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Processo n.º 43/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Reclama a recorrente, nos termos do n.º 3 do artigo 78º-A da LTC, da
decisão sumária pela qual foi negado provimento ao recurso interposto para este
Tribunal.
Entende, em suma, que 'a norma impugnada, o artigo 54º n.º 3 do Decreto-Lei
15/93, independentemente da gravidade do crime, sujeita um arguido de crime do
artigo 21º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93, automaticamente, ao prazo máximo de
prisão preventiva, do artigo 215º n.º 3 do CPP, passando por cima da distinção
operada pela própria Lei Processual Penal.' Exemplifica, ainda, uma situação que
considera 'aberrante': a de um arguido 'a quem foi apreendido X gramas de
haxixe', que se sujeita a um prazo de prisão preventiva mais longo do que
'outro arguido por crime de homicídio agravado'.
O representante do Ministério Público neste Tribunal entende que a reclamação é
manifestamente improcedente.
2. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
A. recorre para este Tribunal do acórdão proferido no Supremo Tribunal de
Justiça em 14 de Dezembro de 2005 que rejeitou, por manifesta improcedência, o
recurso interposto da decisão da Relação de Lisboa que indeferira o pedido de
alteração da medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi imposta.
O recurso foi interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC,
pretendendo a recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade da norma contida
no n.º 3 do artigo 54º do Decreto-Lei 15/93 de 22 de Janeiro, com referência ao
artigo 215º n.º 3 do Código de Processo Penal, interpretada no sentido 'de se
aplicar o prazo máximo de prisão preventiva [...], desde que esteja em causa um
crime de tráfico de estupefacientes punido pelos artigos 21º e 24º do
Decreto-Lei n.º 15/93'.
Na suscitação da questão perante o Tribunal recorrido adianta a recorrente que
tal interpretação, que assenta na aplicação automática do prazo máximo de prisão
preventiva previsto no n.º 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal, é
inconstitucional por violação dos artigos 28º n.º 4 e 32º n. 1 da Constituição,
pois inibe 'a aplicação dos prazos diferenciados de prisão preventiva em função
da gravidade dos crimes ou complexidade dos processos e permitiria,
designadamente, em crimes com a mesma moldura penal, a aplicação de prazos
diferentes de prisão preventiva, o que se afigura constitucionalmente
insuportável'.
Pretende, assim, a recorrente questionar a aplicação ope legis da regra que
prevê, para crime de tráfico de estupefacientes, um prazo alargado de prisão
preventiva.
Ora sobre caso muito semelhante – em que era questionada a norma, retirada dos
mesmos preceitos legais (artigo 54º n.º 3 do Decreto-Lei 15/93 de 22 de Janeiro,
em conjugação com o artigo 215º n.º 3 do Código de Processo Penal), segundo a
qual tem aplicação, ope legis e sem necessidade de despacho judicial a
qualificar o processo como de especial complexidade, do prazo máximo de prisão
preventiva fixados naquele artigo 215º quando o procedimento respeita aos crimes
referido no artigo 54º do referido Decreto-Lei – já este Tribunal se pronunciou
(Acórdão nº 246/99), não julgando tal norma inconstitucional.
A semelhança do caso aconselha a transposição da doutrina desse Acórdão ao caso
em presença, mediante a invocação da sua fundamentação.
Diz-se naquele aresto:
«[...]
7. Cabe começar por definir com clareza o objecto do presente recurso de
constitucionalidade.
Na parte que agora interessa, são do seguinte teor os artigos 54º do Decreto-Lei
nº 15/93, de 22 de Janeiro e 215º do Código de Processo Penal, respectivamente:
Artigo 54º
(Prisão preventiva)
1. Sempre que o crime imputado for de tráfico de droga, desvio de
precursores, branqueamento de capitais ou de associação criminosa, é
correspondentemente aplicável o disposto no nº 1 do artigo 209º do Código de
Processo Penal, devendo ainda o juiz tomar especialmente em conta os recursos
económicos do arguido utilizáveis para suportar a quebra da caução e o perigo de
continuação da actividade criminosa, em termos nacionais e internacionais.
2. (...)
3. Quando o procedimento se reporte a um dos crimes referidos no nº
1, é aplicável o disposto no nº 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal.
Artigo 215º
(Prazos de duração máxima da prisão preventiva)
1. A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início,
tiverem decorrido:
a) Seis meses sem que tenha sido deduzida acusação;
b) (…);
c) (…);
d) (…).
2. Os prazos referidos no nº 1 são elevados, respectivamente, para
oito meses, um ano, dois anos e trinta meses quando se proceder por um dos
crimes referidos no artigo 209º.
3. Os prazos referidos no nº 1 são elevados, respectivamente, para
doze meses, dezasseis meses, três anos e quatro anos quando o procedimento for
por um dos crimes referidos no artigo 209º e se revelar de excepcional
complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao
carácter altamente organizado do crime.
4. (….).
Destina-se o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
Lei do Tribunal Constitucional a averiguar da compatibilidade com a Lei
Fundamental de normas aplicadas pelo tribunal a quo, cuja inconstitucionalidade
tenha sido suscitada durante o processo.
No caso presente, a norma que o Tribunal da Relação de Lisboa aplicou – e que
fundamentou a revogação do despacho do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa
que determinara a restituição à liberdade dos arguidos –, é a que resulta da
conjugação do nº 3 do artigo 54º do Decreto-Lei nº 15/93 e do nº 3 do artigo
215º do Código de Processo Penal, e que se pode formular nos seguintes termos:
quando o procedimento respeita aos crimes de tráfico de droga, desvio de
precursores, branqueamento de capitais ou de associação criminosa, os prazos
máximos da prisão preventiva são, ope legis, os referidos no nº 3 do artigo 215º
do Código de Processo Penal, sem necessidade da qualificação do processo, por
despacho judicial, como de excepcional complexidade. Entre esses prazos figura
aquele que, em concreto, está em causa, relativo à dedução de acusação.
[...]
8. Antes de avançar, importa ter presente que a norma aplicada pelo tribunal
recorrido, que se extrai das disposições legais atrás transcritas, respeita à
determinação dos prazos máximos de prisão preventiva correspondentes a cada fase
processual (no caso, do prazo para deduzir acusação).
De acordo com a referida norma, no sentido que lhe foi atribuído, repete-se, os
prazos máximos consagrados no nº 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal
são aplicáveis sempre que o procedimento respeite aos crimes enumerados no nº 1
do artigo 54º do Decreto-Lei nº 15/93, independentemente de decisão judicial
nesse sentido.
Mas se os prazos máximos da prisão preventiva resultam assim directamente da
lei, já naturalmente a manutenção desta medida de coacção depende de decisão
judicial, nos temos, designadamente, do disposto no artigo 213º do Código de
Processo Penal, que obriga a um reexame oficioso da subsistência dos respectivos
pressupostos, de três em três meses. Assim, aliás, o diz, expressamente, o nº 2
do artigo 54º do Decreto-Lei nº 15/93, que impõe ao Ministério Público o dever
especial de colher informação actualizada, antes de se pronunciar “sobre a
subsistência dos pressupostos da prisão preventiva de acordo com o artigo 213º
do Código de Processo Penal”.
Em consequência, não se afigura procedente a defesa, pelo Magistrado do
Ministério Público em funções neste Tribunal, da inconstitucionalidade da norma
em causa por violação do artigo 28º da Constituição, na parte em “que faz
depender de decisão judicial a validação ou confirmação da prisão sem culpa
formada e garante que o detido tenha oportunidade de se defender”. Com efeito, a
norma aplicada não tem o alcance de derrogar a necessidade de validação ou
confirmação judicial da prisão, com observância do contraditório (cfr. o nº 1 do
artigo 28º), e não afasta a obrigação legal de reexaminar periodicamente os
respectivos pressupostos.
9. A alegada inconstitucionalidade da norma aplicada pelo Tribunal a quo
resultaria também, segundo um dos recorrentes, com o aplauso do Ministério
Público, de não ser constitucionalmente admissível uma presunção de que
determinados processos se revestem de uma excepcional complexidade. Tal
presunção violaria os princípios da presunção de inocência e do carácter
excepcional e precário da prisão preventiva.
É necessário sublinhar que a invocada presunção não é senão a explicação
dogmática adoptada pelo Tribunal recorrido para o regime que extraiu da lei – e
segundo a qual o carácter automático do alargamento do prazo máximo para a
prisão preventiva equivale a considerar como de excepcional complexidade todos
os processos relativos aos crimes de tráfico de droga, desvio de precursores,
branqueamento de capitais ou de associação criminosa, previstos no Decreto-Lei
nº 15/93 –, e não é a única possível. A fixação de prazos máximos mais longos
decorre provavelmente de outras considerações, ligadas não à natureza dos
processos, mas à natureza dos crimes imputados, em que se revela porventura um
especial perigo de continuação da actividade criminosa.
Parece corroborar esta hipótese o disposto no nº 1 do artigo 54º do Decreto-Lei
nº 15/93. Com efeito, este preceito não se limita a declarar aplicável aos
crimes que enumera o regime prescrito pelo nº 1 do artigo 209º do Código de
Processo Penal, segundo o qual, em determinados crimes (particularmente graves,
como decorre, quer da medida da pena referida no nº 1, quer da lista contida no
nº 2), o juiz, “no despacho sobre medidas de coacção”, deve “indicar os motivos
que o tiverem levado a não aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva”.
O que agora releva é verificar que, para além da aplicação do regime previsto no
nº 1 do artigo 209º, o juiz tem de considerar ainda, para justificar a não
aplicação da medida de prisão preventiva, “especialmente (...) os recursos
económicos do arguido utilizáveis para suportar a quebra da caução e o perigo de
continuação da actividade criminosa, em termos nacionais e internacionais.” É
inegável que é a especial gravidade destes crimes que explica estas exigências.
Não vem agora ao caso fazer a história do artigo 209º do Código de Processo
Penal, aplicável a muitos outros casos para além do que nos ocupa; nem se
justifica fazer a sua aproximação (manifesta) com a eliminação dos crimes
incaucionáveis (previstos no Decreto-Lei nº 477/82, de 22 de Dezembro, revogado
pelo diploma que aprovou o Código de Processo Penal de 1987, o Decreto-Lei nº
78/87, de 17 de Fevereiro), sobre cuja admissibilidade constitucional se
debruçaram os acórdãos deste Tribunal nºs 11/88 e 128/88, publicados em Acórdãos
do Tribunal Constitucional, vol. 11º, págs. 507 e segs. e 929 e segs.,
respectivamente.
O que não é seguramente possível é proceder a um juízo de constitucionalidade da
norma partindo de uma – e apenas de uma – das suas hipóteses de fundamentação
teórica. Com efeito, embora o objecto do processo de fiscalização concreta da
constitucionalidade seja a norma, com o sentido e alcance com que foi aplicada
pela decisão recorrida, não deve confundir-se a norma, ou regime normativo, com
a explicação que teoricamente o fundamenta. Assim, não está o Tribunal
Constitucional vinculado a aceitar como boa a consideração, puramente teórica,
de que o carácter ope legis da aplicabilidade dos prazos mais longos da prisão
preventiva resulta da consideração como de excepcional complexidade de todos os
processos relativos aos tipos de crimes enumerados.
10. A constitucionalidade da elevação dos prazos máximos de prisão preventiva
quando aos agentes sejam imputados determinados crimes ligados à droga deve ser
apreciada perante o quadro de garantias de processo criminal aplicáveis àquela
medida de coacção.
A Constituição admite, como excepção ao princípio segundo o qual 'ninguém pode
ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de
sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de
prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança' (nº 2 do artigo 27º), a
'detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a
que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos',
desde que 'pelo tempo e nas condições que a lei determinar' (alínea b) do nº 3
do artigo 27º, correspondente à alínea a) do texto constitucional anterior à
Revisão de 1997).
O carácter excepcional da prisão preventiva é hoje expressamente consagrado no
nº 2 do artigo 28º: 'a prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo
decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais
favorável prevista na lei'. Na versão anterior à Revisão de 1997, o nº 2 do
artigo 28º impunha já que 'a prisão preventiva não se mantém sempre que possa
ser substituída por caução ou por qualquer outra medida mais favorável prevista
na lei'.
Não resulta da norma aplicada pelo Tribunal recorrido qualquer violação à
natureza excepcional da prisão preventiva. E isto não apenas porque a referida
norma não responde ao problema de saber se pode ser decretada ou mantida a
prisão preventiva, ou em que condições pode aplicada, limitando-se a indicar os
prazos máximos a que está sujeita em cada fase processual.
11. Ligado à natureza excepcional da prisão preventiva está o seu carácter
subsidiário (nº 2 do artigo 28º da Constituição) e temporalmente limitado (nº 4
do mesmo artigo).
Ora o primeiro não está aqui manifestamente em causa, atento o alcance da norma
impugnada, que fixa prazos máximos da prisão preventiva.
O segundo também não é violado, justamente porque o alargamento dos prazos não
equivale, como é obvio, ao seu afastamento, à admissão de prisão preventiva
independentemente de limites temporais ou à fixação de limites tão dilatados
que, na prática, o frustrassem.
12. Em última análise, constituindo a prisão preventiva em geral uma restrição
constitucionalmente admitida do direito à liberdade proclamado no nº 1 do artigo
27º, as normas legais que fixam o respectivo regime devem obedecer ao princípio
da proporcionalidade (artigo 18º da Constituição).
É conveniente ter presente que a alteração dos prazos máximos de duração da
prisão preventiva operada pela norma impugnada no presente processo, quanto à
fase anterior à dedução de acusação, se traduz numa elevação de oito (cfr. o nº
2 do art. 215º do Código de Processo Penal e a alínea d) do nº 2 do art. 209º do
mesmo Código) para doze meses.
Tendo em conta a natureza dos crimes imputados, os bens jurídicos postos em
perigo e o risco de continuação da actividade perigosa, entre outras
considerações, afigura-se constitucionalmente legítima, porque respeitadora do
princípio da proporcionalidade, a elevação de prazo indicada. Com efeito, não
podendo esquecer que se trata aqui de prazos máximos, que não dispensam que o
Tribunal reveja periodicamente a manutenção dos pressupostos da prisão
preventiva, em estrita obediência ao seu carácter excepcional, há razões ligadas
ao tipo de crimes que podem levar à fixação de prazos dilatados. De resto, o
aumento de oito para doze meses do prazo máximo nesta fase processual traduz uma
elevação significativa mas não exponencial do período de tempo em causa.
13. Do mesmo passo, não há também razões para entender que a norma aplicada pelo
tribunal a quo viola o princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição), já
que, como se viu, a diferença de tratamento encontra justificação material na
natureza dos crimes imputados.
[...] »
Da fundamentação do aludido Acórdão n.º 246/99, que integralmente se acompanha,
facilmente se retira que a norma em causa não ofende os artigos dos artigos 28º
n.º 4 e 32º n. 1 da Constituição, conforme invoca a recorrente, pois a prisão
preventiva disciplinada pela norma em apreço continua a 'estar sujeita aos
prazos estabelecidos na lei' e, por outro lado, esse regime assegura ao arguido
'todas as garantias de defesa'.
Desta forma, cumpre desde já negar provimento ao recurso, nos termos do n.º 1 do
artigo 78º-A da LTC.
3. É esta doutrina, que a reclamação não rebate, que ora cabe reafirmar.
Acresce que o caso hipotético apresentado pela reclamante é aqui totalmente
irrelevante, uma vez que no domínio da fiscalização concreta de
constitucionalidade se deve atender unicamente à dimensão normativa aplicada ao
caso em presença e, este, em nada se aproxima daquela hipótese.
Em todo o caso, importa não deixar de referir que a possibilidade, que a norma
impugnada abre, de prolongar o prazo de prisão preventiva, não implica a
obrigatoriedade de, em qualquer circunstância, submeter o arguido a essa medida
de coacção, ou de lhe aplicar o tempo máximo de prisão preventiva, pois, como em
todos os outros casos, o juiz deve apreciar individualmente a situação concreta
para decidir da aplicação da medida.
Idêntica questão foi, de resto, reapreciada no recente Acórdão n.º 685/05 deste
Tribunal, merecendo uma solução semelhante à expressa na decisão ora reclamada.
É, portanto, improcedente a argumentação da reclamante.
4. Termos em que se decide indeferir a reclamação, com custas pela
recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. Taxa de justiça
20 UC.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 2006
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos