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Proc. nº 446/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. foi condenado, por decisão do Director-Geral de Viação de 11 de Maio de 1995, no pagamento de uma coima no valor de 20.000$00 e de custas no valor de 20.200$00.
2. O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Comarca de Coimbra, sustentando a inconstitucionalidade do Despacho nº 7/94, de
6 de Setembro de 1994, por violação dos artigos 115º, nº 7 e 168º, nº 1, alínea d), da Constituição.
O recurso foi julgado improcedente, por sentença do Juiz do Tribunal da Comarca de Coimbra de 21 de Novembro de 1995.
3. A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra da sentença de 21 de Novembro de 1995, ao abrigo do disposto no artigo 73º, nº
2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, sustentando a inconstitucionalidade do despacho nº 7/94, de 6 de Setembro de 1994.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 28 de Fevereiro de 1996, decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto, em virtude de não se verificarem os pressupostos de admissibilidade previstos no artigo 73º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro.
4. A., após a notificação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Fevereiro de 1996, interpôs recurso de constitucionalidade, da sentença do Tribunal da Comarca de Coimbra de 21 de Novembro de 1995, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade
à Constituição do despacho nº 7/94, de 27 de Setembro de 1994, do Ministro da Administração Interna.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
'1ª - A sentença recorrida e a decisão administrativa confirmada são nulas por nelas se terem aplicado norma inconstitucional constante do Despacho de Delegação de Competência nº 7/94, de 94/09/06, de S. Exa. o Ministro da Administração Interna, publicado no Diário da República, II Série, de 94/09/23.
2ª - Tal inconstitucionalidade foi invocada oportunamente no recurso da decisão administrativa para o Tribunal da Comarca de Coimbra onde a mesma não foi declarada e daí a legalidade e razão de ser do presente recurso.
3ª - O Despacho Ministerial referido na 1ª conclusão é, no plano formal e como, aliás, o seu autor o qualificou, um despacho de delegação de competências.
4ª - Mas, enquanto despacho de delegação de competências, é todo ele ilegal e ineficaz, por nele o seu autor não ter invocado a lei habilitante que o autorizava a delegar a sua competência visto esta, como é sabido, ser inalienável e irrenunciável em consequência do que o referido despacho é formalmente inconstitucional por violar os arts. 3º, nº 2 e 114º, nº
2, da CRP.
Neste sentido conforme, entre outros, Vital Moreira e Gomes Canotilho, CRP Anotada, pág. 498; Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, pág. 662 e ss., e Direito Administrativo, vol. II, pág. 75 e ss.; Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, I, pág. 215 e ss.; e Acórdãos do STA/Pleno, de 5/4/79, AD 211, 629, e de 15/4/82, AD 151, 1349.
5ª - E mesmo que se entenda que tal despacho reveste formal e materialmente a modalidade e regulamento autónomo, também neste caso, para assegurar a sua legalidade e eficácia, teria o autor do despacho referido de invocar a lei da sua autorização ou indicar expressamente a lei que pretendia regulamentar motivos por que, tendo sido omitidas estas formalidades, violados se mostram os arts. 3º, nº 2, 115º, nºs 6 e 7 e 202º, al. c) todos da CRP.
6ª - E não tendo o autor do despacho em análise sido investido em poderes decisórios contra-ordenacionais pelas Lei nº 63/93, de 21 de Agosto, D.L. nº 114/94, de 3 de Maio, D.L. nº 433/82, de 27 de Outubro, jamais poderia o mesmo delegá-los tanto mais que as competências para legislar sobre tal matéria pertencem, em exclusividade, à Assembleia da República nos termos do art. 168º, nº 1, al. d) da CRP e, ao emiti-lo não invocou o art. 202º, al. c), da CRP em consequência do que tal despacho contém um objecto legal e materialmente impossível sendo por isso nulo e inconstitucional.
7ª - O Despacho em causa, face às características da generalidade e abstracção que patenteia é, materialmente falando, um despacho normativo e regulamentar. Neste sentido conforme, entre outros, Acds. do STA de
12/2/82, AD 276, 1405, de 28/1/86, AD 296, 1024, de 20/10/87 - Dec. nº 22877, e de 1/3/84, AD 272/3, 985.
8ª - O Meritíssimo Juiz 'a quo' na sentença recorrida nega o carácter normativo e regulamentar àquele despacho e afirma que, no caso do segmento do despacho em apreço, se trata de um despacho de concretização de competências proferido ao abrigo do art. 34º nº 2 do DL 433/82, de 27 de Outubro.
9ª - Mas, mesmo que assim seja visto o Despacho e o seu segmento, sempre teria o seu autor de invocar o art. 34º nº 2 do DL 433/82 em obediência aos nºs 6 e 7 do art. 115º e 3º nº 2 da CRP, visto o mesmo não perder a sua natureza normativa pois, com tal Despacho, fixa o seu autor os poderes de uma autoridade administrativa para a prática de uma categoria genérica de actos que venham a ser cometidos por um número indeterminado de pessoas.
10ª - A sentença recorrida ao reconhecer a competência material do Sr. Subdirector Geral de Viação para impor coimas em processo de contra-ordenação estradal e ao reconhecer a constitucionalidade do identificado Despacho violou, por via de interpretação e execução, os arts. 3º nº 2, 114º nº
2, 115º nºs 6 e 7, 168º nº 1 al. a), 202º al. c) e 207º al. c), todos da CRP em consequência do que é nula.'
O Ministério Público, considerando que o recurso previsto no artigo 73º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, é um recurso extraordinário, suscitou a questão prévia relacionada com a intempestividade da interposição do recurso de constitucionalidade, tendo concluído nos seguintes termos:
'Sucede que, no caso, não se tornaria necessário interpor recurso para a Relação com fundamento no disposto no artigo 73º, nº 2, do Decreto-Lei nº
433/82, de 27 de Outubro, para que se verificasse a exaustão dos recursos ordinários.
Pelo exposto, e em CONCLUSÃO, não deve tomar-se conhecimento do recurso.'
O recorrente, em resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, sustentou o carácter 'ordinário especial' do recurso previsto no nº 2 do artigo 73º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, tendo concluído pela improcedência da questão prévia suscitada pelo recorrido.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
A Questão prévia
6. O Ministério Público sustenta que o presente recurso de constitucionalidade é intempestivo em virtude de o recurso previsto no artigo
73º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, ser um recurso extraordinário.
Ora, recurso extraordinário é, fundamentalmente, aquele que se interpõe após o trânsito em julgado da decisão recorrida (cf. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1981, p. 212 e ss.). Do regime do recurso previsto no artigo 73º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro não resulta que a decisão recorrida seja uma decisão transitada em julgado. Com efeito, o legislador, no artigo 74º, nº 1, do mesmo diploma, estabelece o prazo de interposição dos recursos previstos no artigo anterior, não fazendo qualquer referência específica ao recurso previsto no nº 2 do artigo
73º.
Refira-se que, no âmbito do Processo Penal, o recurso para fixação de jurisprudência é um recurso extraordinário, porque a lei expressamente exige o trânsito em julgado da decisão recorrida (artigo 438º, nº
1, do Código de Processo Civil).
Por outro lado, a tramitação estabelecida nos nºs 2 e 3 do artigo 74º não permite concluir pelo carácter extraordinário do recurso. Na verdade, tal tramitação assemelha-se à prevista no regime de outros recursos, que são qualificados pela lei como ordinários (artigos 102º e ss. da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e 732º-A e ss. do Código de Processo Civil).
Não se podendo afirmar que o recurso previsto no artigo 73º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro é um recurso extraordinário, haveria, desde logo, que rejeitar a ilacção entre tal natureza do recurso e o prazo para a interposição do recurso de constitucionalidade, sustentada pelo Ministério Público.
Por outro lado, tem o Tribunal Constitucional interpretado a expressão recurso ordinário utilizado no artigo 75º da Lei do Tribunal Constitucional num sentido funcional, de modo que o carácter ordinário do recurso subsiste ainda que o recurso não seja obrigatório se a questão de constitucionalidade for suscitada nesse recurso, de modo processualmente adequado, suspendendo-se, então, pela própria interposição de tal recurso o trânsito em julgado e admitindo-se, posteriormente, o recurso de constitucionalidade (cf., entre outros, o Acórdão nº 105/90 - inédito).
Assim, não deverá aplicar-se o artigo 75º da Lei do Tribunal Constitucional, não se entendendo que o recurso tenha sido interposto intempestivamente, desatendendo-se, por isso, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público e tomando-se conhecimento do objecto do recurso.
B A conformidade à Constituição do Despacho do Ministro da Administração Interna nº 7/94
7. O recorrente sustenta a inconstitucionalidade do Despacho do Ministro da Administração Interna nº 7/94 com os seguintes fundamentos:
Por se tratar de um despacho de delegação de competências, devia fazer referência expressa à lei de habilitação, pelo que viola o disposto nos artigos 114º, nº 2 e 3º, nº 2, da Constituição;
por se tratar de um despacho normativo, devia invocar o diploma ou norma que visou regulamentar (artigo 34º, nº 2, do Decreto-Lei nº
433/82, de 27 de Outubro), pelo que violou o disposto no artigo 115º, nºs 6 e 7, da Constituição;
e, por se tratar de um acto praticado no exercício da competência regulamentar do Governo, devia invocar o artigo 202º, alínea c), da Constituição, bem como as leis que pretendia regulamentar ou que definissem a competência subjectiva, pelo que violou os artigos 3º, nº 2, 114º, nº 2, 115º, nºs 6 e 7 e 202º, alínea c), da Constituição.
8. Importa assim, e preliminarmente, averiguar se o Despacho nº 7/94 consubstancia um acto de delegação de competências.
A delegação de competências (ou delegação de poderes) é o acto pelo qual um órgão da Administração, normalmente competente para decidir em determinada matéria, permite, de acordo com a lei, que outros órgãos ou agentes pratiquem actos administrativos sobre a mesma matéria (artigo 35º do Código do Procedimento Administrativo; cf. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 2ª edição, 1994, p. 663; e Paulo Otero, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, 1992, p. 142).
Assim, de acordo com esta noção, para que se possa falar em delegação de competências é necessário, desde logo, que o órgão delegante seja normalmente competente para decidir em determinada matéria.
No presente caso, o Ministro da Administração Interna atribuiu competência ao Director-Geral de Viação para a aplicação das sanções por infracção às disposições do Código da Estrada.
Porém, seria esta uma competência originariamente sua?
O Código da Estrada foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio.
O artigo 152º do Código da Estrada estabelece a aplicação das normas gerais que regulam o processo das contra-ordenações às contra-ordenações previstas no Código.
O Código da Estrada não contém nenhuma norma de competência para a aplicação das contra-ordenações previstas.
No silêncio da lei, rege o artigo 34º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, que atribui ao membro do Governo responsável pela tutela dos interesses que a contra-ordenação visa defender ou promover a competência para designar os serviços competentes para aplicar as contra-ordenações.
O artigo 34º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, estabelece assim uma competência do membro do Governo, cujo conteúdo consiste na designação dos serviços competentes para aplicação das contra-ordenações.
A aplicação das contra-ordenações não é, deste modo, uma competência própria do membro do Governo. A competência estabelecida na referida norma consiste apenas na designação dos serviços competentes para aplicar as contra-ordenações.
Assim, o acto de designação dos serviços competentes (que, aliás, não se confunde com a designação individualizada dos respectivos dirigentes) traduz o exercício de uma determinada competência do membro do Governo que não se confunde com a competência para aplicar contra-ordenações, não se podendo, assim, falar em delegação de competências. Apenas haveria delegação de competências se o membro do Governo delegasse noutra entidade a competência para designar os serviços competentes para aplicar as contra-ordenações. Porém, tal não aconteceu no presente caso. Uma situação de delegação de competências desse tipo é, aliás, a que agora se prevê no nº 3 do mesmo artigo 34º, aditado pelo Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro.
Traduzindo-se o Despacho nº 7/94 no exercício de uma competência própria do membro do Governo, em que não se pode falar em delegação de competência, logo por aí improcede a argumentação do recorrente relativa a esta matéria.
10. O recorrente entende, por outro lado, que o Despacho nº
7/94 deveria fazer referência ao diploma que terá visado regulamentar (artigo
34º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro).
Contudo, o despacho nº 7/94 não visou regulamentar o Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro. Tal diploma, no artigo 34º, nº 2, estabelece, como se viu, uma competência do membro do Governo. No exercício de tal competência, o membro do Governo designa os serviços competentes para aplicação de contra-ordenações, quando a lei que prevê e sanciona essas contra-ordenações nada estabeleça relativamente à competência em razão da matéria para proceder à respectiva aplicação.
Ora, o diploma em causa é o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio, que por seu turno remete, no artigo 152º, nº 1, para o regime geral das contra-ordenações. Assim, tal diploma foi devidamente identificado no Despacho nº 7/94.
Não se verifica, portanto, qualquer inconstitucionalidade, por violação do artigo 115º, nºs 6 e 7, da Constituição.
11. Por último, também não procede o argumento da violação do artigo 202º, alínea c), da Constituição, quer se qualifique, também, como do Governo a competência para proferir despachos daquela natureza quer se qualifique como competência apenas do Ministro. Na verdade, no primeiro caso, não resulta da Constituição qualquer dever de invocação da referida norma; no segundo caso, o artigo 204º, nº 2, da Constituição, justificaria, por si, o exercício de tal competência.
12. Conclui-se, pois, que o presente recurso deve ser decidido no sentido de não julgar inconstitucional a norma contida na alínea b), do nº 1, do Despacho nº 7/94, do Ministro da Administração Interna.
III Decisão
13. Em face do exposto, decide-se:
a) desatender a questão prévia suscitada pelo Ministério Público;
b) negar provimento ao recurso, confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 18 de Junho de 1997 Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa