 e 12 acima transcritas, pela razão atrás referida.
Assim, apenas há que saber se, como afirma a mesma recorrente, contraria a tutela constitucional da propriedade a interpretação das normas dos artigos 50º, 64º, 68º do Regime do Arrendamento Urbano e 1025º do Código Civil no sentido de que o prazo de 30 anos previsto neste último preceito vale apenas para a constituição do arrendamento urbano e não para o prazo total da sua duração, resultante de renovações automáticas do contrato. Como se verá, não tem fundamento a acusação de inconstitucionalidade. Para que pudesse proceder, seria necessário que a Constituição limitasse os poderes dos proprietários de bens imóveis de forma a impedi-los de os onerarem por tempo superior a 30 anos, pois só assim se chegaria à imposição constitucional da extinção automática, forçada, do arrendamento, vista pela recorrente no artigo
1025º do Código Civil.
Ora nada na Constituição nos obriga a chegar a tal conclusão.
11. Segundo o disposto no n.º 1 do respectivo artigo 62º, “A todos é garantido o direito de propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”. Como o Tribunal Constitucional já por diversas vezes observou, não obstante não estar formalmente incluído entre os direitos, liberdades e garantias, o direito de propriedade privada inclui uma dimensão – pelo menos, o direito a não ser privado da propriedade, a não ser nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo 62º – em que o respectivo regime, por força do disposto no artigo 17º da Constituição, lhe é aplicável (cfr., em especial, o acórdão n.º 491/2002 e a jurisprudência nele citada, in Diário da República, II série, de 22 de Janeiro de 2003).
Ora, como se sabe, entre “os direitos” que integram o direito de propriedade (cfr. o artigo 1305º do Código Civil) inclui-se o poder de fruição do respectivo objecto, poder com base no qual, tratando-se de propriedade de imóveis, o proprietário pode dar de arrendamento o prédio correspondente.
Igualmente se sabe que a celebração de contratos de arrendamento, permitindo o gozo do prédio por pessoa (singular ou colectiva) diferente do respectivo proprietário (artigos 1022º e 1023º do Código Civil), corresponde a uma forma socialmente útil de fruição do direito de propriedade. Em particular, o arrendamento comercial proporciona ao arrendatário um bem – o local de funcionamento – especialmente relevante no exercício da sua actividade económica, com peso frequentemente significativo no valor do respectivo estabelecimento, e cuja estabilidade pode ser, em si, de grande valia.
Isso mesmo reconhece a lei ordinária, por exemplo, quando restringe os casos de denúncia pelo senhorio (artigos 68º, n.º 2 e do Regime do Arrendamento Urbano), quando prevê a possibilidade de transmissão da posição de arrendatário, em caso de trespasse, independentemente de consentimento do senhorio (artigo 115º, n.º 1 do RAU), ou quando impõe a continuação do contrato aos sucessores do senhorio (artigo 112º, n.º 1 do RAU).
12. A verdade, todavia, é que, reconhecer que nada na Constituição impede o senhorio de pretender manter um arrendamento por mais de 30 anos, afirmação da qual discorda a recorrente, pois que sustenta que, ainda que contra sua vontade, o arrendamento se extingue decorrido tal prazo, não é incompatível com o reconhecimento de que a manutenção do contrato de arrendamento por tal período de tempo, em virtude de sucessivas renovações, representa uma oneração séria do direito do proprietário. Seja como for, e, quer se entenda que a admissibilidade constitucional da limitação ao direito de propriedade implicada pela norma em análise deva ser analisada à luz do regime previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18º da Constituição, por estar em causa a dimensão em que aquele direito fundamental é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, quer se considere que estamos apenas perante uma limitação a um direito económico, cuja admissibilidade há-de também ser avaliada segundo critérios de proporcionalidade, exigidos pelo princípio do Estado de Direito (artigo 2º da Constituição), sempre se tem de concluir pela não existência de qualquer obstáculo constitucional. Com efeito, a manutenção do arrendamento comercial, em virtude de sucessivas renovações, por um lapso de tempo superior a 30 anos revela-se manifestamente adequada e não excessiva, em si mesma, à garantia do direito de liberdade de iniciativa económica privada aqui especialmente encabeçado pelo arrendatário-comerciante (cfr., sobre as exigências do princípio da proporcionalidade, o acórdão n.º 634/93, Diário da República, II série, de 31 de Março de 1994), não lesando 'o conteúdo essencial' (n.º 3 do artigo 18º da Constituição) ou o 'conteúdo mínimo' do direito de propriedade. Como o Tribunal Constitucional já o afirmou, no seu acórdão n.º 263/2000
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), também aqui se pode dizer que, apesar de tudo, os “senhorios (...) continuam a poder transmiti-lo e fruí-lo
(convindo-se, contudo, que se não pode escamotear que, na prática, a transmissão de um prédio urbano dado de arrendamento se antevê mais dificultosa reportadamente a um outro que se não encontre «onerado» com um tal tipo de contrato e que, dados os condicionamentos da actualização das rendas, a sua fruição se pode apresentar como menos proveitosa)”. Não tem, assim, fundamento a inconstitucionalidade suscitada pela recorrente.
13. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 ucs.
Lisboa, 16 de Março de 2005
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