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Processo n.º 1047/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. veio deduzir reclamação da decisão proferida pelo Tribunal da
Relação de Lisboa que não admitiu o recurso que pretendia interpor para o
Tribunal Constitucional.
2. Resulta dos autos que:
2.1. Por sentença de 19 de Novembro de 2004, do Juiz do 4º Juízo
Criminal do Tribunal da Comarca de Lisboa, foi o arguido A. condenado, como
autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada,
previsto e punível pelos artigos 105º, n.ºs 1 e 5, da Lei n.º 15/2001, de 5 de
Junho, e 30º, n.º 2, e 79º do Código Penal, na pena de 24 meses de prisão. Nos
termos conjugados dos artigos 50º do Código Penal e 14º, n.º 1, da referida Lei
n.º 15/2001, decidiu-se suspender a execução da pena pelo período de 5 anos, sob
condição do pagamento pelo arguido à Administração Fiscal, no mesmo prazo de 5
anos, da quantia de 164.983.763$00 (a converter em euros), acrescida de juros
legais, de acordo com determinado plano, estabelecido na decisão (fls. 1266 e
seguintes do processo principal).
2.2. Na motivação do recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de
Lisboa, concluiu assim o recorrente A. (fls. 1289 e seguintes):
“[…]
1° - O recorrente deverá ser absolvido do crime pelo qual foi acusado, pois da
prova produzida em audiência resultou que o mesmo tinha delegado várias funções
na empresa, sendo os respectivos funcionários que desempenhavam tais funções
quem sabia da situação de incumprimento por parte da empresa B. à Administração
Fiscal, que a ocultaram ao ora recorrente.
2° - O recorrente não cometeu, no seu entender, qualquer crime de abuso de
confiança fiscal por não ter entregue o I.V.A., dado não estar in casu a receber
uma quantia «para entrega ao Estado» ou «devida ao Estado» pelo repercutido;
3°- A Mmª Juiz a quo não considerou, em termos de aplicação da medida da pena,
várias circunstâncias atenuantes que impunham a aplicação de uma pena inferior à
aplicada, inclusive não privativa da liberdade, como também não considerou a
circunstância modificativa prevista na norma do art° 10°, n.º 3 do CP.
4° - Pelo exposto, a decisão recorrida erra por violação de lei, ao não ter
considerado a legislação vigente, entre o plano das normas e princípios
constitucionais e o da aplicação concreta, violando, entre outras do douto
suprimento desse Tribunal da Relação, as normas contidas nos art.°s 29°, n.º 4
da CRP; 4°, n.º 2, 13°, 15°, 40°, 50°, 70°, 71 ° e 77° do CP; 6°, n.º l, 11º,
n.ºs 6 e 7 e 24°, n.ºs 1, 2 e 5 do RJIFNA; 6°, n.º 1 e 105°, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do
RGIT; 1°, 4°, 14°, 19°, 25°, 26°, 28°, n.º 1, al. b) e e), 35° e 36°, n.ºs 1 e
2, 40°, n.º 1, al. a), 71° do Código do IVA.
[...].”.
2.3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 15 de Junho de 2005
(fls. 1320 e seguintes), concedeu provimento parcial ao recurso, condenando o
arguido A., como autor material do mencionado crime de abuso de confiança
fiscal, na forma continuada, na pena de 20 meses de prisão, substituindo, nesta
parte, a pena de 24 meses de prisão fixada na sentença recorrida, mantendo-a,
quanto ao mais.
Relativamente à decisão de suspender a pena e às condições impostas ao
arguido, disse o Tribunal da Relação de Lisboa nesse acórdão:
“[…]
A previsão do artº 50° do CP, pretende, com o instituto da suspensão da execução
da pena, afastar o delinquente, no futuro, da prática de novos crimes.
Assim, tem total pertinência a afirmação vertida na sentença recorrida que: «No
necessário juízo de prognose, tem-se presente personalidade do arguido, as suas
condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as
circunstâncias deste mesmo facto, sendo que, no presente caso, o percurso de
vida do arguido a par das suas condições pessoais, económicas e sociais denotam
um quadro manifestamente positivo de inserção social, de molde a justificar como
razoável um juízo de prognose positiva no sentido de que a censura do facto e a
ameaça da prisão serão suficientes para realizarem de forma adequada e
suficiente as finalidades da punição.
Logo, por força do citado art. 50° do CP e 14° do RGIT (sendo este o regime
legal que se mostra mais favorável para o arguido, pois prevê um prazo mais
alargado para o pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, que é
condição legal da suspensão) entende-se que deverá ser suspensa a execução da
pena a aplicar ao arguido, pelo período de cinco anos, sob a condição de pagar,
nesse prazo de cinco anos, à Administração Fiscal, a quantia de 164.983.763$00,
a converter em correspondente montante em Euros, que diz respeito ao montante
global das prestações em divida, acrescido de juros legais de 4% (Portaria n.º
291/03, de 8/4).
O arguido deverá proceder ao pagamento de metade da referida importância, no
prazo de 3 [anos], contados após o trânsito em julgado desta decisão e o
remanescente será pago nos restantes 2 anos, em prestações mensais, iguais e
sucessivas».
Acresce que, neste mesmo sentido, no Ac. do STJ de 12/10/2000, Col. de Jur., t.
3, p. 194, veio a admitir-se, neste tipo de crime, a suspensão de pena, mas de
prisão, condicionada ao pagamento de indemnização, considerando respeitados os
termos dos arts. 50º, 51º n.ºs 1 al. a) e 2 do C. Penal, ficando a suspensão
condicionada ao pagamento dos impostos e acréscimos devidos.
Também no Ac. do STJ de 20/6/01, na Col. Jur. do STJ, t. 2, p. 227, se decidiu
no mesmo sentido, chegando a admitir-se o prazo máximo da suspensão, que é de 5
anos.
Refere, ainda, o T. Constitucional, no Ac. de 20/6/2000, no D.R. II S. n.º 240,
de 17/10/00, p. 16729, se pronunciou já no sentido do crime de abuso de
confiança fiscal ser constitucional, face ao princípio de ninguém poder ser
privado da liberdade por não cumprir uma obrigação contratual.
Por fim, o Ac. do STJ, de 05/01/06, publicado no «site» do mesmo, refere: «I -
Nas infracções tributárias, a aplicação automática da subordinação da suspensão
da execução da pena de prisão ao pagamento da quantia em dívida, mesmo fora dos
condicionalismos do art. 51º, n.ºs 1, al. a) e 2, do Código Penal, não viola os
princípios da igualdade e da proporcionalidade, constantes dos artigos 13º e
18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, pelo que não é
inconstitucional a norma do artigo 14º, n.º 1, do RGIT, quando interpretado
desse modo. II - É irrelevante o juízo que se faça agora sobre a (in)capacidade
do condenado para satisfazer a condição de suspensão, não só porque a lei não
obriga a esse exercício, como nada indica que, no prazo fixado, o mesmo não
venha a adquirir bens necessários para tal. III - Por outro lado, no momento em
que o recorrente tiver de prestar contas sobre o cumprimento da condição de
suspensão, o Tribunal só poderá declarar revogada a suspensão da execução da
pena por incumprimento dessa condição se este for culposo. E só o fará depois de
ouvir as razões que lhe forem apresentadas pelo arguido, se não resultarem as
demais medidas referidas no art. 55º do CP e se forem infringidas grosseira ou
repetidamente os deveres impostos (art. 56º, n.º 1, al. a), do CP)».
Portanto, tem total justificação – legal e casuística – a imposição imposta à
suspensão da execução da pena.
Concluindo, não se vislumbra, com a prolação da sentença recorrida, a violação
dos princípios constitucionais, nem a dos […] arts. 29°, n.º 4 da CRP; 4° n.º 2,
13°, 15°, 40°, 50°, 70°, 71° e 77° do CP; 6°, n.º 1, 11°, n.ºs 6 e 7 e 24°, n.ºs
1, 2 e 5 do RJIFNA; 6°, n.º 1 e 105°, n.ºs l, 2, 4 e 5 do RGIT; 1°, 4°, 14°,
19°, 25°, 26°, 28°, n.º 1, al. b) e e), 35° e 36°, n.ºs 1 e 2, 40°, n.º 1, al.
a), 71° do Código do IVA.
[...].”.
2.4. A. requereu “a aclaração/reforma” do acórdão, através do
requerimento de fls. 1361 e seguintes, em que concluiu:
“[…] ao condicionar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao
arguido ao pagamento da quantia referida, a decisão aclaranda viola as citadas
regras de competência dos tribunais e faz uma aplicação/interpretação das normas
dos art.ºs 50º do CP e 14º do RGIT que colide com as normas constantes nos
art.ºs 209º, nº 1, al. b) e 212º, n.º 3 da CRP e cuja inconstitucionalidade aqui
se suscita.
[...].”.
2.5. Tendo o pedido sido indeferido por acórdão de 28 de Setembro de
2005 (fls. 1367 e seguintes), A. apresentou requerimento do seguinte teor,
dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 1381):
“[…] recorrente nos autos à margem em epígrafe, notificado da douta decisão de
fls., porque está em tempo, tem legitimidade e interesse processual; porque do
texto do acórdão desse Tribunal da Relação resultam fortes indícios da
existência de inconstitucionalidade /ilegalidade da interpretação dada às normas
constantes nos art.ºs 50º do CP e 14º do RGIT, por violação do constante nos
art.ºs 209º, n.º 1, al. b) e 212º, nº 3 da CRP; porque a questão é actual e
útil; tendo tal questão sido suscitada na aclaração de fls. e reportando-se a
mesma a nulidade insanável nos termos da al. e) do artº 119º do CPP;
Vem, mui respeitosamente, nos termos da CRP e nos termos da al. b) do n.º 1 do
artº 70º da LOFPTC, requerer a apreciação das referidas normas, segundo a
interpretação dada no douto acórdão de fls.
[...].”.
2.6. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa,
notificado de tal requerimento, pronunciou-se, nos termos seguintes (fls. 1382 e
v.º):
“[…]
Afigura-se-nos que a questão da inconstitucionalidade apenas foi suscitada no
requerimento de aclaração, o que porventura não obedecerá aos requisitos do art.
75º, n.º 2, da LTC;
Contudo, verifica-se tempestividade – cfr. n.º 1 do art. 75º da LTC, embora o
requerimento de recurso se nos afigure erradamente dirigido;
Contudo, afigura-se-nos que a decisão sobre a respectiva admissibilidade caberá
ao Tribunal Constitucional e não a esta Relação.”.
2.7. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu, em 16 de Novembro de
2005, o seguinte acórdão (fls. 1384 e seguinte):
“[…]
O recorrente, A., após a prolação do acórdão de fls. 1367 a 1374, que indeferiu
a aclaração do acórdão de fls. 1320 a 1342, veio requere[r] a apreciação da
inconstitucionalidade/ilegalidade da interpretação de normas jurídicas do RGIT,
por violação de preceitos constitucionais.
A questão da inconstitucionalidade foi, apenas, suscitada no requerimento de
aclaração, não o tendo sido nas conclusões da motivação do recurso. Portanto, a
mesma é, pois, alheia ao objecto do presente recurso.
A apreciação de inconstitucionalidade, através de meio próprio, tempestivamente,
e por quem possua legitimidade, compete, não ao Tribunal da Relação, mas sim, ao
Tribunal Constitucional, nos termos dos arts. 69° e ss, da Lei n.º 28/82, de
15/11.
III - Decisão
Em face do exposto, sem necessidade de maiores considerações, acordam em
indeferir o requerimento de fls. 1381.
[…].”.
2.8. A. veio, ao abrigo do disposto no artigo 76º, n.º 4, da Lei do
Tribunal Constitucional, deduzir reclamação do despacho de não admissão do
recurso para o Tribunal Constitucional, através do requerimento de fls. 3 e
seguintes dos presentes autos de reclamação, em que se lê:
“[…]
A decisão ora sob reclamação decide rejeitar o recurso interposto para o TC
alegando que «a questão da inconstitucionalidade foi, apenas, suscitada no
requerimento de aclaração, não o tendo sido nas conclusões da motivação de
recurso, portanto, a mesma é, pois, alheia ao objecto do presente recurso».
Sucede, porém, que a Lei do Tribunal Constitucional não obriga que a
inconstitucionalidade haja sido suscitada nas conclusões da motivação de
recurso, mas «durante o processo». Ou seja, em fase que ainda comporte a
apreciação de uma questão de inconstitucionalidade.
E aqui haverá que atender à particular questão de inconstitucionalidade
suscitada.
Antes de mais deverá ser esclarecido que o reclamante arguiu uma nulidade. A
saber, «violação das regras de competência do tribunal» (cfr. al. e) do art°
119º do CPP). Nulidade a qual, por ser qualificada no nosso ordenamento jurídico
como insanável, nem sequer necessita de ser suscitada, devendo mesmo «ser
oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento», isto é, até haver
decisão com trânsito em julgado.
Ou seja, quando argui tal nulidade durante as suas alegações orais em sede de
audiência de julgamento e, a posteriori, no decurso do prazo do trânsito em
julgado, fá-lo atempadamente, pois, a considerar-se verificada tal nulidade pelo
tribunal, a mesma deveria ser declarada com todas as consequências à mesma
inerentes.
Mas o Tribunal a quo, distraindo-se, passe a expressão, muito mais com as
consequências que acarretaria tal declaração de nulidade – que na óptica do ora
reclamante acarretaria a nulidade da condição à qual ficou sujeita a suspensão
da pena de prisão em que foi condenado – do que propriamente com a análise da
existência ou não da aludida excepção, defende expressamente que não se
vislumbra qualquer razão para a dedução da incompetência invocada.
Sucede que tal questão tem implicações ao nível da Constituição. Ou, dito de
outra forma, assim o entende o ora reclamante.
Significa isto que, a existir oportunidade na arguição da nulidade, como se
demonstrou que existe efectivamente, pois sobre a mesma o tribunal a quo se
pronunciou, consequentemente, também se deverá considerar oportuna a questão de
inconstitucionalidade suscitada, devendo a mesma ser analisada.
Termos em que deve a presente reclamação ser remetida ao Tribunal Constitucional
para ser apreciada, suspendendo-se os termos do processo, e, por via dela, ser o
presente recurso admitido, tudo como justiça.
[...].”.
2.9. A Desembargadora Relatora proferiu o despacho que consta de fls. 9
e v.º destes autos, do seguinte teor:
“[…]
Em nosso entender o requerimento de fls. 1381 não configura um recurso
interposto para o Tribunal Constitucional.
Por essa razão, foi proferido o acórdão de fls. 1384 e 1385.
Contudo, sempre se dirá que se a pretensão efectiva do recorrente era a de
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, deveria tê-lo dirigido,
redigido e fundamentado, adequada e correctamente, o que não fez (cfr. arts.
70º, n.º 1, al. b), e n.º 2, 75º, n.º 2, e 75º-A, n.º 2, todos da Lei n.º 28/82,
de 15.11.
Todavia, face ao preceituado nos arts. 76º, n.º 4, e 77º da Lei n.º 28/82, com a
finalidade de evitar processado dilatório, deverá a presente reclamação ser
remetida ao Tribunal Constitucional para apreciação. Para cabal esclarecimento
do processado, os autos principais, aos quais a presente reclamação se encontra
apensa, deverão acompanhá-la.
[…].”.
3. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação, o representante
do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional emitiu o seguinte parecer
(fls. 12 v.º):
“É, desde logo, duvidoso que o requerimento apresentado a fls. 1381 corporize,
em termos inteligíveis, a manifestação da vontade de interpor um recurso de
fiscalização concreta perante este Tribunal Constitucional – sendo, aliás,
tratado no Tribunal «a quo» como suscitação de mais um incidente pós-decisório,
rejeitado em conferência.
De qualquer modo, a considerar-se tal requerimento como envolvendo a
interposição de um recurso para este Tribunal – e qualificando o acórdão
proferido como traduzindo um indeferimento ou rejeição de tal recurso – é
manifesta a improcedência da reclamação ora deduzida, por não se mostrar
suscitada, em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base a interposição de um
recurso de fiscalização concreta.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Na decisão aqui reclamada, do Tribunal da Relação de Lisboa, não
foi admitido o recurso que o ora reclamante pretendia interpor para o Tribunal
Constitucional, por se ter entendido que “a questão da inconstitucionalidade
foi, apenas, suscitada no requerimento de aclaração, não o tendo sido nas
conclusões da motivação do recurso” (supra, 2.7.).
Na reclamação agora deduzida, o reclamante vem sustentar, em síntese (supra,
2.8.):
– que “a Lei do Tribunal Constitucional não obriga que a
inconstitucionalidade haja sido suscitada nas conclusões da motivação de
recurso, mas «durante o processo». Ou seja, em fase que ainda comporte a
apreciação de uma questão de inconstitucionalidade”;
– que “o reclamante arguiu uma nulidade”, a saber, “violação das regras de
competência do tribunal”, a qual, “por ser qualificada no nosso ordenamento
jurídico como insanável, nem sequer necessita de ser suscitada, devendo mesmo
«ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento», isto é, até
haver decisão com trânsito em julgado”;
– que “o Tribunal a quo […] defende expressamente que não se vislumbra
qualquer razão para a dedução da incompetência invocada”,
– que, no entendimento do ora reclamante, “tal questão tem implicações ao
nível da Constituição”;
– que, sendo oportuna a arguição da nulidade, “pois sobre a mesma o tribunal
a quo se pronunciou, consequentemente, também se deverá considerar oportuna a
questão de inconstitucionalidade suscitada, devendo a mesma ser analisada”.
5. É patente que o recurso que o ora reclamante pretendia interpor
não pode ser admitido.
O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional – preceito a que o ora reclamante faz referência no requerimento
de fls. 1381 – é o recurso que cabe das decisões dos tribunais “que apliquem
norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso fundado nessa
disposição, exige-se que o recorrente suscite, durante o processo, a
inconstitucionalidade da norma (ou interpretação normativa) que pretende que
este Tribunal aprecie e que tal norma (ou tal norma, com essa interpretação)
seja aplicada no julgamento da causa, não obstante a acusação de
inconstitucionalidade que lhe foi dirigida.
Ora, independentemente da questão de saber se o requerimento de fls. 1381
(supra, 2.5.) consubstancia um autêntico requerimento de interposição de recurso
para o Tribunal Constitucional – tendo sido tratado, no Tribunal da Relação,
como um incidente pós-decisório, indeferido em conferência –, decorre claramente
dos autos que o ora reclamante não suscitou, durante o processo, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa.
Apenas no requerimento de fls. 1361 e seguintes – através do qual pediu “a
aclaração/reforma” do acórdão da Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Junho
de 2005 (supra, 2.4.) –, o ora reclamante afirmou o seguinte: “[…] ao
condicionar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido ao
pagamento da quantia referida, a decisão aclaranda viola as citadas regras de
competência dos tribunais e faz uma aplicação/interpretação das normas dos
art.ºs 50º do CP e 14º do RGIT que colide com as normas constantes nos art.ºs
209º, nº 1, al. b) e 212º, n.º 3 da CRP e cuja inconstitucionalidade aqui se
suscita”.
Nesta afirmação, contida em requerimento onde se requer a aclaração do
acórdão anteriormente proferido, não pode todavia ver-se a invocação, em termos
processualmente adequados, de uma questão de inconstitucionalidade normativa,
como exigem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional.
Em primeiro lugar, de acordo com a jurisprudência reiterada deste Tribunal, o
requerimento em que se pede a aclaração de uma decisão não constitui, em regra,
momento adequado para se poder considerar suscitada uma questão de
inconstitucionalidade “durante o processo”, uma vez que o poder jurisdicional do
tribunal que proferiu a decisão aclaranda se encontra já esgotado – sendo certo
que, nas circunstâncias do presente processo, não existe qualquer motivo
susceptível de dispensar o ora reclamante de cumprir o ónus a que se referem os
citados preceitos da Lei do Tribunal Constitucional. Na verdade, o acórdão da
Relação mais não fez do que confirmar, na parte impugnada em recurso, a decisão
da 1ª instância, pelo que o ora reclamante teve oportunidade processual de
suscitar a questão de inconstitucionalidade na motivação do recurso interposto
para a Relação.
Em segundo lugar, observa-se que, no requerimento em que pediu “a
aclaração/reforma” do acórdão da Relação, o ora reclamante se limitou a imputar
vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade à própria decisão aclaranda.
Aliás, nem no requerimento através do qual pretendeu interpor o recurso para
o Tribunal Constitucional (supra, 2.5.), nem na reclamação da decisão que não
admitiu tal recurso (supra, 2.8.) – que, de todo o modo, não poderiam ser
considerados momentos adequados para dar como cumprido o ónus de invocação da
questão de inconstitucionalidade “durante o processo” perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida – o ora reclamante identificou com clareza a
interpretação normativa perfilhada na decisão recorrida que considera
inconstitucional e que pretende submeter ao julgamento deste Tribunal. Por
outras palavras, o ora reclamante não chegou sequer a definir o objecto idóneo
de um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade. Limitou-se a
referir que “do acórdão desse Tribunal da Relação resultam fortes indícios da
existência de inconstitucionalidade/ilegalidade da interpretação dada às normas
constantes nos art.ºs 50º do CP e 14º do RGIT” e a invocar certas normas
constitucionais que, em sua opinião, teriam sido violadas, o que é
substancialmente diferente e insuficiente para dar como verificado o ónus a que
se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional.
Tanto basta para concluir que o recurso não podia ser admitido e que a
presente reclamação tem de ser indeferida.
III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades
de conta.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2006
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos