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Processo n.º 98/03
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 19 de
Setembro de 2002, “completado pelo acórdão de 9 de Janeiro de 2003”, que negou a
revista pedida do Acórdão da Relação de Coimbra, de 22 de Janeiro de 2002,
acórdão este que, por seu lado, negara a apelação interposta da sentença de 1ª
instância que, sob requerimento da credora Caixa Geral de Depósitos, declarara a
recorrente em estado de falência.
2 – Tal como foi fixado no acórdão que deferiu a reclamação da
recorrente contra a decisão sumária de não conhecimento do recurso proferida
pelo relator, no Tribunal Constitucional, este tem por objecto a norma contida
no art.º 8º, n.º 1 e 3 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da
Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de
Outubro, “segundo a qual o processo de falência pode ser instaurado quando
outros processos, nomeadamente, de execução [fiscal] foram instaurados [contra o
devedor declarado falido]”.
3 - Sempre que dispôs de uma oportunidade processual (articulado de
oposição ao pedido de declaração de falência; recurso de agravo do despacho
judicial que ordenou o prosseguimento do processo de falência a que alude o
art.º 25º do CPEREF; articulado de embargos à sentença de decretação da
falência; alegações de recurso para a Relação da sentença que julgou
improcedentes os embargos; requerimento de reacção à junção ao processo de
falência do processo de execução fiscal anteriormente instaurado para a cobrança
da dívida da Caixa Geral de Depósitos – CGD – cuja falta de pagamento foi
alegada como causa de pedir da falência; alegações apresentadas no recurso de
revista para o STJ do acórdão da Relação que negou provimento ao recurso de
apelação interposto da decisão de improcedência dos embargos; pedido de reforma
do acórdão do STJ que negou tal revista, pedido esse baseado na não aplicação
dessa legislação especial invocada – fls.268), a recorrente sustentou as teses
de que estavam em vigor, no momento da instauração de execução fiscal que diz
ter ocorrido em 31/3/93 (fls. 215), os artigos 6º do Decreto n.º 16 899, de 27
de Maio de 1929, e 3º do Decreto n.º 20 879, de 13 de Fevereiro de 1932, por o
seu regime ter sido mantido pelo Decreto-Lei n.º 48 953, de 5 de Abril de 1969
(art.º 75º), pelo Decreto-Lei n.º 693/70, de 31 de Dezembro (art. 18º e 25º) e
pelo Decreto n.º 694/70, de 31 de Dezembro (art.º 161º ), e ainda por o mesmo
ter sido ressalvado pelo art.º 9º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de
Agosto (diploma este que aprovou os actuais Estatutos da CGD), e de que da
regulação neles estabelecida resultava a impossibilidade de a CGD “abandonar a
acção executiva” (fiscal) e instaurar por sua iniciativa e com base no mesmo
crédito exequendo, acção de falência contra a executada”, pelo que não lhe era
aplicável o disposto (relativamente a essa matéria) no art.º 8º, n.ºs 1 e 3 do
CPEREF, e finalmente, de que essas normas “excluíam a aplicação a estas
execuções da norma de remessa e junção a eventual processo de falência contra a
mesma entidade”.
4 – Apreciando esta questão o acórdão recorrido discreteou do
seguinte jeito:
«O facto de estarem pendentes execuções promovidas pela embargada não impedia
que esta requeresse a falência.
A embargante está equivocada nesta parte.
O art. 870º do CPC apenas reconhece a qualquer credor a faculdade de obter a
suspensão de execução pendente desde que tenha sido requerido processo de
falência do executado.
Por seu lado, o art.4º do DL 132/93 alterou o art. 264º do C. de Processo
Tributário, mandando este sustar os processos de execução fiscal desde que seja
declarada a falência.
Nem vem ao caso o art. 80º da CR.
Como credora, a embargada tinha o direito de requerer a falência, o que terá
feito certamente por se convencer de que assim mais rapidamente poderia reaver
pelo menos parte do que emprestou à embargante.
Dos interesses da embargada é ela própria quem está em melhores condições para
fazer uma avaliação correcta.
Normalmente os bancos estão bem informados sobre a solvabilidade das empresas.
Se o 'estrangulamento e impasse que ainda se mantém' da embargante (expressão
por ela utilizada na oposição à declaração de falência, segundo a sentença de
fl. 136 e seg.) é devida, como afirma, ao facto de a embargada se ter recusado a
conceder mais crédito, não pode por aí censurar-se a CGD, que se terá convencido
da inutilidade de maior espera no cumprimento da empresa.
Esta reconheceu nessa oposição a sua impossibilidade para já de pagar o que deve
à CGD.
Na mesma sentença (fl. 140) se afirma não dispor a embargante de crédito
bancário.
Não vêm também ao caso os diplomas relativos à CGD.
Eles nada têm que ver com o direito de aquela requerer a falência.
Não pode assim pôr-se em dúvida o direito de a CGD requerer a falência».
5 – E tendo a mesma recorrente requerido a aclaração desta decisão,
o Supremo Tribunal de Justiça veio ainda a dizer no acórdão em que concluiu pelo
indeferimento de tal pedido:
«A recorrente continua a não entender que a legislação especial da CGD não
afasta as regras da falência.
Esses diplomas conferiram à CGD direitos que outros credores não têm, mas não
lhe retiraram por esse facto os direitos comuns de qualquer credor.
Nada mais há que dizer a este respeito .
A citação do art. 80º da CR tem um intuito demasiado transparente...
Desatende-se o requerido.
Custas do incidente pela recorrente».
6 - Alegando no Tribunal Constitucional sobre o objecto do recurso
de constitucionalidade, a recorrente sintetizou o seu discurso argumentativo nas
seguintes conclusões:
«1ª - O douto acórdão recorrido manteve as decisões das instâncias que haviam
decretado a falência da recorrente, com base em requerimento apresentado pela
Caixa Geral de Depósitos, nos termos do artigo 8º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do
CPEREF, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro, então em vigor,
com fundamento num crédito para cuja cobrança coerciva havia também instaurado,
e estava pendente, acção de execução fiscal.
2ª - A Caixa Geral de Depósitos, então qualificada como instituto de crédito do
Estado, gozava de determinadas prerrogativas e, de acordo com legislação
especial (designadamente o artigo 1º, parágrafo único, do Decreto n.º 16899, de
27 de Maio de 1929, substituído pelo artigo 61º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
48953, de 5 de Abril de 1969), podia recorrer à acção de execução fiscal para
cobrança coerciva dos seus créditos, sendo representada pelo Ministério Público
e pelo Chefe de Repartição de Finanças.
3ª- Essa legislação especial foi mantida em vigor pelos diplomas subsequentes,
relativamente às execuções fiscais já instauradas.
4ª - No uso dessa prerrogativa, a Caixa Geral de Depósitos instaurou em 31 de
Março de 1993, na Repartição de Finanças de --------, acção de execução fiscal
para cobrança daquele mesmo crédito, emergente de financiamento à construção
concedido, tendo sido penhorados nesse processo os imóveis a que se destinou o
financiamento, os quais aí foram avaliados em valor que, segundo despacho de 16
de Junho de 1999, exarado nos autos pelo próprio Chefe da Repartição de Finanças
era suficiente para a liquidação do crédito exequendo e legais acréscimos.
5ª - Encontrando-se devidamente acautelada a pretensão daquela entidade, podendo
obter nesse processo a satisfação do seu crédito através da venda do bem
penhorado, revela-se desnecessário, desproporcional e mesmo arbitrário, o pedido
para declaração de falência da executada que a mesma entidade apresentou em 8 de
Outubro de 1999.
6ª - Dispondo, segundo lei especial, de um meio eficaz e seguro para realizar o
seu interesse, e que causaria menor dano à ora recorrente, a Caixa Geral de
Depósitos recorreu a um meio mais lesivo e gravoso, conducente à eliminação de
uma outra entidade do mundo jurídico.
7ª - A falência constitui o meio mais lesivo ao alcance dos credores, que só
deve ser utilizado como última ratio e caso os meios coercivos menos lesivos se
revelem insuficientes, em nome do princípio da proporcionalidade, da
razoabilidade e da proibição de excesso, de modo a garantir a sobrevivência das
empresas e da economia em geral.
8ª - Ao contrário, a utilização desse meio em casos em que, por via de um
privilégio executivo específico, se mostra assegurado o interesse da credora,
representa uma acumulação de prerrogativas e um abuso da posição de supremacia
económica, neste caso de uma instituição de crédito do Estado, susceptível de
aniquilar o equilíbrio que deve presidir à economia e de atentar contra a
preservação da vida das empresas.
9ª - Permitindo que uma entidade financiadora pública possa provocar a extinção
da entidade financiada, mesmo não estando em perigo a satisfação do seu crédito,
num evidente abuso de uma posição hegemónica ofensiva da coexistência do sector
público e do sector privado.
10ª - A utilização desproporcional e desnecessária do requerimento de falência
ofende os princípios fundamentais da organização económico-social estabelecidos
no art. 80º da Constituição da República Portuguesa, designadamente nas alíneas
a) e b), que enformam a constituição económica democrática e que emanam do
princípio mais geral do Estado de Direito Democrático, estabelecido no artigo 2º
da Lei Fundamental.
11ª - A possibilidade conferida ao credor pelo artigo 8º, n.º 1, alínea a), e
n.º 3, do CPEREF, de requerer a falência de empresa que considere em situação de
inviabilidade económica em caso de incumprimento que indicie a impossibilidade
de satisfação das obrigações, numa interpretação que abranja hipóteses em que o
crédito se mostra devidamente garantido em execução fiscal a que a mesma credora
por força de lei especial podia recorrer, viola aquele preceito constitucional.
12ª - Ao considerar que a requerente Caixa Geral de Depósitos tinha, não
obstante verificar-se essa situação, o direito de requerer a falência da
recorrente, com fundamento no citado artigo 8º, n.º 3, conjugado com o n.º 1,
alínea a), do CPEREF, e ao decretar a falência com base nesse requerimento e
nesse crédito, o douto acórdão recorrido violou o citado artigo 80º da
Constituição.
***
Nestes termos, deverá ser julgada inconstitucional a norma do artigo 8º, n.º 3,
conjugado com o n.º 1, alínea a), do CPEREF, aprovado pelo Decreto-lei n.º
315/98, de 20 de Outubro, na dimensão normativa com que foi aplicada pelo douto
acórdão recorrido, por ofender o artigo 80º, alínea a) e b), da Constituição,
que contém os princípios da constituição económica democrática e que constituem
emanação do princípio mais geral do Estado de Direito Democrático, daí se
extraindo as devidas consequências».
7 – A recorrida Caixa Geral de Depósitos, S.A., contra-alegou,
defendendo o julgamento de não inconstitucionalidade, até porque as normas do
CPEREF foram já “sobejamente sindicadas” neste sentido pelo Tribunal e não se vê
qual seja “a relação lógico-jurídica” entre a natureza da CGD e a previsão das
normas que integram o art.º 80º da Constituição.
Tudo visto cumpre decidir.
B – Fundamentação
8 – O art.º 8º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro (transcreve-se a totalidade do preceito
para facilidade de apreensão do seu sentido), dispõe do seguinte modo:
«Artigo 8º
Iniciativa dos credores ou do Ministério Público
1 - Qualquer credor, seja qual for a natureza do seu crédito, pode requerer,
em relação à empresa que considere economicamente viável, a aplicação
da providência de recuperação adequada, desde que se verifique algum
dos seguintes factos reveladores da situação de insolvência do devedor:
a) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante
ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o
devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
b) Fuga do titular da empresa ou dos titulares do seu órgão de gestão,
relacionada com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de
substituto idóneo, ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a
sua principal actividade;
c) Dissipação ou extravio de bens, constituição fictícia de créditos ou
qualquer outro procedimento anómalo que revele o propósito de o devedor
se colocar em situação que o impossibilite de cumprir pontualmente as suas
obrigações.
2 – O Ministério Público pode requerer a adopção da providência de recuperação
adequada, em representação dos interesses que lhe estão legalmente confiados,
podendo requerê-la também quando a empresa tenha sido declarada em situação
económica difícil e haja interesse económico e social na manutenção da sua
actividade.
3 - Sempre que se verifique algum dos factos referidos nas alíneas a), b) e c)
do n.º 1, pode a falência da empresa ser requerida por qualquer credor, ainda
que preferente e seja qual for a natureza do seu crédito, quando a não
considere economicamente viável, e também pelo Ministério Público, nos
termos do disposto na primeira parte do número anterior.
4 – A falência pode ainda ser oficiosamente decretada pelo tribunal, nos casos
especialmente previstos na lei.
5 – O disposto na primeira parte do n.º 2 e na parte final do n.º 3 não
prejudica a possibilidade de representação das entidades públicas nos termos do
n.º 2 do art.º 22º».
Com interesse para a compreensão da questão de constitucionalidade –
e até porque foi com base em tais normas que o acórdão recorrido manteve a
decisão de declaração de falência da recorrente – importa notar o que dispõem os
n.ºs 1 e 2 do art.º 1º do CPEREF.
Rezam tais preceitos:
«1 - Toda a empresa em situação económica difícil ou em situação de falência
pode ser objecto de uma medida ou de uma ou mais providências de recuperação ou
ser declarada em regime de falência.
2 – Só deve ser decretada a falência da empresa insolvente quando ela se
mostre inviável ou se não considere possível, em face das circunstâncias, a sua
recuperação financeira”.
A recorrente defende que a norma constante daqueles n.º 1, alínea a)
e n.º 3 do art.º 8º do CPEREF afronta o disposto nas alíneas a) e b) do art.º
80º da Constituição da República Portuguesa que têm o seguinte teor:
«ARTIGO 80º
(Princípios fundamentais)
A organização económico-social assenta nos seguintes princípios:
a) Subordinação do poder económico ao poder político democrático;
b) Coexistência do sector público, do sector privado e do sector
cooperativo e social de propriedade dos meios de produção;
c) ....
d) ...
e) ...
f) ...
g) ....».
9 - Antes de se avançar, convém deixar precisado que não cabe nos poderes do
Tribunal Constitucional aferir da correcção do juízo subsuntivo que foi
efectuado pelo tribunal a quo, no sentido de considerar que o quadro factual
averiguado nos autos integrava os pressupostos normativamente definidos para que
pudesse ser decretada a falência da recorrente.
Nesta perspectiva, não pode o Tribunal pronunciar-se nem sobre a correspondência
à verdade dos factos estabelecidos nem sobre a relevância normativa que lhes foi
conferida.
Do mesmo passo - e independentemente de poder sustentar-se que o valor da
avaliação, atribuído pela autoridade exequente aquando da realização da penhora,
dificilmente será igual ou superior àquele que virá a obter-se efectivamente
através da sua venda, como pressupõe a recorrente, e que mal se entende que
algum credor utilize meios processuais que vão contra os interesses de rápida
cobrança dos créditos, como aconteceria se a CGD, podendo obter o integral
pagamento do seu crédito através de um processo, lançasse mão de outro processo
bem mais complexo como é o de falência -, não cabe nos seus poderes (que, no
caso, são de apreciação da alegada inconstitucionalidade normativa) saber se é
correcta a afirmação da recorrente de que o pagamento da dívida da Caixa Geral
de Depósitos se achava devidamente acautelada porquanto o Chefe de Repartição de
Finanças de --------- havia considerado suficiente para a liquidação do crédito
a penhora efectuada contra a ora recorrente de certos imóveis.
A este respeito, poderá pensar-se que a atitude da Caixa Geral de Depósitos de
requerer a falência da ora recorrente, depois de haver lançado mão do processo
de execução fiscal, possa ter ficado a dever-se, como hipotizou o acórdão
recorrido, ao facto de “[a credora] se convencer de que assim mais rapidamente
poderia reaver pelo menos parte do que emprestou à embargante”, sendo que “dos
interesses da embargada é ela própria quem está em melhores condições para fazer
uma avaliação correcta”, como também, ou até prevalentemente, a outras razões,
designadamente, a de uma eventual intenção de poder beneficiar, em caso de
verificação da por si pressuposta insuficiência do produto de liquidação de
todos os bens da falida para solver as suas dívidas, do regime de extinção dos
privilégios creditórios de que gozam certos créditos do Estado, das autarquias
locais e das instituições de segurança social, que está previsto no art.º 152º
do CPEREF apenas para a hipótese de declaração de falência.
Em causa está, pois, apenas a questão de saber se a norma contida no art.º 8º,
n.º 1, alínea a), e n.º 3 do Código Especial de Recuperação de Empresas e
Falências (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro,
“segundo a qual o processo de falência pode ser instaurado quando outros
processos, nomeadamente, de execução [fiscal] foram instaurados [contra o
devedor declarado falido]”, afronta o disposto nas alíneas a) e b) do art.º 80º
da Constituição.
Ora, não se vê, seguramente, em que possa a possibilidade de a ora recorrida CGD
poder lançar mão sucessivamente dos meios processuais da execução fiscal e do
processo de falência a fim de poder obter o pagamento, na medida do possível, do
montante do seu crédito violar os referidos preceitos das alíneas a) e b) do
art. 80º da Constituição.
Escrevendo sobre o seu sentido, dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, pp. 394):
«II. A subordinação do poder económico ao poder político democrático (al. a)
significa, essencialmente, fazer prevalecer o poder democraticamente legitimado
sobre o poder fáctico proporcionado pela riqueza ou pelas posições de domínio
económico. É esta a chave de toda a constituição económica, a começar por alguns
dos restantes princípios aqui definidos, que a este podem ser reconduzidos ou
nele encontram explicação (por exemplo, os das als. b, c e f). O poder económico
só é subordinável ao poder político democrático desde que este o possa
controlar, o que depende quer da dimensão que aquele assuma, quer das posições
que ocupe na organização económica. Para impedir preventivamente que o poder
económico se venha a tornar incontrolável a CRP, entre outras coisas, estabelece
a exigência de eliminação dos monopólios e dos latifúndios (arts. 81º/e e 97º),
incumbindo o Estado de assegurar uma equilibrada concorrência entre as empresas
(art. 81º/f), e veda o acesso do capital privado a sectores básicos da economia
(art. 87º/3).
III. A coexistência de diversos sectores de propriedade de meios de produção
(al. b), é também, em alguma medida, um princípio que vai ao encontro da mesma
preocupação de controlo do poder económico, através da sua diversificação.
Garantindo a existência de três sectores de propriedade e de organização
económica (v. especialmente, art. 82º), a Constituição procura gerar também uma
espécie de policentrismo económico ou de divisão de poderes a nível da
constituição económica, que, de algum modo, contribui para prevenir a emergência
de poderes económicos hegemónicos».
Entende a recorrente que essa violação decorreria do facto de a CGD poder lançar
mão de um processo de execução especial, como é o processo de execução fiscal, e
de, nele, poder ser representada pelo Ministério Público e pelo Chefe de
Repartição de Finanças.
Mas, independentemente de saber-se se o que a recorrente designa por
“representação” da exequente pelo chefe de repartição de finanças não
corresponde, na economia do processo de execução fiscal, a uma mera oficiosidade
de actuação do órgão administrativo-fiscal a quem compete a prática dos actos
executivos de natureza não jurisdicional (já que os que tenham esta natureza são
da competência dos tribunais tributários, como sempre se tem entendido no
respectivo contencioso), que encontra a sua razão de ser em razões de celeridade
e simplificação processuais, e se o Ministério Público tinha legitimidade para
representar a exequente CGD (o que é mais do que duvidoso e nem o acórdão
recorrido o considera), sempre essa possibilidade de “representação” não exime
a exequente do cuidado de, em vista dos ganhos de celeridade processual que
enforma este tipo de processo, dar conhecimento a tal órgão de todos os
elementos de facto úteis ao prosseguimento do processo de execução e de, para
tanto, se poder fazer representar por mandatário judicial no processo.
Note-se, no entanto, que os princípios da celeridade e da simplificação
processuais não constituem princípios específicos do processo de execução
fiscal, sendo antes princípios gerais de todas as formas de processo, cuja fonte
se localiza no próprio direito fundamental de acesso aos tribunais, consagrado
no art. 20º da CRP, e que a recente reforma da acção executiva levada a cabo
pela mão do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, se baseou, em grande medida,
na sua afirmação, tendo para tanto desjurisdicionalizado, paralelamente ao que
sucedia no processo de execução fiscal, o processo de execução comum no que
tange aos actos de natureza não jurisdicional. Assim, para obter esses ganhos, o
legislador não deixou cometer a prática desses actos não jurisdicionais ou aos
funcionários judiciais ou aos solicitadores de execução.
O que seguramente não se vê é que a possibilidade daquela intervenção, de cariz
estritamente processual, tenha o condão de colocar a CDG numa situação de
supremacia jurídica perante a recorrente, diferente daquela de que usufruiria,
como qualquer credor no processo de execução comum, relativamente à
possibilidade de realização do seu direito de crédito sobre a mesma recorrente.
E diz-se isto porque nem a exequente, atenta a dimensão económico-financeira da
sua empresa, teria quaisquer dificuldades adicionais relativamente aos demais
credores, de cuja existência pudessem beneficiar directamente os seus devedores
em geral e a recorrente em particular, em poder socorrer-se de mandatários
judiciais que requeressem as pertinentes diligências processuais, nem o seu
direito de crédito beneficia de qualquer modificação no que respeita ao regime
de garantia de cumprimento da respectiva obrigação (garantia geral ou garantias
especiais de que porventura goze) pelo facto de vir a ser cobrado coercivamente
em processo de execução fiscal (cf. neste sentido, Acórdãos do STA, proferidos
nos procs. n.ºs 20 174, 24 128, 22 019, 25 236 e 24 879, respectivamente, de
13/11/1996, 12/01/2000, 10/5/2000, 31/01/2001 e 16/1/2202, todos disponíveis,
alguns em texto completo, em www.dgsi.pt/jsta).
Dentro da mesma linha importa, ainda, acentuar que a impossibilidade
de a falência do executado poder ser decretada em processo de execução fiscal
tem apenas que ver, essencialmente, com as circunstâncias de o processo de
falência constituir uma execução universal a favor de todos os credores do
património do falido e de o legislador considerar que a sede mais adequada para
tal execução será a forma de processo civil de declaração de falência, em
virtude de, eventualmente, poderem suscitar-se e haverem que decidir-se, a
título principal, diversas questões de direito privado, relacionadas não só com
a existência dos créditos e as suas garantias mas também com a propriedade dos
bens ou direitos apreendidos para a massa falida e de, ainda, em regra, a
maioria dos créditos e dos seus titulares estar sujeita ao regime de direito
comum.
Note-se, no entanto, que no que tange à impossibilidade de o credor poder
requerer a declaração de falência do devedor nem sequer existe qualquer
diferença entre as duas formas de processo (fiscal ou comum).
É que, não obstante o credor comum haver instaurado processo de execução comum,
não fica ele, também, impedido de requerer a declaração de falência do devedor,
mediante pedido autónomo a ser efectuado em processo especial de recuperação de
empresa e de falência (cf. art.º 870º do CPC, na versão anterior e posterior à
reforma do CPC de 1995) ou seja, fora do processo de execução civil.
E a tudo isto acresce que, declarada que seja a falência, tanto o credor que
haja de demandar o devedor em processo de execução fiscal como aquele que tenha
de utilizar o processo comum ficam, exactamente, na mesma situação de apenas
poderem reclamar o pagamento dos seus créditos na execução universal.
A opção do legislador de atribuir aos tribunais fiscais, desde o art.º 1º do
Decreto n.º 16 899, de 27 de Maio de 1929, e sempre mantida nas subsequentes
alterações que o Estatuto da mesma Caixa sofreu até à entrada em vigor (mas com
ressalva das execuções pendentes) do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, a
competência para conhecer da execução coerciva de dívidas da Caixa Geral de
Depósitos e de a sujeitar ao processo de execução fiscal, deveu-se ao seu
entendimento de que a cobrança dos créditos que visavam prosseguir ou satisfazer
finalidades de interesse público devia ser cometida a tais tribunais e ser
efectuada mediante tal processo, em virtude de este estar estruturado,
comparativamente ao homónimo de processo civil, em termos de exigir uma menor
intervenção das partes durante o seu desenvolvimento (cf. Jorge Lopes de Sousa,
Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado, 3ª edição, revista e
aumentada, 2002, pp. 755).
Na verdade, a Caixa Geral de Depósitos, até ao referido Decreto-Lei n.º 287/93 –
diploma este que procedeu à sua conversão em sociedade anónima de capitais
exclusivamente públicos e à cisão dos serviços de seguida mencionados - foi um
instituto público a quem a lei atribuía deveres de ordem pública, como, entre
outros, os de administrar a Caixa Geral de Aposentações e o Montepio dos
Servidores do Estado (art. 4º do Decreto-Lei n.º 48 953, de 5-4-69), “colaborar
na realização da política de crédito do Governo e, designadamente, no incentivo
e mobilização da poupança para o financiamento do desenvolvimento económico e
social, na acção reguladora dos mercados monetário e financeiro e na
distribuição selectiva do crédito” (art. 3º do mesmo diploma), e “cooperar na
resolução do problema habitacional, mediante o crédito para construção ou
aquisição de residência própria, o financiamento à construção civil para
edificação de habitações destinadas à venda ou arrendamento em condições
acessíveis, e a aplicação de fundos da Caixa Nacional de Previdência na
construção ou aquisição de casas para funcionários do Estado e dos corpos
administrativos” (art. 7º, n.º 16, do mesmo diploma) (cf., Jorge Lopes de Sousa,
op. cit. pp. 755).
Tendo o legislador cometido à CGD a satisfação destas necessidades públicas, não
se mostra, de modo algum, abusivo, arbitrário ou manifestamente
desproporcionado, que, simultânea e diferentemente do que se passa relativamente
às outras entidades bancárias, a tenha aliviado de certos encargos processuais
com a cobrança dos créditos com que, pelo menos em parte, satisfazia essas
necessidades públicas.
De resto, a atribuição dessas prerrogativas processuais não deixa de constituir,
precisamente, uma expressão de afirmação da subordinação constitucional do poder
económico ao poder político, na medida em que elas representam uma contrapartida
pelo prosseguimento por parte da CGD dos interesses públicos que são
predeterminadamente definidos pelo legislador, em concretização de valores que a
Constituição de 1976 não deixou de igualmente assumir como direitos sociais ou
como injunções constitucionais (cf., artºs 65º e 101º, da CRP, na versão
actual).
Por outro lado, não se descortina, na atribuição legislativa à CGD da
possibilidade de poder requerer a execução coactiva dos seus créditos em
processo de execução fiscal, qualquer posição de agravamento substantivo da
situação do devedor, dado que este – no caso, a recorrente – continua apenas a
estar obrigado a cumprir a obrigação nos mesmos termos em que o estaria se a
execução houvesse de obedecer, como hoje acontece, ao regime do processo comum
de execução.
Mesmo a admitir-se sem discussão a possibilidade de as entidades bancárias
“poderem contribuir para a destruição de pequenas empresas que careçam de
recorrer aos seus serviços” (para utilizar as palavras da recorrente), ela em
nada se altera só porque a CGD tem a possibilidade de lançar mão do processo de
execução fiscal e outras empresas têm de socorrer-se do processo comum.
O que poderia sair afectado, a não haverem razões para atribuir um meio
processual tido por menos oneroso para o credor, seriam os princípios
constitucionais da igualdade e da concorrência salutar entre as entidades
bancárias [art. 13º e 99º, alínea a), da CRP].
Todavia, um tal resultado hipotético será completamente estranho à situação
jurídico-material dos devedores, como a da recorrente (lembre-se, a propósito,
que o Tribunal Constitucional sempre se pronunciou pela negativa quanto àquela
questão – cf., a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 371/94, 508/94, 509/94 e
579/94, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
A posição de o legislador subtrair à CGD a possibilidade de requerer a
declaração de falência do devedor, no caso de se verificarem os pressupostos
estabelecidos na lei respectiva, só pelo facto de ter direito de utilizar um
processo de execução tendencialmente menos oneroso do que o processo de execução
comum, seria, ao contrário do que sustenta a recorrente, querer colocá-la em uma
posição mais gravosa do que a conferida aos outros credores, não obstante estes
não estarem obrigados a prosseguir políticas públicas de satisfação de
interesses colectivos, na medida em que se lhe retirava a possibilidade de poder
usufruir do regime de extinção dos privilégios creditórios, de que acima se
falou, e de, eventualmente, poder vir a ser paga do seu crédito com precedência
aos credores munidos apenas desses privilégios.
Finalmente, não decorre dos parâmetros constitucionais invocados pela recorrente
que o legislador ordinário haja de tolerar a existência de empresas que não
cumprem as obrigações de pagamento das suas dívidas para com as outras empresas
do tecido económico, pondo em risco a subsistência destas e, reflexamente, a de
muitos outros interesses, alguns de natureza pública.
A posição defendida pela recorrente conduziria ao absurdo de, não obstante se
considerar compatível com os parâmetros constitucionais, de acordo com a
referida jurisprudência constitucional, a atitude legislativa de atribuir à CGD
o direito de executar os seus créditos através do processo de execução fiscal
para lhe propiciar a mais fácil arrecadação dos seus créditos e assim poder
prosseguir os ditos fins públicos, se vir depois, por força da mesma Lei
fundamental, ao fim e ao cabo, a colocá-la em uma posição mais gravosa do que a
dos demais credores obrigados a utilizarem o processo de execução comum para a
cobrança dos seus créditos, ao vedar-lhe a possibilidade de não poder requerer a
falência e aproveitar-se daquele regime de extinção dos privilégios creditórios.
Por último, a solução defendida pela recorrente conduziria, igualmente, à
situação paradoxal de ser conforme com os alegados parâmetros constitucionais a
solução de a CGD ter, obrigatoriamente, de reclamar o seu crédito em processo de
falência quando este fosse instaurado por outro credor, porventura titular de
créditos incumpridos muitíssimo inferiores aos seus, com a possibilidade, então,
do consequente aproveitamento do referido regime de extinção dos privilégios
creditórios, mas já ser desconforme com os mesmos parâmetros constitucionais a
regra de poder ela mesma requerer a declaração de falência do devedor quando
entenda que essa declaração é a melhor solução para a defesa dos seus
interesses, mesmo de natureza pública.
Temos de concluir, portanto, que a norma impugnada não afronta a Constituição.
C – Decisão
10 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 8º, n.º
1, alínea a), e n.º 3 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da
Empresas e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de
Outubro, no sentido segundo o qual o processo de falência pode ser instaurado
quando a CGD tenha instaurado anteriormente processo de execução fiscal contra o
devedor para cobrança do mesmo crédito;
b) Negar provimento ao recurso;
c) Condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 UCS.
Lisboa, 13 de Julho de 2005
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos