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Processo n.º 107/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, foi
interposto por A., ora recorrida, recurso contencioso tendo por objecto um acto
do Conselho de Administração do B., ora recorrente. Tendo sido inicialmente
negado provimento ao recurso, a ora recorrida interpôs recurso jurisdicional da
sentença para aquele Supremo Tribunal, o qual, por acórdão de 17 de Dezembro de
2003, lhe concedeu provimento, bem como ao recurso contencioso.
2. Inconformado, veio, então, o ora recorrente arguir a nulidade dessa decisão.
Por acórdão de 16 de Junho de 2004, entendeu o STA que improcedia a arguição de
nulidade, tendo condenado em multa, por litigância de má fé, o representante do
B. que teve intervenção no processo e ordenado que fosse dado conhecimento à
Ordem dos Advogados.
3. De novo inconformado, na parte em que se determinou a condenação como
litigante de má fé, o ora recorrente veio interpor recurso para o Pleno da
Secção do Supremo Tribunal Administrativo. Tal requerimento foi indeferido por
despacho do Relator, que o considerou inadmissível. Não se conformando com este
despacho, o ora recorrente veio reclamar para a conferência, alegando, para o
que agora importa, o que aqui se transcreve:
“[...] 11. Resulta ainda do disposto expressamente no n.º 3 do artigo 456° do
Código de Processo Civil, que é “Independentemente do valor da causa e da
sucumbência, é sempre admissível recurso em um grau da decisão que condene por
litigância de má fé.” (itálico aditado).
12. Ou seja, conforme claramente resulta da citada disposição, não pode ser
cerceada, à parte que foi condenada litigante de má fé, a possibilidade de
recorrer, em um grau, dessa decisão, sob pena de tal consubstanciar uma
manifesta violação do direito à tutela jurisdicional efectiva consagrado no
artigo 20°, n.º1 da Constituição da República Portuguesa.
13. Ora, atendendo ao teor da citada disposição legal, outra não pode ser a
conclusão a retirar senão a de que a tutela que o legislador atribui à parte
condenada por litigância de má fé, consubstanciada no direito ao recurso e à
obtenção de uma segunda decisão nessa matéria, não é susceptível de ser limitada
por força das disposições relativas à competência dos Tribunais Administrativos
consagradas no ETAF.
14. Aliás, forçoso é que tais disposições sejam compatibilizadas com aquela
garantia de tutela jurisdicional, por força da aplicação das regras gerais de em
matéria de competência, organização e hierarquização dos Tribunais
Administrativos, em especial atendendo ao disposto no artigo 2° do ETAF.
15. Assim, por aplicação de tais regras, da decisão da Secção de Contencioso
Administrativo do STA, pela 3ª subsecção, que condena a ora reclamante por
litigância de má fé cabe recurso, ao abrigo do disposto no artigo 456°, n° 3 do
CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 1º da LPTA, a interpor para o Pleno
da Secção.
16. A não ser assim, o disposto nos artigos 24° do ETAF, 103°da LPTA, bem como,
no artigo 456°, n.º 3 do CPC, na interpretação de que não é admissível recurso
de uma decisão que condena uma das partes por litigância de má fé quando a mesma
tenha sido proferida pela primeira vez (primeira decisão sobre a matéria) pela
Secção de Contencioso Administrativo do STA, em subsecção, no seguimento da
arguição de uma nulidade de Acórdão proferido em sede de recurso jurisdicional,
será manifestamente inconstitucional, por violação do direito à tutela
jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20º, n.º1 da CRP.[...]”
4 – O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 2 de Dezembro de 2004,
tirado com um voto de vencido, decidiu indeferir a reclamação. Na fundamentação
dessa decisão, ponderou aquele Tribunal:
“[...] O recurso interposto pelo Conselho de Administração do B. não tem por
fundamento oposição de julgados nem foi interposto em processo de recurso
directamente interposto para a Secção, pelo que é manifesto que não se enquadra
na competência do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo prevista neste
art. 24º.
A norma do n.º 3 do art.º 456º do C.P.C. que estabelece que «independentemente
do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da
decisão que condene por litigância de má fé» não permite uma extensão da
competência do Pleno de Secção.
Com efeito, desde logo, trata-se de uma norma introduzida pelo Decreto-lei n.º
180/96, de 25 de Setembro, e a competência do Pleno foi revista por diploma
posterior, que foi o Decreto-lei n.º 229/96, de 29 de Novembro. Na verdade,
embora este diploma não tenha alterado a alínea a) do n.º 1 do art. 24.º do
E.T.A.F., procedeu a uma revisão global da competência do pleno, como se
depreende do facto de ter alterado todas as suas outras alíneas, pelo que não se
pode defender que aquela alínea a) esteja tacitamente revogada pelo Decreto-lei
n.º 180/96, mesmo nas situações especiais de condenação por litigância de má fé.
Por isso, não se pode aceitar o entendimento de que a possibilidade de recurso
prevista naquele n.º 3 do art. 456.º do C.P.C. possa prevalecer sobre a
posterior fixação da competência do Pleno operada por aquele Decreto-lei n.º
229/96.
Para além disso, se aquele n.º 3 do art. 456.º introduzido pelo Decreto-Lei n.º
180/96 fosse interpretado como implicando uma alteração da competência do Pleno
da Secção do Contencioso Administrativo, estendendo-a a recursos de acórdãos da
Secção proferidos em recursos contenciosos não interpostos directamente para a
Secção, ele enfermaria de inconstitucionalidade orgânica, pois a organização e
competência dos tribunais é matéria incluída na reserva relativa de competência
legislativa da Assembleia da República [art. 168.º, n.º 1, alínea q), da C.R.P.,
na redacção de 1992] e a autorização legislativa em que o Governo se baseou para
aprovar o Decreto-lei n.º 180/96, concedida pela lei n.º 28/96, de 2 de Agosto,
não lhe permitia alterar a competência do Supremo Tribunal Administrativo.
Por isso, tem de se concluir pela inadmissibilidade do recurso que foi
interposto pelo reclamante para o Pleno de Secção.
3 - O Reclamante defende que a inadmissibilidade de recurso das decisões de
condenação por litigância de má fé proferidas pela Secção do Contencioso
Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo viola o princípio
constitucional da tutela judicial efectiva, consagrado no n.º 1 do art. 20.º da
C.R.P..
Esta norma estabelece que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos
tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não
podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos».
O que esta norma consagra é o direito de os cidadãos verem apreciadas por um
Tribunal as suas pretensões.
Por isso, desde logo, é de afastar a possibilidade de violação desse princípio
quando a decisão em causa é proferida por um Tribunal, sem qualquer limitação
nos seus poderes de cognição.
Por outro lado, esse direito à tutela judicial efectiva não implica a
possibilidade de recurso jurisdicional de todas as decisões dos tribunais, o
que, desde logo, não pode deixar de ser evidente quando se trata de um órgão de
cúpula.
Assim, não é materialmente inconstitucional a interpretação referida sobre o
âmbito da competência do Pleno de Secção.[...]”
5. É desta decisão que vem interposto o presente recurso, através de
requerimento do seguinte teor:
“[...], não se conformando com o aliás douto Acórdão de 02/12/2004, vem dele
interpor recurso para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, nos seguintes termos:
1. O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n° 1 do artigo 280° da
Constituição da República Portuguesa (C.R.P.) e da alínea b) do n° 1 do artigo
70° da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n° 13-A/98, de
26 de Fevereiro.
2. O presente recurso visa a apreciação da inconstitucionalidade da norma,
constante do artigo 24° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(E.T.A.F.), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, caso lhe seja
dada a interpretação que o Acórdão recorrido deu, segundo a qual não é
admissível exercer o direito de recurso, em um grau - consagrado no n° 3 do
artigo 456° do Código de Processo Civil - para o Pleno da Secção do Contencioso
Administrativo do S.T.A., de decisão que condene por litigância de má-fé.
Esta interpretação do disposto no artigo 24° do E.T.A.F. viola o princípio da
tutela jurisdicional efectiva, consagrado no disposto no n.º1 do artigo 20º da
C.R.P..
3. A questão de inconstitucionalidade foi suscitada na Reclamação para a
Conferência do despacho de indeferimento do requerimento de interposição de
recurso do Acórdão de 16/06/2004 para o Pleno da Secção, na parte em que
condenou o recorrente em litigância de má-fé.
[...]”
6. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo
concluído da seguinte forma:
“1. A interpretação que o Acórdão recorrido fez do artigo 24° do ETAF, segundo a
qual não é admissível exercer o direito de recurso, em um grau, para o Pleno da
Secção do Contencioso Administrativo do STA, de decisão que condene por
litigância de má fé, viola manifestamente o princípio da tutela jurisdicional
efectiva, consagrado no n.º 1 do artigo 20° da CRP, bem como o princípio da
igualdade, consagrado no artigo 13° da CRP, sendo, como tal, materialmente
inconstitucional;
2. A regra contida no n.º 3 do artigo 456° do CPC, segundo a qual é sempre
admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé,
consubstancia uma concretização do direito à tutela judicial efectiva,
consagrado no n.º 1 do artigo 20° da CRP;
3. A tutela atribuída pelo legislador à parte condenada como litigante de má fé,
consubstanciada no direito ao recurso em um grau dessa decisão condenatória, não
pode ser limitada por força do disposto no artigo 24° do ETAF.
4. Esta tutela foi garantida tendo em conta a especial relevância de uma tal
condenação, particularmente quando determina a responsabilidade pessoal e
directa do mandatário.
5. Uma pronúncia condenatória desta natureza afecta direitos fundamentais,
consagrados na categoria constitucional dos direitos, liberdades e garantias, in
casu, os direitos ao bom nome e reputação do mandatário.
6. O direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20°, n.º l da CRP
garante imperativamente o duplo grau de jurisdição em relação a decisões que
afectem direitos fundamentais.
7. A interpretação do artigo 24° seguida pelo Acórdão recorrido, ao não garantir
o acesso ao duplo grau de jurisdição neste caso viola, pois, o princípio da
tutela judicial efectiva, consagrado no artigo 20°, n.º l da CRP.
8. Tal interpretação encerra ainda uma discriminação arbitrária e ilegítima,
pois enquanto que no domínio do processo civil, a parte condenada como litigante
de má fé tem sempre direito a recorrer dessa decisão condenatória, mesmo na
situações em que essa condenação é proferida por um tribunal de 2ª instância, já
no âmbito do processo administrativo não o pode fazer.
9. Tal interpretação viola ostensivamente o princípio constitucional da
igualdade, consagrado no artigo 13° da CRP, pelo que é materialmente
inconstitucional.
10. Por aplicação das regras gerais em matéria de organização e hierarquização
dos Tribunais Administrativos, de uma decisão da Secção de Contencioso
Administrativo do S.T.A, proferida por uma das suas subsecções, que aprecia em
primeiro grau de jurisdição o incidente da má fé processual, cabe recurso em um
grau, a interpor para o Pleno da Secção”.
7. Notificada a recorrida para contra-alegar, querendo, nada disse.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
8. Objecto do recurso.
O artigo 24º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (E.T.A.F.),
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção do Decreto-Lei
n.º 229/96, de 29 de Novembro, tem o seguinte teor:
“Artigo 24º º
(Competência da Secção em Pleno)
Compete ao pleno da Secção de Contencioso Administrativo conhecer:
a) Dos recursos de acórdãos proferidos em recurso directamente interposto para a
Secção que não sejam de competência do plenário;
b) Dos recursos de acórdãos da Secção que, relativamente ao mesmo fundamento de
direito e na ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica,
perfilhem solução oposta à de acórdão da mesma secção ou do respectivo pleno;
b`) Dos recursos de acórdãos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal
Central Administrativo proferidos em último grau de jurisdição que, na hipótese
prevista na alínea anterior, perfilhem solução oposta à do acórdão da mesma
Secção ou da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal
Administrativo, ou do respectivo pleno;
c) Do seguimento dos recursos referidos nas alíneas b) e b`), sem prejuízo dos
poderes do relator nesta matéria;
d) Dos conflitos de competência entre as Secções de Contencioso Administrativo e
do Supremo Tribunal administrativo”.
No entendimento do recorrente, este preceito, quando interpretado, como o foi na
decisão recorrida, em termos de não admitir o recurso para o Pleno da Secção de
Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo da decisão
proferida por uma das suas subsecções, na parte em que, pela primeira vez,
condena uma das partes como litigante de má-fé, é inconstitucional, por violação
dos princípios da tutela jurisdicional efectiva e da igualdade, consagrados,
respectivamente, nos artigos 20º, n.º 1 e 13º da Constituição.
Vejamos se tem razão.
9. Da alegada violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado
no artigo 20º, n.º 1, da Constituição.
9.1. O Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado que da garantia de
acesso de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20º, n.º 1, da
Constituição, não decorre a garantia generalizada de um duplo grau de
jurisdição. Como se ponderou, por exemplo, no Acórdão n.º 261/02 (todos os
acórdãos citados estão disponíveis na página Internet do Tribunal em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), reiterando anterior
jurisprudência deste Tribunal, designadamente a constante dos Acórdãos n.ºs
451/02 e 202/99, este último tirado em plenário:
“[...] O artigo 20º, n.º 1, da Constituição assegura a todos “o acesso ao
direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios
económicos”. Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos,
segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e
independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena
igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista
(designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal
possibilidade). Ao fim e ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral
de todos os restantes direitos e interesses legalmente protegidos. Mas terá de
ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele também a
garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso
para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil;
e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei
Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo 32º, a
menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando,
aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual
a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida
(mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das
garantias de defesa previstas naquele artigo 32º [...].
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir
ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer”. Na verdade, este Tribunal
tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (Direito Processual
Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126), que, impondo a Constituição
uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no
topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigo
210º), terá de admitir-se que “o legislador ordinário não poderá suprimir em
bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos” (cfr., a este propósito,
Acórdãos n.º 31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9, pág. 463, e n.º
340/90, id., vol. 17, pág. 349).
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode
concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a
faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática.
Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a
existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cfr. os citados
Acórdãos n.º 31/87, 65/88, e ainda 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
vol. 12, pág. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos n.º
359/86, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8, pág. 605), n.º 24/88,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 525), e n.º 450/89,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13, pág. 1307). [...]”. (Sublinhados
aditados).
Como se concluiu, em síntese, no Acórdão n.º 453/02, fora dos casos
salvaguardados pelos n.ºs 1 e 10 do artigo 32º da Constituição e,
designadamente, “[...] no âmbito do princípio constitucional consagrado pelo
artigo 20º do mesmo texto, apenas se garante, em geral, um patamar de
jurisdição”.
9.2. E o Tribunal teve também já oportunidade, por mais de uma vez, de reafirmar
esta jurisprudência, especificamente a propósito de normas das quais, tal como
da que agora vem questionada, resultava a inadmissibilidade de recurso, ainda
que num só grau, de uma decisão que aplicara uma multa processual. Fê-lo,
concretamente, no Acórdão n.º 496/96, em que concluiu no sentido da não
inconstitucionalidade da norma do artigo 678º, n.º 1, do Código de Processo
Civil, enquanto aplicável à condenação em multas processuais de montante
inferior a metade da alçada do tribunal recorrido. E, mais recentemente, no
Acórdão n.º 27/05, em que concluiu pela não inconstitucionalidade da norma que
se extrai das disposições conjugadas dos artigos 448º, n.º s 1 e 2, e 678º, n.º
1, do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de vedar a possibilidade
de recurso ordinário, ainda que num só grau, da decisão judicial que condene um
oficial de justiça nas custas de um incidente que lhe é imputado a título de
desobediência a provimento e a indicação verbal expressa. Nesta última decisão,
e para o que agora importa, ponderou-se, designadamente, o seguinte:
“[...] nenhum preceito constitucional impõe a recorribilidade de uma decisão
judicial do teor daquela que a ora recorrente pretendeu impugnar.
Na verdade, a decisão em causa não tem natureza penal, contra-ordenacional ou
transgressional, susceptível de fazer operar o disposto no artigo 32º, n.º s 1 e
10, da Constituição[...].
[...]
Aliás, mesmo que a decisão que a recorrente pretendeu impugnar tivesse aplicado
uma multa processual, e não apenas condenado no pagamento de custas por um
incidente, a conclusão seria a mesma: a decisão não teria natureza penal,
contra-ordenacional ou transgressional, não sendo a sua recorribilidade
constitucionalmente imposta.
Como o Tribunal Constitucional já afirmou no acórdão n.º 315/92, de 6 de Outubro
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23º volume, 1992, p. 323 ss): «As sanções
processuais são cominadas para ilícitos praticados no processo, cujo adequado
desenvolvimento visam promover. Com a sua estatuição, pretende-se, conforme os
casos, obter a cooperação dos particulares com os serviços judiciais, impor aos
litigantes uma conduta que não prejudique a acção da justiça ou ainda assegurar
o respeito pelos tribunais [...].
[...] as sanções processuais não constituem [...] sanções criminais; elas
possuem uma natureza específica e são cominadas para ilícitos praticados no
processo, visando promover o seu normal desenvolvimento.
[...] as multas processuais [...] constituem sanções indiscutivelmente estranhas
ao direito disciplinar e ao direito de mera ordenação social.
O direito disciplinar caracteriza-se pela existência de um poder hierárquico que
o tribunal não possui, evidentemente, quando aplica multas processuais às partes
ou a outros intervenientes no processo. Tão-pouco o direito de mera ordenação
social [...] pode abranger as multas processuais – sanções historicamente
anteriores e não filiadas no direito penal.
[...]
Em suma: da jurisprudência assinalada decorre – até por maioria de razão,
atendendo a que a decisão que aplica uma multa processual ainda tem natureza
sancionatória, pressupondo a prática de um ilícito processual – que nenhuma
censura constitucional merece a sujeição, às regras gerais relativas ao valor da
causa e da sucumbência estabelecidas no Código de Processo Civil, da
recorribilidade da decisão judicial que condene um oficial de justiça nas custas
de um incidente que lhe é imputado a título de desobediência a provimento e a
indicação verbal expressa; tal sujeição não é vedada, nem pelo artigo 32º, n.º s
1 e 10, nem pelo artigo 20º, n.º 1, ambos da Constituição. Tal solução também
não viola o princípio do Estado de Direito democrático nem o princípio da
proporcionalidade”.
9.3. Finalmente, no específico domínio da condenação de uma das partes em multa
processual e/ou indemnização por litigância de má fé, que é o que agora está
concretamente em causa nos presentes autos, o Tribunal Constitucional teve
também já oportunidade de afirmar, no Acórdão n.º 453/02, que “exprimindo a
litigância de má fé uma censura pelo mau uso da máquina da justiça - como
sublinhou o acórdão n.º 389/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 8
de Novembro de 1999) - a reapreciação judicial dessa matéria insere-se na
liberdade de conformação do legislador ordinário [...]” (Sublinhado aditado). E,
no acórdão n.º 52/99, concluiu mesmo pela não inconstitucionalidade das normas
do artigo 456º, n.º 3, do Código de Processo Civil ex vi artigo 1º do
Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (LPTA) e do artigo 22º do Decreto-Lei n.º
129/84, de 27 de Abril (ETAF), quando interpretadas em termos de não admitir
recurso do acórdão do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo que
condenou o recorrente como litigante de má fé. Neste último aresto, tirado na
sequência de decisão sumária que julgara o recurso manifestamente infundado,
ponderou o Tribunal:
“O acórdão recorrido - que confirmou um despacho do relator que não admitira
recurso de um acórdão do mesmo Pleno, que desatendera a arguição de nulidades
apresentada pelo ora recorrente e o condenou como litigante de má fé - decidiu a
questão de saber se ele podia interpor recurso de tal decisão, na parte em que
assim o condenou, face ao disposto no n.º 3 do artigo 456º do Código de Processo
Civil, segundo o qual, “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é
sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má
fé”. A esta questão respondeu o acórdão que, “quando a decisão for proferida no
último grau de jurisdição é manifesto que não pode haver lugar a recurso, pois
tudo se passa como se tal decisão colimasse o eventual julgamento das instâncias
inferiores”.
O que, então, importa saber é se é compatível com a Constituição uma
interpretação do artigo 456º, n.º 3, do Código de Processo Civil, segundo a qual
não há recurso do acórdão do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal
Administrativo que condenou o recorrente como litigante de má fé.
2. O relator, por considerar que a questão de constitucionalidade acabada de
enunciar era manifestamente infundada, proferiu decisão sumária a negar
provimento ao recurso.
6. Na decisão sumária, escreveu o relator o seguinte:
«É claro que, da decisão do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal
Administrativo, não pode ser interposto recurso ordinário, mesmo que tão-só para
o efeito de reapreciar a condenação de alguém como litigante de má fé: uma
decisão proferida pelo órgão superior da hierarquia dos tribunais
administrativos não pode ser submetida a reexame por parte de outro órgão da
mesma ordem de tribunais, nem, obviamente, por um tribunal de uma outra ordem
judicial. E, com isto, não se ofende qualquer norma ou princípio constitucional,
designadamente os preceitos que o recorrente indica. Também o direito ao recurso
tem os seus limites naturais. E isso é o que se verifica na situação em apreço».
Acrescenta-se agora, quanto à manifesta falta de fundamento da questão de
constitucionalidade indicada, que este Tribunal já teve ocasião de, a outro
propósito, sublinhar que “nada tem de chocante o facto de [um tribunal, no caso,
o próprio Tribunal Constitucional] intervir simultaneamente «em 1ª e última
instância», isto é, sem possibilidade de recurso” (de recurso ordinário,
naturalmente) [cf. acórdão n.º 9/86 (publicado no Diário da República, II série,
de 21 de Abril de 1986)]”.
9.4. Ora, da jurisprudência acabada de citar, que mantém inteira validade,
decorre, como é bom de ver, que também nestes autos há que concluir pela não
inconstitucionalidade da norma que agora vem questionada. Com efeito, não
estando em causa, como efectivamente não está no caso de condenação em multa
processual por litigância de má fé, uma decisão condenatória em matéria penal,
contra-ordenacional, transgressional ou disciplinar, não impõe efectivamente a
Constituição, designadamente não decorre do seu artigo 20º, n.º 1, a
obrigatoriedade de o legislador ordinário estabelecer a garantia de um duplo
grau de jurisdição.
9.5. Alega, porém, o recorrente que “alguns autores perfilham entendimento
diverso, segundo o qual se deve ter por constitucionalmente garantido, pelo
menos, o direito à reapreciação judicial das decisões judiciais que afectem
direitos fundamentais constitucionalmente consagrados”. Cita, a propósito, a
posição de VITAL MOREIRA, aposta na declaração de voto de vencido ao Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 65/88, segundo o qual:
“[...] há-de considerar-se constitucionalmente garantido – ao menos por decurso
do princípio do Estado de direito democrático – o direito à reapreciação
judicial das decisões que afectem direitos fundamentais, o que abrange não
apenas as decisões condenatórias em matéria penal – como se reconhece no acórdão
– mas também todas as decisões judiciais que afectem direitos fundamentais
constitucionais, pelo menos as que integram a categoria constitucional dos
«direitos, liberdades e garantias [...]”.
Partindo desta posição doutrinal - a de que a Constituição impõe o duplo grau de
jurisdição em relação a “decisões judiciais que afectem direitos fundamentais
constitucionais, pelo menos as que integram a categoria constitucional dos
«direitos, liberdades e garantias»” - conclui o recorrente pela
inconstitucionalidade da norma que agora está em causa, uma vez que, segundo
afirma (conclusão 5 da sua alegação), “uma pronúncia condenatória desta natureza
afecta direitos fundamentais, consagrados na categoria constitucional dos
direitos, liberdades e garantias, in casu, os direitos ao bom nome e reputação
do mandatário”. (Sublinhado aditado). Em suma: na perspectiva do recorrente, o
recurso, em um grau, da decisão que condena uma das partes como litigante de má
fé seria constitucionalmente imposto, ao menos quando determina a
responsabilidade pessoal e directa do mandatário, na medida em que, nesse caso,
essa decisão é susceptível de afectar direitos constitucionalmente consagrados,
designadamente no artigo 26º da Constituição, como sejam o direito ao bom nome e
reputação do mandatário.
Mas, como é evidente, não tem razão. É que - independentemente de se saber se é
correcto o pressuposto de que parte o recorrente – isto é, o de que a
Constituição impõe o duplo grau de jurisdição em relação a “decisões judiciais
que afectem direitos fundamentais constitucionais, pelo menos as que integram a
categoria constitucional dos «direitos, liberdades e garantias»” - a verdade é
que não estamos perante uma decisão dessa natureza. Não só porque a decisão que
vem questionada não sanciona o Advogado mandatário, limitando-se apenas, em
cumprimento do preceituado no artigo 459º do CPC, a comunicar os factos à Ordem
dos Advogados, para que esta, se assim o entender, possa, então sim, “aplicar as
sanções respectivas e condenar o mandatário na quota-parte das custas, multas e
indemnização que lhe parecer justa”, mas também porque, com esse fundamento -
afectação do bom nome e reputação do mandatário -, apenas poderia questionar-se
a não recorribilidade da decisão por parte do próprio mandatário - ou seja, do
próprio titular do direito fundamental alegadamente afectado com a decisão
recorrida - é não, como é o caso, pela parte que ele representa no processo.
10. Da alegada violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da
Constituição
Alega ainda o recorrente que o artigo 24º do ETAF, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
129/84, de 27 de Abril, na dimensão que vem questionada, “viola ostensivamente o
princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP”. É que,
na sua perspectiva, enquanto que no domínio do processo civil “a parte condenada
como litigante de má fé tem sempre o direito a recorrer dessa decisão
condenatória, mesmo nas situações em que essa condenação é proferida por um
tribunal de 2ª instância, já no âmbito do processo administrativo não o pode
fazer” (conclusão 8).
Sem razão, porém.
É que, tal como vem colocada, a questão está mal equacionada, uma vez que não
são equivalentes as situações que o recorrente pretende comparar – por um lado a
possibilidade de recorrer para o STJ de decisão proferida por uma Relação, por
outro a possibilidade de recorrer para o Pleno da Secção de Contencioso
Administrativo do STA de decisão proferida por uma das suas subsecções. Com
efeito, nos presentes autos, o que constituiu fundamento da não admissibilidade
do recurso não foi o facto de a condenação em litigância de má fé ter sido
decidida em segunda instância, mas o facto de ter sido tirada já no Tribunal que
se encontra no topo da hierarquia dos tribunais administrativos (o Supremo
Tribunal Administrativo) e por um órgão - uma subsecção da Secção de Contencioso
Administrativo - que, acima de si, apenas tem o Pleno da respectiva Secção, que,
nos termos da respectiva lei processual, tem uma competência restrita bem
delimitada. Assim, a haver analogia com o processo civil, ela deveria fazer-se -
porque será essa a situação equivalente - não com uma decisão proferida por um
Tribunal da Relação, mas com uma decisão tirada por uma das secções do Supremo
Tribunal de Justiça, em que não há, sequer, recurso.
11. Assim sendo, há que concluir pela não inconstitucionalidade da norma
constante do artigo 24º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(E.T.A.F.), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção do
Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, quando interpretado no sentido de não
admitir recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo
Tribunal Administrativo da decisão proferida por uma das suas subsecções, na
parte em que, pela primeira vez, condena uma das partes como litigante de má-fé.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 8 de Junho de 2005
Gil Galvão
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (votei a decisão mas apenas por se tratar da
condenação proferida em última instância)
Vítor Gomes
Artur Maurício