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Processo n.º 505/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional,
1. A. reclama, ao abrigo dos artigos 76.º,
n.º 4, e 77.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o despacho
do Vice‑Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 16 de Março de 2007,
que não lhe admitiu recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
1.1. A reclamante havia deduzido reclamação,
nos termos do artigo 688.º do Código de Processo Civil (CPC), contra despacho do
Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra que não lhe admitira
recurso interposto para o STJ, aduzindo nessa reclamação:
“Nos autos de adopção que correram seus termos no Tribunal Judicial da Comarca
de Santa Comba Dão, a reclamante, mãe do menor, apresentou um requerimento
através do qual manifestou a sua vontade de revogar o consentimento
anteriormente prestado.
O Tribunal de 1.ª instância indeferiu o requerido, o que originou a interposição
de recurso por parte da reclamante para o Tribunal da Relação competente.
Admitido que foi o recurso, a reclamante apresentou, em tempo, as suas
alegações.
Contudo, pelo Tribunal da Relação de Coimbra foi preferido douto acórdão,
através do qual se decidiu «não conhecer do objecto do recurso».
Não se conformando com esta decisão, a recorrente, em tempo, interpôs recurso
para o Supremo Tribunal de Justiça.
Acontece que,
o Tribunal da Relação de Coimbra, considerando que o recurso interposto para
este douto Supremo Tribunal de Justiça seria de agravo, decidiu não admitir o
recurso interposto, o que fez, mediante douto despacho de fls. ..., com a
seguinte argumentação que se transcreve in totum:
«Recurso de fls. 318.
Notificada do acórdão de fls. 311, que não conheceu do recurso de agravo
interposto da decisão de 1.ª instância que não admitiu a revogação do
consentimento para a adopção requerida pela mãe do menor, A., veio a mesma
pretender interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de tal decisão.
O recurso que a mãe do menor interpôs seria de agravo. A este propósito estatui
o artigo 754.º do Código de Processo Civil: ‘1 – Cabe recurso de agravo para o
Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação de que seja admissível
recurso, salvo nos casos em que couber revista ou apelação. 2 – Não é admitido
recurso do acórdão da Relação sobre decisão da 1.ª instância, salvo se o acórdão
estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo
Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada
pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.º‑A e 732.º‑B, jurisprudência com ele
conforme. 3 – O disposto na primeira parte do número anterior não é aplicável
aos agravos referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 678.º e na alínea a) do n 1 do
artigo 734.º.’
Como pode ver‑se, a lei restringe desde logo a hipótese de recurso de agravo aos
casos em que haja oposição do acórdão com outro proferido sob o domínio da mesma
legislação pelo STJ e não houver sido fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça
jurisprudência uniforme. Neste caso, teria a agravante que comprovar a
verificação da aludida hipótese, o que não fez.
No caso vertente, também não estamos face a qualquer caso a que se reporta o n.º
3 do mencionado preceito legal.
Assim sendo, não se admite o recurso e condena‑se a agravante nas custas pelo
incidente a que deu causa.» – sic, sublinhado nosso.
Com o respeito devido, o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Coimbra parte de pressupostos errados para não admitir o recurso interposto para
este douto Supremo Tribunal de Justiça, e é proferido mediante errónea aplicação
da lei, mormente do preceito do Código de Processo Civil invocado – artigo
754.º.
Na verdade,
a actual redacção do n.º 2 do artigo 754.º do CPC, introduzida pelo Decreto‑Lei
n.º 375‑A/79, de 20 de Setembro, eliminou, de um modo geral, a possibilidade de
se interpor recurso de agravo em 2.ª instância do acórdão proferido pela
Relação sobre decisão de 1.ª instância.
Contudo,
in casu, o acórdão proferido pela Relação não incidiu sobre a decisão da 1.ª
instância,
uma vez que a Relação «não conheceu do recurso de agravo interposto da decisão
de 1.ª Instância»,
tal como se afirma no douto despacho de fls. ..., do qual ora se reclama.
Acresce que,
a possibilidade desse recurso mantém-se na lei actualmente em vigor, mormente
quando estamos perante um acórdão da Relação que se abstenha de conhecer do
objecto do recurso interposto – artigo 756.º do CPC.
Salvo melhor entendimento, é o que ocorre in casu.
Logo,
o que aqui se constata é que o Tribunal da Relação, ao não admitir o recurso,
fê‑lo também em notória violação da lei.
Porquanto,
como resulta da própria decisão de rejeição, a recorrente foi «notificada do
acórdão de fls. 311 que não conheceu do recurso de agravo interposto da decisão
de 1.ª Instância» – sublinhado nosso,
e é desta decisão de não conhecimento do objecto do seu recurso que «veio a
mesma pretender interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça ...».
Ora,
salvo melhor opinião, o entendimento plasmado na douta decisão de rejeição,
objecto da presente reclamação, não tem qualquer suporte de razoabilidade e
muito menos suporte legal.
Vejamos:
como já dissemos, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu «não conhecer do
objecto do recurso» interposto de decisão proferida em sede de 1.ª instância.
Essa mesma decisão, que se traduz aqui num facto incontornável, voltou a ser
referida no 1.º parágrafo da decisão de que ora se reclama.
Assim sendo, como de facto é, pergunta‑se:
Como poderia a recorrente dar cumprimento à pretensão do Tribunal de Relação de
«comprovar» a existência de «oposição do acórdão com outro proferido sob o
domínio da mesma legislação pelo STJ»?
É que o acórdão que foi proferido pelo Tribunal da Relação, o acórdão do qual se
pretende recorrer, apenas decidiu «não conhecer do objecto do recurso».
Deste modo,
é de todo impossível à recorrente demonstrar/comprovar o que quer que seja, uma
vez que um acórdão através do qual se decidiu «não conhecer do objecto do
recurso» traduz de uma forma inequívoca a inexistência de uma decisão sobre a
questão ou questões de fundo que se colocam para apreciação em 2.ª instância.
Face a tal situação, surge‑nos a possibilidade conferida pelo artigo 756.º do
CPC,
o qual permite a subida imediata dos agravos «interpostos dos acórdãos da
Relação que conheçam ou se abstenham de conhecer do objecto do recurso
interposto».
Corroborando tal entendimento, trazemos aqui o pensamento do Sr. Juiz
Conselheiro Cardona Ferreira, in Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra
Editora, 2002, pág. 94, onde se diz o seguinte:
«Tudo conjugado (artigo 9.º do Código Civil), concluímos que a 1.ª parte do n.º
2 do artigo 754.º só rejeita a admissibilidade de chamados agravos
interlocutórios, isto é, de decisões não potencialmente finais (e, mesmo assim,
com excepções, como se viu). Donde, a nosso ver, as decisões potencialmente
finais da 2.ª instância são recorríveis (sem prejuízo do artigo 678.º); nos
termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 754.º.»
Também Castro Mendes, in Recursos, 1980, págs. 173/174, escreve o seguinte:
«Os ‘agravos continuados’ são aqueles que resultam da continuação da discussão
no Supremo de uma decisão da 1.ª instância e que sobem imediatamente, nos
próprios autos ou em separado consoante tenham subido da 1.ª instância nos
próprios autos ou em separado, e mantendo o efeito na marcha do processo que já
tinha o recurso que continuem.»
A tudo isto acresce ainda o facto de a garantia do recurso ter entre nós
consagração constitucional – artigo 20.º da CRP,
pelo que,
in casu, estamos perante uma violação de um direito fundamental, o direito de
recorrer,
o que aqui se invoca para todos os eleitos legais.
Pelo exposto,
e com o mui douto suprimento de V. Ex.ªs dúvidas não podem subsistir de que
despacho ora reclamado deverá ser reparado e consequentemente substituído por
outro que admita o recurso interposto.
E isto porque, e em conclusão,
só deste modo, para além da reposição da legalidade, se concretizam os preceitos
jurídicos supra invocados.”
1.2. Essa reclamação foi indeferida por
despacho do Vice‑Presidente do STJ, de 28 de Fevereiro de 2007, com a seguinte
fundamentação:
“I. A requerente A. recorreu para este Supremo Tribunal do acórdão do Tribunal
da Relação de Coimbra que não conheceu do objecto do recurso interposto da
decisão da 1.ª instância que não admitira a revogação do consentimento para a
adopção por ela (mãe do menor) requerida.
Por despacho do Ex.mo Desembargador Relator, esse recurso não foi admitido, por
entender que o caso dos autos não se integra na previsão do artigo 754.º, n.ºs 2
e 3, do CPC.
Daí a presente reclamação, em que a recorrente sustenta que o recurso deve ser
admitido, uma vez que houve uma errónea aplicação do artigo 754.º do CPC,
porquanto o acórdão da Relação, ao não conhecer do objecto do recurso, não
incidiu sobre decisão da 1.ª instância. Invoca ainda o disposto no artigo 756.º
do CPC, sem deixar de acrescentar que a garantia do recurso está consagrada
constitucionalmente (artigo 20.º da CRP).
O Ministério Público e os requeridos pugnam pelo improvimento da reclamação.
II. Cumpre apreciar e decidir.
O acórdão que agora se questiona não conheceu do objecto do recurso interposto
pela ora reclamante.
E desta decisão da Relação não cabe recurso de agravo, porquanto, para que este
fosse admissível, teriam que se verificar os requisitos exigidos pelo artigo
754.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.
Ora, nem se alega que o acórdão de que se pretende recorrer está em oposição com
outro, nem tão‑pouco se fundamenta o recurso em violação de regras de
competência absoluta ou na ofensa do caso julgado.
Ainda não se ataca a decisão por discordância com o valor da causa; finalmente a
decisão impugnada não pôs termo ao processo. Com efeito, nos presentes autos, a
decisão que lhe pôs termo foi a sentença final que decretou a adopção.
A invocação do artigo 756.º CPC é descabida em sede de reclamação, uma vez que
esta norma respeita ao regime de subida dos agravos continuados, e não à sua
admissibilidade, que se rege pelo disposto no artigo 754.º do CPC.
Por último, cabe dizer que o princípio da tutela jurisdicional efectiva a que
alude o artigo 20.º, n.º 1, da CRP se concretiza, em regra, através da
instância única, só se impondo o direito ao recurso em processo criminal, nos
termos do n.º 1 do artigo 32.º da CRP.
III. Pelo exposto, indefere‑se a presente reclamação.”
1.3. Desse despacho intentou a reclamante
recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, através de requerimento do seguinte teor:
“Na sua reclamação para o Excelentíssimo Senhor Conselheiro Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça, datada de 2 de Fevereiro de 2007, ao abrigo do
disposto no artigo 688.º do CPC, a ora recorrente, concretamente na parte final
da sua reclamação, arguiu a violação do princípio da tutela jurisdicional
efectiva consagrado no artigo 20.º da Lei Fundamental, na concreta interpretação
que daquele preceito fora feita nos autos, mais propriamente no despacho de
rejeição/não admissão do recurso proferido pelo Meritíssimo Juiz Desembargador
Relator do Tribunal da Relação de Coimbra a fls. … dos autos.
Para essa não admissão escudou‑se o Meritíssimo Juiz Desembargador Relator do
Tribunal da Relação de Coimbra numa interpretação e subsequente aplicação
errónea do artigo 754.º do CPC.
Na verdade, o acórdão do qual a recorrente pretendeu interpor recurso apenas
decidiu «não conhecer do objecto do recurso»,
e, assim sendo, é evidente que perante tal decisão (de não conhecimento) a
mesma se traduz de forma inequívoca numa inexistência de pronúncia sobre a
questão ou questões de fundo que se colocaram para apreciação em 2.ª instância.
Assim sendo, obstar‑se à admissão do recurso que se interpôs para o STJ com a
justificação de que o mesmo não se integra na previsão do artigo 754.º, n.ºs 2 e
3, do CPC é cercear um direito fundamental que assiste à recorrente,
violando‑se assim um direito fundamental da mesma, com base na aplicação de um
artigo (754.º do CPC) que, desde logo, não pode ser aplicado ao caso em apreço,
o que se traduz em concreta inconstitucionalidade.
É que um acórdão, in casu, do TRC, no qual se decidiu «não conhecer do objecto
do recurso», nunca poderá estar em oposição com outro, atendendo a que a matéria
a apreciar em 2.ª Instância não foi apreciada,
daí a forçosa inexistência de oposição de acórdãos.
In casu,
tal como se alegou em sede de reclamação para o Meritíssimo Juiz Conselheiro
Presidente do Supremo Tribunal, estamos perante um «agravo continuado»,
E,
como ensina Castro Mendes, in Recursos, 1980, págs. 173/174, os «‘agravos
continuados’ (epígrafe do artigo 756.º) são aqueles que resultam da continuação
da discussão no Supremo de uma decisão da 1.ª instância e que sobem
imediatamente, nos próprios autos ou em separado consoante tenham subido da 1.ª
instância nos próprios autos ou em separado, e mantendo o efeito na marcha do
processo que já tinha o recurso que continuam».
Por sua vez,
José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in Código do Processo Civil
Anotado, Coimbra Editora, 2003, vol. 3.º, pág. 186, dizem que «não importa que o
recurso de agravo interposto em 1.ª instância haja subido nos próprios autos ou
em separado. Desde que se continue a discutir a questão através da interposição
de um agravo para o STJ, os autos vindos da 1.ª instância sobem imediatamente
ao Supremo, quer a decisão da Relação tenha conhecido do objecto do recurso,
quer não tenha conhecido do mesmo objecto. Mantêm, por isso, o efeito na marcha
do processo que já tinham.»
Ora,
não obstante a invocação pela aqui recorrente da acima mencionada violação que
se traduz numa inconstitucionalidade e do facto de estarmos, a nosso ver,
perante um «agravo continuado», o despacho do Meritíssimo Juiz Conselheiro
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça aderiu e confirmou o Despacho do Ex.mo
Senhor Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra, acrescentando ainda o
despacho do qual ora se recorre que a recorrente não «fundamenta o recurso em
violação das regras de competência absoluta ou na ofensa de caso julgado» e que
a reclamante, ora recorrente, também não «ataca a decisão por discordância com o
valor da causa».
Se quanto às regras de competência absoluta ou à ofensa ao caso julgado nada se
oferece dizer, tendo em conta que, salvo melhor opinião, no caso concreto destes
autos tais fundamentos seriam despropositados,
já quanto ao facto de se invocar no douto Despacho do Meritíssimo Juiz
Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que a recorrente não
«ataca a decisão por discordância com o valor da causa», sempre se dirá, com o
respeito devido por opinião contrária, que tal argumento não necessitaria de ser
invocado pela recorrente,
uma vez que, por força do artigo 312.º do CPC, «as acções sobre o estado das
pessoas ou sobre interesses imateriais consideram‑se sempre de valor equivalente
à alçada da Relação e mais € 0,01».
Assim sendo,
no tocante ao valor da causa, estamos, sem dúvida, perante a possível
admissibilidade de recurso, in casu, até ao STJ, sem necessidade, a nosso ver,
de invocar tal requisito por o mesmo ser, em último termo, de conhecimento
oficioso.
Logo,
a regra da instância única que se alega no douto despacho do Meritíssimo Juiz
Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não tem aqui aplicação.
Face ao que se vem de dizer,
estarmos perante a violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva a que
alude o artigo 20.º, n.º 1, da CRP,
justificando‑se por isso o presente recurso, uma vez que estão já esgotados
todos o recursos ordinários, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 70.º da
LTC,
estando, em nossa modesta opinião, o Tribunal Constitucional em condições de
conhecer do presente recurso, interposto tempestivamente – artigo 75.º, n.º 1,
da LTC –, visando, o mesmo, obter declaração de inconstitucionalidade material
do artigo 754.º do CPC, na concreta interpretação que daquele preceito fez o
douto despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao confirmar, in
casu, a exigência da oposição de acórdãos, por violação do princípio
constitucional da tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 20.º da
nossa Lei Fundamental
Tenha‑se ainda em conta que o facto de não se admitir a subida do recurso é, a
nosso ver, uma limitação que atinge o núcleo essencial dos direitos e garantias
da recorrente,
à qual, até face ao valor da causa, assiste o direito a ver o seu caso
examinado em via de recurso por uma instância superior, o que até agora não
aconteceu, fruto de o acórdão do TRC («acorda‑se em não conhecer do objecto do
recurso»).
Daí a convicção da recorrente de estarmos perante a violação do princípio do
acesso ao direito e à tutela judicial efectiva, constante do artigo 20.º, e, em
último termo, do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, ambos da
CRP.
De facto, o artigo 20.º estabelece que «a todos é assegurado o acesso ao direito
e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios
económicos»,
e ainda que «todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto
de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo».
O recurso interposto da 2.ª Instância para o STJ e rejeitado com base no artigo
754.º do CPC, tendo em conta as especificidades próprias do caso concreto da
recorrente (inexistência de pronúncia sobre a questão ou questões de fundo que
se colocaram para apreciação em 2.ª instância), não pode deixar de ser admitido,
Porquanto,
tal disposição é material e organicamente inconstitucional por privar a ora
recorrente do acesso ao direito e aos tribunais de modo efectivo para obter uma
decisão de mérito, violando o disposto no artigo 20.º da CRP,
pelo que deve ser admitido o recurso oportunamente interposto, com as legais
consequências.
Doutro modo,
estaremos perante inequívoca «denegação de justiça», que se reconduz a clara
violação da nossa Lei Fundamental, a que acresce notória prevalência do direito
processual em detrimento do direito material, pondo‑se assim em causa direitos
fundamentais ou análogos da recorrente.
Face ao exposto,
com o presente recurso, a ora recorrente, tempestivamente e depois de esgotados
todos os recursos ordinários que in casu cabiam – artigos 75.º, n.º 1, e 70.º,
n.º 2, da LTC,
vem, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º
28/82, na sua actual redacção,
interpor o correspectivo recurso para o Tribunal Constitucional,
visando obter declaração de inconstitucionalidade material do artigo 754.º do
CPC, na concreta interpretação que daquele preceito fez a decisão recorrida
(interpretação inicialmente plasmada no douto despacho do Ex.mo Senhor
Desembargador da Relação de Coimbra, e, subsequentemente, absorvida pela
interpretação definitiva do Meritíssimo Juiz Conselheiro Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça, a fls. 31 e 32, que rejeita a subida de. um recurso de
agravo continuado), por violação do direito ao recurso, do princípio da tutela
jurisdicional efectiva, e, em, último termo, do princípio da igualdade, a que se
referem os artigos 20.º e 13.º, ambos da CRP.”
1.4. O recurso não foi admitido pelo
despacho do Vice‑Presidente do STJ, de 16 de Março de 2007, ora reclamado, com a
seguinte fundamentação:
“A.veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional para que seja apreciada
a inconstitucionalidade do artigo 754.º do CPC, por violação dos artigos 20.º e
13.º da CRP.
Face ao disposto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC, o recurso previsto nas alíneas
b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC só pode ser interposto pela parte que
haja suscitado a questão da inconstitucionalidade «de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este
estar obrigado a dela conhecer».
A recorrente diz no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional que invocou essa questão na reclamação que nos foi dirigida.
Vejamos.
Na parte final da reclamação apenas se diz que «a tudo isto, acresce ainda o
facto de a garantia do recurso ter entre nós consagração constitucional –
artigo 20.º da CRP».
No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 421/2001 – Diário da República, II
Série, de 14 de Novembro de 2001, entendeu‑se: «... que uma questão de
constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo
processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera
inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera
violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da
inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de
constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em
abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma
que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão
ou a um acto administrativo».
Segundo estes ensinamentos, não se considera suscitada qualquer questão de
inconstitucionalidade.
Pelo exposto, não se admite o recurso interposto para o Tribunal
Constitucional.”
1.5. É contra este despacho que vem deduzida
a presente reclamação, argumentando a reclamante que:
“O douto despacho de que se reclama não admitiu o recurso interposto para o
Tribunal Constitucional, considerando não ter sido suscitada qualquer questão de
inconstitucionalidade.
Falece, porém, razão, à decisão assim tomada.
Na verdade,
a interpretação dada ao artigo 754.º do CPC pelos Tribunais a quo que se têm
vindo a pronunciar sobre o caso de adopção, com o respeito devido por opinião
contrária, era de todo impensável para a reclamante e surge apenas a final de
modo imprevisível, com o indeferimento por parte do Venerando Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça,
A quem se dirigiu reclamação, salvo melhor opinião, devidamente fundamentada e
estribada em breves excertos de doutrina, apresentada por um Ilustre Professor –
Castro Mendes, e, um brilhante Juiz Conselheiro – Cardona Ferreira,
reclamação que merecia «acolhimento» e por isso se impunha o seu deferimento.
In casu,
não era pois previsível, por parte da reclamante, tal interpretação do artigo
754.º do CPC e muito menos a sua aplicação.
Assim sendo,
estamos pois perante uma interpretação que, para além de insólita, é inesperada,
o que fez com que a reclamante não tivesse podido ter por possível a aplicação
da dita norma com tal interpretação.
Daí que,
é seu entendimento que, in casu, não se mostrava adequado exigir‑lhe um juízo de
prognose relativo a essa aplicação, suscitando desde logo a questão da
inconstitucionalidade, antecipando‑se assim ao proferir da decisão.
Na verdade,
a reclamante só perante a decisão proferida se viu na possibilidade, concreta e
definitiva, de arguir a inconstitucionalidade em causa,
tendo‑o assim feito no primeiro momento que se lhe impunha fazê‑lo, isto é, no
seu requerimento de interposição de recurso para este Venerando Tribunal.
Nesse sentido, e no tocante à oportunidade, vai também a jurisprudência do
Tribunal Constitucional em vários acórdãos, de entre os quais destacamos o
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 153/93 (in Diário da República, II Série,
de 16 de Março de 1993), o qual sedimentou jurisprudência admitindo que se
excepciona a regra – em sentido funcional, que não formal – da suscitação da
constitucionalidade em situações anómalas «em que o interessado não disponha de
oportunidade processual para levantar a questão antes de proferida a decisão» e
ainda o Acórdão do Tribunal Constitucional, de 19 de Junho de 1991 – in Boletim
do Ministério da Justiça, n.º 408, p. 616.
Pelo exposto,
deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência, ser admitido o
recurso interposto.”
1.6. Neste Tribunal, o representante do
Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação carece manifestamente de fundamento.
Na verdade, a reclamante não suscitou, durante o processo e em
termos processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa, idónea para servir de base ao recurso de fiscalização concreta
interposto. E teve, para tal, plena oportunidade, já que não pode seguramente
configurar‑se como «decisão‑surpresa» a que, em processo de reclamação, se
limita a confirmar o despacho reclamado, proferido pelo relator, e que não
havia admitido o recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. No sistema português de fiscalização de
constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional
cinge‑se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões
de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a
interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com
clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa
inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas
directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas, ou a condutas ou
omissões processuais. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre
no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos
requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante
o processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela
conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito
aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de
inconstitucionais pelo recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da
questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de
proferida a decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações
especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder
jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas
situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de
oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes
de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe
era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade,
designadamente por ser de rotular como inesperada, anómala ou insólita a
interpretação normativa aplicada na decisão recorrida.
3. No presente caso, a reclamante admite não
ter suscitado, perante o autor da decisão recorrida e antes da prolação desta,
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, mas sustenta que se deve
considerar dispensada desse ónus, atenta a natureza inesperada da interpretação
dada ao artigo 754.º do CPC.
É manifesta a improcedência deste argumento,
pois nunca se poderia considerar inesperada uma interpretação normativa que –
como a própria reclamante expressamente referiu no seu requerimento de
interposição de recurso de constitucionalidade – aderiu e confirmou a adoptada
no despacho de não admissão de recurso para o STJ, então reclamado.
Não tendo a reclamante, na reclamação
endereçada ao Presidente do STJ, suscitado qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, limitando‑se tão‑só a imputar a violação do
artigo 20.º da CRP à própria decisão judicial de não admissão do recurso, em si
mesmo considerada, é patente a inadmissibilidade do recurso interposto para o
Tribunal Constitucional.
4. Em face do exposto, acorda‑se em
indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando‑se a taxa de
justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 16 de Maio de 2007.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos