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Processo n.º 1051/04
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figuram
como recorrente A. e como recorrido o Ministério Público, foi proferida decisão,
em 3 de Novembro de 2004, que julgou supervenientemente inútil um recurso que o
ora recorrente interpusera de uma decisão que decretara a manutenção da sua
prisão preventiva. Para tanto, escudou-se aquele Tribunal na seguinte
fundamentação:
“(...) O arguido recorre do despacho que decretou a manutenção da sua prisão
preventiva, datado de 6-01-2003.
É esta a questão suscitada nos presentes autos de recurso.
Posteriormente ao despacho recorrido, datado de 6-01-2003, foi a prisão
preventiva do arguido reexaminada e, em 21/10/2004, foi este restituído à
liberdade.
Perante o reexame posterior do despacho recorrido restituindo à liberdade o
arguido, perde este toda a actualidade e pertinência processual, tornando-se
inútil a sua apreciação nesta sede de recurso.
Nem sentido tem a sua apreciação para hipotéticos efeitos de ressarcimento
contra o Estado ou outros efeitos que se possam colocar como possíveis, as
decisões dos tribunais devem surtir efeito útil e não satisfazer meras
hipóteses.
Concretamente, a presente decisão recorrida deixou de ser útil, está
ultrapassada, a situação processual do arguido está definida por outra decisão
que não aquela de que se recorre, decisão essa que cessou a prisão preventiva.
Neste sentido, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Maio de 1989, Proc.
39947/3 (cit. in Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 9.ª ed.,
1998, pp.439).
Também a questão de eventual constitucionalidade na decisão de inutilidade
superveniente está afastada conforme lucidamente o Tribunal Constitucional
decidiu no Acórdão de 18 de Fevereiro de 2004 (Proc. 889/03, da 2.ª secção), em
caso em tudo semelhante com o presente.
Assim, posto que é esta a única questão suscitada nos presentes autos de
recurso, nos termos dos arts. 287.º, al. e), do CPCivil e 4.º, 419.º, n.º 4, al.
d), do CPPenal, importa declarar extinto o objecto do presente recurso por
inutilidade superveniente.
Pelo exposto, acorda-se em declarar extinto o objecto do presente recurso por
inutilidade superveniente”.
2. É desta decisão que vem interposto o presente recurso, através de um
requerimento que tem o seguinte teor:
“[...], notificado do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de
Novembro de 2004, no qual não ocorreu a pronúncia sobre o recurso de uma decisão
que manteve a prisão preventiva do arguido, vem, muito respeitosamente, interpor
RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
com fundamento na alínea b), do artigo 70°, da Lei de Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional.
1) Por Acórdão de 19 de Maio de 2004 (processo n° 1959/04), que correu termos na
3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, foi proferida decisão de
indeferimento de um recurso de uma decisão de manutenção da prisão preventiva
com base numa interpretação inconstitucional do artigo 287, al. e) do Código de
Processo Civil e dos artigos 4° e 419º, n.º 4, alínea d) do Código de Processo
Penal.
2) Da qual o Recorrente interpôs Recurso para o Tribunal Constitucional.
3) Suscitou então o Recorrente no Tribunal ad quem a apreciação da
constitucionalidade da interpretação conjugada dos artigos 287, al. e) do Código
de Processo Civil e dos artigos 4° e 419, n.º 4, alínea d) do Código de Processo
Penal, quando interpretados no sentido de que, numa situação em que o arguido
cumpriu todos os prazos legais a que se encontrava sujeito, quando seja
proferida supervenientemente uma decisão do Tribunal de primeira instância que
decide a manutenção prisão preventiva do arguido, se torna inútil o conhecimento
do recurso de uma outra decisão com o mesmo objecto que anteriormente manteve
essa medida de coacção, dando lugar á extinção da instância de recurso.
4) O Recorrente entende que, neste caso, não tem aplicação o disposto no art°
287.º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4.º
do Código de Processo Penal, que prevê a extinção da instância por inutilidade
superveniente da lide sob pena de inconstitucionalidade.
5) O Recorrente suscitou a presente questão de inconstitucionalidade no âmbito
do processo de Recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa em 6 de
Janeiro de 2004,
6) Tendo então alegado que tal interpretação normativa consubstanciava uma
violação do direito ao recurso decorrente das garantias de defesa consagradas no
artigo 32.º, n.º 1, da Constituição,
7) Bem como o princípio da proibição da indefesa que decorre igualmente do
disposto no art.º 32, nº1 da CRP e do art° 20, nº1 da CRP, que consagra o
direito à tutela jurisdicional efectiva
8) E do direito a um processo célere e equitativo, face ao exposto nos nºs 4 e 5
do art° 20° da CRP.
9) Foi então proferida decisão liminar por este Tribunal em 25 de Junho de 2004,
nos termos da qual foi julgada inconstitucional, por violação do art° 32°, nº1
da Constituição, a norma do artigo 287°, alínea e), do Código de Processo Civil,
e dos artigos 4° e 419°, n.º 4, alínea d), do Código de Processo Penal,
interpretadas no sentido de que o julgamento do recurso da decisão que aplicou a
prisão preventiva, é inútil quando é proferida decisão de manutenção da prisão
preventiva, na pendência de tal recurso,
10) Por considerar aplicável aquele caso a ratio decidendi do Acórdão 418/2003
do Tribunal Constitucional, uma vez que tal interpretação conduziria a
consequências constitucionalmente insustentáveis: a inatacabilidade absoluta de
eventuais decisões ilegais fundadas no primeiro despacho; a inviabilização
consequente do direito à reparação do lesado pelos prejuízos que as decisões
ilegais possam determinar,
11) Tendo sido determinada, consequentemente, a revogação da decisão recorrida e
ordenada a reformulação da mesma em conformidade com o juízo de
inconstitucionalidade proferido.
12) Subsequentemente, foram os autos remetidos ao Tribunal da Relação de Lisboa
para que este Tribunal se pronunciasse em conformidade;
13) Entretanto, o arguido foi libertado em 21 de Outubro de 2004 por ordem
judicial emanada das Varas Mistas de Sintra, na sequência de um requerimento de
libertação apresentado pelo arguido.
14) Em 3 de Novembro de 2004, foi proferida decisão pelo Tribunal da Relação de
Lisboa nos termos dos artigos 287°, al. e) do Código de Processo Civil e 4°,
419°, n.º 4, al. d) do Código de Processo Penal declarando extinto por
inutilidade superveniente da lide o recurso remetido àquele Tribunal para
reformulação pelo Tribunal Constitucional, com base no entendimento que ora se
transcreve:
'Perante o reexame posterior do despacho recorrido restituído á liberdade o
arguido, perde este toda a actualidade e pertinência processual, tornando-se
inútil a sua apreciação nesta sede de recurso.
Nem sentido tem a sua apreciação para hipotéticos efeitos de ressarcimento
contra o Estado ou outros efeitos que se possam colocar como possíveis, as
decisões dos tribunais devem surtir efeito útil e não satisfazer meras
hipóteses. '
15) O Recorrente considera que esta interpretação normativa, vertida no Acórdão
de 3 de Novembro de 2004 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, viola o direito ao
recurso decorrente das garantias de defesa consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição,
16) Bem como o princípio da proibição da indefesa que decorre igualmente do
disposto no art.º 32, n.º1 da CRP e do art.º 20, n.º1 da CRP, que consagra o
direito à tutela jurisdicional efectiva
17) E do direito a um processo célere e equitativo, face ao exposto nos nºs 4 e
5 do art.º 20° da CRP”.
3. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo
concluído da seguinte forma:
“I. Por Acórdão de 19 de Maio de 2004 (processo n.º 1959/04), que correu termos
na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, foi proferida decisão de
indeferimento de um recurso de uma decisão de manutenção da prisão preventiva
com base numa interpretação inconstitucional do artigo 287°, al. e) do Código de
Processo Civil e dos artigos 4° e 419, n.º4, alínea d) do Código de Processo
Penal.
II. Da qual o Recorrente interpôs Recurso para o Tribunal Constitucional.
III. Suscitou então o Recorrente no Tribunal ad quem a apreciação da
constitucionalidade da interpretação conjugada dos artigos 287°, al. e) do
Código de Processo Civil e dos artigos 4° e 419°, no4, alínea d) do Código de
Processo Penal, quando interpretados no sentido de que, numa situação em que o
arguido cumpriu todos os prazos legais a que se encontrava sujeito, quando seja
proferida supervenientemente uma decisão do Tribunal de primeira instância que
decide a manutenção da prisão preventiva do arguido, se torna inútil o
conhecimento do recurso de uma outra decisão com o mesmo objecto que
anteriormente manteve essa medida de coacção, dando lugar à extinção da
instância de recurso.
IV. O Recorrente entende que, neste caso, não tem aplicação o disposto no art.º
287.º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4.º
do Código de Processo Penal, que prevê a extinção da instância por inutilidade
superveniente da lide sob pena de inconstitucionalidade.
V. O Recorrente suscitou esta questão de inconstitucionalidade no âmbito do
processo de Recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa em 6 de
Janeiro de 2004,
VI. Tendo então alegado que tal interpretação normativa consubstanciava uma
violação do direito ao recurso decorrente das garantias de defesa consagradas no
artigo 32.º, n.º 1, da Constituição,
VII. Bem como o princípio da proibição da indefesa que decorre igualmente do
disposto no art.º 32, n.º1 da CRP e do art.º 20, n.º1 da CRP, que consagra o
direito à tutela jurisdicional efectiva
VIII. E do direito a um processo célere e equitativo, face ao exposto nos n.ºs 4
e 5 do art.º 20° da CRP .
IX. Foi então proferida decisão liminar pelo Tribunal Constitucional em 25 de
Junho de 2004, nos termos da qual foi julgada inconstitucional, por violação do
art.º 32°, n.º1 da Constituição, a norma do artigo 287°, alínea e), do Código de
Processo Civil, e dos artigos 4° e 419°, n.º 4, alínea d), do Código de Processo
Penal, interpretadas no sentido de que o julgamento do recurso da decisão que
aplicou a prisão preventiva, é inútil quando é proferida decisão de manutenção
da prisão preventiva, na pendência de tal recurso,
X. Por considerar aplicável aquele caso a ratio decidendi do Acórdão 418/2003 do
Tribunal Constitucional, uma vez que tal interpretação conduziria a
consequências constitucionalmente insustentáveis: a inatacabilidade absoluta de
eventuais decisões ilegais fundadas no primeiro despacho; a inviabilização
consequente do direito à reparação do lesado pelos prejuízos que as decisões
ilegais possam determinar,
XI. Em 3 de Novembro de 2004, foi proferida decisão pelo Tribunal da Relação de
Lisboa nos termos dos artigos 287°, al. e) do Código de Processo Civil e 4°,
419°, no4, al. d) do Código de Processo Penal declarando extinto por inutilidade
superveniente da lide o recurso remetido àquele Tribunal para reformulação pelo
Tribunal Constitucional, com base no entendimento de que face ao o reexame
posterior do despacho recorrido, que mantivera a prisão preventiva do arguido,
uma vez restituído á liberdade o arguido, perdera aquele recurso toda a
actualidade e pertinência processual, tornando-se inútil a sua apreciação nesta
sede de recurso.
XII. Bem como que não teria sentido a sua apreciação 'para hipotéticos efeitos
de ressarcimento contra o Estado ou outros efeitos que se possam colocar como
possíveis. '
XIII. O Recorrente considera que esta interpretação normativa, vertida no
Acórdão de 3 de Novembro de 2004 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, viola mais
uma vez o direito ao recurso decorrente das garantias de defesa consagradas no
artigo 32º; n.º 1, da Constituição,
XIV. Bem como o princípio da proibição da indefesa que decorre igualmente do
disposto no art.º 32, n.º1 da CRP e do art.º 20, n.º1 da CRP, que consagra o
direito à tutela jurisdicional efectiva
XV. E do direito a um processo célere e equitativo, face ao exposto nos n.ºs 4 e
5 do art.º 20° da CRP .
XVI. Pois tal entendimento permitiria, no limite, que a decisão que manteve a
prisão preventiva do arguido nunca fosse sujeita a uma aferição da sua
legalidade por um tribunal superior.
XVII. O Arguido tem um interesse legalmente protegido na prolação desta decisão,
XVIII. Quer por força do direito a uma solução jurídica dos conflitos que, por
si só, lhe assiste enquanto garantia de defesa,
XIX. Quer para efeitos de um eventual ressarcimento face ao Estado na
eventualidade de se concluir que esteve sujeito a uma prisão ilegal, nos termos
do art.º 27°, n.º5 da CRP. .
XX. Ao admitir nos termos descritos que se considere extinta a instância de
recurso por inutilidade superveniente da lide, permite que a apreciação da
decisão de reapreciação da prisão preventiva proferida pelo Tribunal de primeira
instância por um tribunal superior seja sucessivamente e indefinidamente
protelada e a final denegada,
XXI. De modo que tal apreciação em sede de recurso poderá, na prática, nunca ter
lugar, sem que ao arguido seja facultado qualquer meio para o evitar.
XXII. Pelo exposto, o Recorrente considera que a interpretação mencionada em XI
e XII viola as garantias de defesa consagradas no artigo 32.0, n.º 1, da
Constituição, em particular o direito ao recurso.
XXIII. Bem como o princípio da proibição da indefesa que decorre igualmente do
disposto no art.º 32, n.º1 da CRP e do art.º 20, n.ºs 1 e 4 da CRP, que consagra
o direito à tutela jurisdicional efectiva,
XXIV. Designadamente face ao direito que assiste ao arguido de ser ressarcido na
eventualidade de se verificar uma situação de prisão ilegal, nos termos do art.º
27°, n.º5 da CRP ,
XXV. E do direito a um processo célere e equitativo, face ao exposto nos n.ºs 4
e 5 do art.º 20° da CRP”.
4. Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente, disse o
Ministério Público, a concluir:
“1 - Não é inconstitucional a previsão - como pressuposto ou requisito dos
recursos penais - do interesse em agir do recorrente, conduzindo à inutilidade
superveniente daqueles cuja dirimição se configure como absolutamente
irrelevante, por estar inteiramente precludida ou consumida, pelo posterior
decurso do processo, a decisão recorrida.
2 - É, porém, violador do direito ao recurso, ínsito no princípio das garantias
de defesa, a interpretação normativa dos preceitos legais consagradores da
exigência do interesse em agir que conduzam à preclusão de um recurso,
interposto pelo arguido da decisão que inicialmente lhe aplicou medida de
coacção privativa de liberdade, e que conserva para o recorrente interesse
secundário ou residual, implicando a respectiva dirimição um juízo sobre a
legalidade da situação detentiva sofrida, relevante e decisivo enquanto
pressuposto de uma ulterior e eventual acção indemnizatória tutelada pelo artigo
27°, n° 5, da Constituição, destinada ao ressarcimento dos danos alegadamente
sofridos.”
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
5. Em causa nos presentes autos está a norma do artigo 287º, alínea e), do
Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do
Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de se considerar
supervenientemente inútil o recurso de decisão que aplicou ao arguido a medida
de coacção de prisão preventiva, quando esta decisão já foi substituída por
outra que determinou a cessação daquela medida de coacção.
Entende o recorrente que aquela interpretação normativa dos preceitos indicados
é inconstitucional, designadamente por violar “as garantias de defesa
consagradas no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, em particular o direito ao
recurso”, bem como o “princípio da proibição da indefesa que decorre igualmente
do disposto no art.º 32, n.º1 da CRP e do art.º 20, n.ºs 1 e 4 da CRP, que
consagra o direito à tutela jurisdicional efectiva, (...) designadamente face ao
direito que assiste ao arguido de ser ressarcido na eventualidade de se
verificar uma situação de prisão ilegal, nos termos do art.º 27°, n.º5 da CRP”,
e ainda o “direito a um processo célere e equitativo, face ao exposto nos n.ºs 4
e 5 do art.º 20° da CRP”.
Vejamos se tem razão.
6. A questão da utilidade do recurso interposto de decisão que comine ao arguido
a medida de coacção de prisão preventiva não é nova na jurisprudência do
Tribunal Constitucional, que, partindo, embora, de situações factuais nem sempre
coincidentes, sobre ela já se pronunciou em vários arestos.
6.1. Assim, logo no Acórdão n.º 90/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º
vol., págs. 267 e seguintes), e em alguns outros que se lhe seguiram (cfr.
Acórdãos n.ºs 339/87, 137/92, 144/93 e 116/96, os dois últimos disponíveis na
página Internet do Tribunal Constitucional no endereço
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), firmou o Tribunal o
entendimento de que, em casos de detenção ou prisão preventiva, mantém interesse
o recurso de constitucionalidade interposto da decisão que ordena a privação da
liberdade, ainda que no subsequente desenrolar do processo se venha a confirmar
ou modificar essa medida de privação de liberdade. Como se escreveu nesse
acórdão, “existindo o direito fundamental a pedir uma indemnização contra o
Estado em caso de prisão ilegal (art. 27º, n.º 5, da Constituição), se o
Tribunal Constitucional viesse a abster-se de conhecer do recurso, por
considerar este inútil, estaria afinal a precludir o exercício pelo recorrente
[...] do direito que lhe é reconhecido por aquele preceito constitucional”.
6.2. Já nos Acórdãos n.ºs 722/97 e 296/03 (disponíveis na página do Tribunal
Constitucional na Internet, em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) o Tribunal considerou
supervenientemente inútil o recurso de constitucionalidade que vinha interposto
da decisão que aplicara ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva,
numa hipótese em que o arguido se conformou com uma ulterior decisão que – no
termo do prazo legal – procedeu à reapreciação da prisão preventiva, mantendo-a,
por considerar não terem ocorrido factos ou circunstâncias supervenientes
relevantes. Para concluir dessa forma, e com interesse para os presentes autos,
ponderou então o Tribunal:
«Desde o Acórdão n.º 90/84 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
4º vol., págs. 267 e seguintes) está firmado o entendimento jurisprudencial de
que, em casos de detenção ou prisão preventiva, mantém interesse o recurso de
constitucionalidade interposto da decisão condenatória de privação da liberdade,
ainda que no subsequente desenrolar do processo de extradição ou criminal se
venha a confirmar ou modificar essa medida de privação de liberdade. Como se
escreveu nesse acórdão, existindo o direito fundamental a pedir uma indemnização
contra o Estado em caso de prisão ilegal (art. 27º, n.º 5, da Constituição), se
o Tribunal Constitucional viesse a abster-se de conhecer do recurso, por
considerar este inútil, “estaria afinal a precludir o exercício pelo recorrente
[...] do direito que lhe é reconhecido por aquele preceito constitucional”.
Importa, por isso, analisar se existe algum “interesse residual” no conhecimento
do presente recurso, utilizando a formulação constante das alegações do
Ministério Público.
Ora, encarada a situação dos autos, não são claramente aplicáveis os fundamentos
daquela jurisprudência ao presente recurso.
Com efeito, o Código de Processo Penal impõe o reexame oficioso da subsistência
dos pressupostos da medida de coacção prisão preventiva em prazos curtos,
podendo o juiz determinar a manutenção, substituição ou revogação da própria
medida (artigo 213º, n.º 1). Por outro lado, de todas as decisões que aplicarem
ou mantiverem medidas de coacção cabe recurso, a julgar no prazo máximo de 30
dias a partir do momento em que os autos foram recebidos (artigo 219º). Com
estas soluções, “o legislador pretendeu acentuar que as medidas aplicadas não
devem manter-se para além do necessário e, por isso, disciplinar a reapreciação
da situação dos arguidos sujeitos a medida de coacção, impondo-a periodicamente
nos casos mais graves e permitindo-a sempre, quer oficiosamente, quer a
requerimento” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág. 252).
No caso sub judicio, a recorrente impugnou o despacho ordenatório da prisão
preventiva em 20 de Maio de 1997, foi condenada a pena de prisão por acórdão de
27 do mesmo mês e ano, mas não impugnou o despacho que manteve essa medida de
coacção em 12 de Junho de 1997.
Resulta daqui que a recorrente renunciou ao seu direito de impugnação do novo
despacho, abstendo-se de interpor recurso em tempo, embora não tivesse desistido
do presente recurso, alegando mesmo após a última data indicada.
Na presente situação não pode, por isso, deixar de considerar-se que a ora
recorrente se acabou por conformar com a medida de coacção que foi mantida após
a condenação em primeira instância, não se vendo que interesse prático atendível
poderá justificar a prossecução do presente recurso quanto a uma decisão que já
foi “consumida” por decisão judicial subsequente não impugnada de forma
autónoma, não podendo de forma plausível supor-se que a arguida pretende ainda
exercer qualquer direito de indemnização contra o Estado por força da prisão
preventiva que lhe foi aplicada após a remessa dos autos ao tribunal criminal
competente, dada a aceitação da ulterior manutenção da mesma medida de coacção,
isto é, quando mostrou que não o pretende fazer a partir do momento em que foi
condenada em primeira instância, não obstante não se ter conformado com a
decisão condenatória. A falta de resposta à questão prévia suscitada é
igualmente coerente com o referido comportamento processual.” (itálico
acrescentado)
6.3. Por sua vez, no Acórdão n.º 418/03 (igualmente disponível em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) este Tribunal considerou
inconstitucional a interpretação segundo a qual, em caso de manutenção
superveniente de prisão preventiva por nova decisão do juiz de instrução,
proferida num contexto de reapreciação antecipada da prisão preventiva, se torna
inútil o conhecimento do recurso da decisão que primeiramente decretou essa
medida de coacção. Para o que agora importa, ponderou o Tribunal, naquele
aresto:
“[...] Esta interpretação conduziria assim a consequências constitucionalmente
insustentáveis: a inatacabilidade absoluta de eventuais decisões ilegais
fundadas no primeiro despacho; a inviabilização consequente do direito à
reparação do lesado pelos prejuízos que as decisões ilegais possam determinar;
no limite, a inimpugnabilidade da própria prisão preventiva pela possibilidade
de repetição de despachos antecipados de manutenção daquela medida.
Ora o direito ao recurso, consagrado expressamente no artigo 32º, n.º 1, da
Constituição, desde a Revisão de 1997 (e já antes configurado como garantia de
defesa pela doutrina e pela jurisprudência constitucionais – cfr., por exemplo,
Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 3º vol., 1994, p. 303 e ss.,
e, na jurisprudência, Acórdãos nºs 31/87 – D.R., II Série, de 1 de Abril de
1987; 259/88 – D.R., II Série, de 11 de Fevereiro de 1989; e 353/91 – D.R., II
Série, de 20 de Dezembro de 1991), não pode deixar de abranger decisões que
determinem a restrição da liberdade decorrente da aplicação da prisão
preventiva (cfr. Acórdão n.º 524/98, de 29 de Julho, em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 40º).
Apesar de estar em causa uma medida de coacção que visa fins processuais e não a
condenação definitiva do arguido, salvaguardando-se a presunção de inocência, a
gravidade da afectação de direitos que ela comporta (privação do direito à
liberdade, consagrado no nº1 do artigo 27º da Constituição) torna necessário
acautelar a possibilidade de impugnação dessa medida através de recurso, como
tem sido reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr.
Acórdãos nºs 31/87 – D.R., II Série, de 1 de Abril de 1987; e 178/88 – D.R., I
Série, de 30 de Novembro de 1988).
No caso sub judicio, verifica-se que a função de garantia de defesa só
realizável pelo recurso, consagrada no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, fica
prejudicada pela interpretação das normas em crise. Assim, conclui-se que são
inconstitucionais as normas que constituíram o fundamento decisório do tribunal
a quo”.
6.4. Finalmente, no mais recente Acórdão n.º 119/04 (também já disponível
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) concluiu o Tribunal no
sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 287º, alínea e), do
Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do
Código de Processo Penal, entendida no sentido de se tornar supervenientemente
inútil o recurso da decisão que aplicou a medida de coacção de prisão
preventiva, quando esta foi posteriormente mantida por decisão autónoma, não
recorrida, que reapreciou os respectivos pressupostos no prazo previsto no
artigo 213º, n.º 1, do Código de Processo Penal. No que para os presentes autos
importa, escudou-se aquele aresto na seguinte fundamentação:
“Como se verifica pela informação constante a fls. 116 dos autos, também no
presente caso – apesar de, repete-se, não estar em causa a utilidade do próprio
recurso de constitucionalidade, e sim a norma que fundou uma decisão de
inutilidade do recurso para o Tribunal da Relação – o recorrente não interpôs
recurso do despacho que, posteriormente, em reapreciação da medida de coacção de
prisão preventiva no prazo legalmente previsto (em 30 de Setembro de 2003, isto
é, três meses depois da decisão que a aplicara), lhe manteve a medida de coacção
de prisão preventiva, tendo sido com esse fundamento que o acórdão recorrido, de
5 de Novembro de 2003, concluiu pela extinção do recurso por inutilidade
superveniente. Tal como se notou na passagem transcrita do Acórdão n.º 722/97,
também no presente caso, portanto, o recorrente “renunciou ao seu direito de
impugnação do novo despacho, abstendo-se de interpor recurso em tempo”, ficando
a decisão que aplicara a medida de coacção “ ‘consumida’ por decisão judicial
subsequente não impugnada de forma autónoma”, decisão subsequente, esta, que é
aquela com base na qual o recorrente se encontra preso.
Pode, assim, concluir-se que a apreciação do recurso do despacho que aplicara a
prisão preventiva, entretanto substituído pelo despacho de manutenção desta
medida, não se poderia revestir de utilidade para o arguido quanto à definição
da sua situação processual - mais precisamente, para a sua libertação -, pois
que esta resultava já então (depois de 30 de Setembro de 2003), não do despacho
recorrido, mas de outro posterior não impugnado.
Note-se, aliás, que, no presente caso, o despacho de manutenção da prisão
preventiva não se limitou a efectuar uma mera remissão para o anterior despacho
que aplicara a medida de coacção – embora também não aduza novos fundamentos de
direito ou altere a qualificação dos pressupostos para tal medida, diversos dos
que anteriormente haviam justificado a sua aplicação –, e que foi proferido no
prazo de três meses previsto no artigo 213º, n.º 1, do Código de Processo Penal,
para o reexame dos pressupostos da prisão preventiva (sem qualquer antecipação,
portanto).
E cumpre dizer, ainda, que não é de considerar procedente a afirmação de que a
norma em apreço possibilitaria que o recurso da decisão que aplica a medida de
coacção nunca fosse apreciado, pelo protelamento indevido, pelo tribunal ad
quem, da reapreciação do recurso, até à prolação de nova decisão que
(eventualmente) mantenha a medida. É que – e independentemente de outras
considerações quanto à relevância de argumento fundado na hipótese de actuação
processual dolosa do tribunal de recurso – bastaria ao recorrente, para evitar
tal “risco” (e para além da possibilidade de pedir a aceleração processual
perante o Conselho Superior da Magistratura, nos termos do artigo 108º, n.ºs 1 e
2, alínea b), do Código de Processo Penal, em caso de ultrapassagem pela Relação
do prazo de 30 dias para decidir o recurso, previsto no artigo 219º do mesmo
Código), interpor também recurso deste posterior despacho (e, se o considerasse
necessário, comunicá-lo imediatamente ao tribunal ad quem). O que, porém, no
presente caso (como no do Acórdão n.º 296/03), não fez, impedindo que a
apreciação do recurso do despacho que aplicara a medida de coacção pudesse
revestir-se de utilidade para a subsistência desta.
Também no presente caso, não se vê, pois, que interesse prático atendível
poderia justificar a prossecução do recurso interposto para o Tribunal da
Relação de uma decisão já entretanto “consumida” por decisão subsequente não
impugnada.
Quanto ao interesse na libertação do recorrente, não subsistia, pois a prisão
preventiva não decorria já do despacho recorrido, mas de outro, posterior, não
impugnado.
E um hipotético interesse no eventual exercício de qualquer direito de
indemnização também não impedia o Tribunal da Relação de concluir, sem violação
do direito ao recurso constitucionalmente garantido no processo criminal, no
sentido da inutilidade superveniente do recurso, por o recorrente ter deixado
transitar em julgado a decisão que mantivera a prisão preventiva – tal como o
Tribunal Constitucional concluiu nos casos dos citados n.ºs 296/03 e 722/97 (e
diversamente do que acontecia no caso do Acórdão n.º 90/84, já citado, em que
estava em causa uma questão prévia relativa à utilidade do julgamento do recurso
de constitucionalidade, sendo que a recorrente expressamente sustentara que
pretendia continuar esse recurso com finalidades indemnizatórias). Na verdade,
não pode, de forma plausível, supor-se que o recorrente interpunha o recurso do
despacho que aplicara a prisão preventiva para a eventualidade de vir
eventualmente a exercer, em acção própria e perante o tribunal competente, um
tal direito de indemnização contra o Estado, quando o recorrente aceitara, sem
recorrer, a posterior manutenção da mesma medida de coacção e não forneceu
qualquer indicação naquele sentido (nem sequer, aliás, o veio a fazer no recurso
de constitucionalidade, sempre se referindo apenas à revogação do despacho que
mantivera as medidas de coacção)”(negrito aditado).
7. Da anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, que acabámos de
sumariar, resulta, em síntese, que:
i) como afirma o representante do Ministério Público nas suas contra-alegações,
“não oferece dúvida que não viola qualquer preceito ou princípio da Lei
Fundamental o estabelecimento – como pressuposto processual – do interesse em
agir como condição para apreciação do mérito dos recursos não traduzindo,
seguramente, a violação do direito ao recurso a circunstância de o tribunal “ad
quem” não dever apreciar os recursos que se tornem subsequentemente inúteis”;
ii) o recurso da decisão que aplica ao arguido a medida de coacção de prisão
preventiva, ainda que no subsequente desenrolar do processo nova decisão venha a
confirmar ou modificar essa medida de privação de liberdade, mantém, contudo, em
princípio, utilidade. No essencial, porque podem existir outros efeitos - ainda
que “residuais” – que devam ter-se por juridicamente relevantes (cfr., por
exemplo, o já citado Acórdão n.º 90/84, quando refere o direito fundamental a
pedir uma indemnização contra o Estado em caso de prisão ilegal (art. 27º, n.º
5, da Constituição)). De facto, embora tal recurso, no caso concreto, face à
nova decisão judicial que decidiu a libertação do arguido, veja afectada a sua
finalidade primacial e imediata - a restituição à liberdade do preso preventivo
– não deixa de ser relevante a sua apreciação, nomeadamente para efeitos do
referido pedido de indemnização;
iii) só assim não será se, sendo a decisão que determinou a prisão preventiva
entretanto substituída por outra que confirme essa medida de coacção, esta
última não for ela própria impugnada (cfr. Acórdãos n.ºs 722/97 e 296/03) e não
houver qualquer indicação no sentido de que o recorrente pretende vir a exercer,
em acção própria e perante o tribunal competente, um direito de indemnização
contra o Estado (assim, o Acórdão n.º 119/04).
8. Ora, da fundamentação que sustenta a jurisprudência acabada de descrever,
resulta a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 287º, alínea e), do
Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do
Código de Processo Penal, se interpretada no sentido de se considerar
supervenientemente inútil o recurso de decisão que aplicou ao arguido a medida
de coacção de prisão preventiva, quando esta decisão já foi substituída por
outra que determinou a cessação daquela medida de coacção, designadamente por
violação do direito ao recurso garantido pelo artigo 32º, n.º 1, da
Constituição.
Com efeito, não só, por um lado, são inteiramente transponíveis para os
presentes autos as razões que conduziram ao juízo de inconstitucionalidade que
se formulou no Acórdão n.º 90/84, já citado, como, por outro lado, não valem
aqui as razões que conduziram ao julgamento que se formulou nos Acórdãos n.ºs
722/97 e 296/03 (no sentido da inutilidade superveniente do recurso de
constitucionalidade) ou no Acórdão n.º 119/04 (no sentido da não
inconstitucionalidade da norma do artigo 287º, alínea e), do Código de Processo
Civil, aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do Código de Processo
Penal, entendida no sentido de se tornar supervenientemente inútil o recurso da
decisão que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, quando esta foi
posteriormente mantida por decisão autónoma, não recorrida, que reapreciou os
respectivos pressupostos no prazo previsto no artigo 213º, n.º 1, do Código de
Processo Penal). É que, não só agora não se pode, em caso algum, presumir,
partindo da inexistência de recurso da segunda decisão, a conformação do
recorrente com a primeira - uma vez que esta segunda decisão, ao contrário do
que acontecia nos casos anteriormente descritos, é uma decisão de revogação da
prisão preventiva e, consequentemente, de restituição do arguido à liberdade -,
como dos autos - designadamente das conclusões X, XII, XVII e XIX da alegação de
recurso apresentada neste Tribunal -, resulta inequivocamente que a manutenção
do interesse no recurso se deve à possibilidade de o recorrente vir
posteriormente a exercer, em acção própria e perante o tribunal competente, um
direito de indemnização contra o Estado, nos termos constantes do artigo 27º,
n.º 5 da Constituição.
Está, assim, em causa, com o critério normativo sub judicio, uma violação do
direito ao recurso garantido pelo artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
III - Decisão
Por tudo o exposto, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação do direito ao recurso consagrado no
artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 287º, alínea e), do Código
de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do Código
de Processo Penal, se interpretada no sentido de se considerar
supervenientemente inútil o recurso de decisão que aplicou ao arguido a medida
de coacção de prisão preventiva, quando esta decisão já foi substituída por
outra que determinou a cessação daquela medida de coacção;
b) consequentemente, ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com
o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2005
Gil Galvão
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Artur Maurício (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmº Consº Bravo
Serra que acompanho).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tendo votado vencido quanto à decisão de julgamento de
inconstitucionalidade constante do aresto de que a presente declaração faz parte
integrante, cumpre-me, brevitatis causa, indicar as razões do meu voto
dissidente.
Não se pondo minimamente em causa que sendo um arguido
sujeito à medida de coacção de prisão preventiva lhe assiste, legal e
constitucionalmente, o direito de impugnar mediante recurso a decisão judicial
impositora dessa medida, a questão que se coloca é, justamente, a de saber se,
vindo tal medida a cessar antes da prolação do veredicto pelo tribunal de
recurso, viola o direito consagrado na parte final do nº 1 do artigo 32º da
Constituição a alínea e) do artº 287º do Código de Processo Civil, aplicável ao
processo criminal ex vi do artº 4º do Código de Processo Criminal, na
interpretação de harmonia com a qual o juízo recursório se torna
supervenientemente inútil.
Tenho para mim que o direito ao recurso garantido no
indicado preceito constitucional indubitavelmente visa assegurar que o cidadão
sujeito à privação da sua liberdade pela mais grave das medidas de coacção possa
ver reapreciado o juízo jurisdicional que essa medida decretou, pois que, dessa
arte, se lhe possibilita que haja uma ponderação por banda de uma formação
judicial superior e colectiva que há-de incidir sobre a justeza daquele juízo,
assim se garantindo que, se o tribunal de recurso concluir pela impropriedade da
decisão da 1ª instância, venha a cessar a restrição da liberdade do arguido
acarretada por essa decisão.
Mas, se, precedentemente ao proferimento do juízo de
reapreciação a efectuar pelo tribunal de recurso, a restrição da liberdade
imposta pela decisão da 1ª instância já não ocorre, a efectiva realização
daquele juízo em nada vai modificar a situação em que já se encontra o arguido,
o que vale por dizer que, na realidade das coisas, o indicado juízo, porque já
não pode ter projecção útil no direito à liberdade restringido, vai,
verdadeiramente, constituir uma pronúncia meramente hipotética ou teórica sobre
o bem fundado de uma decisão judicial que, no momento, já não produz qualquer
efeito.
Poder-se-ia obtemperar a esta consideração que, de todo
o modo, para efeitos de um eventual pedido de ressarcimento dirigido ao Estado
por parte do arguido em razão da privação da sua liberdade, teria sempre o mesmo
interesse na proferenda decisão pelo tribunal de recurso, hipotisando que ela
viesse a concluir pela ilegalidade da decisão da 1ª instância.
Tenho para mim, porém, que essa razão não colhe.
Na verdade, não existe, ao menos por ora, na legislação
ordinária, regra da qual se extraia que, para efeitos de uma demanda de
indemnização ao Estado em virtude de privação de liberdade, tenha de haver
pronunciamento, pelo foro criminal, da ilegalidade dessa privação,
pronunciamento esse que, assim, actuaria como «pressuposto» da demanda.
Por outro lado, ainda que, eventualmente, numa situação
como a em apreço, o tribunal de recurso viesse a concluir pela ilegalidade da
decisão da 1ª instância, não é líquido que, para efeitos de uma hipotética acção
indemnizatória, a decisão tomada em recurso vincule o tribunal que há-se decidir
essa acção, outrotanto sucedendo se porventura a decisão recursória concluísse
pela não ilegalidade.
De outro lado, ainda, perfilho a perspectiva de que o
direito a uma solução jurídica dos conflitos - e, no caso que interessa, a
garantia de um direito ao recurso no processo criminal -, só por si, não
constitui razão para a exigência de uma decisão, pelo tribunal de recurso,
quando o conflito, ao tempo da prolação dessa decisão, já não se surpreende. A
ratio desse direito reside, a meu ver, na garantia de apreciação por um
tribunal, precisamente porque se intenta um veredicto que representa, enfim, a
solução, à face da lei e por um órgão independente e imparcial, sobre as
divergências que ao conflito deram causa.
Aliás, muito embora não se pronunciando sobre a questão
de constitucionalidade que agora constitui objecto do vertente recurso, penso
que este Tribunal, ao tirar o Acórdão nº 296/2003 (publicado na II Série do
Diário da República, de 15 de Abril de 2004), aceitou implicitamente a não
desconformidade constitucional de regras constantes do ordenamento ordinário que
conduziram, nesse aresto, a que se decidisse pela inutilidade superveniente do
recurso, pelo que a situação, a meu ver, não se distingue, substancialmente, em
muito, daquela que deu origem à decisão ora submetida a censura no presente
processo, anotando que, no meu modo de ver, não tem relevância a circunstância
de, naquele acórdão, se postar uma situação em que o arguido não impugnou o
posterior despacho de manutenção da prisão preventiva, e isso, justamente,
porque seria perfeitamente possível que, hipoteticamente, não padecesse de
ilegalidade a decisão que manteve (no caso então em apreciação a decisão de
manutenção até foi proferida pela verificação da «existência, agora reforçada,
de fortes indícios da prática de crimes»), padecendo, porém, desse vício a
primeira decisão decretadora da prisão preventiva.
Por último, não deixo de sublinhar que não anuo à
jurisprudência deste Tribunal que é citada no acórdão de que esta declaração faz
parte integrante, jurisprudência essa que não subscrevi e da qual se extraíram
princípios que conduziram ao juízo de inconstitucionalidade do qual agora
divirjo.
Bravo Serra