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Processo n.º 948/04
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. interpôs, no Tribunal Judicial da Comarca da Póvoa de Varzim,
recurso de impugnação judicial da decisão proferida pelo Chefe de Divisão de
contra-ordenações da Direcção Regional de Viação do Norte, que o condenou na
sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 120 dias, pela prática
da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 24.º do Regulamento de
Sinalização do trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de
Outubro
.
Alegou a inconstitucionalidade da norma do artigo 34.º, n.ºs. 2 e 3 do
Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei
n.º 356/89, de 17 de Outubro, ao abrigo da qual a entidade administrativa
actuou, por violação do princípio da determinabilidade ou precisão das leis,
enquanto refracção do princípio da segurança jurídica, corolário do princípio do
Estado de Direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, por não
permitir ao cidadão alicerçar uma posição juridicamente definida e protegida no
que respeita ao conhecimento da autoridade administrativa competente em matéria
de aplicação de sanções contra-ordenacionais.
A impugnação foi julgada improcedente, por sentença de 2 de Maio de
2003 (fls. 24 e ss.).
Desta sentença interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação que, por
acórdão de 26 de Maio de 2004 (fls.70 e ss.) lhe negou provimento.
O recorrente interpôs, então, o presente recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro (LTC), no qual apresentou alegações com as seguintes
conclusões:
“A)
O recurso vem interposto do Acórdão da Relação que indeferiu a pretensão do
autor, de ver declarada inconstitucional o regime decorrente dos n.ºs. 2 e 3 do
artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10/82, com a redacção modificada
pelo Decreto-Lei n.º 356/89 de 17 de Outubro, por violar os Princípios da
protecção da Confiança dos Cidadãos e da Segurança Jurídica, plasmados no art.º
2.º da CRP.
B)
O acórdão recorrido fundamentou-se, na parte respeitante à violação do Princípio
da Confiança e Segurança Jurídica, no facto de a publicação dos actos de
Delegação e Subdelegação ser suficiente para salvaguardar o cumprimento dos
princípios invocados.
C)
Não podemos validar tal axioma, porquanto existe sempre a possibilidade de os
superiores hierárquicos poderem chamar a si a resolução de casos concretos sem
que para tal necessitem de extinguir a delegação.
D)
Este poder impossibilita que os cidadãos saibam, quando cometam uma
contra-ordenação estradal, quem será exactamente o responsável pela aplicação da
sanção.
E)
A imprevisibilidade do regime resulta da norma invocada, e viola o Princípio da
Segurança Jurídica e da Confiança dos Cidadãos, subprincípios concretizadores do
Estado de Direito Democrático, plasmados no art.º 2.º da CRP.
F)
No mesmo sentido realça-se a obrigação de o legislador fazer leis com densidade
suficiente para se poder controlar a legalidade da sua aplicação, em
conformidade com o subprincípio da Precisão ou Determinabilidade das normas
jurídicas.
G)
O recorrente considera serem inconstitucionais os n.ºs 2 e 3 do artigo 34.º do
Decreto-Lei n.º 433/82, por violação do artigo 2º da Constituição, pretendendo
em consequência que a citada norma não seja aplicado ao caso concreto,
revogando-se em consequência a decisão recorrida a fim de ser reformada em
conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade.”
O Ministério Público contra-alegou sustentando ser manifesto que não
infringe o princípio constitucional da confiança o regime jurídico que permite a
aplicação das figuras da delegação ou sub-delegação de competência em processo
contra-ordenacional, num caso em que tais despachos foram devidamente publicados
no jornal oficial e em que as notificações feitas ao arguido mencionavam
expressamente a existência de sub-delegação e o local onde tal despacho havia
sido publicado.
2. O Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que institui o regime geral do
ilícito de mera ordenação social e o respectivo processo, dispõe o seguinte (na
redacção resultante do Decreto-Lei n.º 356/89, de 17de Outubro):
“Artigo 34.º
(Competência em razão da matéria)
1- A competência em razão da matéria pertencerá às autoridades determinadas pela
lei que prevê e sanciona as contra-ordenações.
2- No silêncio da lei serão competentes os serviços designados pelo membro do
Governo responsável pela tutela dos interesses que a contra-ordenação visa
defender ou promover.
3- Os dirigentes dos serviços aos quais tenha sido atribuída a competência a que
se refere o número anterior podem delegá-la, nos termos gerais, nos dirigentes
de grau hierarquicamente inferior.”
Aplicando este regime, no silêncio do Código da Estrada, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º114/94, de 3 de Maio, sobre a competência para aplicação das
sanções pelas contra-ordenações aí previstas, o Ministro da Administração
Interna, pelo Despacho n.º 521/98, de 12 de Dezembro de 1997 (Diário da
República, II Série, de 9 de Janeiro de 1998; como já antes fizera pelo Despacho
n.º 7/94, de 6 de Setembro, publicado no Diário da República, II Série, de 23
de Setembro de 1994), designou como competentes as seguintes entidades:
Governador Civil do Distrito em que foi cometida a infracção e Director Geral de
Viação, elegendo como critério o grau de gravidade das infracções e a
apresentação ou não de defesa pelo arguido (O Despacho n.º 24798/2002, Diário da
República, II Série de 21 de Novembro de 2002, posterior à decisão
administrativa impugnada veio modificar o critério de repartição de
competências).
Por seu turno, o Director Geral de Viação, através do Despacho 6723/01, de 10 de
Março (Diário da República, II Série, n.º 78, de 2 de Abril), delegou os poderes
de aplicação de coimas e sanções acessórias que, neste domínio, lhe foram
atribuídos pelo Ministro da Administração Interna, no Director de Serviços da
Direcção Regional de Viação Norte.
Finalmente, por Despacho n.º 15701/01, de 9 de Julho (Diário da República, II
Série, n.º 175, de 30 de Julho) o Director de Serviços subdelegou a referida
competência, no Chefe de Divisão de contra-ordenações.
Foi ao abrigo deste regime que o Chefe de Divisão de
Contra-Ordenações da Direcção Regional de Viação do Norte aplicou ao recorrente,
na sequência de pagamento voluntário da coima respectiva, a sanção acessória de
inibição de conduzir pelo período de 120 dias, por circular em desobediência a
um sinal de sentido proibido.
O recorrente identifica como constituindo objecto do recurso a norma
dos n.ºs 2 e 3 do citado artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 433/82. Todavia, para a
questão de constitucionalidade que coloca, o preceituado no n.º 2 do artigo 34.º
é elemento neutro. Efectivamente, a imprevisibilidade que diz existir quanto à
titularidade da competência sancionatória não emerge da atribuição, ao membro do
Governo responsável pela tutela dos interesses que a contra-ordenação visa
defender ou promover, da competência para a designação dos serviços competentes
para tramitar e decidir o processo de contra-ordenações (n.º 2 do artigo 34.º),
mas do regime da delegação de poderes que o n.º 3 possibilita, isto é, da
faculdade de os órgãos designados poderem delegar a competência, nos termos
gerais, nos dirigentes de grau inferior.
3. Antes de mais salienta-se que a questão de saber se a determinação da
autoridade administrativa competente para punir um ilícito de mera ordenação
social integra o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação
social e o respectivo processo, a que se refere a alínea d) do n.º 1 do artigo
165.º da Constituição mereceu já, por diversas vezes, resposta negativa por
parte deste Tribunal (cfr. acórdão n.º 444/2004, disponível in
www.tribunalconstitucional.pt, e jurisprudência aí citada). Como se disse no
acórdão n.º 237/2003 e se retomou no acórdão n.º387/2003, em que o objecto de
apreciação era a norma do n.º 2 do Despacho n.º 521/98, interpretada e aplicada
no sentido de atribuir competência ao Director-Geral de Viação e aos
Governadores Civis para aplicarem a sanção acessória de inibição de conduzir,
prevista no artigo 139.º do Código da Estrada, é apenas a opção de atribuir às
autoridades administrativas, em geral, tal competência que integra o regime
geral a que alude o artigo 165º, n.º 1, alínea d), da Constituição. Uma vez
tomada essa opção, expressa nos artigos 33º e 34º do Decreto-Lei n.º 433/82, de
27 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, e pelo
Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, ao abrigo das correspondentes
autorizações legislativas, a determinação da autoridade administrativa
concretamente competente, em cada caso, para a aplicação das coimas é feita nos
termos aí previstos”.
Recorda-se esta jurisprudência – embora não fosse absolutamente
indispensável fazê-lo, uma vez que o recorrente reconhece não possuir novos
argumentos que alterem substancialmente os termos em que o Tribunal tem
analisado a questão na perspectiva da reserva de competência legislativa da
Assembleia da República – porque, além de eliminar um plausível parâmetro
constitucional (cfr. art.º 79.º-C, 2ª parte, da LTC), fornece o quadro de
referência da questão de constitucionalidade material agora colocada, permitindo
reduzir a sua apreciação ao essencial.
4. Entrando na análise da observância do parâmetro constitucional
especificamente indicado pelo recorrente, começa por recordar-se que, sobre o
princípio da precisão ou determinabilidade das normas jurídicas, postulado da
tutela da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos, que são subprincípios
concretizadores do princípio do Estado de Direito democrático, consagrado no
artigo 2.º da Constituição, escreveu-se no acórdão n.º 285/92 in Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 22.º vol., págs. 159 e segs.:
'Sobre o princípio da precisão ou determinabilidade das leis, Gomes Canotilho
(Direito Constitucional, 5ª ed. Coimbra, 1991, pp. 376 e segs) entende que o
mesmo, sob o ponto de vista intrínseco, reconduz-se às seguintes ideias:
exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória
pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco,
capaz de alcançar uma solução jurídica para o problema concreto;
exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto
legislativo que não contém uma disciplina suficientemente concreta ('densa',
determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de:
- alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos;
- constituir uma norma de actuação para a administração;
- possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa
dos direitos e interesses dos cidadãos.
Pormenorizando o sentido destas linhas de força do aludido princípio, o mesmo
autor sublinha que estamos perante uma situação que tem a ver com as relações
'legisferação-aplicação da lei'. Com efeito a indeterminabilidade normativa pode
significar delegação de competência de decisão, isto é, pode traduzir-se em
situações onde a lei deixa à administração amplos poderes de decisão,
reconduzindo-se assim a um problema de distribuição de tarefas entre o
legislador e o aplicador das leis.
Na decorrência deste ponto de vista, o citado autor refere que 'o controlo
destas 'normas abertas' deve ser reforçado'. Elas podem, por um lado, dar
cobertura a uma inversão das competências constitucionais e legais; por outro
lado, podem tornar claudicante a previsibilidade normativa em relação ao cidadão
e ao juiz. De facto, as cláusulas gerais podem encobrir uma 'menor valia'
democrática, cabendo, pelo menos, ao legislador, uma reserva global dos aspectos
essenciais da matéria a regular. A exigência de determinabilidade das leis ganha
particular acuidade no domínio das leis restritivas ou de leis autorizadoras de
restrição.' [Cf. mais recentemente, mas sem modificação significativa, do mesmo
autor, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., p. 258].
E, mais adiante, escreve-se no mesmo acórdão:
'Reconhece-se, sem dificuldade, que o princípio da determinabilidade ou precisão
das leis não constitui um parâmetro constitucional 'a se', isto é, desligado das
matérias em causa ou da conjugação com outros princípios constitucionais que
relevem para o caso. Se é, pois, verdade que inexiste no nosso ordenamento
constitucional uma proibição geral de emissão de leis que contenham conceitos
indeterminados, não é menos verdade que há domínios onde a Constituição impõe
expressamente que as leis não podem ser indeterminadas, como é o caso das
exigências de tipicidade em matéria penal constantes do artigo 29º, nº 1 da
Constituição, e em matéria fiscal (cfr. artigo 106º da Constituição) ou ainda
enquanto afloramento da princípio da legalidade (nulla poena sine lege) ou da
tipicidade dos impostos (null taxation without law)'.
Sendo o confronto com a primeira daquelas exigências (clareza) e a determinação
do seu alcance invalidante do direito infra-constitucional aqui exorbitantes –
porque o sentido do texto legal é evidente, mesmo para o menos esforçado dos
intérpretes, e porque não é disso que o recorrente se queixa –, só o segundo
aspecto (densidade suficiente de regulação legal) interessa ao caso.
O acórdão recorrido enfrentou esta questão nos seguintes termos:
“(...)
Para fundamentar a violação do princípio da protecção da confiança, o recorrente
invoca a impossibilidade de, nesta matéria, haver uma “panóplia de delegações e
subdelegações”. Tal permissão gera a impossibilidade de se conhecer “quem, num
determinado ponto do país, tem competência para aplicar coimas ou sanções não
privativas da liberdade”, gerando assim uma incerteza sobre se a pessoa que
julga e decide tem, de facto, competência para o fazer (fls. 35).
Ora, como é bom de ver, sendo a atribuição de competência feita pelo Ministro da
Tutela e publicada no Diário da República e sendo as delegações e subdelegações
de poderes, também publicadas, não se compreende como se possa dizer que o
cidadão interessado não saiba (ou não possa saber), qual a entidade competente.
De facto, para efeitos de “protecção da confiança”, quanto ao conhecimento das
entidades que, em cada ponto do país, aplicam coimas, basta a publicação no
Diário da República, dos respectivos instrumentos legais que atribuem a
competência.
Quanto à “confiança” sobre a competência técnica das entidades que aplicam as
coimas também não se entende em que termos o recorrente pretendia ver tutelada
essa confiança. A competência para o processamento e aplicação das coimas, é
atribuído à Administração (art.º 33.º do Dec.Lei 433/82). É a entidade delegante
que deve ter confiança na competência técnica do delegado, cabendo-lhe a si o
poder de optar, ou não, pela delegação. Por outro lado, se estiverem cumpridos
todos os requisitos legais da atribuição da competência, sua delegação e
subdelegação, e se o interessado puder impugnar o acto final, está protegida a
sua “confiança” numa apreciação ponderada e justa.
É o caso do procedimento de contra-ordenação (cfr. artigo 59.º e seguintes do
Dec.Lei 433/82, de 27/10). De resto, o recorrente teve oportunidade de impugnar
o acto final e destacar os elementos do discurso jurídico condenatório,
reveladores de falta de competência técnica do autor do acto. Se os não apontou,
foi por que não quis (ou porque a sanção foi bem aplicada), o que mostra que o
sistema legal permite sempre ao interessado o recurso aos Tribunais, onde a
apreciação da legalidade da aplicação da coima é feita com todas as garantias do
processo judicial. A confiança dos cidadãos está, assim, perfeitamente
garantida, através do sistema globalmente considerado.
Nestes termos e em nosso entender, verifica-se que as citadas normas do art.º
34.º, n.ºs 2 e 3 do Dec.Lei 433/82, de 27/10, não põem minimamente em causa o
princípio da “protecção da confiança” dos cidadãos num procedimento justo e na
competência técnica da entidade administrativa que aplica a coima.
(...).”
A estas razões do acórdão recorrido, que desde já se afirma
merecerem confirmação deste Tribunal na sua esfera de competência, o recorrente
contrapõe argumentos dirigidos a demonstrar, em último termo, que a publicitação
não é suficiente para que, na prática, os visados saibam ex ante quem
efectivamente pode aplicar as coimas. E, para isso, esgrime com as consequências
potenciais da aplicação do regime geral do instituto de delegação de poderes,
especialmente com aquelas que decorrem do poder de avocação pelo delegante ou
subdelegante, nos termos gerais, maxime os estabelecidos pelo n.º 2 do artigo
39.º do Código de Procedimento Administrativo (A avocação, neste sentido, é o
acto através do qual o titular da competência originária chama a si a condução e
decisão – ou só esta se estiverem concluídas as fases procedimentais anteriores
– de um procedimento ou caso administrativo concreto).
Quanto à possibilidade de delegação e subdelegação, em si mesma, o recorrente
concede que “um infractor especialmente diligente e conhecedor dos meandros
jurídicos conseguiria com algum esforço, obter a informação de qual a entidade
responsável pelo aplicar da sanção”.
Assim, apenas se acrescentará às razões do acórdão recorrido que,
como já se referiu, o princípio da determinabilidade ou precisão das leis não
opera como parâmetro constitucional desligado da consideração da matéria em
causa ou da conjugação com outros princípios constitucionais que relevem para o
caso. Ora, a norma em apreciação incide sobre aspectos organizatórios da
Administração Pública. Sem negar a relevância das normas de organização
administrativa no plano das relações externas (G. Canotilho e V. Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 926 ss.), não pode
olvidar-se que, diversamente das normas de relação, sejam estas de carácter
material ou procedimental, em que o seu reflexo sobre o conteúdo das decisões
administrativas é imediato, aquelas só indirectamente contendem com posições
jurídicas dos cidadãos. Por isso, não é no princípio da determinabilidade das
leis que pode encontrar-se oposição a que, assegurada por acto legislativo a
definição da competência primária, o legislador devolva à entidade assim
designada os poderes necessários para adequação da afectação dos meios materiais
e humanos que gere ao desempenho da tarefa administrativa de sancionamento dos
ilícitos de mera ordenação social. A outorga de poderes discricionários neste
domínio e com esta extensão encontra apoio nos princípios constitucionais
relativos à estrutura organizatória da Administração enunciados no artigo 267.º
da Constituição, nomeadamente, no princípio da desconcentração (Sem compromisso
quanto à natureza da delegação. Neste enquadramento, a eventualidade de avocação
é instrumento de realização da exigência de eficácia e unidade de acção da
Administração com que aqueles princípios devem ser conjugados, por exigência do
n.º 2 do mesmo artigo 267.º).
Na argumentação que desenvolve, o recorrente desconsidera um aspecto
fundamental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade: não
tendo ocorrido avocação, as considerações que faz a propósito da afectação da
certeza e segurança jurídicas e da efectividade da fiscalização do respeito pelo
princípio da igualdade por parte da Administração, de que essa possibilidade, a
seu ver, é geradora, são puramente especulativas. Tais supostos perigos emergem
de uma hipótese normativa que não se concretizou (de um poder administrativo que
não foi exercido), respeitando, portanto, a uma dimensão da norma que não foi
aplicada. Pelo que, atendendo à natureza instrumental do recurso, não há que
apreciá-las. Tanto mais que os tribunais da causa nem sequer se pronunciaram
sobre se a habilitação para delegar “nos termos gerais” tem o sentido de tornar
aplicável ao procedimento de contra-ordenação esse particular aspecto do regime
geral da delegação de poderes.
5. Poderá objectar-se que esta resposta não está sintonia com o modo
como o recorrente apresenta a questão de constitucionalidade. Na verdade, a
argumentação do recorrente vai dirigida a convencer de que a mera possibilidade
de avocação introduz uma intolerável indeterminação quanto a saber quem, em
concreto, será responsável pela aplicação da coima. Seria a avocação em
potência e não em acto que, gerando a incerteza, infringiria o referido
princípio.
Porém, mesmo nesta perspectiva, o recurso é improcedente.
Como o acórdão recorrido salienta, o regime de publicitação da
delegação de poderes e o regime das notificações em processo de contra-ordenação
asseguram ao interessado o conhecimento da autoria do acto punitivo e
habilitam-no ao controlo da regularidade do exercício do poder sancionatório,
impugnando perante os tribunais quaisquer infracções cometidas pelas autoridades
administrativas, incluindo as que resultem da violação das normas legais
definidoras da competência. Não resulta afectada, pela remissão para o regime
de delegação contida no n.º 3 do artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 433/82, mesmo
que inclua a avocação, nem a função de subordinar a Administração a uma norma de
actuação, nem a de propiciar aos tribunais uma norma de controlo da legalidade.
E também não se conhece, nem o recorrente identifica, norma ou princípio que
possa alicerçar uma posição constitucionalmente protegida do cidadão em que a
lei seja tal que lhe permita determinar, de modo imutável, no momento da prática
do facto, que órgão administrativo terá competência para decidir sobre o ilícito
de mera ordenação social que esse facto possa constituir. Designadamente, é
seguro que tal pretensão não tem cobertura no n.º 10 do artigo 32.º da
Constituição, porque a eventual concorrência de competências entre delegante e
delegado não afecta qualquer componente dos direitos de audiência e defesa do
arguido em processo de contra-ordenação. Aliás, com a extensão que o recorrente
lhe confere, tal pretensão (e a consequente inconstitucionalidade da regra que a
frustrasse) nem sequer teria acolhimento no princípio do juiz natural, ainda que
tal princípio pudesse transpor-se para a fase administrativa do processo de
contra-ordenação (e não pode, sumariamente, porque o elemento literal e
sistemático o não incluem no n.º 10 do artigo 32.º e porque não é uma irradiação
imposta para esse domínio sancionatório de requisitos evidentes do Estado de
direito democrático, quer pela diversa natureza do ilícito em causa, quer porque
não sendo a “última palavra” da Administração a eventual “manipulação” de
competências não tem na fase administrativa do processo os riscos que o impõem
em processo criminal). Como demonstra Figueiredo Dias, «Sobre o sentido do
princípio jurídico-constitucional do “juiz-natural”», Revista de Legislação e
Jurisprudência, Ano 111º, p.83 e ss., o princípio do juiz legal (no domínio em
que tem aplicação) não obsta a que uma causa penal venha a ser apreciada por
tribunal diferente do que para ela era competente ao tempo da prática do facto
que constitui o objecto do processo.
Assim, as considerações feitas pelo recorrente sobre os riscos da abertura da
norma impugnada quanto à garantia de um procedimento justo são irrelevantes,
improcedendo a questão de constitucionalidade.
6. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e condenar o
recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 3 de Maio de 2005
Vítor Gomes
Gil Galvão
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício