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Processo n.º 86/2005
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos foi proferida a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Relação de Guimarães, em que figura como recorrente A. e como
recorridos o Ministério Público e o Centro Regional de Segurança Social do
Norte, o recorrente interpôs recurso do acórdão das Varas de Competência Mista
de Guimarães, de 12 de Fevereiro de 2004, que o condenou, pela prática de um
crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social, na pena de 220
dias de multa, para o Tribunal da Relação de Guimarães. Nas conclusões das
respectivas alegações, sustentou o seguinte:
1 - O abuso de confiança em relação à Segurança Social e em relação ao Estado,
previsto nos artigos 24.º e 27-B do Decreto Lei n.º 2O-A/90, de 15.01, e
posteriormente previsto no artigo 105.º e 107.º da Lei n.º 15/2001, 05.06, exige
não só a dedução do valor das remunerações pagas aos trabalhadores ou o simples
não cumprimento das obrigações legais em matéria de IRS ou IVA, como, também, a
apropriação desses valores pelos agentes; ora dos factos dados como provados
pelo Douto Colectivo resultou assente que o ora recorrente não beneficiou do não
pagamento das imposições contributivas, considerando que não houve apropriação
desses valores.
2 - Assim sendo, não foi preenchida a materialidade que constitui o crime, ou
crimes, de que o ora recorrente estava pronunciado, devendo ser assim, absolvido
como é de Justiça.
3 - Acresce que os factos dados como provados em b’) a m’) do douto Acórdão, bem
como o facto de se ter provado que o ora recorrente não beneficiou do não
pagamento das contribuições e obrigações legais, reúnem os requisitos
especificados nas alíneas a), b) e c) do artigo 34.º do Código Penal, devendo
considerar-se, assim, excluída a ilicitude dos mesmos, uma vez que o arguido A.
agiu em estado de necessidade, não sendo exigível, face às circunstâncias,
comportamento diferente (artigo 35.º do Código Penal).
4 - Nessa conformidade, os factos dados como provados são antes
consubstanciadores de uma actuação com negligência consciente (e não de dolo
directo), nos termos do artigo 15.º do Código Penal.
5 - Não sendo punível a negligência nos crimes dos autos e, além do mais,
encontrando-se excluída a ilicitude, deve absolver-se o ora recorrente.
6 - Assim, o Douto Acórdão violou, por errada aplicação, o artigo 24.º e 27-B do
R.J.I.F.N.A. actualmente previsto nos artigos 105.º e 107.º do Regime Geral das
Infracções Tributárias, bem como os artigos 34.º, 35.º, 36.º, e 15.º do Código
Penal.
7 - Violando, assim, os princípios fundamentais da JUSTIÇA, PROPORCIONALIDADE,
IGUALDADE e LEGALIDADE.
8 - Devendo, pelo exposto, V.Exas absolver o ora recorrente.
O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 27 de Setembro de 2004, negou
provimento ao recurso.
A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1190 e v.), recurso
que não foi admitido por decisão de 8 de Novembro de 2004 (fls. 1202).
2. A. interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
I
Nos presentes autos suscitou-se a inconstitucionalidade das decisões que
consideraram, nas várias instâncias, improcedente a invocação das causas de
exclusão de ilicitude e da ausência de culpa do arguido, condenando-o pela
prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal em relação à
Segurança Social, IRS e IVA, na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa à
taxa diária de 7 (sete) euros, bem como no pagamento ao Instituto de Gestão
Financeira da Segurança Social e ao Estado Português das contribuições legais
acrescidas de juros de mora, consubstanciando tais decisões uma violação
sucessiva dos princípios fundamentais da JUSTIÇA, PROPORCIONALIDADE, IGUALDADE e
LEGALIDADE.
II
Arguiu-se a violação dos princípios constantes nos artigos 3.º, n.º 2, 13.º,
20.º, 32.º e 202.º da Constituição da República Portuguesa, desde a 1.ª
instância até ao Tribunal da Relação.
III
Os factos dados como provados em b') a m') do douto Acórdão da 1.ª instância,
bem como, o facto de se ter provado que o ora recorrente não beneficiou do não
pagamento das contribuições e obrigações legais, reúnem os requisitos
especificados nas alíneas a), b) e c) do artigo 34.º do Código Penal, devendo
considerar-se, assim, excluída a ilicitude dos mesmos, uma vez que o arguido A.
agiu em estado de necessidade, não sendo exigível, face às circunstâncias,
comportamento diferente (artigo 35.º do Código Penal).
IV
Nessa conformidade, os factos dados como provados são antes consubstanciadores
de uma actuação com negligência consciente (e não de dolo directo), nos termos
do artigo 15.º do Código Penal.
V
Assim, os Doutos Acórdãos violaram, por errada aplicação, o artigo 24.º e 27-B
do R.J.I.F.N.A., actualmente previsto nos artigos 105.º e 107.º do Regime Geral
das Infracções Tributárias, bem como os artigos 34.º, 35.º, 36.º, e 15.º do
Código Penal.
VI
Violando, assim, os princípios fundamentais da JUSTIÇA, PROPORCIONALIDADE,
IGUALDADE e LEGALIDADE.
Nesta conformidade, tendo o recorrente alegado a inconstitucionalidade das
decisões que o condenaram pela prática do crime de abuso de confiança fiscal em
relação à Segurança Social e ao Estado, quando ficou assente a não apropriação
de valores pelo próprio, assim como a situação difícil da sociedade, tendo, por
isso agido em estado de necessidade e em conflito de deveres, vem interpor
recurso para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, ao abrigo da alínea b) do n.º 1, do
art.º 70.º, da Lei n.º 28/84, de 15 de Novembro e respectivas alterações, por
violação dos princípios constitucionais da legalidade e das garantias de defesa
dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e, implicitamente,
dos art.ºs 3°, 2; 13.º, 20.º, 2; 32.º e 202°, 2, da Constituição da República
Portuguesa.
A Relatora proferiu Despacho ao abrigo do artigo 75º-A da Lei do Tribunal
Constitucional , ao qual o recorrente respondeu do seguinte modo:
I
O Recorrente interpôs recurso para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1, do art.º 70.º, da Lei n.º 28/84, de 15 de Novembro e
respectivas alterações.
II
Pretende o recorrente a apreciação da ilegalidade e inconstitucionalidade das
normas contidas no artigo 24.º e 27-B do R.J.I.F.N.A. actualmente previsto nos
artigos 105.º e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
III
Violando, assim, os princípios fundamentais da JUSTIÇA, PROPORCIONALIDADE,
IGUALDADE e LEGALIDADE constantes nos artigos 3.º, n.º 2, 13.º, 20.º, 32.º e
202.º da Constituição da República Portuguesa, bem como os princípios legais
constantes nos artigos 34.º, 35.º, 36.º, e 15.º do Código Penal.
VI
A questão da inconstitucionalidade foi suscitada no Tribunal de 1ª instância
(Requerimento para Abertura de Instrução e Contestação); nas alegações de
recurso para o Tribunal da Relação do Porto; e nas alegações de recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça.
Cumpre apreciar.
3. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea
b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é
necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão
de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De
acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se
pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente
identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma
constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que
sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma
questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a
afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem
indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a
inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão
de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão
recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se
considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade
normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade
ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre
muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
Nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, o recorrente
não suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa. Com efeito, como
resulta da transcrição realizada supra, o recorrente apenas imputou o vício de
inconstitucionalidade à própria decisão e nunca a uma norma jurídica.
De resto, o tribunal a quo não apreciou qualquer questão de constitucionalidade
normativa, dado perante si não ter sido suscitada uma questão dessa natureza.
Por outro lado, não foi proferida qualquer decisão objectivamente inesperada ou
imprevisível.
Não se verifica, assim, o pressuposto processual do recurso interposto,
consistente na suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade
normativa, pelo que não se tomará conhecimento do objecto do presente recurso
[artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional].
4. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso.
2. O recorrente vem agora reclamar para a Conferência nos seguintes termos:
A., recorrente nos autos referenciados em epígrafe, notificado que foi da
decisão sumária proferida pela EXMA. JUÍZA CONSELHEIRA RELATORA, vem, nos termos
do artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, reclamar para a
Conferência, o que faz com os fundamentos seguintes:
I
O Recorrente interpôs recurso para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1, do art.º 70.º, da Lei n.° 28/84, de 15 de Novembro e
respectivas alterações.
II
Pretendendo o recorrente a apreciação da ilegalidade e inconstitucionalidade das
normas contidas no artigo 24.º e 27.º-B do R.J.I.F.N.A actualmente previsto nos
artigos 105.º e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
III
Considera, assim como considerou, terem os referidos normativos violado os
princípios fundamentais da JUSTIÇA, PROPORCIONALIDADE, IGUALDADE e LEGALIDADE
constantes nos artigos 3.º, n.° 2, 13.º, 20.º, 32.º e 202.º da Constituição da
República Portuguesa, bem como os princípios legais, constantes nos artigos
34.º, 35.º, 36.º, e 15.º do Código Penal.
VI
Tendo, inclusive, suscitado a questão da inconstitucionalidade no Tribunal de
1.ª instância (Requerimento para Abertura de Instrução e Contestação); nas
alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto; e nas alegações de
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
VII
Indicou a este Tribunal, ao abrigo do disposto no n.° 5 do artigo 75.º-A da Lei
Constitucional, todos estes elementos.
VIII
Sucede que a douta decisão sumária proferida pela Exma. Juíza Relatora
considerou não estar verificado um dos pressupostos processuais do recurso
interposto, id est, a suscitação durante o processo da questão de
inconstitucionalidade normativa, em termos funcionais.
IX
Sucede que, a questão da inconstitucionalidade foi sempre suscitada pelo ora
recorrente em todas as suas intervenções processuais; não sendo obrigatória a
sua invocação nos termos funcionais como resulta ser entendimento da Exma. Juíza
Relatora.
Pelo que, requer a v. Exc.as considerem reunidos todos os requisitos de
admissibilidade do presente recurso, designadamente, o requisito da questão da
inconstitucionalidade ter sido, como foi, devidamente suscitado pelo ora
recorrente.
O Ministério Público pronunciou-se do seguinte modo:
1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Na verdade, o recorrente não suscitou, em termos procedimentalmente adequados,
perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, a questão de
inconstitucionalidade normativa a que reportou o recurso.
Cumpre apreciar.
3. O reclamante refere que suscitou a questão de constitucionalidade que
pretende ver apreciada antes da prolação da decisão recorrida, afirmando não ser
“obrigatória a sua invocação nos termos funcionais” referidos na Decisão
Sumária.
No entanto, o recorrente não apresenta qualquer argumento que infirme os
fundamentos da Decisão Sumária reclamada.
E, na verdade, perante o tribunal a quo, o reclamante apenas imputou o vício de
inconstitucionalidade à decisão e não a uma norma (como claramente resulta da
transcrição realizada supra).
Não se verifica, portanto, o pressuposto processual do recurso interposto,
consistente na suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade
normativa, pelo que a presente reclamação será indeferida.
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação, confirmando consequentemente a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 25 de Maio de 2005
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos