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Processo n.º 596/05
2.ªSecção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A Câmara Municipal de Coimbra e o Clube de Caça e Pesca de …
interpuseram recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) da sentença do
Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, de 2 de Maio de 2003, que,
julgando procedente o vício de violação de lei por ofensa ao disposto na alínea
a) do artigo 97.° do Decreto Regulamentar n.° 34/95, de 16 de Dezembro (rectius,
do artigo 97.°, alínea a), do Regulamento das Condições Técnicas e de Segurança
dos Recintos de Espectáculos e Divertimentos Públicos, aprovado pelo artigo 1.º
do referido Decreto Regulamentar, dispondo aquele preceito: “Os campos de tiro
devem oferecer as seguintes condições: a) As origens de tiro devem distar, no
mínimo, 800 m de lugares habitados, escolas e hospitais, para minimizar os
efeitos acústicos das detonações, devendo, sempre que possível, ser
sobreelevadas em relação aos terrenos vizinhos, (...)”) concedeu provimento ao
recurso contencioso que A., B., C. e D. haviam deduzido contra a deliberação da
Câmara Municipal de Coimbra, de 23 de Julho de 2001, que aprovara o projecto de
construção das instalações do Campo de Tiro do Clube de Caça e Pesca de ….
Nas suas alegações, o Clube de Caça e Pesca de …, além de
sustentar que a sentença recorrida fizera errada interpretação do preceito
invocado, suscitou uma questão de inconstitucionalidade sintetizada nas
seguintes conclusões:
“16) O princípio da proporcionalidade, que encontra recepção expressa no
texto constitucional, entre outros, nos artigos 5.º e 18.º, n.° 2, da
Constituição da República, pertence à ordem jurídica positiva e constitui
fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito
positivo – cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, 6.ª edição,
1996, p. 171.
17) Conforme alegámos supra, o juízo de proporcionalidade vertido na norma em
questão, ao estabelecer a distância mínima de 800 metros, revela‑se inadequado,
desnecessário e excessivo perante os fins que informam a sua aplicabilidade ao
caso concreto.
18) Com efeito, expressamente se invoca a inconstitucionalidade da dimensão
interpretativa da sentença que aplica a distância mínima dos 800 metros prevista
no artigo 97.º, alínea a), do Decreto Regulamentar n.º 34/95 ao caso concreto,
por violação do princípio da proporcionalidade como vector material do princípio
do Estado de Direito previsto no artigo 2.º da CRP.
19) Sob outro enfoque, mas ainda dentro do parâmetro constitucional em que
nos movemos, temos que existe uma manifesta desproporcionalidade da restrição do
núcleo essencial do direito fundamental limitado pelo conteúdo do artigo 97.º,
alínea a), do Decreto Regulamentar n.º 34/95.
20) Por um lado temos o direito fundamental de desenvolvimento da
personalidade – que se projecta na dimensão do direito que os sócios da
recorrida particular têm em prosseguir uma actividade desportiva – que é
restringida pela previsão de um limite mínimo de implantação da unidade
desportiva a 800 metros de lugares habitados; por outro lado temos o direito
fundamental ao ambiente e qualidade de vida sadia que determina a previsão da
supra mencionada distância mínima – cf. artigos 26.º e 66.º da CRP.
21) Ora, segundo o artigo 18.º, n.º 2, da CRP, as restrições legais aos
direitos fundamentais devem limitar‑se ao necessário para salvaguardar outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
22) Mediante as três dimensões do princípio da proporcionalidade, chegamos à
conclusão de que a imposição de uma distância mínima de 800 metros restringe
incomensuravelmente o direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade
dos sócios do clube desportivo, sem que alcance o fim visado pela norma, ou
seja, a protecção da qualidade de vida das populações mais próximas.
23) Razão pela qual se invoca a inconstitucionalidade do artigo 97.º, alínea
a), do Decreto Regulamentar n.º 34/95, por violação ao princípio da
proporcionalidade como padrão de controlo à restrição de direitos fundamentais,
vertido no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.”
Aos recursos foi negado provimento pelo Acórdão do STA, de 19 de
Maio de 2005, ponderando‑se designadamente que:
“Os recorrentes alegam que a decisão recorrida fez errada interpretação e
aplicação do normativo que considerou violado, pois tal pressupõe que as origens
do tiro distem menos de 800 metros de «lugares habitados» e no caso em apreço,
apurando-se embora a existência de uma casa a cerca de 600 metros de tal local,
não se apurou se a mesma se integrava ou não em aglomerado urbano, pois, em seu
entender, «um espaço habitado não integra o conceito de “lugares habitados”».
Os recorrentes limitam‑se a, conclusivamente, fazer tal afirmação pois não
explicitam as razões que a tal conduzem.
Por outro lado, ao contrário do por eles alegado, o tribunal a quo deu como
provado, para além da existência de uma habitação a 600 metros da origem do
tiro, que no raio de 800 metros marcado a partir do local de tiro se incluem
zonas habitadas – cf. ponto 9 da matéria de facto.
Assim, para além de uma casa de habitação, por definição, integrar o conceito um
lugar habitado, constituindo o uso do plural mera técnica legislativa, o certo é
que existiam zonas habitadas que se não encontravam afastadas mais de 800 metros
do local de tiro, o que, como se decidiu, violava o disposto no artigo 97.º, n.º
1, alínea a), do Decreto Regulamentar n.º 34/95, de 16 de Dezembro.
O interesse protegido pela norma foi ponderado pelo legislador que definiu a
distância de 800 metros do ponto de tiro como a distância mínima a que podiam
ser implantados campos de tiro.
Não se deixou quanto a esse requisito qualquer margem de escolha à
Administração, pelo que não há que entrar em linha de conta com princípios como
a proporcionalidade consagrado no artigo 266.º, n.º 2, vinculativo para a
actuação administrativa e apenas no âmbito do exercício de poderes
discricionários, isto é, quando a Administração pode optar por uma das soluções
ou medidas que a lei lhe confere para o caso concreto.
Cai assim pela base toda a argumentação com base no princípio da
proporcionalidade, designadamente na perspectiva que os recorrentes lhe dão no
que respeita à opção legislativa contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do
Decreto Regulamentar n.º 34/95, a qual se não apresenta ostensivamente
desrazoável ou excessiva.
Por outro lado, a norma aplicada não estabelece nenhuma restrição ao direito de
desenvolvimento da personalidade, limitando‑se a estabelecer condicionamentos
relativamente ao local onde a prática desportiva do tiro pode ser exercida, pelo
que não tem lugar a aplicação da previsão do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, não
constituindo a aplicação do artigo 97.º, n.º 1, alínea a), do Decreto
Regulamentar n.º 34/95, de 16 de Dezembro, qualquer violação de normas
constitucionais.”
É contra este acórdão que o Clube de Caça e Pesca de … vem
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º
1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver
apreciada a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 97.º, alínea
a), do Regulamento das Condições Técnicas e de Segurança dos Recintos de
Espectáculos e Divertimentos Públicos, aprovado pelo artigo 1.º do Decreto
Regulamentar n.º 34/95, de 16 de Dezembro, por violação do princípio do Estado
de direito vertido no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e
do “princípio da proporcionalidade como parâmetro de controlo à restrição de
direitos fundamentais, sendo deste modo relevante a violação dos artigos 18.º,
n.º 2, 22.º e 66.º da CRP”.
A Câmara Municipal de Coimbra apresentou requerimento de adesão
ao recurso interposto pelo Clube de Caça e Pesca de …, “nos termos e para os
efeitos do artigo 683.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, do Código de Processo Civil”,
mas por despacho do relator no Tribunal Constitucional consignou‑se que o artigo
74.º, n.º 4, da LTC, expressamente refere que “não pode haver recurso
subordinado nem adesão ao recurso para o Tribunal Constitucional”.
O recorrente Clube de Caça e Pesca de … apresentou alegações, no
termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1 – Partimos de duas premissas para definir o objecto do presente recurso de
constitucionalidade:
a) A Administração tem, efectivamente, poderes discricionários para avaliar
em concreto se o limite mínimo de 800 metros definido abstractamente pelo
legislador é adequado, necessário e proporcional a evitar ou minimizar os
efeitos acústicos provocados pelas detonações, sendo que pode definir um limite
inferior quando conclua que a uma distância inferior não se verifica qualquer
lesão ao direito fundamental ao ambiente e qualidade de vida sadia dos
proprietários das habitações mais próximas que o legislador visou proteger com a
norma legal em causa.
b) Existem três pareceres nos autos e uma medição de ruído a 600 metros da
origem dos tiros que prova serem irrelevantes ou inexistentes quaisquer efeitos
acústicos provocados pelas detonações a esta distância.
2 – Pelo que a questão de constitucionalidade que urge resolver concretiza‑se
em saber se:
Estando provado que a 600 metros da origem da distância dos tiros acústicos
[sic] provocados pelas detonações são irrelevantes ou mesmo nulos para uma
habitação situada a essa distância, padecerá ou não de inconstitucionalidade
interpretativa a sentença que aplica a distância mínima dos 800 metros prevista
no artigo 97.º, alínea a), do Decreto Regulamentar n.º 34/95 ao caso concreto,
por violação do princípio da proporcionalidade como vector material (artigo 2.º
da CRP) ou, sob outro enfoque, como padrão de controlo à restrição de direitos
fundamentais, tendo como referência o preceituado nos artigos 18.º, n.º 2, 22.º
e 66.º da CRP.
3 – Quando exista uma norma que vise proteger um determinado interesse
legalmente reconhecido, nomeadamente pela imposição de limites mínimos para o
fim visado, mas a sua convocação prática torne inadequado, desnecessário e
excessivo o núcleo de tutela face aos fins públicos prosseguidos, estaremos
perante uma violação do princípio da proporcionalidade.
4 – Pelo que cabe percorrer a ratio legis da norma para podermos aferir,
mediante o necessário «teste da proporcionalidade», se, por um lado, o fim
público prosseguido pela mesma é salvaguardado no caso concreto e, por outro
lado, se existe uma compressão desproporcionada dos direitos fundamentais a ela
subjacente, face à realidade societária em que foi aplicada.
5 – Como já alegámos supra, a norma estabelece que a origem dos tiros deve
distar 800 metros de lugares habitados de forma a minimizar os efeitos acústicos
das detonações.
6 – O fim público prosseguido pelo limite dos 800 metros é,
inquestionavelmente, minimizar os efeitos acústicos provocados nos lugares
habitados pelas detonações dos tiros desportivos realizados.
7 – A razão de a norma ter estabelecido aquela distância mínima e não
qualquer outra prende‑se com a circunstância de o legislador ter, mediante um
juízo proporcional, considerado que mediante a imposição daquele limite mínimo
estaria salvaguardado o direito fundamental constitucionalmente protegido, ou
seja, o direito a um ambiente e qualidade de vida sadio – cf. artigo 66.º da
CRP.
8 – Todavia, o juízo de proporcionalidade legislativa tem de se adequar com o
juízo de proporcionalidade em concreto, pois, como vimos, a dimensão material do
próprio princípio do Estado de Direito assim o exige.
9 – Ora, nos autos constam três pareceres favoráveis à implantação do campo
de tiro – da CCRC, do IND e um parecer técnico de segurança balística – sendo
que todos eles consideraram que a existência de barreiras naturais entre a
origem dos tiros e as habitações minimizavam, ou tornavam mesmo irrelevantes, os
efeitos acústicos das detonações.
10 – A ora recorrente constitucional juntou aos autos uma medição de ruído a
600 metros da origem dos tiros – local onde se encontra uma habitação – e os
resultados ditaram que os efeitos acústicos produzidos pelas detonações eram
nulos – cf. doc. n.º 3 junto aos autos com a contestação e o qual não foi
impugnado, pelo que tem de se considerar como provado.
11 – Daí que o juízo de proporcionalidade vertido na norma em questão, ao
estabelecer a distância mínima de 800 metros, revela‑se inadequado,
desnecessário e excessivo perante os fins que informam a sua aplicabilidade ao
caso concreto.
12 – Isto porque o fim público prosseguido pela norma é salvaguardado
mediante uma distância mínima inferior àquela legalmente prevista, o que
determina que o juízo de proporcionalidade levado o efeito pelo legislador tenha
de ser constitucionalmente controlado pelo juízo de proporcionalidade do
julgador.
13 – Razão pela qual, estando provado nos autos que os fins públicos –
minimizar os efeitos acústicos provocados pelas detonações – que enformaram a
norma que estabelece o limite mínimo de 800 metros, são prosseguidos, em
concreto, por uma distância proporcionalmente inferior, estão verificados os
pressupostos para que o julgador recorra a uma interpretação da norma conforme
ao princípio da proporcionalidade.
14 – Nesta conformidade, expressamente se invoca a inconstitucionalidade da
dimensão interpretativa da sentença que aplica a distância mínima dos 800 metros
prevista no artigo 97.º, alínea a), do Decreto Regulamentar n.º 34/95 ao caso
concreto, por violação do princípio da proporcionalidade como vector material do
princípio do Estado de Direito previsto no artigo 2.º da CRP.
15 – Sob outro enfoque, mas ainda no âmbito do parâmetro constitucional em
que nos movemos, temos que existe uma manifesta desproporcionalidade da
restrição do núcleo essencial do direito fundamental limitado pelo conteúdo do
artigo 97.º, alínea a), do Decreto Regulamentar n.º 34/95.
16 – Podemos divisar esta norma como reguladora de dois direitos fundamentais
tendencialmente colidentes.
17 – Por um lado, temos o direito fundamental de desenvolvimento da
personalidade – que se projecta na dimensão do direito que os sócios da ora
recorrente constitucional têm em prosseguir uma actividade desportiva – que é
restringida pela previsão de um limite mínimo de implantação da unidade
desportiva a 800 metros de lugares habitados; por outro lado, temos o direito
fundamental ao ambiente e qualidade de vida sadia dos proprietários das
habitações vizinhas que determina a previsão da supra mencionada distância
mínima – cf. artigos 26.º e 66.º da CRP.
18 – Ora, segundo o artigo 18.º, n.º 2, da CRP, as restrições legais aos
direitos fundamentais devem limitar‑se ao necessário para salvaguardar outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos; sendo este artigo
configurado pela doutrina e jurisprudência como o parâmetro de controlo
constitucional das leis por excelência.
19 – Assim, podemos defender com segurança que uma lei que restrinja o
conteúdo de um direito fundamental sem que essa limitação sirva para
salvaguardar outro direito ou interesse legalmente protegido será
inconstitucional, bem como a interpretação que dessa lei seja encetada, por
violação do princípio da proporcionalidade.
20 – Num primeiro momento, a norma legal deve ser adequada aos fins que visa
tutelar.
21 – No caso sub judice, temos que só seria constitucionalmente admissível
restringir o direito fundamental de desenvolvimento da personalidade na dimensão
supra alegada se o limite mínimo dos 800 metros fosse adequado a minimizar os
efeitos acústicos provocados pela detonações.
22 – Como já tivemos oportunidade de concluir, esta adequação não se
verifica, pois mediante os testes acústicos levados a efeito a 600 metros da
origem dos disparos não se verifica nenhum ruído que perturbe a qualidade de
vida das pessoas que aí habitam, ficando sempre a questão de saber se outra
qualquer distância superior ou inferior à prevista na norma legal seria apta a
minimizar tais perturbações acústicas.
23 – Num segundo momento, a norma legal terá de ser necessária à salvaguarda
do direito ou interesse constitucionalmente protegido visado pela mesma, sempre
segundo a prova de que não era possível adoptar outro meio que causasse menor
ingerência no direito fundamental restringido pela norma.
24 – Assim, a norma respeitaria o princípio da proporcionalidade se
pudéssemos chegar à conclusão de que o limite mínimo dos 800 metros era
necessário para se minimizar os efeitos acústicos provocados pelas detonações.
25 – Todavia, ficou provado que inexistem quaisquer efeitos acústicos
provocados pelas detonações a 600 metros da origem dos tiros e, como tal, não é
necessário minimizar ruídos que de todo em todo não existem.
26 – Pelo que a restrição do direito ao desenvolvimento da personalidade –
com a dimensão que referimos – é manifestamente desnecessária face às medidas
que poderiam ser adoptadas para a salvaguarda do direito ao ambiente e qualidade
de vida das populações circundantes aos campos de tiro desportivo.
27 – Para exemplificar esta desnecessidade basta referir que a lei, em vez de
estabelecer uma distância mínima inadequada à salvaguarda dos interesses em
jogo, poderia condicionar o licenciamento à apresentação de um estudo acústico
levado a efeito num raio de 1000 metros da origem dos disparos, para se aferir a
que distâncias se verificavam as exigências de protecção no caso concreto.
28 – Num último momento, deve perguntar‑se se o resultado com a intervenção
legislativa é proporcional à «carga coactiva» da mesma, a fim de se avaliar se à
restrição do direito fundamental corresponde uma salvaguarda do outro direito ou
interesse constitucionalmente protegido visado pela norma.
29 – Pelo que já alegámos, facilmente se extrai a conclusão de que a
imposição de uma distância mínima de 800 metros restringe incomensuravelmente o
direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade dos sócios do clube
desportivo, sem que alcance o fim visado pela norma, ou seja, a protecção da
qualidade de vida das populações mais próximas.
30 – Razão pela qual se invoca a inconstitucionalidade da dimensão
interpretativa do artigo 97.º, alínea a), do Decreto Regulamentar n.° 34/95, por
violação ao princípio da proporcionalidade como padrão de controlo à restrição
dos direitos fundamentais em colisão no caso concreto (artigos 22.º e 66.º da
CRP), vertido no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
Termos em que deve ser julgada inconstitucional, por violação do princípio da
proporcionalidade, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 2.º,
18.º, n.º 2, 22.º e 66.º da CRP, a interpretação do artigo 97.º, alínea a), do
Decreto Regulamentar n.º 34/95 que imponha uma distância de 800 metros da origem
dos tiros, quando, a uma distância de 600 metros, se prova que os efeitos
acústicos provocados pelas detonações são irrelevantes ou mesmo nulos para uma
habitação situada a esta distância.”
Os recorridos A., B., C. e D. contra‑alegaram, concluindo:
“1. O recorrente parte de premissas que se não verificam na prática,
interpretando de forma completamente descabida os factos assentes.
2. In claris non fit interpretatio.
3. Pretende‑se discutir a validade da própria norma sob a capa de discutir a
sua interpretação.
4. A norma que estabelece um limite mínimo para a localização de campos de
tiro fá‑lo usando o poder discricionário e soberano do legislador.
5. Tal norma apenas pode ser posta em causa se violar de forma
desproporcionada valores mais elevados que os que pretende tutelar.
6. O facto de a norma referir expressamente que o limite se deve ao objectivo
de minimização de efeitos sonoros não pode levar à conclusão de que se trata do
único objectivo tutelado pelo legislador, mas tão‑só que tal tutela torna
desnecessária a fixação de outros limites, porque inferiores.
7. O direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado na sua
dimensão de direito de andar aos tiros, é infinitamente menos importante que o
direito ao descanso.
8. Não é, in casu, restringido nenhum direito fundamental com a fixação de
uma distância técnica mínima para o exercício de uma actividade lúdica.
9. A carga coactiva da norma que estabelece a distância entre campos de tiro
e locais habitados não é maior do que a de todas as outras normas que
estabelecem distâncias mínimas, nomeadamente no âmbito da construção.
10. A decisão recorrida, aliás douta e bem elaborada, não deve merecer
qualquer censura, tendo‑se limitado a aplicar o direito vigente, que nenhuma
ofensa faz a qualquer norma ou princípio constitucional.
11. Não é sequer possível declarar inválida a interpretação de uma norma, que
outra não admite, e não declarar inválida a própria norma.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A tese sustentada pelo recorrente assenta essencialmente na
afirmação da existência de uma situação de facto, que, porém, a decisão
recorrida não deu como comprovada — a de que a 600 metros da origem dos tiros os
efeitos acústicos produzidos pelas detonações eram nulos –, para daí extrair a
conclusão da desproporcionalidade do critério normativo seguido em estrita
obediência da letra da alínea a) do artigo 97.º do Regulamento das Condições
Técnicas e de Segurança dos Recintos de Espectáculos e Divertimentos Públicos,
aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 34/95, de 16 de Dezembro.
Na verdade, tal facto não consta da matéria de facto dada por
provada pelas instâncias, nem se deduz dos pareceres nela referidos: – o parecer
da Comissão de Coordenação da Região Centro, de 12 de Agosto de 1999 (fls. 32),
emitido ao abrigo do artigo 9.º do Decreto‑Lei n.º 317/97, de 25 de Novembro –
que dispõe que os pedidos de licenciamento de instalações desportivas das
categorias tipológicas que identifica, “a situar em área não abrangida por plano
de urbanização, plano de pormenor ou alvará de loteamento válido nos termos da
lei”, devem ser instruídos com “autorização prévia de localização à comissão de
coordenação regional (CCR) respectiva” (n.º 1), devendo esta pronunciar‑se “no
exclusivo âmbito das suas competências” (n.º 2) –, ponderou exclusivamente a
compatibilidade do projecto com as exigências do ordenamento do território (no
caso, com o PDM eficaz na zona), referindo expressamente que o parecer favorável
“é emitido sem prejuízo do cumprimento de outras disposições legais e
regulamentares aplicáveis (nomeadamente, o Regulamento Geral sobre o Ruído...)”;
– o parecer da Direcção de Serviços de Infra‑Estruturas
Desportivas do Instituto Nacional do Desporto (fls. 33) aponta a necessidade de
correcção de vários aspectos técnicos e funcionais do projecto e limita‑se a
admitir – sem formular, ele próprio, um juízo autónomo sobre a questão –, “pelos
elementos disponíveis”, designadamente um estudo de impacto do ruído solicitado
pelo Clube requerente, que “parece acautelado o disposto no artigo 97.º do
Decreto Regulamentar n.º 34/95, de 16 de Dezembro” (sublinhado acrescentado);
– o parecer da Comissão Técnica das Carreiras de Tiro da Direcção
de Instrução do Comando da Instrução do Ministério da Defesa Nacional, de 22 de
Março de 2000 (fls. 35), limita‑se a concluir que, uma vez realizadas as
alterações no terreno que sugere, “estarão criadas (..) as condições para a
aprovação, em termos de segurança balística do projecto em apreço” (sublinhado
acrescentado).
Por outro lado, com a contestação do ora recorrente (fls. 90 a
105), não foi junta, contrariamente ao anunciado no seu artigo 42.º, como
“documento n.º 3”, qualquer medição de ruído demonstrativa de que a 600 ou 800
metros o ruído produzido pelos tiros é zero.
Por último, o acórdão ora recorrido não admitiu, por manifesta
intempestividade (artigos 706.º, n.º 1, e 524.º do Código de Processo Civil), a
junção, com a contra‑alegação da então recorrente Câmara Municipal de Coimbra,
de dois relatórios de medição de ruído, efectuados em 3 de Julho de 1999, um a
1000 e outro a 600 metros de distância da origem dos disparos, medições em que
participaram exclusivamente o técnico da entidade privada que procedeu ao exame
e um representante do requerente Clube de Caça e Pesca de … (fls. 204 a 211).
2.2. A questão que constitui objecto do presente recurso
consiste, assim, em apurar se é inconstitucional, por alegada violação do
princípio da proporcionalidade, a norma constante da alínea a) do artigo 97.º do
Regulamento das Condições Técnicas e de Segurança dos Recintos de Espectáculos e
Divertimentos Públicos, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 34/95, de 16 de
Dezembro, enquanto impõe como uma das condições que devem ser satisfeitas pelos
campos de tiro a existência, no mínimo, de uma distância de 800 metros entre as
origens de tiro e lugares habitados.
No Acórdão n.º 200/2001, o Tribunal Constitucional procedeu a uma
síntese da sua jurisprudência sobre o princípio da proporcionalidade, em termos
que mantêm actualidade e, por isso, se reproduzem:
“6. (...)
Começando pelo princípio da proporcionalidade, recordar‑se‑á que este
Tribunal Constitucional o tem reconhecido e aplicado, em várias decisões,
aferindo frequentemente, perante ele, quer normas penais incriminatórias – por
exemplo, nos Acórdãos n.ºs 634/93 (inconstitucionalidade da punição como
desertor daquele que, sendo tripulante de um navio e sem motivo justificado, o
deixe partir para o mar sem embarcar, quando tal tripulante não desempenhe
funções directamente relacionadas com a manutenção, segurança e equipagem do
mesmo navio), 274/98 (não inconstitucionalidade de norma que pune o não
acatamento de ordem de demolição), publicados nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional [ATC], respectivamente vol. 26.º, pp. 205 e ss., e vol. 39.º, pp.
585 e ss. –, quer normas de outro tipo, que previam encargos ou limitações a
direitos fundamentais – v. g., os Acórdãos n.ºs 451/95 (inconstitucionalidade de
norma que estabelece a impenhorabilidade total de bens anteriormente penhorados
pelas repartições de finanças em execuções fiscais), 1182/96
(inconstitucionalidade de normas sobre custas judiciais nos tribunais
tributários), 758/95 (inconstitucionalidade de norma que impede a participação
pessoal, na assembleia geral dos bancos, e em certas condições, de accionistas
que não disponham de 1/300 da soma dos votos possíveis), 176/2000 e 202/2000
(perda dos instrumentos do crime) e 484/2000 (não inconstitucionalidade de norma
que prevê o indeferimento tácito do pedido de legalização de obras), publicados
respectivamente nos ATC, vol. 31.º, pp. 129 e ss., vol. 35.º, pp. 431 e ss.,
vol. 32.º, pp. 803 e ss., e DR, II Série, de 27 e 11 de Outubro de 2000 e de 4
de Janeiro de 2001.
Relativamente às restrições a direitos, liberdades e garantias, a exigência
de proporcionalidade resulta do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da
República. Mas o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de
limitação do poder público, pode ancorar‑se no princípio geral do Estado de
Direito, impondo limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as
medidas públicas, devendo o Estado‑legislador e o Estado‑administrador adequar a
sua projectada acção aos fins pretendidos, e não configurar as medidas que tomam
como desnecessária ou excessivamente restritivas.
O princípio da proporcionalidade, em sentido lato, pode, além disso,
desdobrar‑se analiticamente em três exigências da relação entre as medidas e os
fins prosseguidos: a adequação das medidas aos fins; a necessidade ou
exigibilidade das medidas e a proporcionalidade em sentido estrito, ou «justa
medida». Como se escreveu no citado Acórdão n.º 634/93, invocando a doutrina:
«o princípio da proporcionalidade desdobra‑se em três subprincípios:
princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e
garantias devem revelar‑se com um meio para a prossecução dos fins visados, com
salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);
princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para
alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos
restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou
proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar‑se medidas excessivas,
desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»
Importa, ainda, fazer uma precisão sobre o alcance do princípio, e seu
controlo jurisdicional, para a actividade administrativa e legislativa. Não pode
contestar‑se que o princípio da proporcionalidade, mesmo que originariamente
relevante sobretudo no domínio do controlo da actividade administrativa, se
aplica igualmente ao legislador. Dir‑se‑á mesmo – como o comprova a própria
jurisprudência deste Tribunal – que o princípio da proporcionalidade cobra no
controlo da actividade do legislador um dos seus significados mais importantes.
Isto não tolhe, porém, que as exigências decorrentes do princípio se configurem
de forma diversa para a actividade administrativa e legislativa – que, portanto,
o princípio, e a sua prática aplicação jurisdicional, tenham um alcance diverso
para o Estado‑Administrador e para o Estado‑Legislador. Assim, enquanto a
administração está vinculada à prossecução de finalidades estabelecidas, o
legislador pode determinar, dentro do quadro constitucional, a finalidade visada
com uma determinada medida. Por outro lado, é sabido que a determinação da
relação entre uma determinada medida, ou as suas alternativas, e o grau de
consecução de um determinado objectivo envolve, por vezes, avaliações complexas,
no próprio plano empírico (social e económico). Ora, não pode deixar de
reconhecer‑se ao legislador, legitimado para tomar as medidas em questão e
determinar as suas finalidades, uma «prerrogativa de avaliação», como que um
«crédito de confiança» (falando de um Vertrauensvorsprung, v. Bodo
Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte. Staatsrecht II, 14.ª. ed., Heidelberg,
1998, n.ºs 282 e 287), na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações
empíricas entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele
que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à
consecução dos objectivos visados com a medida (que, como se disse, dentro dos
quadros constitucionais, ele próprio também pode definir).
A diferenciação da vinculação pelo princípio da proporcionalidade do
legislador e da administração é, aliás, salientada na doutrina nacional e
estrangeira (v., para esta, por todos, a obra por último citada), e acolhida na
jurisprudência. Assim, escreveu‑se recentemente no Acórdão n.º 484/2000, citando
doutrina nacional:
«“O princípio do excesso [ou princípio da proporcionalidade] aplica‑se a todas
as espécies de actos dos poderes públicos. Vincula o legislador, a administração
e a jurisdição. Observar‑se‑á apenas que o controlo judicial baseado no
princípio da proporcionalidade não tem extensão e intensidade semelhantes
consoante se trate de actos legislativos, de actos da administração ou de actos
de jurisdição. Ao legislador (e, eventualmente, a certas entidades com
competência regulamentar) é reconhecido um considerável espaço de conformação
(liberdade de conformação) na ponderação dos bens quando edita uma nova
regulação. Esta liberdade de conformação tem especial relevância ao discutir‑se
os requisitos da adequação dos meios e da proporcionalidade em sentido restrito.
Isto justifica que, perante o espaço de conformação do legislador, os tribunais
se limitem a examinar se a regulação legislativa é manifestamente inadequada.”
(Assim, Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
Coimbra, 1998, p. 264).
Ora, estando em causa a constitucionalidade de uma norma, é apenas a
intervenção do legislador que tem de ser aferida – com os limites assinalados.»”
No presente caso, a intervenção questionada do legislador visou
regular a compatibilização, por um lado, do direito à exploração e ao exercício
de uma actividade desportiva – que, independentemente da sua qualificação,
proposta pelo recorrente, como emanação do direito ao desenvolvimento da
personalidade, sempre encontraria suporte constitucional, para a entidade
exploradora do espaço, no direito à iniciativa económica privada (artigo 61.º,
n.º 1, da CRP), e, para os respectivos utentes, no direito ao desporto (artigo
79.º da CRP) –, e, por outro lado, do direito de todos ao bem‑estar e à
qualidade de vida, a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente
equilibrado, com prevenção e controlo das diversas formas de poluição
(designadamente sonora) e com adequado ordenamento do território, tendo em vista
uma correcta localização das actividades (artigos 9.º, alínea d), e 66.º, n.ºs 1
e 2, alíneas a) e b), da CRP).
Neste contexto, a opção legislativa de impor, para possibilitar a
instalação de um campo de tiro, de uma distância mínima de 800 metros entre a
origem dos tiros e lugares habitados, naturalmente assente em considerações de
ordem técnica, insere‑se claramente na zona de livre conformação do legislador,
relativamente à qual a intervenção da jurisdição constitucional se deve conter
na invalidação de soluções patentemente desrazoáveis ou desproporcionadas. A
imposição de uma distância mínima entre a origem dos tiros e as habitações surge
como uma medida adequada e necessária à obtenção do fim pretendido: assegurar a
qualidade de vida das populações, susceptível de ser afectada pelos efeitos
acústicos das detonações (para além da prevenção de riscos de serem
acidentalmente atingidas por projécteis). A determinação, em concreto, dessa
distância mínima em 800 metros não se mostra desnecessária ou excessivamente
restritiva, pelo que não se pode dar por verificada a alegada violação do
princípio da proporcionalidade.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea a) do
artigo 97.º do Regulamento das Condições Técnicas e de Segurança dos Recintos de
Espectáculos e Divertimentos Públicos, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º
34/95, de 16 de Dezembro, enquanto impõe como uma das condições que devem ser
satisfeitas pelos campos de tiro a existência, no mínimo, de uma distância de
800 metros entre as origens de tiro e lugares habitados; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida,
na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 21 de Fevereiro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos