Imprimir acórdão
Processo n.º 486/05
2ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues (Conselheira Fernanda Palma)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A - Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), do despacho, de 18 de Março de 2005, aclarado pelo despacho
de 28 de Abril de 2005, ambos do Vice-Presidente da Relação de Guimarães, que
indeferiu a reclamação deduzida pelo ora recorrente, pretendendo a “apreciação
da inconstitucionalidade material da norma contida no n.º 3 do art. 335º do
Código de Processo Penal de 1987, na interpretação adoptada pela douta decisão
recorrida, segundo a qual a declaração de contumácia impede a decisão e
apreciação sobre a prescrição do procedimento criminal, por violação dos
princípios do poder punitivo do Estado baseado em critérios objectivos,
protecção dos arguidos contra abusos processuais e defesa dos interesses
legalmente protegidos, consagrados nos nºs 1 e 4 do art. 20º, n.º 1 do art. 26º,
art. 32º e n.º 2 do art. 202º da CRP, questão de inconstitucionalidade que o
recorrente suscitou no recurso não admitido e na subsequente reclamação para o
Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães”.
2 – Após a apresentação de alegações e contra-alegações no recurso de
constitucionalidade, a primitiva relatora, no Tribunal Constitucional,
determinou a audição do recorrente e recorrido para se pronunciarem, querendo,
sobre a questão prévia do eventual não conhecimento do recurso com base, em
síntese, no fundamento de a norma impugnada poder não ter constituído ratio
decidendi do acórdão recorrido.
3 – Apenas o recorrente respondeu à questão suscitada, dizendo o seguinte:
“[…]
Com o devido respeito, o Recorrente discorda da argumentação expendida no douto
parecer em referência na medida em que, o que se pretende que este Tribunal
Constitucional aprecie é, de facto, a interpretação adoptada pelo Presidente do
Tribunal da Relação de Guimarães - que é a que o Recorrente expôs no
requerimento de interposição de recurso para este Tribunal - da norma contida no
nº 3 do art. 335º do CPP.
Na verdade, o Exmo. Sr. Presidente da Relação de Guimarães proferiu a decisão de
considerar legal o despacho reclamado:
“Só após a caducidade da declaração de contumácia se pode jurisdicionalmente
apreciar e decidir sobre a prescrição do procedimento criminal relativo ao crime
que a acusação imputa ao arguido.
Deste modo e pelos mesmos motivos, neste enquadramento legal também não é
admissível recurso do despacho que impugna a decisão que desatendeu a pretensão
do arguido.”
Ou seja, decidiu que o recurso interposto pelo Recorrente para o Tribunal da
Relação de Guimarães não fosse apreciado, uma vez que (ou apenas porque),
interpretou a norma contida no nº 3 do ano 335º CPP no sentido de que a
contumácia, porque é causa de suspensão dos ulteriores termos do processo,
impede a decisão e apreciação sobre a prescrição do procedimento criminal.
Ou seja, a interpretação que está na base da decisão é apenas uma: a contumácia
suspende os ulteriores termos do processo mesmo para efeitos da prescrição.
Ora, é esta interpretação que se pretende ver fiscalizada por este Tribunal
Constitucional e não qualquer outra.
O facto de o Presidente da Relação ter decidido no sentido de que não fosse
apreciado o recurso em causa, é um mero efeito ou consequência da interpretação
que fez da norma contida no art. 335º, nº 3, do CPP, que, repete-se, é aquela
que se pretende ver fiscalizada por este Tribunal:
a contumácia, porque é causa de suspensão dos ulteriores termos do processo,
impede a decisão e apreciação sobre a prescrição do procedimento criminal.
Aliás, esta mesma interpretação foi já efectuada pelo Tribunal de 1ª Instância,
que dela extraiu os efeitos conhecidos:
- a decisão de não analisar o requerimento em que se pugnava pela declaração de
extinção do procedimento criminal pelo decurso do prazo prescricional; e
- a decisão de não admitir o recurso interposto deste despacho.
Pelo exposto,
deve conhecer-se do objecto do recurso”.
4 – A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“No processo comum singular nº 971/95.7TBBRG/3º Juízo Criminal do T. J. da
comarca de Braga, o arguido A. encontra-se acusado pela prática de um crimes de
cheque sem cobertura p. e p. pelo art. 11º, nº 1, al. c) do Dec. Lei nº 454/91,
de 28/12, com referência ao art. 313º do C. Penal.
Nos termos do disposto nos artigos 336º e 337º do C. Penal, este arguido foi
declarado contumaz, implicando esta declaração, para além de outras sanções, a
suspensão dos termos ulteriores do processo, tendo-se dado cumprimento aos
números 5 e 6 do artigo 337º do C. Penal (decisão de 18.06.1998).
Em 30.11.2004 o arguido veio ao processo requerer que fosse declarado extinto,
por prescrição, o procedimento criminal respeitante ao crime que lhe é imputado
na acusação.
Esta pretensão foi indeferida com o fundamento em que, encontrando-se suspensos
os termos do processo - art. 335º, n. 3, do CPP - será a questão apreciada logo
que o arguido se apresente à justiça, fazendo cessar a contumácia.
Inconformado com esta decisão dela recorreu o arguido A. que motivou e concluiu
que se encontra prescrito o procedimento criminal relativamente ao crime pelo
qual o recorrente vem acusado.
Todavia, ordenando-se que 'aguardem os autos o termo da suspensão determinada
pelo art. 335º, nº 3, do C. Penal', este recurso não foi admitido.
Contra esta decisão apresentou o recorrente A. a sua reclamação argumentando
assim:
1. O conhecimento do recurso que tem como objectivo se proceda à apreciação do
mérito da questão da prescrição do procedimento criminal, cuja procedência opera
a extinção da instância, porque é uma questão prévia de natureza substantiva e
de conhecimento oficioso, é absolutamente compatível com a declaração de
contumácia.
2. Pretendendo-se com a declaração de contumácia pressionar o arguido a
apresentar-se em juízo com o objectivo de se efectivar a vontade punitiva do
Estado, não faz sentido obrigar-se o arguido contumaz a apresentar-se em juízo,
submetê-lo a uma medida de coacção e a julgamento, já que se trataria de actos
absolutamente inúteis e sem qualquer relevância prática.
A Exma. Juíza sustenta o despacho sob reclamação.
Cumpre decidir.
Caracterizando-se a instituição do regime da contumácia como uma forma de fugir
aos inconvenientes do processo de ausentes tradicional e nomeadamente responder
às críticas de que esse anterior sistema era alvo por beneficiar os arguidos
mais afortunados ou mais expeditos na fuga à acção da justiça[1], os efeitos da
declaração de contumácia estão enunciados no nº 1 do art. 336º do C.P. Penal: -
implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou
detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do
art. 320º do mesmo diploma legal.
Quer isto dizer que, verificados os pressupostos que justifiquem a declaração de
contumácia, uma vez aplicada ao arguido já não poderá ele praticar mais
quaisquer actos no processo enquanto não for detido ou enquanto se não
apresentar.
A suspensão do processo só excepcionalmente finda quando actos urgentes
consignados no art. 320º do C.P. Penal exijam que, apesar da contumácia
decretada, mesmo assim se não pode diferir para ulterior momento a sua
especificada tramitação.
Actos urgentes são, genericamente, aqueles que contendem com a privação da
liberdade das pessoas ou que se possam considerar indispensáveis à garantia da
liberdade do vulgar cidadão; e neste contexto não está incluído o despacho que
vá apreciar prescrição do procedimento criminal referente ao crime que é
imputado ao arguido na acusação.
Se assim fosse, porque a contumácia tem como intuito a 'desincentivação da
ausência, privilegiando um conjunto articulado de medidas drásticas de
compressão da capacidade patrimonial e negocial do contumaz...'[2], estar-se-ia
a descaracterizar e a desvirtuar o instituto de contumácia e a transtornar o seu
regime-base, concedendo-se uma prerrogativa ao arguido que a unidade do nosso
sistema jurídico não pode tolerar.
Só após a caducidade da declaração de contumácia se pode jurisdicionalmente
apreciar e decidir sobre a prescrição do procedimento criminal relativo ao crime
que a acusação imputa ao arguido.
Deste modo e pelos mesmos motivos, neste enquadramento legal também não é
admissível recurso do despacho que impugna a decisão que desatendeu a pretensão
do arguido.
Igualmente não atenta esta decisão contra os princípios da nossa Lei
Fundamental, como invoca o reclamante.
Pelo exposto, nega-se provimento à presente reclamação.”
5 – Na sequência da apreciação da questão prévia, ocorreu mudança de relator.
B - Fundamentação
6 – Antes de mais cumpre notar que a decisão recorrida não é o
despacho que decidiu não conhecer da prescrição do procedimento criminal por não
estar cessada a contumácia do ora recorrente, mas o despacho do Vice-Presidente
do Tribunal da Relação de Guimarães que decidiu indeferir a reclamação deduzida,
nos termos do art. 405º do Código de Processo Penal, contra o despacho da 1ª
instância que, por sua vez, decidira não conhecer do recurso interposto pelo
mesmo recorrente contra aquele primeiro despacho de não conhecimento da
prescrição.
Embora discorrendo sobre o alcance da suspensão do processo,
decorrente da contumácia, sobre o momento de apreciação da prescrição, o efeito
que o despacho reclamado para o Presidente da Relação extrai do n.º 3 do artigo
335.ºdo Código de Processo Penal não diz respeito à oportunidade de apreciação
da prescrição no processo pendente contra arguido contumaz, mas antes ao momento
de apreciação do requerimento de recurso que foi interposto da decisão que
decidiu não apreciar a prescrição. O discurso atinente à oportunidade de
apreciação da prescrição apenas serve para “pelo mesmos motivos – de suspensão
dos termos ulteriores do processo – se conclu[ir] pela legalidade do despacho
que relega para esse mesmo momento – a caducidade da declaração – a apreciação
do requerimento de recurso”.
7 – Desta sorte, constata-se que a ratio decidendi da decisão agora
recorrida – o despacho do Presidente da Relação que acabou por confirmar o
despacho de não admissão do recurso – foi a norma constante do n.º 3 do artigo
335.ºdo Código de Processo Penal, na acepção segundo a qual a suspensão dos
termos do processo decorrente da declaração de contumácia impede a apreciação do
requerimento de interposição do recurso sobre a decisão que não aprecia a
prescrição do procedimento criminal e não na de que impede a apreciação da
prescrição do procedimento criminal que o recorrente questiona
constitucionalmente neste recurso.
8 – Verifica-se, portanto, que, na reclamação para o Vice-Presidente
da Relação de Guimarães não estava em causa a questão de saber se a acepção
normativa, inferida do mencionado preceito do n.º 3 do art. 335º do CPP, nos
termos da qual se não pode apreciar a questão da eventual prescrição do
procedimento criminal sem previamente se ter feito cessar a contumácia, estaria
ou não correcta no plano do direito infraconstitucional ou se a mesma seria
conforme com a Constituição, mas antes e apenas uma outra acepção normativa, de
acordo com a qual se não pode admitir (e, evidentemente, fazer subir para o
tribunal ad quem) o recurso que o requerente do pedido de prescrição do
procedimento criminal interpôs da decisão que julgou não poder apreciar a
questão da prescrição do procedimento criminal sem estar cessada a contumácia.
Foi a esta segunda questão que a decisão ora recorrida deu resposta.
A circunstância de a decisão recorrida se ter louvado em argumentos que, na sua
parte essencial, foram convocados pela decisão aprecianda (reclamada) para dar
primeiramente resposta àquela primeira questão de direito não postula que as
normas inferidas do mesmo preceito legal e pelas quais se decidiram as
diferentes questões sejam as mesmas: de um lado, está a norma relativa a uma
questão substantiva concernente com a definição da situação jurídico-penal do
arguido (apreciação da
prescrição do procedimento criminal); do outro, a norma respeitante a uma
questão de natureza simplesmente processual (admissão ou não de recurso
interposto de uma anterior decisão jurisdicional). A transposição de
fundamentação jurídica, por banda da decisão ora recorrida, por a sua bondade se
mostrar ajustada para dar resposta a questões diferentes, em virtude de surgirem
dentro da mesma ambiência jurídico-sistemática, não torna as questões e as
normas donde emergem bem como as decisões que as decidiram as mesmas e iguais.
Anote-se, de resto, que a decisão que o Tribunal Constitucional,
porventura viesse a tomar relativamente à primeira questão de
constitucionalidade, não vincularia o Vice-Presidente da Relação de Guimarães
por a sua decisão ter apenas reflexos na admissão ou não admissão do recurso
para a relação, interposto do despacho de 1ª instância que decidiu não conhecer
da questão de prescrição enquanto a situação de contumácia não estivesse
cessada, e não na sorte deste última decisão.
9 – Temos, portanto, de concluir que falece o pressuposto específico
do recurso de constitucionalidade, a que aludem os art.ºs 280º, n.º 1, alínea
b), da CRP e 70º, n.º 1, alínea b), da LTC, de a norma cuja
inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie haja
constituído a ratio decidendi da decisão, ou o fundamento normativo do seu
próprio conteúdo.
Procede, pois, a questão prévia (neste mesmo sentido se pronunciou o
Acórdão deste Tribunal n.º 477/05, disponível em www.tribunalconstitucional.pt,
e a Decisão Sumária (n.º 324/05, da 2ª Secção).
C – Decisão
10 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 20 UCs.
Lisboa, 7 de Fevereiro de 2006
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres (vencido, nos
termos da declaração de voto junta)
Maria Fernanda Palma (vencida, nos
termos de declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido do conhecimento do objecto do recurso,
por entender que existe identidade substancial relevante entre a dimensão
normativa arguida de inconstitucional pelo recorrente e a dimensão normativa
aplicada, como ratio decidendi, pelo despacho ora impugnado.
O cerne da questão de inconstitucionalidade é, para
ambos, o mesmo: saber se, na pendência da situação de contumácia, é possível
conhecer da prescrição do procedimento criminal. Na lógica do despacho
recorrido, este conhecimento não é possível, nem em primeira instância, nem –
por mera decorrência do entendimento anterior – em sede de recurso. Lê‑se nessa
decisão:
“Só após a caducidade da declaração de contumácia se pode
jurisdicionalmente apreciar e decidir sobre a prescrição do procedimento
criminal relativo ao crime que a acusação imputa ao arguido.
Deste modo e pelos mesmos motivos, neste enquadramento legal também
não é admissível recurso do despacho que impugna a decisão que desatendeu a
pretensão do arguido.” (sublinhado acrescentado)
O despacho recorrido não disse que, na pendência da
contumácia, não são admissíveis recursos; disse, sim, que, nessa pendência, não
é possível a apreciação da prescrição do procedimento criminal, daqui
decorrendo, como mera consequência, que também não é admissível recurso da
decisão que recusou proceder a essa apreciação. O fulcro do critério normativo
assenta, assim, na natureza da questão aprecianda e não na circunstância de se
tratar de um recurso.
Entendi, assim, que, no caso, existe identidade
substancial da questão de inconstitucionalidade suscitada e aplicada, sendo,
aliás, de considerar que, se dúvida houvesse, se devia privilegiar uma decisão
de mérito, em detrimento da decisão formal adoptada.
Mário José de Araújo Torres
Declaração de voto
1. Votei vencida o presente Acórdão por entender que se deveria ter tomado
conhecimento do objecto do recurso. A meu ver, a dimensão normativa segundo a
qual se não pode admitir o recurso interposto de uma decisão que julgou não
poder apreciar a questão da prescrição do procedimento criminal sem estar
cessada a contumácia não é autónoma e diversa da que se contém na dimensão
suscitada pelo recorrente, segundo a qual a declaração de contumácia impede a
decisão e apreciação sobre a prescrição do procedimento criminal.
A decisão recorrida só se pôde basear na primeira dimensão de não conhecimento,
porque admitiu que a declaração de contumácia impedia a apreciação da
prescrição. Ora é isso mesmo que o recorrente questiona.
2. Uma vez conhecido o objecto do recurso, chegaria ao não provimento do mesmo,
de acordo com o exposto no projecto por mim apresentado e que consistiria na
seguinte análise:
O artigo 335°, n° 3, do Código de Processo Penal, determina que a declaração de
contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à
apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização dos actos
urgentes a que se refere o artigo 320° do mesmo diploma.
Com base nesta disposição legal, foi decidido no presente processo não se
apreciar o requerimento apresentado pelo recorrente no qual este pretendia que
fosse declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal, e foi, por
outro lado, ordenado que o recurso entretanto interposto aguardasse o termo da
suspensão do processo penal decorrente da declaração de contumácia.
O recorrente sustenta, porém, que a prescrição se coloca “num momento e num
plano anterior [sic] do da contumácia”, invocando que a prescrição se justifica
“por razões de natureza substantiva”.
No entanto, como refere o Ministério Público, a declaração de contumácia
consubstancia causa de suspensão [artigo 120º, nº 1, alínea c), do Código Penal]
e de interrupção [artigo 121º, n° 1, alínea c), do Código Penal] da prescrição,
pelo que a lei realiza uma intersecção dos planos em que se situam os institutos
em causa. E compreende-se o fundamento de tal solução: pretende a lei minimizar
as vantagens de que o arguido possa vir a usufruir de uma atitude de não
colaboração com a justiça ou mesmo de fuga, atitude essa que se traduz no
incumprimento dos mais elementares deveres processuais que impendem sobre o
cidadão arguido num processo penal. Apesar disso, são ressalvados os actos
urgentes, tais como os que se relacionem com a liberdade do arguido (artigo 320°
do Código de Processo Penal), questão que manifestamente não está agora em
causa, já que o recorrente se furtou a colaborar com a justiça, encontrando-se
fugido.
Mas para além do que se deixa dito, ao recorrente não assiste razão também
porque não está em causa no presente processo o funcionamento do instituto da
prescrição, nem mesmo a sua apreciação concreta. Na verdade, o que ocorreu foi a
não apreciação da prescrição a requerimento do arguido (e a consequente não
apreciação do recurso por este interposto) enquanto o arguido não fizer cessar a
declaração de contumácia, cumprindo os deveres que sobre si impendem, isto é,
apresentando-se.
Não assiste, pois, razão ao recorrente quanto a este aspecto.
O recorrente afirma, por outro lado, que a “decisão ora impugnada ofende a razão
de ser do próprio instituto da contumácia, que foi criado e existe para
assegurar que os cidadãos prestem contas à justiça, quando têm de prestá-las”.
Invoca ainda o recorrente, nesta linha de argumentação, que não faz sentido ser
submetido “a uma medida de coacção e a julgamento, já que se trataria de actos
absolutamente inúteis e sem qualquer relevância prática”.
O raciocínio do recorrente inverte, porém, a ordem das questões: em momento
algum dos presentes autos se afirmou que o arguido é submetido a uma medida de
coacção ou julgamento no caso de o procedimento criminal se encontrar extinto
por prescrição. O que lhe é exigido é que se apresente, que faça cessar a
situação de fuga por si protagonizada. Posteriormente, será apreciado o seu
requerimento, e em função da decisão que for proferida o processo prosseguirá ou
não. Não está, pois, em causa a prática de actos inúteis, está, antes, a
realização de uma condição para que o “diálogo” com o Estado na sua função penal
se possa desenvolver normalmente.
Também, em momento algum, nos presentes autos se afirma que a contumácia não é
de conhecimento oficioso. Cabe recordar que no processo pretexto do presente
recurso de constitucionalidade foi o arguido contumaz que requereu a apreciação
da prescrição do procedimento criminal e é a apreciação desse requerimento que
está em causa. Não se trata, portanto, de uma decisão que negue explicitamente a
apreciação oficiosa da prescrição.
O recorrente sustenta, ainda, que o tribunal tem o “poder-dever” de apreciar a
prescrição.
É verdade que compete ao tribunal apreciar a questão da prescrição do
procedimento criminal. No entanto, tal competência não é incompatível ou
conflituante com a exigência do cumprimento das obrigações de colaboração com a
justiça que impendem sobre todos os cidadãos e que são suporte do Estado de
direito. Não só não existe qualquer incompatibilidade como se tornaria abusiva a
possibilidade de “beneficiar” de todas as respostas do sistema penal, recusando,
contraditoriamente, todo o contacto e todo o diálogo com esse sistema, para a
realização da justiça que, afinal, se reclama.
Sublinhe‑se, também, que, ao contrário do que parece sustentar o recorrente, não
é exigida ao arguido a sua apresentação para se conferir se “a prescrição se
verifica ou não”. É exigida a apresentação do arguido para que a relação do
Estado com o sujeito processual arguido se desencadeie sem anomalias. A
apreciação da prescrição do procedimento criminal será realizada no contexto de
um tal funcionamento da justiça penal, contexto que é particularmente
garantístico (artigo 32° da Constituição), assegurando os direitos processuais
adequados a uma efectiva e equitativa defesa. Não se pretende, pois, a
concretização de uma qualquer prepotência do Estado ou o vexame do arguido, como
o recorrente chega a sustentar, abstraindo do facto de que o processo penal
português tem elevadas garantias constitucionais características de um Estado de
direito.
Maria Fernanda Palma
[1] Maia Gonçalves (in Código de Processo Penal Anotado, 1992, pág. 480).
[2] Prólogo do Código de Processo Penal.