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Processo n.º 274/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O Ministério Público deduziu acusação, em 21 de Março de 2003,
contra A., advogado, imputando‑lhe a autoria de um crime de abuso de confiança,
previsto e punido pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Código Penal,
por, em suma, tendo sido constituído, em 28 de Março de 1995, mandatário da ora
assistente B., para a representar na acção cível n.º 2173/97 da 2.ª Secção do
2.º Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, e tendo comunicado à sua
cliente, em Maio de 1998, que os autores dessa acção aceitariam um acordo,
mediante o pagamento de uma indemnização no valor de Esc. 6 000 000$00, na
sequência do que esta emitiu e entregou ao arguido três cheques totalizando esse
valor, destinados a serem entregues aos autores da acção, o arguido não procedeu
a essa entrega, fazendo seus os aludidos valores, bem sabendo que não lhe
pertenciam, que se destinavam a proceder ao pagamento da indemnização na acção
cível e que, com a sua conduta, causava prejuízos à sua proprietária (fls. 182
e 183).
A assistente B., nos termos do artigo 284.º do Código de
Processo Penal (CPP), aderiu à acusação deduzida pelo Ministério Público (fls.
191).
A acusação foi notificada ao arguido por via postal simples com
prova de depósito, efectuado em 11 de Abril de 2003 (fls. 189 e 190), tendo o
arguido, em 3 de Maio de 2003, procedido à consulta do processo na Secção do
Departamento de Investigação e Acção Penal do Distrito Judicial de Lisboa, onde
o inquérito estava pendente (cf. cota de fls. 198).
Não tendo sido requerida instrução, foram os autos remetidos para
distribuição, tendo, por despacho de 14 de Outubro de 2003 do Juiz da 6.ª Vara
Criminal de Lisboa, sido designado para julgamento o dia 20 de Janeiro de 2004.
Este despacho foi notificado aos diversos intervenientes processuais, sendo ao
arguido por via postal simples com prova de depósito (fls. 213‑214) para a
morada constante do termo de identidade e residência por ele prestado (Avenida
…, n.º …, .., .., ….‑… Lisboa – cf. fls. 82) e a defensora oficiosa por via
postal registada (fls. 215), ambas expedidas em 16 de Outubro de 2003.
Encontra‑se junto aos autos (fls. 224) o talão do depósito da notificação
endereçada ao arguido, contendo declaração do distribuidor do serviço postal no
sentido de que em 17 de Outubro de 2003 depositara no receptáculo postal
domiciliário da referida morada a notificação em causa.
Em 19 de Novembro de 2003, o arguido apresentou contestação (fls.
235 a 243), subscrita por mandatária então constituída (cf. procuração de fls.
246), onde, além de outras questões, argui a irregularidade da sua notificação e
suscita questão de inconstitucionalidade, nos seguintes termos:
“Notificação irregular:
1. Do penúltimo parágrafo da notificação enviada ao arguido, por via postal
simples, comunicando prazo para apresentar contestação, consta que o prazo se
inicia a partir do quinto dia posterior à data do depósito na caixa do correio
do destinatário, constante do sobrescrito (artigo 113.º, n.º 3, do CPP),
conforme fotocópia que ora se junta como documento n.º 1.
2. Sucede que no sobrescrito depositado na caixa do correio do arguido não
foi escrita a data em que ocorreu tal depósito, conforme fotocópia que ora se
junta como documento n.º 2.
3. O arguido encontrou a notificação na sua caixa de correio em 12 de
Novembro de 2003 e por cautela contesta na presente data, mas fá‑lo com a
desvantagem de não saber qual o dia em que efectivamente se iniciou o prazo para
contestar e deixando de apresentar de imediato documentos que suportem os factos
alegados.
4. Pelo exposto, o arguido argui a nulidade da respectiva notificação,
requerendo a V. Ex.a a repetição do acto.
Inconstitucionalidade:
5. Por outro lado, o arguido não pode deixar de arguir a inconstitucionalidade
das normas do CPP, artigo 113.º, n.ºs 1, alínea c), 3 e 4, na medida em que,
preconizando a comunicação da data de julgamento e prazo para contestar por meio
de tal modo falível e impessoal, não acautelam devidamente o direito de defesa
dos arguidos, violando assim a norma do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa.
6. No caso dos autos, as normas do CPP, artigo 113.º, n.ºs 1, alínea c), e 3,
conduziram a que o arguido elaborasse a sua contestação num momento de incerteza
e apreensão quanto à tempestividade da mesma, prejudicando a organização da
respectiva defesa.”
Sobre estas questões recaiu o despacho judicial de 10 de Dezembro
de 2003 (fls. 257), do seguinte teor:
“No respeitante à notificação efectuada com referência ao despacho de fls.
209 e seguinte e junto agora o sobrescrito de fls. 256, conclui‑se
efectivamente que não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 113.º, n.º 3,
do Código de Processo Penal, atendendo a que não foi preenchida a declaração de
depósito, impedindo, por esse efeito, que tivesse havido desconhecimento
[ter‑se‑á querido escrever «conhecimento»] do prazo para apresentar
contestação, no sentido de se ignorar o dia a partir do qual seria contado.
Em consequência, verifica‑se, em conformidade com os artigos 118.º, n.ºs 1 e
2, e 123.º do Código de Processo Penal, uma irregularidade, na medida em que
afectou a garantia da defesa no âmbito aludido.
Tal irregularidade deve, porém, considerar‑se sanada, mediante a
apresentação da contestação ora efectivada, tornando‑se desnecessária, por
inútil, a repetição da notificação, ao abrigo do artigo 123.º
Quanto à alegada inconstitucionalidade, dir‑se‑á apenas que a mesma só se
verificaria se a pessoa a notificar não dispusesse de meios para reagir a
eventual irregularidade que se verifique, em conjugação com as obrigações que
impendem sobre a mesma de manter a sua morada actualizada e, mormente, quando
tenha a qualidade de arguido em processo criminal.”
Efectuado o julgamento, com sessões de audiência em 20 de Janeiro
e 3 e 20 de Fevereiro de 2004, foi nesta última data proferido o acórdão do
Tribunal Colectivo da 6.ª Vara Criminal de Lisboa (fls. 415 a 427), que condenou
o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança,
previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º s 1 e 4, alínea b), do Código Penal, na
pena de 4 anos de prisão, tendo sido logo declarado perdoado um ano de prisão,
por força do artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio.
Deste acórdão interpôs o arguido recurso para o Tribunal da
Relação de Lisboa, onde, entre outras questões, suscitou a assim sintetizada
nas conclusões 25.ª, 54.ª e 55.ª da respectiva motivação:
“25.ª – As normas do CPP, artigo 113.º, n.ºs 1, alínea c), e 3, conjugadas com
a decisão do Tribunal recorrido de fls. 263, de não ordenar a repetição da
notificação para contestar, conduziram a que o arguido elaborasse a sua
contestação durante um prazo de incerteza e apreensão quanto à tempestividade
da mesma, prejudicando a organização da respectiva defesa. A referida preterição
do direito de defesa do arguido implica não só a nulidade da decisão final
proferida nos autos, como a nulidade de todos os actos processados após a
designação de data para audiência de julgamento.
(...)
54.ª – O facto de o arguido ter sido irregularmente notificado nos termos das
normas inconstitucionais do CPP, artigo 113.°, n.ºs 1, alínea c), 3 e 4, sem que
o acto fosse devidamente repetido, implica a nulidade de tudo o processado nos
autos após a notificação de fls. 213.
55.ª – Deve ser declarada a inconstitucionalidade das normas do CPP, artigo
113.°, n.ºs 1, alínea c), 3 e 4, na medida em que, preconizando a comunicação
da data de julgamento e prazo para contestar por meio de modo falível e
impessoal que o arguido pode chegar a não se aperceber da existência de
julgamento de um processo contra si instaurado, reduzem os respectivos direitos
fundamentais de defesa, violando a norma do artigo 32.°, n.º 1, da Constituição
da República Portuguesa.”
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 7 de Outubro de
2004, negou provimento ao recurso, tendo, a propósito da questão da
irregularidade da notificação, consignado o seguinte:
“G – Quanto à invocada inconstitucionalidade do artigo 113.º, n.ºs 3 e 4, do CPP
por violação do artigo 32.º da CRP, a notificação por via postal simples é
permitida nos termos do disposto no artigos 313.°, n.ºs 2 e 3, do CPP, e vem
regulamentada no artigo 113.°, n.ºs 1 alínea c), 3 e 4, do mesmo diploma legal.
O regime das notificações por via postal simples responde a premências no que
respeita ao regular andamento processual – veja‑se a discussão na Assembleia da
República (Diário da Assembleia da República, de 13 de Outubro de 2000),
particularmente a exposição do Ministro da Justiça, bem como a exposição de
motivos da Proposta de Lei n.° 41/VIII, onde se acentua a consideração de que o
arguido tem, obviamente, o direito à defesa, mas não tem o direito de se furtar
à acusação nem o de impedir o julgamento. Note‑se que o arguido apresentou
atempadamente a sua contestação e compareceu em julgamento, pelo que o seu
direito de defesa não se mostra coarctado ou diminuído.”
Indeferida, por acórdão de 25 de Novembro de 2004, arguição de
nulidade do anterior acórdão, e desatendido, por acórdão de 20 de Janeiro de
2005, pedido de aclaração do acórdão de 25 de Novembro de 2004, veio o arguido
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º
1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra acórdão que
não especifica, “por ocorrer inconstitucionalidade das normas do Código de
Processo Civil [sic], artigo 113.º, n.ºs 1, alínea c), 3 e 4, as quais, no seu
entender, violam a norma do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa, bem como por, no seu entender, ocorrer interpretação
inconstitucional das normas dos artigos 113.º, n.ºs 1, alínea c), 3 e 4, 165.º,
n.º 2, 169.º, 315.º, n.º 1, 327.º, 340.º, 374.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, 379.º,
n.º 1, alínea c), e 410.º, todos do CPP, artigos 205.º, n.º 1, e 68.º, n.º 1,
alínea a), do Código Penal, artigos 624.º e 639.º do CPC e artigo 32.º, n.º 1,
da Constituição da República Portuguesa”.
No Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho, nos
termos do n.º 6 do artigo 75.º‑A da LTC, convidando o recorrente “a, de forma
objectiva e concisa, indicar: a) qual o acórdão proferido pelo Tribunal da
Relação de Lisboa de que pretende interpor recurso para o Tribunal
Constitucional; b) a peça processual (e especificamente em que parte da mesma)
em que suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 113.º,
n.ºs 1, alínea c), 3 e 4, do Código de Processo Civil (supõe‑se que terá
pretendido escrever Penal); c) qual a interpretação das normas dos artigos
113.º, n.ºs 1, alínea c), 3 e 4, 165.º, n.º 2, 169.º, 315.º, n.º 1, 327.º,
340.º, 374.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, 379.º, n.º 1, alínea c), e 410.º do Código
de Processo Penal, 205.º, n.º 1, e 68.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal,
624.º e 639.º do Código de Processo Civil e 32.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa (sic) que reputa inconstitucional; d) quais as normas ou
princípios constitucionais violados por essa interpretação; e) qual a decisão
que fez aplicação dessa interpretação; e f) em que peça processual (e
especificamente em que parte da mesma) foi suscitada a questão da
inconstitucionalidade dessa interpretação”.
Em resposta, o recorrente veio indicar que:
“1.º – O recorrente pretende interpor recurso do acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa de 7 de Outubro de 2004, que negou provimento ao recurso
interposto da decisão proferida na primeira instância.
2.º – O recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma do
artigo 113.º, n.°s 1, alínea c), 3 e 4, do CPP primeiro na contestação, artigos
5.° e 6.º, depois no recurso interposto da decisão proferida na primeira
instância, artigos 4.3 e 7.1, bem como nas conclusões do mesmo (55.ª).
3.º – Por outro lado, o recorrente também entende que, no citado acórdão de
7 de Outubro de 2004 é inconstitucional a interpretação que o Tribunal da
Relação de Lisboa faz:
a) da norma do CPP, artigo 113.°, n.ºs 1, alínea c), 3 e 4, bem como das
normas dos artigos 315.º, 374.º, n.° 2, 379.º, n.° 1, alínea c), e CRP, artigo
32.°, n.º 1, ao entender que quando, apesar de irregularmente notificado, o
arguido contesta e comparece na audiência de julgamento, o seu direito de defesa
não se mostra coarctado ou diminuído;
b) das normas do CPP, artigos 68.°, n.º 1, alínea a), 165.°, n.° 2, 327.°,
340.°, 379.º, n.º 1, e 410.°, do Código Penal, artigos 205.º, n.º 1, e do CPC,
artigos 624.° e 639.°, quando entende que a oportunidade e necessidade de
diligências de prova é insusceptível de ser sindicada pelo tribunal de recurso.
4.º – No entender do recorrente, estas interpretações violam os princípios
constitucionais da igualdade, legalidade e direito de defesa, consagrados na
Constituição da República Portuguesa, designadamente nos artigos 3.°, 13.º, n.º
1, e 32.º, n.º 1, foram aplicadas no citado acórdão do TRL de 7 de Outubro de
2004, e foi suscitada a respectiva inconstitucionalidade no requerimento de
arguição de nulidade desse mesmo acórdão.”
No despacho em que determinou a elaboração de alegações, o
relator consignou que as partes se deviam pronunciar, querendo, “sobre a
eventualidade de o Tribunal Constitucional não conhecer das questões de
inconstitucionalidade referidas nas alíneas a) e b) do n.º 3.º do requerimento
que antecede, quer por não terem sido suscitadas, em termos processualmente
adequados, perante o tribunal que proferiu a decisão ora recorrida, quer por as
correspondentes dimensões normativas não terem sido aplicadas, como rationes
decidendi, por essa decisão”.
O recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as
seguintes conclusões:
“A) O recorrente foi notificado para, no prazo de vinte dias, contestar a
acusação proferida nos autos, indicar testemunhas e comparecer na audiência de
julgamento, mediante notificação por via postal simples com prova de depósito,
expedida em 16 de Outubro de 2003 (fls. 213) (nos termos do artigo 113.°, n.º 3,
do CPP).
B) O funcionário dos CTT encarregue da distribuição de correspondência na
área do domicílio do recorrente omitiu a anotação, no sobrescrito, da data em
que procedeu ao depósito da sempre (sic) mencionada notificação no receptáculo
de correio.
C) A referida notificação chegou ao conhecimento do destinatário apenas no
dia 12 de Novembro de 2003 – ou seja, vinte e seis dias depois da data da
expedição – e sem data ou referência que lhe permitisse avaliar o prazo de que
dispunha para contestar e requerer meios de prova.
D) Apesar da irregularidade imediatamente verificada, o recorrente –
apercebendo‑se da data da expedição, 16 de Outubro de 2003, e com o fundado
receio de ter o seu prazo a terminar se não terminado já – não deixou de
apresentar a sua contestação e indicar testemunhas.
E) Fê‑lo, naturalmente, de forma absolutamente precipitada, sem tempo para
elaborar uma contestação cuidada e em clima de incerteza quanto ao tempo de que
dispunha para organizar a sua defesa.
F) Não obstante isso, o recorrente desde logo requereu, na sua contestação,
a repetição do acto, por irregularidade, suscitando, de igual forma, a
inconstitucionalidade do preceituado no artigo 113.°, n.ºs 1, alínea c), e 3.
G) Em resposta às suscitadas irregularidade e inconstitucionalidade, os
doutos Tribunais recorridos entenderam inexistir a última, dando a primeira como
sanada pela intervenção do recorrente nos autos, intervenção essa ditada pela
junção aos autos da referida contestação, omitindo ou desvalorizando as
circunstâncias em que essa contestação fora elaborada, particularmente, a
manifesta ausência de condições para, em tempo, serem suscitadas e esclarecidas
todas as questões que, para a defesa, eram ou poderiam ser determinantes.
H) As decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância e pelo tribunal
recorrido sancionaram a fragilização desproporcionada da posição do arguido no
processo, derivada da respectiva notificação por via postal simples, mediante
depósito no receptáculo do correio, num sobrescrito sem data, não se dignando
reconhecer e reparar os danos directamente causados ao recorrente/arguido por
este ter sido irregularmente notificado e não ter podido praticar com tempo,
normalidade, segurança e fiabilidade os actos adequados à organização da
respectiva defesa.
I) A norma do CPC [sic] 113.° n.º 3, na interpretação que da mesma fez o
Tribunal recorrido, gera um manifesto clima de instabilidade, insegurança e até
desconfiança, junto dos cidadãos e é, por esse motivo, além de lesiva dos
direitos pessoais dos cidadãos, gravemente perturbadora da paz pública e do
respeito pela justiça.
J) No caso concreto da notificação do arguido, para contestar e organizar os
meios de defesa em direito penal, subsiste uma evidente e injustificada
discriminação, que consiste na redução desproporcionada das respectivas
garantias de defesa.
L) Na verdade, enquanto que no processo penal, como no cível, a notificação
de praticamente todos os actos judiciais é realizada por carta registada, para
os mandatários, para as testemunhas e para as partes, designadamente em momentos
ulteriores do processo – o que acontece em muitas situações de menor
responsabilidade – no caso da notificação para contestar e indicar meios de
prova, em processo penal, é consagrado um processo de notificação presumida.
M) Sublinha‑se que as notificações em causa consubstanciam um acto que sempre
se revestiu de especial formalismo, mas que agora, de um momento para o outro,
colocam o destinatário abaixo da condição de testemunha, em sede de garantias
processuais, daí a desproporcionada restrição dos direitos de defesa.
N) No sentido do restabelecimento das garantias de defesa dos réus o
legislador já reparou idêntica situação no CPC, ao revogar as normas dos
artigos 236.º‑A e 238.°‑A, pelo que também por esse motivo se afigura
incompreensível que não tenha procedido de igual forma relativamente ás normas
do artigo 113.°, n.ºs 1, alínea c), e 3, do CPP.
O) Os direitos de defesa do arguido em processo penal não devem ser encarados
única e simplesmente com referência à defesa dos direitos individuais dos
cidadãos, mas também com referência à realização do interesse colectivo de
justiça social, com vista à implementação de valores individuais e colectivos
constitucionalmente estabelecidos.
P) A desvalorização da intervenção do arguido no processo penal não conduz
apenas ao prejuízo directo do mesmo, enquanto interesse juridicamente
reconhecido, mas também é susceptível de pôr em causa a segurança e paz pública
inerentes a um Estado de direito.
Q) Ao dificultar a intervenção do arguido no processo penal, tanto a nível
da determinação das condições em que este «é convidado a» ou «lhe é concedido o
direito de» apresentar a sua contestação, como a nível da organização e
desenvolvimento dos meios de prova ao longo do processo, o legislador aumenta o
risco de se virem a produzir decisões mal julgadas, que naturalmente afectam a
credibilidade e respeitabilidade dos tribunais.
R) Na verdade, o artigo 113.°, n.ºs 1, alínea c), e 3, do Código de Processo
Penal, na medida em que, preconizando a comunicação da data de julgamento e
prazo para contestar por meio de modo falível e impessoal – de tal forma que o
arguido pode chegar a não se aperceber da existência e julgamento de um processo
contra si instaurado – reduzem, particularmente quando interpretados no sentido
em que o fez o Tribunal recorrido, os respectivos direitos fundamentais de
defesa.
S) O Tribunal recorrido, interpretando o artigo 113.°, n.ºs 1, alínea c), e
3, no sentido de não se mostrar coarctado ou diminuído o direito de defesa do
arguido (e em consequência não lhe ter concedido novo prazo para a apresentação
dos seus meios de defesa) quando este – apesar de irregularmente notificado
nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 312.° e 315.° do referido
Código – contesta atempadamente e comparece em julgamento, faz uma interpretação
manifestamente inconstitucional e atentatória dos direitos que ao arguido,
enquanto tal, assistem e se encontram constitucionalmente consagrados.
Termos em que,
Deverá ser proferida decisão que julgue inaplicável, por violação dos
princípios consagrados nos mencionados artigos 18.°, n.º 3, 20.° – proibição da
indefesa e processo equitativo – e 32.°, n.º 1, da Constituição da Republica
Portuguesa, as normas do artigo 113.°, n.ºs 1, alínea c), e 3, do Código de
Processo Penal, interpretadas no sentido segundo o qual não se mostra coarctado
ou diminuído o direito de defesa do arguido, quando este, apesar de
irregularmente notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos
312.° e 315.° do referido Código, contesta atempadamente e comparece em
julgamento, devendo, em consequência, ser anulado o julgamento proferido nos
autos e, em conformidade, concedido ao arguido recorrente novo prazo para
apresentação da sua contestação e organização da prova a ser por si produzida,
assim se fazendo Justiça.”
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional
contra‑alegou, suscitando a “questão prévia” da “inverificação dos pressupostos
do recurso interposto”, nos seguintes termos:
“O presente recurso vem interposto pelo arguido A. do acórdão condenatório,
proferido pela Relação de Lisboa, a fls. 523 e seguintes, tendo o respectivo
objecto definido a fls. 622 – sendo certo que, nas conclusões da alegação ora
apresentada, se mostra restringido o seu objecto à norma constante do artigo
113.°, n.ºs 1, alínea a), e 3, do Código de Processo Penal.
Note‑se que tal questão de constitucionalidade – suscitada pelo recorrente na
conclusão 55.ª da motivação do recurso para a Relação (fls. 479) – direccionada
contra a insuficiência garantística da forma de notificação prevista naquela
disposição legal – está obviamente precludida – como dá nota o acórdão
recorrido – pelo facto de o arguido, ao ter contestado e comparecido em
julgamento, mostrar que teve efectivo conhecimento do conteúdo daquela
notificação.
Ou seja: carece, em absoluto, do sentido questionar a presumível insuficiência
garantística de certa forma menos solene de notificação quando resulta dos autos
que a parte exerceu tempestivamente todas as faculdades e cumpriu todos os ónus
que emergem da transmissão ou do conhecimento de certo acto ou facto processual,
o que naturalmente demonstra que, apesar do menor garantismo que lhe subjaz,
chegou ao círculo de conhecimento do destinatário.
Será pois, inútil tomar posição, em abstracto, sobre a questão de suficiência
garantística de certa forma de notificação quando está plenamente demonstrado
nos autos que ela chegou ao conhecimento do destinatário, que exerceu
integralmente e em tempo todos os direitos, ónus e deveres processuais que
dependiam do conhecimento do teor da referida notificação.
Termos em que, por evidente inutilidade, não deverá conhecer‑se do objecto do
recurso, tal como é definido nas conclusões da alegação do recorrente.”
Também a assistente B. contra‑alegou, concluindo:
“I. Vem o recorrente interpor recurso para esse douto Tribunal alegando
inconstitucionalidade das normas do artigo 113.°, n.ºs 1, alínea c), e 3, do CPP
por entender que as mesmas violam o dever de defesa do arguido quando este é
notificado nos termos e para os efeitos do artigo 313.° do CPP.
II. O artigo 113.° do CPP, ao invés de todas as normas ínsitas no Código do
Processo Penal, relativas à acusação e defesa, que são normas essenciais e
garantísticas, é meramente instrumental, é uma regra processual secundária que
versa somente sobre a forma de dar conhecimento de certos actos processuais. A
notificação é, como o preceitua o artigo 228.°, n.º 2, do CPC, o acto pelo qual
se dá conhecimento de um facto ou se chama alguém a juízo, podendo a mesma ser
feita nos termos do n.º 1 do artigo 113.°. Quando feita por via postal simples,
o legislador foi bastante cuidadoso ao impor uma série de deveres, quer ao
funcionário judicial, quer ao funcionário dos serviços de correio, de forma a
salvaguardar qualquer eventual lapso que possa ocorrer.
III. Competia ao recorrente diligenciar junto da secretaria judicial para
saber do prazo preciso de contestação. Também poderia contestar, mesmo que
precludido o prazo, desde que provasse que só naquela data e não noutra teve
conhecimento da notificação. A notificação por via postal simples nestes casos é
meramente acessória porquanto entre o conhecimento da acusação e aquela
notificação há um lapso de tempo relativamente grande que permite ao arguido a
preparação da sua defesa com a definição da melhor estratégia, não ficando o seu
direito de defesa afectado pelo facto de a notificação para os efeitos dos
artigos 313.° e 315.° ser feita por via postal simples.
IV. Sendo o recorrente advogado, sabe perfeitamente que não é em sede de
contestação em processo penal que a sua defesa é apresentada. Sabe, igualmente
que, ao contrário do processo civil comum, a contestação é facultativa e quando
é apresentada não assume os formalismos exigidos em cível, o que por si denota a
quase total irrelevância desse documento em termos processuais penais. Sabe
igualmente o recorrente que não é com a notificação para os efeitos dos artigos
313.° e 315.° do CPP que tem conhecimento, pela primeira vez, da acusação que
sobre si pende. Sabe que a acusação é desde logo notificada ao arguido com o
encerramento do inquérito e com a faculdade de requerer‑se a abertura da fase
instrutória. Sabe, igualmente, que desde o momento da notificação da acusação,
e mesmo sem requerer a abertura de instrução, o recorrente tem toda a
possibilidade de iniciar a sua defesa, com diligências, com contactos para
testemunhas, com recolha de elementos e de documentação que considere essencial
e pertinente. Sabe também que a melhor defesa faz‑se em julgamento, com a
possibilidade de junção de documentos, de apresentação de testemunhas, de
contraditar oralmente os factos constantes da acusação, de instar as
testemunhas da acusação ... portanto de forma alguma a sua posição estava
fragilizada!
V. E quanto ao facto de o correio ter sido depositado, ao invés de, como
habitualmente, ter sido entregue em mão, sempre se dirá que compete aos
titulares do receptáculo verificar com regularidade (diariamente) este mesmo
receptáculo. Não é dever do funcionário dos correios entregar o correio simples
em mão, só o fazendo por uma questão de comodidade, mas obviamente se alguma
carta não é entregue então compete‑lhe colocar no devido receptáculo. Não pode é
o recorrente desculpar a sua incúria através de uma pretensa
inconstitucionalidade de uma norma processual.
VI. Não pode, portanto, aceitar‑se a pretensão do recorrente ao alegar
inconstitucionalidade do artigo 113.°, que, aliás, tal como todo o Código do
Processo Penal, foi fiscalizado preventivamente antes da sua aprovação.
VII. O presente recurso é mais um expediente dilatório do recorrente que,
gozando do efeito suspensivo do mesmo, vai adiando a execução da pena de prisão
em que foi condenado.”
Notificado da questão prévia suscitada nas contra‑alegações do
Ministério Público, o recorrente respondeu:
“(i) O recorrente pede ao Tribunal Constitucional que profira decisão que
julgue inaplicáveis as normas do artigo 113.°, n.ºs 1, alínea c), e 3, do
Código de Processo Penal, interpretadas no sentido segundo o qual não se mostra
coarctado ou diminuído o direito de defesa do arguido, quando este, apesar de
irregularmente notificado, contesta atempadamente e comparece em julgamento.
(ii) O recorrente não se conforma com o entendimento segundo o qual a
«suficiência garantística» que as decisões recorridas entendem demonstrada, pelo
facto de, mais cedo ou mais tarde, a notificação ter chegado ao seu
conhecimento e este, em melhores ou piores condições, ter organizado uma defesa
e comparecido na audiência de julgamento, assegura os direitos consagrados na
Constituição da Republica Portuguesa: artigos 18.°, n.º 3, 20.° e 32.°, n.º 1.
(iii) No entender do recorrente, as normas do artigo 113.°, n.°s 1, alínea
c), e 3, do Código de Processo Penal, assim interpretadas, violam os princípios
da proibição da indefesa e do processo equitativo.
(iv) Deste modo, a questão ora suscitada não é uma questão prévia, mas sim, ela
mesma, o fundo da questão de inconstitucionalidade suscitada no presente
recurso.
Termos em que,
Deverá ser desatendida a pretensão do Ministério Público e proferida decisão
sobre o objecto do recurso, tal como requerido nas alegações do recorrente.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Como resulta do teor da alegação do recorrente e respectivas
conclusões, o objecto do presente recurso foi delimitado à questão da
inconstitucionalidade reportada ao artigo 113.º, n.ºs 1, alínea c), e 3, do CPP,
com abandono das questões ligadas às restantes normas indicadas no requerimento
de interposição de recurso e na resposta ao convite do relator para precisão
daquele requerimento.
Por outro lado, encontrando‑nos perante recurso previsto na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o seu objecto há-de coincidir com a
dimensão normativa efectivamente aplicada na decisão recorrida, no contexto do
caso concreto sobre que recaiu.
Nesta perspectiva, importa sublinhar que, como se consignou no
precedente relatório, no presente caso: (i) o recorrente, que é advogado, foi
regularmente notificado da acusação contra ele deduzida; (ii) na sequência dessa
notificação, procedeu à consulta pessoal do processo no DIAP de Lisboa; (iii)
não tendo sido requerida instrução, foi, após distribuição do processo à 6.ª
Vara Criminal de Lisboa, proferido, em 14 de Outubro de 2003, despacho a
designar o dia 20 de Janeiro de 2004 para início da audiência de julgamento;
(iv) esse despacho foi notificado à defensora do arguido por via postal
registada e ao arguido por via postal simples para a morada constante do termo
de identidade e residência por ele prestado; (v) o distribuidor do serviço
postal, no talão do depósito da carta junto ao processo, declarou ter procedido
a esse depósito em 17 de Outubro de 2003, mas no verso do sobrescrito dessa
carta foi omitida a declaração da data da efectivação do depósito; (vi) o
arguido apresentou a sua contestação em 19 de Novembro de 2003, mencionando que
só encontrou a notificação na sua caixa de correio em 12 de Novembro de 2003, e
compareceu pessoalmente na data marcada para a realização da audiência de
julgamento.
Na 1.ª instância, entendeu‑se que a omissão, no verso do
sobrescrito depositado no receptáculo postal do destinatário, de declaração do
distribuidor do serviço postal mencionando a data da efectivação do depósito
constituía uma irregularidade (artigos 118.º, n.ºs 1 e 2, e 123.º do CPP), na
medida em que, impedindo o conhecimento do início do prazo para apresentação de
contestação, era susceptível de afectar a garantia de defesa do arguido,
irregularidade que, porém, se considerava sanada mediante a efectiva
apresentação da contestação, e que só se verificaria inconstitucionalidade se o
notificando não dispusesse de meios para reagir contra essa irregularidade, o
que, no caso, não ocorria.
No acórdão ora recorrido, entendeu‑se que não ocorria
inconstitucionalidade porque o arguido apresentou atempadamente a sua
contestação e compareceu a julgamento, pelo que o seu direito de defesa não se
mostrou coarctado ou diminuído.
Neste contexto, o objecto do presente recurso consiste na questão
da inconstitucionalidade da norma do artigo 113.º, n.ºs 1, alínea c), e 3, do
CPP, interpretado no sentido de que a omissão, no verso do sobrescrito contendo
a carta de notificação do despacho de designação de dia para julgamento,
depositado no receptáculo postal do arguido, da declaração da data desse
depósito pelo distribuidor do serviço postal, constitui mera irregularidade, que
se considera sanada se o arguido vem a apresentar atempadamente a sua
contestação e a comparecer na audiência de julgamento.
2.2. A possibilidade de notificação por via postal simples foi
introduzida, no processo civil, pelo Decreto‑Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto,
e, no processo penal, pelo Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, de 15 de Dezembro. Para
além do dever de o funcionário judicial lavrar uma cota no processo com a
indicação da data da expedição da carta e do domicílio (ou sede) para o qual foi
enviada (n.º 5 do artigo 236.º‑A do CPC, aditado pelo Decreto‑Lei n.º 183/2000,
e primeira parte do n.º 3 do artigo 113.º do CPP, na redacção do Decreto‑Lei n.º
320‑C/2000), as formulações literais do n.º 6 daquele artigo 236.º‑A (“O
distribuidor do serviço postal procede ao depósito da referida carta na caixa
de correio do citando e lavra uma declaração indicando a data e confirmando o
local exacto desse depósito, remetendo‑a de imediato ao tribunal”) e da segunda
parte do referido n.º 3 (“... e o distribuidor do serviço postal deposita a
carta na caixa de correio do notificando, lavra uma declaração indicando a data
e confirmando o local exacto do depósito, e envia‑a de imediato ao serviço ou
tribunal remetente ...”) pareciam apontar no sentido da exigência de uma única
declaração do distribuidor do serviço postal, a ser remetida ao tribunal. No
entanto, a Portaria n.º 1178‑A/2000, de 15 de Dezembro, publicada ao abrigo da
previsão do artigo 5.º do Decreto‑Lei n.º 183/2000, que aprovou os modelos a
utilizar, veio clarificar que o distribuidor de serviço postal devia lavrar duas
declarações de depósito, com menção da data da sua efectivação e assinadas de
forma legível: uma no verso do sobrescrito depositado; outra na denominada
“prova de depósito”, consistente de um talão a destacar do sobrescrito e a
enviar de imediato ao tribunal remetente.
No presente caso, a irregularidade verificada consistiu na
omissão da aposição no verso do sobrescrito da declaração de depósito.
Nos termos da parte final do citado n.º 3 do artigo 113.º do CPP,
a notificação considera‑se “efectuada no 5.º dia posterior à data indicada na
declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal”, e, nos termos do
artigo 315.º, n.º 1, do mesmo Código, “o arguido, em 20 dias a contar da
notificação do despacho que designa dia para a audiência, apresenta, querendo, a
contestação, acompanhada do rol de testemunhas (...)” (redacção do Decreto‑Lei
n.º 317/95, de 28 de Novembro; na redacção originária o prazo para apresentação
da contestação era de 7 dias).
No presente caso, o arguido apresentou a sua contestação em 19 de
Novembro de 2003, no 7.º dia posterior à data em que, na sua versão, terá
encontrado a notificação do despacho de designação do dia para julgamento na sua
caixa de correio (12 de Novembro de 2003). As instâncias admitiram essa
contestação como válida, mas consideraram que a apontada irregularidade não
justificava a repetição da notificação.
A afectação dos direitos de defesa que, na tese do recorrente,
lhe advieram por força da apontada irregularidade e que inquinariam de
inconstitucionalidade a interpretação normativa acolhida pelas instâncias
decorreria de ter de elaborar a contestação “num momento de incerteza e
apreensão quanto à tempestividade da mesma”, “deixando de apresentar de imediato
documentos que suportem os factos alegados”, possibilitando mesmo que o arguido
“chegue a não se aperceber da existência de julgamento de um processo contra si
instaurado”.
O reconhecido carácter instrumental do recurso de
constitucionalidade, do qual deriva que só se justifica o provimento do recurso,
com emissão de juízo de inconstitucionalidade, se ele se mostrar susceptível de
se repercutir no sentido da decisão recorrida, leva a afastar liminarmente
juízos baseados em situações hipotéticas que claramente não se verificam no
caso concreto em apreço. No presente caso, o arguido tomou efectivo conhecimento
da data do início do seu julgamento (segundo a sua versão, com mais de dois
meses de antecedência: terá recebido a notificação em 12 de Novembro de 2003 e
o julgamento estava marcado e iniciou‑se efectivamente em 20 de Janeiro de
2004), e a ele compareceu pessoalmente, pelo que é impertinente o último
fundamento da tese de inconstitucionalidade por ele defendida.
Quanto ao mais, cumpre desde logo salientar que o arguido, agindo
com a devida diligência, poderia, sem grande onerosidade, informar‑se junto da
secretaria judicial da data do termo do prazo para a apresentação da
contestação.
Por outro lado, o arguido apresentou efectivamente a sua
contestação (com rol de testemunhas) – apresentação que, aliás, é meramente
facultativa –, que as instâncias admitiram como tempestiva, e a circunstância
de a ter elaborado em 7 dias, em vez de em 20 dias, para além de ser uma opção
sua, não se mostra significativamente limitadora das suas garantias de defesa.
Ao arguido estava sempre assegurada a possibilidade de alterar e aditar o rol de
testemunhas, com o único limite de o adicionamento ou a alteração poder ser
comunicado aos outros intervenientes processuais até três dias antes da data
fixada para a audiência (n.º 1 do artigo 316.º do CPP). A apresentação da
contestação não precludiu o direito de apresentação de documentos e de requerer
a produção de prova documental até ao início da audiência de julgamento e mesmo
no decurso desta (cf. artigo 340.º do CPP) e o recorrente por diversas requereu
a junção de documentos (cf. fls. 270‑299, 309‑339 e 371‑376), o que sempre foi
deferido (cf. despachos de fls. 302, 342 e 402). Por último – e decisivamente –,
eventual deficiência na elaboração da contestação sempre seria desprovida de
qualquer efeito irremediavelmente limitador da possibilidade de defesa do
arguido. Nenhuma disposição legal limita às enunciadas na contestação (que,
repete‑se, é hoje peça processual facultativa) as questões que o arguido pode
submeter ao tribunal, quer como questões prévias e incidentais (artigo 338.º),
quer na sua exposição introdutória (artigo 339.º), quer ao longo de toda a
audiência, até às alegações finais (artigo 360.º, todos do CPP).
Neste contexto – em que o recorrente tinha pleno conhecimento da
pendência do processo (tendo sido regularmente notificado da acusação, na
sequência do que consultou pessoalmente os autos), a sua defensora fora
notificada por carta registada do despacho ora em causa, e a carta dirigida ao
arguido foi efectivamente depositada no receptáculo postal da sua morada,
constante do termo de identidade e residência por ele prestado –, o critério
normativo seguido pelas instâncias, no sentido de que a irregularidade
consistente na falta de aposição, no verso do sobrescrito de notificação de
despacho de designação de data para julgamento, de declaração do distribuidor
postal com menção da data da efectivação do depósito, se considera “sanada” com
a efectiva apresentação de contestação e rol de testemunhas – que foram
considerados tempestivos – e com a comparência pessoal do arguido na audiência,
não se mostra intoleravelmente diminuidora das garantias de defesa
constitucionalmente asseguradas, dado que ao recorrente foi concedida a
possibilidade de exercer os seus direitos processuais sem grande onerosidade.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 113.º, n.ºs 1,
alínea c), e 3, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a
omissão, no verso do sobrescrito contendo a carta de notificação do despacho de
designação de dia para julgamento, depositado no receptáculo postal do arguido,
da declaração da data desse depósito pelo distribuidor do serviço postal,
constitui mera irregularidade, que se considera sanada se o arguido pôde vir a
apresentar atempadamente a sua contestação e a comparecer na audiência de
julgamento; e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida,
na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 21 de Fevereiro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos