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Processo n.º 1003/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Em 12 de Janeiro de 2005 foi proferida nos presentes autos decisão sumária com o seguinte teor:
«1.A. e B. vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Maio de 2004, que julgou improcedente o recurso de revista de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que igualmente negara provimento ao recurso interposto de sentença do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa (11.º Juízo) pela qual fora declarada procedente a acção de execução específica de contrato-promessa intentada, contra aqueles, por C.. No requerimento de recurso (interposto depois de ter sido desatendida reclamação do citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por alegado erro manifesto na fundamentação da decisão em matéria de facto) pode ler-se que este é interposto
“nos termos do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, para ser declarada a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido de admitir que o Tribunal, na decisão da matéria de facto, em vez de dar como provados factos, se limite a reproduzir declarações formais constantes de documentos impugnados, por violação da garantia de tutela jurisdicional efectiva e do direito de defesa assegurado pelo artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.”
2.O recurso foi admitido no tribunal a quo, mas, como dispõe o n.º 3 do artigo
76.º da Lei do Tribunal Constitucional, essa decisão não vincula este Tribunal, e, entendendo-se que não é de conhecer do recurso, é caso de proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
3.Com efeito, no requerimento de recurso não se indica, desde logo, a alínea do artigo 70.º, n.º 1, ao abrigo do qual o recurso é interposto, não se cumprindo a exigência dos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional). Tal seria, porém, apenas caso para proferir despacho de convite para aperfeiçoamento do recurso, nos termos dos n.ºs 5 e 6 do citado artigo 75.º-A, não fora a circunstância de tal convite se revelar, no presente caso, inútil, sendo, como
é, claro que não pode tomar-se conhecimento do recurso, por falta de verificação dos respectivos requisitos. Na verdade, resulta do requerimento de recurso que este é interposto invocando uma desconformidade com a Constituição da República Portuguesa – que é um recurso com fundamento numa inconstitucionalidade (e não numa ilegalidade). Razão pela qual só poderia estar em causa o recurso previsto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70.º (o previsto na alínea g) exigiria outros pressupostos, como a divergência em relação a anterior decisão de inconstitucionalidade do próprio Tribunal Constitucional, que não foram invocados pelo recorrente). Ora, pode desde logo excluir-se a possibilidade de se tomar conhecimento de (e provavelmente, mesmo de se ter querido interpor) um recurso do tipo previsto na citada alínea a) do n.º 1 do referido artigo 70.º: de decisões que “recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade.” É que no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido não se detecta qualquer recusa de aplicação, expressa ou implícita, de uma norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
4.Resta, assim, o recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. São requisitos específicos para se poder tomar conhecimento desse tipo de recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, que a norma (ou dimensão normativa) impugnada tenha sido aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi, que se tenha suscitado durante o processo a inconstitucionalidade dessa norma, e que tenham sido esgotados os recursos ordinários da decisão. No caso vertente, falha claramente logo o primeiro requisito. A norma impugnada
(que os recorrentes pretendem ver “declarada” inconstitucional) é, recorde-se, a do artigo 653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, num determinado entendimento ou interpretação: “no sentido de admitir que o Tribunal, na decisão da matéria de facto, em vez de dar como provados factos, se limite a reproduzir declarações formais constantes de documentos impugnados”. Os recorrentes reputam este entendimento violador da garantia de tutela jurisdicional efectiva e do direito de defesa assegurados pelo artigo 20.º da Constituição da República. Ora, consultando o acórdão recorrido vê-se que nele se pode ler (fls. 469 dos autos):
“8.º Finalmente, sustentam os recorrentes que a interpretação do artigo 653.º do C.P.Civ. no sentido de este permitir que o Tribunal, para a fixação da matéria de facto relevante, possa dar como reproduzido o conteúdo de documento junto ao processo, sem nada explicitar, deve ser julgada inconstitucional por violação das garantias previstas no art. 20.º da C.R.P.. Dispõe aquele artigo 653.º, n.º 2, que ‘a matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou despacho, se o julgamento incumbir a juiz singular; a decisão proferida declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.’
É certo que os documentos não são factos mas meios de prova de factos, pelo que na fixação da matéria de facto cumpre indicar expressamente os factos provados pelos documentos. Ora, como já se deixou escrito, as instâncias não se limitaram a dar por reproduzido o documento de fls. 130 e 131, antes consideraram provado que o autor e os réus assinaram esse documento e produziram as declarações dele constantes, que especificaram. Assim se compreende que na matéria de facto indicada no acórdão recorrido se haja referido as declarações do compromisso de compra e venda do imóvel e de pagamento do respectivo preço, emitidas pelos outorgantes e insertas no citado documento. Porque nas respostas dadas o Tribunal declarou quais os factos que julgou provados, em obediência ao prescrito no artigo 653.º do C.P. Civ., não se vislumbra, na decisão da matéria de facto, qualquer ofensa da garantia de tutela jurisdicional efectiva do direito de defesa assegurada pelo artigo 20.º da CRP. Os réus não viram diminuído ou impedido com tal decisão o exercício da via judiciária para salvaguarda dos seus interesses nem foram julgados pela aparência formal do documento que subscreveram, o qual, todavia, faz prova plena quanto às declarações dele constantes (art. 376.º do Cód. Civ.). Tendo o artigo 653.º do C.P. Civ. sido interpretado e aplicado nos termos que nele se expressam (e não segundo concluem os recorrentes) não foi posta em causa a garantia fundamental prevista no artigo 20.º da C.R.P., pelo que insubsistente se mostra também a última questão suscitada.” (itálicos aditados) O confronto da fundamentação do acórdão recorrido (cfr., em particular, os passos postos em itálico) basta para concluir que nele se não aplicou o artigo
653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, com a interpretação enunciada pelos recorrentes, e que estes pretendiam que o Tribunal Constitucional apreciasse no presente recurso. E o facto de a interpretação normativa impugnada pelos recorrentes não ter constituído ratio decidendi para a decisão recorrida impede o Tribunal Constitucional de tomar conhecimento do presente recurso.
5.Com estes fundamentos, e ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, decido não tomar conhecimento do presente recurso. Custas pelos recorrentes, com 7 (sete) unidades de conta de taxa de justiça.»
2. Os recorrentes vêm reclamar desta decisão, dizendo o seguinte:
«Entendeu o Digníssimo Relator não tomar conhecimento do recurso interposto pelo Recorrentes, ao abrigo do disposto no art. 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, por entender que o acórdão recorrido não aplicou o artigo 633.º, n.º 2, do CPC, com a interpretação enunciada pelos Recorrentes, e que estes pretendiam que o Tribunal Constitucional apreciasse no presente recurso. Recorde-se que os Recorrentes sustentam que no caso em apreço – em que se discutia a existência ou não de factos nos autos que atestassem a efectiva outorga e validade de um contrato-promessa de compra e venda respeitante a uma fracção autónoma – o Tribunal os julgou apenas pela aparência formal do documento que subscreveram e não por uma realidade factual devidamente apurada e apreciada, fixada após uma discussão da respectiva matéria de facto. Como alegaram os Recorrentes, tal entendimento corresponderia a uma violação, entre outras, da garantia de tutela jurisdicional efectiva e do direito assegurados pelo artigo 20.º da Constituição da República, pois em vez de dar como provados factos, o Tribunal no acórdão recorrido limitara-se a reproduzir declarações formais constantes de documentos impugnados. Segundo o douto entendimento da decisão ora reclamada, tal não se verificaria, e como tal não poderia a inconstitucionalidade suscitada ser atendida, porque “as instâncias não se limitaram a dar por reproduzido o documento de fls. 130 e 131, antes consideraram provado que o autor e os réus assinaram esse documento e produziram as declarações dele constantes, que especificaram.” Salvo devido respeito, que é muito e se reitera, não é essa a realidade constante dos autos. Na matéria factual que se mostra fixada desde a 1ª instância, e que não sofreu qualquer alteração nas instâncias de recurso subsequentes, as instâncias LIMITARAM-SE EFECTIVAMENTE A DAR POR REPRODUZIDO O DOCUMENTO, nada apurando quanto aos factos dele resultantes. Senão veja-se a resposta dada aos quesitos 3.º, 4.º, 5.º, 13.º, 14.º, 15.º,
17.º, 18.º e 23.º, formulados na 1ª instância em que a sistemática a resposta dada – no entendimento dos Recorrentes, para respeitar a citada garantia da tutela jurisdicional efectiva, deveria corresponder a uma realidade factual – se limita ser nos seguintes termos:
“Provado que do escrito de fls. 130 e 131 consta que…” Em passo algum constam como assentes factos pelos quais se prove que os RR efectivamente prometeram vender, que os RR efectivamente prometeram vender a fracção pelo preço de X, etc., etc. Repete-se, o Tribunal limitou-se a dar como provados documentos e não factos. Tal procedimento e entendimento que lhe está naturalmente subjacente, além de violar como se disse a Constituição, dá depois origem a contradições absolutas entre a realidade (supostamente factual) pressuposta na sua decisão e a parca factualidade efectivamente apurada em sede de julgamento, pois esta não confirma o documento efectuado. Senão veja-se a resposta dada ao quesito 8.º: Quando se questionava “se no dia 22.1.95 foi entregue pelo A. aos RR. a quantia de 15.000.000$00” – a 1ª instância entendeu dar essa materialidade como não provada. No entanto, consta do escrito de fls. 130 e 131 que essa quantia terá sido entregue, que terá sido entregue nesse dia e que terá sido entregue contra o recebimento do contrato-promessa assinado pelos RR. O facto de o documento particular assinado pelos RR. fazer prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, não faz prova de que essas declarações correspondessem à vontade dos declarantes, não faz prova quanto à exactidão das declarações constantes do documento ou que elas não tivessem sido simuladas. Tendo sido invocados esses factos, cabia ao Tribunal dar como provados factos e não simplesmente o documento, sob pena de na decisão trespassar sempre a dúvida e a incerteza quanto à realidade factual subjacente. Tais factos eram indispensáveis para salvaguardar a garantia da tutela jurisdicional efectiva do direito de defesa, pois só dessa forma se terá a certeza de que a realidade relevante foi efectivamente apurada e serviu de base
à condenação dos Recorrentes. Contrariamente ao que parece resultar do acórdão recorrido, não foi essa a realidade verificada na 1ª instância – juntando-se para melhor apreciação cópia da resposta dada a matéria do questionário (doc. n.º 1). Nessa resposta, na parte relevante para a condenação, o Tribunal limitou-se a dar como provado o documento e não factos. Esta resposta e os seus exactos termos, foi pura e simplesmente ignorada pelas instâncias de recurso, assentando sempre num pressuposto errado, que era o de que tinham sido dados como provados factos e não apenas o documento. Em idêntico erro crêem os Recorrentes incorre a decisão ora reclamada. Todavia, a ser apurada nos seus exactos termos toda a realidade nos autos, certamente se apurará a justeza da pretensão dos Recorrentes e a inconstitucionalidade invocada, em que respeitosamente insistem. Termos em que deve a presente Reclamação ser atendida, o recurso admitido e dele ser tomado conhecimento que é da Lei, para ser apreciada e decidida a inconstitucionalidade da interpretação seguida.» A recorrida respondeu defendendo o indeferimento da reclamação. II. Fundamentos
3. Adianta-se desde já que a presente reclamação não logra abalar os fundamentos em que se baseou a decisão recorrida para se pronunciar no sentido do não conhecimento do recurso. Não o faz, desde logo, quanto ao recurso possivelmente interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alíneas a) ou g), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, pois a reclamação defende apenas a aplicação do sentido normativo que a recorrente impugnara no requerimento de recurso. Quanto a um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da citada Lei, recorde-se que os recorrentes pretendiam, nos termos do requerimento de recurso, a apreciação da constitucionalidade (rectius, que fosse “declarada a inconstitucionalidade”) “da norma constante do artigo 653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido de admitir que o Tribunal, na decisão da matéria de facto, em vez de dar como provados factos, se limite a reproduzir declarações formais constantes de documentos impugnados.” Como resulta do passo do acórdão do tribunal a quo transcrito já na decisão sumária, naquele acórdão entendeu-se, porém, que “as instâncias não se limitaram a dar por reproduzido o documento de fls. 130 e 131, antes consideraram provado que o autor e os réus assinaram esse documento e produziram as declarações dele constantes, que especificaram”, acrescentando-se:
“Assim se compreende que na matéria de facto indicada no acórdão recorrido se haja referido as declarações do compromisso de compra e venda do imóvel e de pagamento do respectivo preço, emitidas pelos outorgantes e insertas no citado documento. Porque nas respostas dadas o Tribunal declarou quais os factos que julgou provados, em obediência ao prescrito no artigo 653.º do C.P. Civ., não se vislumbra, na decisão da matéria de facto, qualquer ofensa da garantia de tutela jurisdicional efectiva do direito de defesa assegurada pelo artigo 20.º da CRP.”
É, pois, inequívoco que a dimensão ou entendimento normativo impugnado pelos recorrentes não foi aplicado pela decisão recorrida. Os próprios recorrentes acabam, aliás, por reconhecer, na presente reclamação, que o tribunal recorrido assentou a sua decisão no pressuposto de “que tinham sido dados como provados factos e não apenas o documento”, mas sustentam que se tratou de um “pressuposto errado”, pois ignoraria as respostas dadas na 1ª instância a certo(s) quesito(s). Acontece, porém, que a aplicação de uma determinada norma ou dimensão normativa pelo tribunal recorrido – e o seu entendimento ou interpretação – constituem para o Tribunal Constitucional um dado, que este Tribunal tem de aceitar como base para o recurso de constitucionalidade, que visa apenas a apreciação da constitucionalidade de normas, não lhe cumprindo já, porém, censurar o entendimento dos meios de prova e da matéria de facto que o tribunal recorrido efectuou (ou qualquer “pressuposto errado” quanto a esta matéria). Na presente reclamação os recorrentes limitam-se a atacar este entendimento, mas, até por isso – e como admitem –, deixa-se claro que a dimensão normativa impugnada não foi aplicada pelo tribunal recorrido. Não podia, pois, tomar-se conhecimento do recurso interposto, pelo que a decisão sumária deve ser confirmada. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto. Custas pelos reclamantes, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 24 de Fevereiro de
2005 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos