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Processo n.º 80/2004
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. O Procurador-Geral da República veio, nos termos da alínea
e) do nº 2 do artigo 281.º da Constituição e da alínea c) do nº 1 do artº 12.º
do Estatuto do Ministério Público aprovado pela Lei nº 60/98, de 27 de Agosto,
requerer que este Tribunal apreciasse e declarasse a inconstitucionalidade, com
força obrigatória geral, por violação do preceituado nos artigos 13.º e 14.º da
Lei Fundamental, da norma constante da alínea e) do nº 1 de III do Regulamento
de Atribuição do Apoio Social a Idosos Carenciados das Comunidades Portuguesas
aprovado pelo Despacho Conjunto nº 17/2000 dos Ministros dos Negócios
Estrangeiros e do Trabalho e da Solidariedade, publicado na II Série do Diário
da República de 7 de Janeiro de 2000, na redacção que lhe foi conferida pelo
Decreto Regulamentar nº 33/2002, de 23 de Abril.
Invocou, para tanto, em síntese:-
- que aquele Regulamento veio a instituir a concessão de um
subsídio, com a natureza de subsídio de apoio social, a portugueses idosos
residentes no estrangeiro que se encontrem em situação de carência absoluta não
superável pelos mecanismos existentes nos países de residência;
- que, através do Decreto Regulamentar nº 33/2002, foi, por
entre outras alterações, introduzida ao nº 1 do item III do indicado Regulamento
uma alínea e), de acordo com a qual a atribuição da concessão do benefício é
condicionada à circunstância de os beneficiandos, que reúnam as demais condições
ali previstas, não serem nacionais do país de residência;
- que tal condição não parece harmonizar-se com o princípio da
igualdade, olvidando, quer a norma do artigo 13.º, quer a do artigo 14.º, ambos
da Constituição, pois que, ao excluir da medida de apoio social em causa os
binacionais, traduz uma “diferenciação arbitrária, desproporcionada e
intolerável relativamente aos portugueses carenciados que residem no
estrangeiro”, sendo que aqueles preceitos constitucionais “apontam para a
inviabilidade de qualquer norma de direito infraconstitucional poder operar ...
discriminação entre cidadãos portugueses que residem no estrangeiro - devendo,
aliás, nas situações de plurinacionalidade, prevalecer sempre a cidadania
portuguesa”.
O Primeiro-Ministro, ouvido nos termos e para os efeitos do
disposto nos artigos 54.º e 55.º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
ofereceu o merecimento dos autos.
Elaborado memorando pelo Presidente do Tribunal, veio a ser
fixada a orientação deste órgão de administração de justiça.
Cumpre, pois, efectuar a elaboração de acórdão.
2. Não olvidando que a norma de cuja apreciação ora se cura -
e só sobre ela incide o pedido - corresponde a uma alteração introduzida no
aludido Despacho Conjunto nº 17/2000 pelo também já citado Decreto Regulamentar
nº 33/2002, torna-se evidente, atento o que se consagra no nº 5 do artº 51.º da
Lei nº 28/82, que este Tribunal tão só pode analisar essa mesma norma e a forma
que revestiu o acto normativo que a produziu.
Não se entrará, justamente por isso, na apreciação decisória
de eventuais vícios - designadamente formais e orgânicos - de que porventura
padecerá o Regulamento aprovado por aquele Despacho, pois que isso significaria
um desbordar dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional.
3. Por intermédio do Decreto Regulamentar nº 33/2002 foi
aprovado o Regulamento de Atribuição do Apoio Social a Emigrantes Carenciados
das Comunidades Portuguesas (ASEC-CP) que, como deflui do exórdio daquele
diploma, teve por objectivo a criação de um instrumento de apoio aos cidadãos
portugueses residentes no estrangeiro e que se encontrem em situação de
necessidade extrema e de manifesta excepcionalidade, complementando uma outra
medida, já tomada em relação aos idosos carenciados das comunidades portuguesas,
medida essa precisamente instituída pelo Regulamento de Atribuição do Apoio
Social a Idosos Carenciados das Comunidades Portuguesas (ASIC-CP) aprovado pelo
Despacho Conjunto nº 17/2000.
Aproveitou-se, porém, a oportunidade para, neste último
Regulamento (ASIC-CP), introduzir algumas alterações pontuais, de entre elas
“relevando principalmente o campo pessoal de aplicação” (palavras do preâmbulo).
Foi assim que, referentemente às condições de atribuição da
medida de apoio aos idosos carenciados das comunidades portuguesas residentes no
estrangeiro (que eram definidas no nº 1 do item III do ASIC-CP como sendo:
terem os candidatos idade igual ou superior a 65 anos; encontrarem-se no país de
acolhimento em situação de residência legal e efectiva; encontrarem-se em
situação de carência - definida no nº 2, que também sofreu alteração de
redacção -, e não haver familiares obrigados à prestação de alimentos ou,
havendo-os, não se encontrarem estes em situação de os prestar), uma outra foi
aditada pelo nº 2 do artº 1.º do Decreto Regulamentar nº 33/2002, e que
consistiu na determinação de os idosos carenciados não serem nacionais do país
de acolhimento.
É esta alteração que é questionada pela entidade requerente.
4. Intentou-se por via do Despacho Conjunto nº 17/2000 -
ponderando a realidade de existirem portugueses idosos que, nas diversas
comunidades portuguesas no estrangeiro, viviam em situação de carência económica
e social, não se encontravam abrangidos por sistemas de segurança social e, por
nos países de acolhimento e nessas comunidades, terem criado raízes, não
desejarem ser repatriados - proporcionar a tais cidadãos condições dignas de
subsistência, criando-se, para o efeito, uma medida que foi caracterizada como
um subsídio de apoio social, personalizado, intransmissível, periódico e
insusceptível de conferir um direito subjectivo (cfr. nº 1 do item II do
Regulamento aprovado por meio daquele Despacho).
Perante tal caracterização, aceitar-se-á, sem que grandes
dúvidas se levantem a esse respeito, que a medida criada pelo ASIC-CP se
enquadra no conjunto de medidas de apoio social desenvolvidas pelo Estado, no
âmbito do sistema de segurança social e, dentro deste, no âmbito do subsistema
de acção social [cfr. a estrutura do sistema de segurança social, os objectivos
de tal sistema e as características típicas de uma das modalidades das
prestações de acção social, tais como resultam do nº 1 do artº 5.º, do artº 82.º
e da alínea a) do artº 84.º, todos da Lei nº 32/2002, de 20 de Dezembro; cfr.,
ainda, Carlos Dinis da Fonseca, Assistência Social, no Dicionário Jurídico da
Administração Pública, I Volume, 1965, 557 e 558, e Ilídio das Neves, Dicionário
Técnico e Jurídico de Protecção Social, 2001, 36].
A isso ainda acresce que o apoio a que se reporta o ASIC-CP
ficava sujeito a dotação anual, sendo financiado por transferências do Orçamento
do Estado a inscrever anualmente no orçamento da segurança social na dotação da
acção social (cfr. item XI do Regulamento), vindo, com a Lei nº 109-B/2001, de
27 de Dezembro (lei de aprovação do Orçamento de Estado para 2002) - cfr. artº
28.º - a ser constituído um Fundo de Solidariedade para Emigrantes, destinado a
suportar financeiramente a prestação de apoio social a cidadãos portugueses
residentes no estrangeiro em situações de grave carência. Assim, esta forma de
financiamento estadual sem base contributiva a que o ASIC-CP ficou sujeito,
identicamente reforça uma outra sorte de caracterização da medida como algo
típico das prestações de acção ou assistência social (cfr., neste particular,
António da Silva Leal, Temas de Segurança Social, União das Mutualidades
Portuguesas, 1998, 122), anotando-se que, independentemente das diferenças (ao
nível da diversidade de âmbito e intensidade da tutela concedida e do modo de
funcionamento) que separam o regime contributivo do regime não contributivo, são
comuns os objectivos sociais que lhes estão subjacentes.
De concluir é, pois, que o subsídio de atribuição instituído
pelo ASIC-CP deve ser perspectivado como uma medida de acção social inserida no
domínio do sistema de segurança social e, como tal, devendo pautar-se pelas
regras e princípios desse sistema.
5. Atribui o Diploma Básico ao sistema de segurança social e à
terceira idade um elevado relevo, podendo, exemplificativamente, citar-se a
consagração constitucional do direito a esse sistema, do direito dos idosos à
segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário
que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a
marginalização social (sendo esses direitos integrados no Capítulo II - direitos
e deveres sociais - do Título III), das incumbências que comete ao Estado nesse
domínio (artigos 63.º e 72.º), da determinação de inclusão do orçamento da
segurança social no Orçamento do Estado [alínea b) do nº 1 do artigo 105.º] e do
cometimento à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República da definição das bases do sistema de segurança social [alínea f) do nº
1 do artigo 165.º].
Releva, especialmente, este último cometimento, pois que do
mesmo se extrai que é o Parlamento o órgão legislativo que haverá de definir, no
que toca às prestações da segurança social e através da respectiva lei de bases,
a composição, o âmbito da protecção e as características das prestações sociais,
sendo certo que é sobre o Governo, enquanto órgão de condução da política geral
do País e órgão superior da Administração Pública, que impende a
responsabilidade pela implementação da política concreta de segurança social.
No caso em apreço, confrontamo-nos com a realidade segundo a
qual a alteração introduzida no ASIC-CP e que agora se encontra sub iudicio foi
prescrita por intermédio de um decreto regulamentar, o que é dizer que o foi por
uma norma de cariz administrativo.
E, sem que, como já acima se disse, se possa entrar na
apreciação da forma como foi editado o Regulamento cuja alteração está agora em
causa, mister é dar resposta à questão de saber se a via regulamentar é, do
ponto de vista da conformidade com a Constituição, adequada e suficiente para o
estabelecimento normativo de um requisito condicionador do desfrute do apoio
social que esse Regulamento instituiu, ou, se se quiser, saber se o Governo, no
exercício da sua função administrativa, poderia alterar o específico programa de
acção social que foi introduzido pelo dito Regulamento.
6. Comanda o nº 7 do artigo 112.º da Lei Fundamental (nº 8 do
artigo 112.º da versão da Constituição decorrente da Revisão Constitucional
operada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro) que os regulamentos
devem indicar expressamente as leis que visem regulamentar ou que eles sejam
precedidos de lei prévia que defina a competência subjectiva e objectiva para a
sua emissão. Trata-se, pois, do denominado princípio da primariedade ou da
precedência de lei.
A obrigatoriedade de a actividade regulamentar ser precedida
de lei habilitante tem sido acolhida pela jurisprudência deste Tribunal (cfr.,
verbi gratia, os Acórdãos números 184/89 in Diário da República, I Série, de 9
de Março de 1989, 61/91, idem, I Série-A, de 1 de Abril de 1991, e 217/95, idem,
II Série, de 26 de Junho de 1995).
Teve, aliás, este órgão de administração de justiça ocasião
de, no segundo dos mencionados arestos, quanto ao particular em causa e citando
o Acórdão nº 184/89, discretear assim:-
“(...)
Por força do princípio da precedência da lei (primariedade da
lei ou reserva vertical da lei) consagrados nos n.ºs 6 e 7 do artigo 115.º”
[correspondente ao actual artigo 112.º] “da nossa Constituição -, não existe
exercício de poder regulamentar sem fundamento numa lei anterior, já que ao
Governo, no exercício de funções administrativas, apenas compete fazer os
regulamentos necessários à boa execução das leis [artigo 202.º” [correspondente
ao actual artigo 199.º]“,alínea c], cabendo-lhe, no exercício de funções
legislativas, fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da
República. Isto é, e consoante se escreveu no mencionado aresto, são
constitucionalmente ilegítimos os regulamentos quando «contêm disciplina
inicial, que só pode constar de diploma legislativo».
(...)”
Embora não desconhecendo a posição de alguns autores que
admitem a possibilidade de existência de regulamentos sem prévia habilitação
legal (cfr. Afonso Queiró, Teoria dos Regulamentos - 1ª Parte, na Revista de
Direito e Estudos Sociais, números 1 a 4, Janeiro-Dezembro, 1980, 13, Vieira de
Andrade, Autonomia Regulamentar e Reserva de Lei, separata do Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Estudos em Homenagem ao Prof.
Dr. Afonso Rodrigues Queiró, 1987, 14, Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia
Contratual nos Contratos Administrativos, 1987, 210 e 211, e Paulo Otero, O
poder de substituição em direito administrativo, volume II, Lex, 1995, 668), não
vê o Tribunal razão para abandonar a sua postura, ilustrada no trecho que se
transcreveu de que, aliás, grande parte da doutrina comunga (cfr. Esteves de
Oliveira, Direito Administrativo, volume I, 1980, 115 e 116, Coutinho de Abreu,
Sobre os regulamentos administrativos e o princípio da legalidade, 1987, 44,
Manuel Afonso Vaz, Lei e reserva da lei - A causa da lei na Constituição
Portuguesa de 1976, 1992, 497, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 514, Jorge Miranda, Manual de Direito
Constitucional, Tomo V, 3ª edição, 220, e Sobre a reserva constitucional da
função legislativa, em Perspectivas Constitucionais - Nos 20 anos da
Constituição de 1976, volume II, 1997, 895, e Luís Pereira Coutinho,
Regulamentos independentes do Governo, cit. Perspectivas..., volume III, 1026).
Se é certo que o grau de vinculação do regulamento à lei varia
consoante a matéria tratada - sendo mais intenso quando a Constituição impõe que
determinada matéria seja regulada por lei - menos não é que, perante o que se
dispõe no nº 7 do seu artigo 112.º, mesmo no limite mínimo, é a essa lei que
caberá sempre fixar a competência objectiva e subjectiva para a emissão da
normação regulamentar.
7. Perante esta parametrização, começará por se analisar, num
primeiro passo, se a matéria regulada no Decreto Regulamentar nº 33/2002, na
parte a que se reporta o pedido (e que, como é claro, tem a ver com a definição
das condições do âmbito subjectivo de atribuição do benefício), poderá,
efectivamente, ser objecto de tratamento pela via regulamentar.
Não se vá sem dizer que alguns autores, dos já indicados, que
sustentam que o poder regulamentar se pode fundar directamente na Constituição,
não deixam de chamar a atenção para que, no domínio da estatuição dos critérios
de atribuição e de garantias de prestações sociais a cargo do Estado, ao menos
quando não estão em causa prestações de carácter «excepcionalíssimo», se deve
reclamar a intervenção do legislador (cfr. Sérvulo Correia, ob. cit., 291, 292 e
306).
Ora, mesmo que se adoptasse uma perspectiva tal como a
defendida pelos aludidos autores, o que é certo é que o apoio social aos idosos
carenciados das comunidades portuguesas que veio a ser instituído pelo ASIC-CP
não pode ser considerado como a adopção de uma medida de carácter excepcional.
Basta, aliás, ponderar nos considerandos que precederam a emissão do Despacho
Conjunto nº 17/2000 para se concluir que se não visou obstar a uma situação
pontual e temporariamente marcada, mas antes se intentou minorar os
inconvenientes sociais de uma realidade que perdura no tempo.
Sublinhe-se que tem sido entendimento de parte da doutrina o
de que a disciplina primária da matéria das prestações sociais a cargo do Estado
está reservada ao poder legislativo, havendo, mesmo, quem defenda que essa
matéria se deveria inserir na reserva de competência legislativa da Assembleia
da República, como é o caso de Rogério Soares (Princípio da legalidade e
administração constitutiva, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, vol. LVII, 181 a 184), dado que a administração de prestações, pela sua
relevância nos valores que sensibilizam a comunidade, aconselharia a intervenção
do órgão parlamentar na fixação dos “modos por que o Administrador há-de vir a
tocar os interesses das pessoas e dos grupos em pontos essenciais da conformação
da sociedade”.
7.1. Entende o Tribunal que, por via de regra, a disciplina
primária da matéria das indicadas prestações sociais (o mesmo é dizer, a
regulação dos seus principais aspectos) está reservada ao poder legislativo, a
fim de, de um lado, se estabelecerem procedimentos de controlo sólidos que
assegurem a não discriminação na sua concessão e, de outro, para que seja
devidamente ponderada a gestão do dinheiro público, quer na óptica das vantagens
para os beneficiários, quer dos concomitantes encargos para os demais cidadãos
(já que o financiamento provém do orçamento de Estado).
Na verdade, a relevância do direito à segurança social a que,
como se viu já, a Constituição atribui específico tratamento, não pode deixar de
ser visualizada como tendo uma directa ligação à dignidade da pessoa humana
(como, por mais de uma vez, tem sido anotado pela jurisprudência deste Tribunal
- cfr., por exemplo, o Acórdão nº 509/92, publicado no Diário da República, I
Série-A, de 12 de Fevereiro de 2003) e, quando ela se traduz na atribuição de
prestações sociais a cargo do Estado, a postura deste não pode deixar de ser
iluminada pelo princípio da igualdade na escolha dos beneficiários, postura essa
que, se traduzida em normação de cariz legislativo, é mais intensamente
controlável do ponto de vista político (cfr., no sentido da proximidade dos
direitos sociais de prestações com o princípio da igualdade e da necessidade de
controlo sólido da actuação da Administração para que, na matéria, se não
verifiquem discriminações, António da Silva Leal, ob. cit., 40 e 150, Jorge
Novais, Os Princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa,
2004, 303, Freitas do Amaral, Legalidade (princípio da), Polis, vol. 3º, 1985,
991, e Martínez López-Muñiz, Subvenciones e igualdad, Civitas - Revista Española
de Derecho Administrativo, Janeiro-Março 1990, 119, 124 e 128).
Aliás, será justamente por isso que se surpreendem disposições
tais como as constantes dos artigos 6.º e 83.º da já referida Lei nº 32/2002.
No que diz respeito à definição do âmbito subjectivo dos
instrumentos de acção social, Gomes Canotilho e Vital Moreira (cit. Constituição
..., 340) defendem que isso constitui uma opção política primária, pois que o
que está em causa é decidir quem beneficia e quem fica excluído do apoio social
do Estado.
Na verdade, dizem aqueles autores na anotação VII ao artº 63º
da Lei Fundamental:-
“As situações de carência ou de «insegurança» cobertas pelo
sistema público de segurança social não obedecem a um numerus clausus
constitucional, pois o nº 4, depois de enunciar algumas delas - que não podem
deixar de ser abrangidas - acrescenta uma cláusula genérica que admite outras.
Trata-se, em geral, de todas as situações de carência dos meios de subsistência
ou de perda ou diminuição de capacidade para o trabalho. A ampliação do sistema
de segurança social, de modo a cobrir novas categorias, além das explicitamente
mencionadas, é matéria de conformação política.”
Na mesma senda doutrina Nuno Piçarra in A reserva de
administração, separata de O Direito, Ano 122º, números 2 a 4, 1990, 42.
É esta, também, a postura deste Tribunal que já reconheceu
(cfr. Acórdão nº 184/89) que a definição dos requisitos de acesso e as condições
de atribuição de apoios estaduais constitui tarefa que reclama, pela sua
importância, a intervenção do legislador.
7.2. Concluindo-se, assim, que a disciplina primária das
prestações sociais do Estado (e nestas incluindo a definição do âmbito
subjectivo dos beneficiários) não pode escapar ao poder legislativo, importa
saber qual o alcance de uma tal reserva quando nos encontramos especificamente
no domínio da administração de prestações.
Aquela disciplina primária abrangerá, seguramente, como
decorre do que veio de se expor, os aspectos estruturantes do sistema, como
sejam o seu regime geral, modalidades de acção social, âmbito pessoal de cada
uma delas, eventualidades admitidas, prestações nestas incluídas, condições de
atribuição e de duração e forma de determinação do valor dos benefícios, como
refere Ilídio das Neves, ob. cit., 375 (identicamente Coutinho de Abreu, ob.
cit., 155, 163 e 163, sustenta que é à lei que cabe atribuir poderes à
Administração “para que esta possa actuar, bem como definir os critérios a
seguir pela Administração na atribuição de prestações - critérios de
«mediabilidade», critérios objectivos quanto aos sectores [ou pessoas]
abrangidos, fins, condições, montantes, formas de concessão”).
Daqui resulta que a definição das condições para atribuição de
um benefício tal como o consagrado pelo ASIC-CP é algo que tão só pode ser
levado a efeito por intermédio de acto legislativo.
8. O Decreto Regulamentar em que se insere a norma questionada
diz no respectivo preâmbulo:-
Constitui uma prioridade do Governo a implementação de medidas
de apoio social às comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, representando
o ASIC-CP (apoio social a idosos carenciados das comunidades portuguesas), em
2000, a primeira das iniciativas com esse propósito, até à data com resultados
de assinalável eficácia na sua aplicação.
Atendendo à necessidade de aprofundar a política de
solidariedade com os portugueses emigrantes carenciados, particularmente os que
em circunstâncias de necessidade extrema e de manifesta excepcionalidade podem
vir a encontrar-se, situações contudo não enquadráveis ao nível da protecção
social conferida pelo ASIC-CP, entende o Governo criar uma medida de apoio
social de incidência complementar.
A Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, que aprova o
Orçamento do Estado para 2002, previu no seu artigo 28.º a criação de uma medida
desta natureza ao referi-la como um fundo de solidariedade social para as
comunidades portuguesas para estes efeitos, que recebe a designação de ASEC-CP
(apoio social a emigrantes carenciados das comunidades portuguesas).
Destina-se fundamentalmente o ASEC-CP a prestar um apoio de
natureza social aos nossos emigrantes que pelos mecanismos dos países
estrangeiros de residência mas também de protecção consular não lhes esteja
assegurado, quando aqueles se encontrem em situações imprevistas de evidente
fragilidade e carência em virtude de acontecimentos extraordinários, de que
catástrofes naturais ou crimes contra a integridade física são apenas exemplos.
Por outro lado, entende igualmente o Governo ser oportuna a
revisão do despacho conjunto n.º 17/2000, de 7 de Janeiro, que regulamentou o
ASIC-CP em aspectos pontuais, destes relevando principalmente o campo pessoal de
aplicação, a actualização do valor de referência e a fixação de um montante
mínimo, que passará a ser de € 30.
A necessidade de permitir que, em situações de carência, os
destinatários destes apoios sociais deles beneficiem o mais rapidamente possível
justifica a aprovação imediata deste normativo.
Por outro lado, é o seguinte o teor global do artº 28.º da Lei
nº 109-B/2001, citado naquele preâmbulo:-
Artigo 28.º
Fundo de Solidariedade com a Emigração
1- É criado o Fundo de Solidariedade para a Emigração.
destinado a suportar financeiramente a prestação de apoio social a cidadãos
portugueses residentes no estrangeiro em situação de grave carência, em moldes a
regulamentar em diploma próprio, ficando o Governo autorizado a transferir do
Orçamento da Segurança Social para o orçamento daquele Fundo, a título de
despesa com Acção Social, um montante máximo de € 498 798.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, poderá ainda
ser transferida para o Fundo de Solidariedade para Emigrantes uma dotação
adicional, correspondente a uma parte dos eventuais saldos gerados no Rendimento
Mínimo Garantido, nos termos a definir por despacho conjunto dos Ministros das
Finanças e do Trabalho e da Solidariedade.
Do texto constante do transcrito artº 28.º ressalta que as
determinações nele ínsitas se reportam tão somente a um programa, a implementar,
destinado a suportar financeiramente cidadãos portugueses residentes no
estrangeiro em situação de grave carência, não se reportando, assim,
especificamente, a qualquer outro que contemplasse o apoio social a idosos
carenciados residentes no estrangeiro, designadamente àquele que já tinha
existência - o AISC-CP.
Ora, o programa a que imediatamente acima se fez a primeira
referência, veio a ser implementado pelo Decreto Regulamentar nº 33/2002 e, como
se extrai do seu «relatório preambular», aproveitou o Governo a oportunidade do
exercício normativo dele decorrente para introduzir, num outro programa que já
se surpreendia no ordenamento, o ASIC-CP - e de que o então implementado
constituía uma «incidência complementar» -, alterações em «aspectos pontuais».
Daí que se extraia que, não tendo o ASIC-CP alguma relação com
o artº 28.º da Lei nº 109-B/2001, a regulação do instrumento de acção social que
o mesmo comporta - regulação essa que foi criada por um despacho conjunto da
autoria dos Ministros dos Negócios Estrangeiros e do Trabalho e da Solidariedade
- carece de qualquer enquadramento legal.
E, por outro lado, sendo, como se viu, silente o indicado artº
28.º quanto àquele instrumento, extrair-se-á, igualmente, no que ora interessa,
que a normação determinante do aditamento de mais uma condição definidora do
âmbito subjectivo da medida, aditamento esse levado a efeito pela introdução da
alínea e) no nº 1 do item III do Regulamento de Atribuição do Apoio Social a
Idosos Carenciados das Comunidades Portuguesas aprovado pelo Despacho Conjunto
nº 17/2000, também foi realizada por via não legislativa ou a coberto de
qualquer enquadramento legal.
Isso significa que a instituição do ASIC-CP e, para o que ora
importa, a alteração normativa em apreço, porque constitutiva de um critério
autónomo de decisão no respeitante à atribuição do benefício, «tocando»
directamente na concretização de um específico direito integrado no direito à
segurança social em sentido amplo, assume, inquestionavelmente, uma
característica de opção política primária na matéria, que não revestiu a forma
de acto legislativo e que não teve, a precedê-la, qualquer comando de lei
material.
Na realidade, independentemente da caracterização do artº 28.º
da Lei nº 109-B/2001, quer tão só como representando uma mera norma de
consignação financeira, quer representando ainda norma habilitante de produção
regulamentar de desenvolvimento de uma medida concreta de acção social que
gizou, o que é certo é que, mesmo nesta última perspectiva, tal preceito não se
reporta, de todo, a um programa de apoio social a idosos carenciados das
comunidades portuguesas, sendo certo, além disso, que o Governo, ao editar o
Decreto Regulamentar nº 33/2002 - e, por isso, actuando no exercício do seu
poder regulamentar -, no particular das alterações que veio a introduzir no
Regulamento de Atribuição do Apoio Social a Idosos Carenciados das Comunidades
Portuguesas aprovado pelo Despacho Conjunto nº 17/2000, não invocou aquela
disposição legal como o normativo permissor dessas alterações.
9. Tem este Tribunal considerado (cfr., verbi gratia, o já
citado Acórdão nº 61/91), no que é acompanhado, ao menos, por certa parte da
doutrina, que o princípio da primariedade ou precedência de lei resulta do nº 7
do artigo 112.º (anterior nº 7 do artigo 115.º) da Constituição.
Dizem, a este respeito, Gomes Canotilho e Vital Moreira (cit.
Constituição ..., 514 e 515), na anotação XXV ao artigo 115.º:-
“O princípio da primariedade ou precedência da lei é
claramente afirmado no nº 7, onde se estabelece: (a) a precedência da lei
relativamente a toda a actividade regulamentar; (b) o dever de citação da lei
habilitante por parte de todos os regulamentos. Esta dupla exigência torna
ilegítimos não só os regulamentos carecidos de habilitação legal mas também os
regulamentos que, embora com provável fundamento legal, não individualizam
expressamente este fundamento.
A vinculação positiva do regulamento à lei não significa que,
nos termos constitucionais, a lei que serve de base legal prévia ao exercício do
poder regulamentar tenha sempre a mesma função relativamente aos regulamentos. A
rigorosa compreensão constitucional das relações entre lei e regulamento
pressupõe, desde logo, a delimitação entre reserva de lei horizontal (ou
material) e reserva de lei vertical. Através da primeira pretende-se definir as
matérias que, de acordo com as normas constitucionais, devem ser objecto de
regulamentação material através de um acto com força de lei.
(...)
Da conjugação das duas dimensões da reserva de lei (horizontal e vertical)
resulta a seguinte escala de vinculação da actividade regulamentar, definindo ao
mesmo tempo três tipos de regulamentos: (a) reserva legal material, com
admissibilidade apenas de regulamentos estritamente executivos e instrumentais,
nos casos em que a Constituição prevê que só através da lei possa regular-se
determinada matéria (...)”.
Ora, como foi já concluído acima que a matéria atinente à
segurança social e em particular, no domínio da administração de prestações e
fixação das condições da respectiva atribuição, mormente quando estas
representam uma opção política primária, deve ser regulada por lei material,
torna-se claro que a normação traduzida no aditamento da alínea e) ao nº 1 do
item III do ASIC-CP efectuado pelo Decreto Regulamentar nº 33/2002, violou o
princípio da primariedade de lei.
Alcançada esta última conclusão, não entrará o Tribunal no
equacionamento da questão invocada pelo requerente como fundamento do vício de
inconstitucionalidade que presidiu à sua pretensão. E, por outro lado, tal como
já se disse, porque este Tribunal está limitado pelo princípio do pedido, não
poderá ele apreciar neste processo eventuais vícios de que enfermaria o
Regulamento aprovado pelo Despacho Conjunto nº 17/2000.
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional declara a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do nº 7 do
artigo 112.º da Constituição - correspondente ao nº 8 do artigo 112.º da versão
da Constituição decorrente da Revisão Constitucional operada pela Lei
Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro -, da norma contida na alínea e) do nº
1 do item III do Regulamento de Atribuição do Apoio Social a Idosos Carenciados
das Comunidades Portuguesas, aprovado pelo Despacho Conjunto nº 17/2000,
proferido em 7 de Dezembro de 1999 pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros e
do Trabalho e publicado na II Série do Diário da República de 7 de Janeiro de
2000, norma essa introduzida pelo Decreto Regulamentar nº 33/2002, de 23 de
Abril.
Lisboa, 1 de Junho de 2005
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Com declaração junta)
Maria Helena Brito
Paulo Mota Pinto (nos termos da declaração de voto junta)
Maria João Antunes
Maria Fernanda Palma (também votaria a inconstitucionalidade material por
violação do princípio da igualdade)
Vítor Gomes (com declaração anexa)
Benjamim Rodrigues (com declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos (nos termos da declaração junta)
Gil Galvão
Mário José de Araújo Torres (com a declaração de voto junta)
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido conforme declaração que junto.
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Voto a decisão – a inconstitucionalidade por violação do n.º 8 do artigo 112º
da Constituição, na redacção vigente à data da aprovação do Decreto-Regulamentar
n.º 33/2002, correspondente ao actual n.º 7 do mesmo preceito – mas não
acompanho parte da fundamentação do acórdão.
Em síntese, porque, desde logo, discordo da afirmação de que a norma em
apreciação neste processo versa sobre matéria que, por imposição constitucional,
tem de ser tratada por acto legislativo. Nem creio, mesmo, que tal afirmação
seja compatível com a conclusão de que foi infringido o referido n.º 8 do artigo
112º, já que tal conclusão exigiria, a meu ver, que se aceitasse ser
constitucionalmente admissível para o efeito a forma de regulamento.
Como escrevi na declaração de voto que juntei ao acórdão n.º 161/99 (Diário da
República, II série, de 16 de Fevereiro de 1999), penso que “fora do âmbito da
competência exclusiva da Assembleia da República, a edição de regulamentos
independentes só deve considerar-se vedada, entre nós, nas matérias que a
Constituição coloca expressamente sob reserva de lei (reserva de lei em sentido
material, segundo a expressão mais correntes, embora não desprovida de
ambiguidade)”.
Não tem assim “fundamento constitucional”, também aqui, “uma reserva de lei
filiada na ‘importância’ dos assuntos, da qual se pudesse deduzir ‘naturalmente’
a necessidade de disciplina legislativa directa, com a consequente proibição de
reenvio para normas de segundo grau. Na falta de reserva constitucional
expressa, este reenvio normativo é sempre possível, desde a respeitadas as
regras de competência e de forma estabelecidas nos n.ºs 7 e 8 [6 e 7, na
redacção actual] do artigo 112º da Constituição”.
Note-se, aliás, que, ao exigir a forma de decreto regulamentar para os
regulamentos independentes, a Constituição está também a submetê-los ao crivo do
Presidente da República (através da exigência de promulgação), assim se
possibilitando a necessidade de controlo apontada pelo acórdão para a
disciplina, no caso, das prestações sociais.
2. Em meu entender, a inconstitucionalidade decorre de faltar à norma em
apreciação a habilitação legal específica que a Constituição exige para os
regulamentos independentes, que não podem ser elaborados sem que um acto
legislativo anterior remeta certa matéria, concreta e especificamente, para o
poder regulamentar do Governo. Como já escrevi anteriormente, “Ao contrário dos
regulamentos de execução, o Governo não exerce aqui uma competência genérica,
conferida indeterminadamente pela Constituição para todas as matérias. O poder
regulamentar autónomo pressupõe sempre uma norma legal de competência” (Forma
externa dos actos normativos do Governo, Lisboa, 1989, pág. 25).
Note-se que, para mim, a verificação da falta de cumprimento do n.º 8 do artigo
112º da Constituição assenta na circunstância de resultar expressamente da
interpretação do preâmbulo do Decreto Regulamentar n.º 33/2002 que o mesmo não
assume como norma habilitante para a alteração que introduz no Regulamento do
ASIC-CP o artigo 28º da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, e não de uma
suposta inadequação da mesma; tenho, aliás, as maiores dúvidas de que a
verificação de tal adequação possa ser feita no âmbito de um processo de
fiscalização da constitucionalidade.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
DECLARAÇÃO DE VOTO
Pronunciei-me no sentido da inconstitucionalidade da norma em questão apenas com
fundamento na violação do artigo 112.º, n.º 8, da Constituição da República
(versão vigente em 2002), a que se alude na parte final do último parágrafo do
ponto 8 do presente aresto.
Por outro lado, entendo que o Tribunal não deveria ter deixado de apreciar a
inconstitucionalidade invocada pelo requerente como fundamento do pedido –
inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 13.º e 14.º da
Constituição –, além do mais, porque o alcance de tal fundamentação seria bem
diverso (ou mesmo inverso) do da inconstitucionalidade orgânica que constituiu
ratio decidendi (a qual, se consequentemente prosseguida, poderia mesmo levar,
não à extensão da prestação social à categoria excluída pela norma em apreço,
mas antes a considerá-la, toda ela, inconstitucional, contrariando
manifestamente a intenção subjacente ao pedido).
Paulo Mota Pinto
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho o acórdão na parte em que parece negar ao artigo 28.º da Lei
n.º 109‑B/2001 potencialidade para servir de lei habilitante da medida de acção
social em causa. Se o Decreto-Regulamentar n.º 32/2002, que editou a norma
questionada e republicou o ASIC-CP, o assumisse como habilitação legal, também
nesta parte, o referido preceito asseguraria a exigência constitucional de
primariedade de lei, uma vez que contém a previsão dos meios prestacionais, a
indicação da finalidade e do universo dos destinatários [ i) cidadãos
portugueses; ii) residentes no estrangeiro; iii) em situação de grave
carência] e a devolução da regulamentação ao Governo. Atendendo à sua natureza,
ao universo de destinatários e à diminuta expressão quantitativa global e
individual da medida de acção social em causa, esta densidade regulativa seria
suficiente para cumprir a exigência constitucional de precedência de lei
relativamente a um regulamento independente do Governo. É conteúdo suficiente
para que o procedimento legislativo assegure o controle político e democrático
na matéria (aliás, o decreto‑regulamentar está também sujeito a controle deste
tipo pela via da promulgação).
Por outro lado, os idosos contemplados no ASIC-CP são também “cidadãos
portugueses residentes no estrangeiro”, que é a categoria prevista no artigo
28.º. A circunstância de o ASIC-CP já existir, por ter sido criado pelo Despacho
Conjunto n.º 17/2000, não seria obstáculo, porque nada encontro no texto do
artigo 28.º da Lei n.º 109-B/2001 que permita afirmar ter sido intenção do
legislador excluir essa medida de acção social do âmbito do Fundo de
Solidariedade para a Emigração, bem podendo o legislador assumir, pelo menos
para o futuro, o que fora criado por iniciativa da Administração, assim
providenciando a necessária cobertura legislativa, para que esta reeditasse a
regulamentação, agora com invocação da previsão legal habilitante.
Sucede, porém, que o preâmbulo do Decreto-Regulamentar n.º 32/2002
restringe expressamente a invocação do artigo 28.º da Lei n.º 109-B/2001 ao
ASEC-CP, ou seja ao regulamento contido no Anexo I, assim deixando sem invocação
de norma habilitante tudo o que no diploma se refere ao regulamento do ASIC-CP.
Atendendo à necessidade de certeza e facilitação do controlo de legalidade da
actividade normativa da Administração, que dita a imposição constitucional do
requisito formal de citação da lei habilitante, não pode atribuir-se ao
regulamento uma cobertura que ele mesmo rejeita. Em resumo, não está cumprido o
dever de citação da lei habilitante quanto à edição da norma agora em
apreciação. Só nesta medida considero violado o n.º 8 do artigo 112.º da
Constituição (na redacção anterior à Lei Constitucional n.º 1/04, de 24 de
Julho; actual n.º 7 do artigo 112.º)
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Teria julgado inconstitucional a norma em causa, desde logo e em primeiro
lugar, por violação directa do disposto no n.º 8 (ao tempo de edição da norma)
do art. 112º da Constituição, de pura falta de norma habilitante.
Na verdade, na minha opinião o art. 28º da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro
(lei de aprovação do Orçamento de Estado para 2002), não pode ser tido como
norma habilitante da instituição de qualquer regime de prestações sociais,
qualquer que seja a natureza das concretamente previstas no ASIC-CP.
A norma em causa tem natureza e função estritamente financeiras, cumprindo o
escopo constitucional das leis de orçamento, de previsão e de discriminação das
despesas do Estado [cf. art. 115, n.º 1, alínea a), da CRP].
A referência do fim a que se destina a verba, aí, prevista surge como elemento
de identificação da despesa cuja realização foi autorizada, elemento este cuja
conformação é, no caso, estritamente necessário dada a falta de norma anterior
que permitisse o enquadramento de previsão orçamental nela efectuado. Ou seja, a
norma em crise cumpre a dupla função de norma de enquadramento orçamental e de
norma de previsão orçamental de despesa.
Como quer que seja, a não valerem estas razões, não pode deixar de aceitar‑se
não cumprir essa norma as exigências constitucionais referidas na posição que
fez vencimento e à qual por isso aderi.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanhei a fundamentação do presente acórdão quando entende (nº 8)
que o artigo 28º da Lei nº 109-B/2001, de 27 de Abril, apenas se pode reportar a
uma das medidas criadas pelo Decreto Regulamentar nº 33/2002, de 22 de Abril (a
instituição de um instrumento destinado à prestação de apoio social a cidadãos
portugueses residentes no estrangeiro em situação de grave carência) e não já à
outra, consistente esta em restringir o âmbito de aplicação pessoal de um
instrumento preexistente, que contemplava o apoio social a idosos carenciados
residentes no estrangeiro. Na verdade, não vejo fundamento para a recusa de
reconduzir ao Fundo criado por aquela lei a regulamentação restritiva sindicada
pelo requerente e introduzida pelo mesmo Decreto Regulamentar nº 33/2002, pelo
simples facto de esta se referir exclusivamente a idosos carenciados residentes
no estrangeiro e não em geral a cidadãos portugueses residentes no estrangeiro
em situação de grave carência. Não posso pois subscrever a conclusão de que a
normação em apreço – o aditamento da alínea e) no nº 1 do item III do
Regulamento de Apoio Social a Idosos Carenciados das Comunidades Portuguesas,
aprovado pelo Despacho Conjunto nº 17/2000 (de ora em diante referido como
Regulamento) - foi realizada por “via não (...) a coberto de qualquer
enquadramento legal”. Que tal valha para a instituição deste instrumento é uma
coisa, mas algo diferente deve entender-se em meu juízo no que toca à alteração
normativa sob apreciação, que sendo “constitutiva de um critério autónomo de
decisão no respeitante à natureza do benefício” e assumindo “inquestionavelmente
uma característica de opção política primária na matéria” não pode negar-se ter
sido precedida de um comando de lei material (o acima referido artigo 28º da Lei
nº 109-B/2001).
Sucede, contudo, que também não entendo que esta última disposição, que,
para além de criar um fundo destinado “a suportar a prestação de apoio social a
cidadãos portugueses residentes no estrangeiro em situação de grave carência,
em moldes a regulamentar em diploma próprio”, se limita a autorizar determinadas
transferências de verbas, satisfaça o princípio da primariedade ou precedência
da lei que igualmente creio resultar do nº 7 do artigo 112º da Constituição. Na
verdade, o mero anúncio, feito no referido artigo 28º, de que o apoio social em
causa será regulamentado em diploma próprio, não é a meu ver bastante para
legitimar, sem mais, a abertura da via regulamentar – razão porque subscrevo a
conclusão do presente acórdão.
Finalmente, não ignoro que muito embora o acórdão se limite, por
obediência à vinculação ao pedido, a considerar a referida alínea e) do nº 1 do
item III do Regulamento, introduzida pelo Decreto Regulamentar nº 33/2002, a sua
motivação alcança a globalidade do texto daquele instrumento normativo, tal como
aprovado pelo Despacho Conjunto nº 17/2000, pondo-o radicalmente em causa. Razão
porque teria preferido que o Tribunal se tivesse concentrado na análise da
concreta questão de constitucionalidade suscitada pelo requerente: a
desconformidade constitucional daquela disposição por violação do preceituado
nos artigos 13º e 14º da Lei Fundamental.
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Discordei, desde logo, da orientação, traçada pelo
memorando e com a qual a maioria dos juízes do Tribunal se conformou, de
atribuir prioridade (e até exclusividade) ao conhecimento oficioso da questão
de “inconstitucionalidade formal”, por violação do actual n.º 8 do artigo 112.º
da Constituição da República Portuguesa (CRP), em detrimento da
“inconstitucionalidade material”, por violação dos artigos 13.º e 14.º da CRP,
único fundamento do pedido.
Não se ignora que, nos termos do artigo 51.º, n.º 5, da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro – LTC), o Tribunal Constitucional pode declarar a
inconstitucionalidade de normas, cuja apreciação lhe tenha sido requerida, com
fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos
daqueles cuja violação foi invocada. Mas se o pode fazer, entendi que no
presente caso o não devia fazer, justificando‑se que começasse o conhecimento do
pedido pela apreciação da procedência do fundamento invocado pelo requerente,
não só pela maior relevância e consistência deste fundamento, como também por
ser a maneira de evitar o “efeito perverso” ínsito na declaração de
inconstitucionalidade formulada.
Uma das implicações do princípio da tutela jurisdicional
efectiva – a que o Tribunal Constitucional também está sujeito, quer em sede de
fiscalização de fiscalização concreta, quer em sede de fiscalização abstracta –
é a de que os tribunais devem procurar proferir decisões que, sendo admissíveis
no quadro do processo a que respeitem e no âmbito dos respectivos poderes de
cognição, assegurem uma mais eficaz e estável protecção dos direitos e
interesses em causa. À semelhança do que, no âmbito do contencioso
administrativo, se previa no artigo 57.º, n.º 2, alínea a), da Lei de Processo
nos Tribunais Administrativos, entendo que o Tribunal Constitucional devia ter
dado prioridade (ou mesmo exclusividade) ao conhecimento do vício (o da violação
do princípio da igualdade, determinante de inconstitucionalidade material) cuja
procedência determinava mais estável ou eficaz tutela dos interesses
prosseguidos pelo requerentes. Na verdade, se o Tribunal Constitucional
declarasse que a norma impugnada, ao excluir da prestação em causa os
portugueses que também fossem nacionais do país de residência, era materialmente
inconstitucional por violação do princípio da igualdade, qualquer futura
intervenção legislativa nesta matéria não deixaria de respeitar esse juízo de
inadmissibilidade constitucional dessa discriminação. Diversamente, tendo o
Tribunal Constitucional optado, não apenas por tratar em primeiro lugar, mas (o
que é mais grave) só tratar da questão de inconstitucionalidade formal, nada
impede que futura intervenção “legislativa”, desde que dessa feita respeite os
requisitos do artigo 112.º, n.º 8, da CRP, reproduza o conteúdo da solução
discriminatória impugnada.
O “efeito perverso” gerado por essa metodologia radica em que,
sob a aparência da procedência do pedido, o Tribunal Constitucional aponta para
uma solução diametralmente oposta à pretendida pelo requerente. Este pretendia
abolir a exclusão da concessão do apoio aos portugueses que fossem também
nacionais do país de residência. Ao invés, a lógica da argumentação desenvolvida
pelo Tribunal Constitucional aponta para a inconstitucionalidade de todo o
sistema de apoio social em causa, que só não é formalmente declarada por a tal
obstar o princípio do pedido, uma vez que neste não foi englobado o Despacho
Conjunto n.º 17/2000.
2. Conhecendo do fundamento invocado pelo requerente, entendo
que o mesmo procede.
Como noutro local referi (Mário Torres, “O estatuto
constitucional dos estrangeiros”, Scientia Ivridica, tomo L, n.º 290,
Maio‑Agosto 2001, págs.7‑27, em especial págs. 9‑10):
“(...) não é uniforme o estatuto dos cidadãos portugueses. Para além do
estatuto padrão, correspondente aos portugueses (originários ou não
originários) residentes em Portugal, existem três estatutos diferenciados: um
privilegiado e dois agravados. O estatuto privilegiado respeita aos portugueses
de origem, aos quais está reservada em exclusivo a elegibilidade para Presidente
da República (artigo 122.º). Os estatutos agravados respeitam aos portugueses
detentores de dupla nacionalidade e aos portugueses residentes no estrangeiro.
Na verdade, deve entender‑se que os portugueses detentores de dupla
nacionalidade também não são elegíveis para Presidente da República (16) e o
artigo 6.º, n.º 2, da Lei Eleitoral para a Assembleia da República (Lei n.º
14/79, de 16 de Maio, alterada pela Lei Orgânica n.º 1/99, de 22 de Junho),
dispõe que os cidadãos portugueses que tenham outra nacionalidade não podem ser
candidatos a Deputados à Assembleia da República pelo círculo eleitoral que
abranger o território do país dessa nacionalidade (17). Por seu turno, aos
portugueses residentes no estrangeiro não assistem (18), em geral, os direitos
que sejam incompatíveis com a ausência do país (artigo 14.º), e especialmente o
direito de participarem nos referendos (artigo 115.º, n.º 1) – excepto se o
referendo recair sobre matéria que lhes disser também especificamente respeito
(artigo 115.º, n.º 12) e se se encontrarem recenseados ao abrigo do disposto no
n.º 2 do artigo 121.º (que veio permitir a participação na eleição para
Presidente da República de portugueses residentes no estrangeiro quando existam
«laços de efectiva ligação à comunidade nacional») –, nas eleições dos órgão
das autarquias locais (artigo 239.º, n.º 2), nos referendos locais (artigo
240.º, n.º 1), nas eleições para os órgãos de governo próprio das regiões
autónomas (artigos 14.º, n.º 1, e 15.º do Estatuto Político‑Administrativo da
Região Autónoma dos Açores – Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, alterada pelas Leis
n.ºs 9/87, de 26 de Março, e 61/98, de 27 de Agosto, e artigos 16.º e 17.º do
Estatuto Político‑Administrativo da Região Autónoma da Madeira – Lei n.º 13/91,
de 5 de Junho, alterada pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto) (19).”
_____________________
(16) Neste sentido, Jorge Miranda, obra citada na nota 1 [Manual de
Direito Constitucional, tomo III – Estrutura Constitucional do Estado, 3.ª
edição revista e actualizada, ed. Coimbra Editora, Coimbra, 1994], p. 132, e
Estudos de Direito Eleitoral, ed. Lex – Edições Jurídicas, Lisboa, 1995, p. 172;
com dúvidas, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada na nota 6
[Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, ed. Coimbra
Editora, Coimbra, 1993], p. 560.
(17) Já não parece, face ao n.º 2 do artigo 1.º da mesma Lei (que dispõe
que os portugueses havidos também como cidadãos de outro Estado não perdem por
esse facto a capacidade eleitoral activa, constando preceito similar do artigo
2.º, n.º 1, da Lei Eleitoral para Presidente da República – Decreto‑Lei n.º
319‑A/76, de 3 de Maio, alterado por último pela Lei Orgânica n.º 3/2000, de 24
de Agosto), que se possa sustentar, como o faz Jorge Miranda, nos locais atrás
citados, que esses plurinacionais tão‑pouco possuem capacidade eleitoral activa
quando se encontrem no território do Estado de que são também cidadãos.
No entanto, o artigo 2.º do Projecto de Código Eleitoral de 1987 (Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 364, pp. 45-275) reconhecia capacidade eleitoral
activa aos cidadãos portugueses havidos também como cidadãos de outros Estados,
«desde que não tenham a sua residência habitual no território desse Estado».
Sobre a justificação do regime do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 14/79 e sobre a
não inconstitucionalidade da inexistência de norma similar na lei eleitoral para
as autarquias locais, cf. o parecer n.º 34/79 da Comissão Constitucional
(Pareceres da Comissão Constitucional, 10.º volume, pp. 121-128, em especial
pp. 122-123.
(18) Assistem‑lhes, porém, «discriminações positivas», como a incumbência
especial do Estado português de assegurar «a protecção das condições de trabalho
e a garantia dos benefícios sociais dos trabalhadores emigrantes» (artigo 59.º,
n.º 2, alínea e)), de «assegurar aos filhos dos emigrantes o ensino da língua
portuguesa e o acesso à língua portuguesa» (artigo 74.º, n.º 2, alínea i)), e de
estabelecer condições especiais na expropriação de meios de produção em abandono
propriedade de trabalhadores emigrantes (artigo 88.º, n.º 1). Até à 2.ª revisão
constitucional (1989), o artigo 99.º mandava, na efectivação da reforma agrária,
salvaguardar os interesses dos emigrantes.
(19) Cf. Jorge Miranda, obra citada na nota 1, pp. 125‑131; e João Caupers,
Breves Reflexões sobre o Estatuto Eleitoral dos Emigrantes, ed. Associação
Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1988.
No presente caso, o Estado português, considerando “a
existência de portugueses idosos que, nas diversas comunidades, vivem em
situação de carência económica e social, não se encontrando abrangidos por
sistemas de segurança social”, que “por diversos motivos, especialmente por
terem já criado raízes no país de acolhimento e na comunidade onde vivem, alguns
emigrantes portugueses não desejam ser repatriados” e ainda “a necessidade de
Portugal proporcionar a estes idosos condições dignas de subsistência” (do
preâmbulo), assumiu, com a publicação do Despacho Conjunto n.º 17/2000, a
obrigação de atribuir apoio social “destinado a portugueses idosos residentes no
estrangeiro que se encontrem em situação de absoluta carência de meios de
subsistência, não superável pelos mecanismos existentes nos países de
residência” (I), através da concessão de um “subsídio de apoio social,
personalizado, intransmissível, periódico e insusceptível de conferir um
direito subjectivo” (II‑1), com periodicidade mensal e destinado a “fazer face
a necessidades essenciais de subsistência, designadamente alojamento,
alimentação e cuidados de saúde e higiene” (II‑1). A concessão do subsídio
dependia da verificação cumulativa dos seguintes requisitos dos nacionais
portugueses: (i) terem idade igual ou superior a 65 anos; (ii) encontrarem‑se no
país de acolhimento em situação de residência legal e efectiva; (iii)
encontrarem‑se em situação de carência; e (iv) não terem familiares obrigados à
prestações de alimentos ou, tendo‑os, estes não se encontrarem em condições de
lha prestarem (III‑1). Considerava‑se situação de carência a inexistência de
recursos de qualquer natureza ou a existência de recursos inferiores ao valor do
montante do subsídio a atribuir, que era o resultado da média aritmética entre
os valores da pensão social portuguesa e a pensão social, ou equivalente, do
país de residência, à data da entrada em vigor do Regulamento, ou, nos casos em
que não for possível determinar este último valor, o valor equivalente à mais
baixa pensão social, ou equiparada, dos países desse mesmo continente onde
existisse uma comunidade portuguesa relevante (III‑2 e VI‑1 e 2).
Aos apontados quatro requisitos cumulativos de concessão do
apoio o Decreto Regulamentar n.º 33/2002 veio acrescentar um quinto: não ser o
candidato nacional do país de residência.
É este requisito adicional (aliás não exigido no Regulamento
de Atribuição do Apoio Social a Emigrantes Carenciados das Comunidades
Portuguesas – ASEC‑CP) que se reputa materialmente inconstitucional, por
violador do princípio da igualdade, designadamente no âmbito do dever de
protecção dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, consagrados nos
artigos 13.º e 14.º da CRP.
O dever de o Estado proteger os cidadãos portugueses
residentes no estrangeiro abrange igualmente os portugueses que sejam
detentores de outra nacionalidade. No presente caso, trata‑se de assegurar o
mínimo de subsistência, exigido pela dignidade da pessoa humana, a portugueses
idosos (com idade igual ou superior a 65 anos), que se encontram “em situação de
absoluta carência de meios de subsistência”, e traduz‑se na atribuição de um
subsídio destinado “a fazer face a necessidades essenciais de subsistência,
designadamente alojamento, alimentação e cuidados de saúde e higiene”. Trata‑se
de portugueses que não têm familiares em condições de lhe prestarem alimentos.
Não se vislumbra fundamento constitucionalmente válido para
negar a concessão desse apoio pela circunstância de o português carenciado ser
também nacional do país da sua residência. Por um lado, esta segunda
nacionalidade em nada releva para afastar a situação de carência, pois, apesar
de ser também nacional do país de residência, essa qualidade não assegura
protecção ao idoso em causa: relembre‑se que é condição de concessão do apoio
que a carência não seja “superável pelos mecanismos existentes nos países de
residência”. Por outro lado, a posse ou aquisição da nacionalidade do país de
residência não foi impeditiva da manutenção da nacionalidade portuguesa; isto
é, não estamos perante os casos em que a aquisição de outra nacionalidade
representa um corte com a ordem jurídica portuguesa que é considerado
incompatível com a manutenção da nacionalidade portuguesa.
Reconhecendo o ordenamento jurídico português que a
binacionalidade do candidato a apoio não afecta a sua ligação à comunidade
portuguesa e sendo certo que a circunstância de ser natural do país de
residência é insuficiente para lhe assegurar, pelos mecanismos de apoio social
existentes nesse país, as mínimas condições de subsistência exigidas pela
dignidade da pessoa humana, surge como manifestamente destituída de fundamento
razoável, constitucionalmente atendível, a edição da norma impugnada, votando à
completa desprotecção cidadãos portugueses idosos e carenciados pela mera
circunstância de serem também nacionais do país de residência.
Votei, por isso, no sentido de o Tribunal Constitucional
declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma
impugnada, por violação dos artigos 13.º e 14.º da CRP, não fazendo sentido,
neste contexto, indagar da eventual violação do artigo 112.º, n.º 8, da CRP.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido. O Regulamento de Atribuição do Apoio Social a Idosos Carenciados das
Comunidades Portuguesas, aprovado pelo Despacho Conjunto n.º 17/2000, não
pretende inscrever-se no sistema de Segurança Social adoptado pelo Estado.
Representa, bem pelo contrário, um modo expedito e desburocratizado de conferir
ajuda, ou apoio social, de carácter excepcional a cidadãos portugueses idosos
que vivam fora do território nacional em situação de carência económica e que
não se encontrem abrangidos pelo sistema de segurança social vigente no país de
acolhimento. Como a meu ver se torna evidente, o Estado não pode garantir, de
forma global e universal, as condições mínimas de vida a todos os portugueses
que vivam em países estrangeiros; por essa razão, as medidas de carácter
excepcional com que se pretenda dotar para fazer face a casos particulares nunca
poderão pautar-se pelas regras e princípios do sistema de segurança social, que,
pelo contrário, conferem de forma universal verdadeiros direitos subjectivos.
Deste modo, a declaração de inconstitucionalidade agora decretada tem como única
consequência acabar com o sistema excepcional de apoio social a idosos
carenciados, pois não será evidentemente possível introduzir-lhe as regras
próprias da segurança social.
Pamplona de Oliveira