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Processo n.º 785/04
1.ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
O Tribunal Colectivo de Ílhavo condenou A. na pena de 7 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de droga, previsto e punido no n.º 1 do artigo
21º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, agravado nos termos das alíneas i) e j) do artigo 24º do mesmo diploma. O arguido recorreu desta decisão para a Relação de Coimbra que, por acórdão de 15 de Outubro de 2003, a confirmou. Recorreu depois para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão proferido em
6 de Maio de 2004, decidiu “condená-lo, pela prática de um crime de tráfico comum de estupefacientes, p.p. no artigo 21º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de
22 de Janeiro, na pena de cinco anos e seis meses de prisão, de que há que levar em conta a prisão preventiva sofrida de 18/01/2001 a 17/07/2003”. O recorrente reclamou, invocando a nulidade da decisão, mas o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 17 de Junho de 2004, indeferiu a reclamação.
Alegando que suscitou a questão de inconstitucionalidade aquando do requerimento incidental que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, relativo ao Acórdão proferido por este Venerando Tribunal, pretende agora o mesmo arguido recorrer, ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro
(LTC), por considerar inconstitucional, por violação do artigo 32º, n. 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação feita em tal aresto, das regras do artigo 379º, n.º1, alínea c), do Código de Processo Penal.
Ao abrigo do artigo 78º-A da citada LTC, decidiu-se, porém, não tomar conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
O Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado que, no caso de ser questionada uma interpretação normativa de determinado preceito, o recorrente tem o ónus de indicar – durante o processo e no requerimento de interposição de recurso – de forma clara e perceptível o exacto sentido em que a norma foi aplicada na decisão recorrida (cfr. Acórdão n.º 178/95, publicado no DR, II série, de 21 de Junho de 1995). Ora, no presente caso, o recorrente não identifica no requerimento de interposição de recurso qual a interpretação da norma da alínea c) do artigo
379º do Código de Processo Penal que teria sido aplicada na decisão recorrida e por si reputada de inconstitucional, de forma a definir uma questão de constitucionalidade normativa susceptível de ser objecto do recurso que pretendeu interpor. Se bem que tal deficiência pudesse ser suprida nos termos do n.º 6 do artigo
75º-A da LTC, certo é que tal se revela inútil, visto que a referência a uma alegada inconstitucionalidade é reportada, pelo recorrente, à própria decisão, e não a norma aplicada no aresto como razão de decidir. Nele podemos ler: Na verdade, e salvo melhor entendimento, cremos ter o Supremo Tribunal de Justiça, ao assumir tal posição, violado o artigo 32º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que, manifestamente, coarctou ao arguido a sua possibilidade de recurso. A não identificação pelo recorrente, de modo processualmente adequado e perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (n. 2 do artigo 72º da LTC) da exacta interpretação da alínea c) do artigo 379º do Código de Processo Penal que entende não dever ser aplicada por inconstitucionalidade, impede que se possa conhecer do objecto do recurso. E, por outro lado, é inadmissível que o objecto do recurso consista na decisão recorrida, como acontece no presente caso, em que o recorrente imputa a censura da inconstitucionalidade à própria decisão recorrida. Como é sabido, o recurso previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, tem por objecto a apreciação da constitucionalidade de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida e não a das próprias decisões que as apliquem.
É assim de concluir que se não mostram verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, pelo que, ao abrigo do artigo 78º-A da citada LTC, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Desta decisão reclama o arguido, nos seguintes termos:
1. Salvo o devido e merecido respeito, cremos não assistir razão ao Ex.mo Juiz Conselheiro Relator quando decide não tomar conhecimento do objecto de recurso.
2. Corresponde à realidade que o arguido ora reclamante, aquando do seu requerimento de interposição de recurso, não identificou cabalmente qual a interpretação da norma da alínea c), do n.º1, do artigo 379º, do Código de Processo Penal que teria sido aplicada na decisão recorrida. No entanto, e como resulta da lei (vide artigo 75º-A, nº.5 e 6, da LTC), deveria o Ex.mo Juiz Relator ter proferido despacho-convite no sentido de o requerente vir prestar tal indicação, no prazo de 10 dias. Ora, tal não sucedeu.
3. A este respeito diga-se que o chamado despacho-convite (como é o caso da previsão do n.º.5, do artigo 75.º-A, da LTC) não se traduz numa mera faculdade e/ou poder conferido ao Ex.mo Juiz Conselheiro, mas antes num dever/obrigação decorrente da própria lei e cuja omissão constitui uma verdadeira nulidade.
4. Acresce, ainda, o facto de ser a própria LCT, no n.º.2, do artigo 78º-.A que afirma, relativamente à decisão do Juiz Conselheiro Relator não conhecer do objecto do recurso por não se encontrarem indicados os elementos exigidos pelo artigo 75º-A, do mesmo diploma legal, “O disposto no número anterior é aplicável quando o recorrente, depois de notificado nos termos dos n.º 5 ou 6 do art.
75º-A não indique integralmente os elementos exigidos pelos seus nºs. 1 a 4”
(sublinhado nosso). Daqui decorre, mais uma vez, a obrigatoriedade legal que vincula o Juiz Conselheiro Relator a proferir, previamente à decisão de não conhecer do objecto de recurso, despacho-convite nos termos acima enunciados.
5. Por outro lado, temos alguma dificuldade em entender o porquê da decisão de que ora se reclama afirmar que “referência a uma alegada inconstitucionalidade é reportada, pelo recorrente, à própria decisão, e não a norma aplicada no aresto como razão de decidir”, concluindo, assim, que o objecto de recurso consiste na decisão recorrida, uma vez que o requerente imputa a esta a censura de inconstitucionalidade. Nada mais errado. O que o requerente afirma é que a interpretação realizada pela decisão recorrida da alínea c), do artigo 379º, do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violar o artigo 32º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa. Não está o recorrente a reportar-se à própria decisão, mas antes à interpretação que a mesma faz da alínea c), do artigo 379º, do Código de Processo Penal, sendo esta que está ferida de inconstitucionalidade.
6. Assim, e como decorre expressamente do próprio requerimento de interposição de recurso, onde se afirma que se considera “inconstitucional por violação do artigo 32º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação feita em tal arresto (ou seja, na decisão recorrida), das regras do artigo 379º n.º 1, alínea c), do Código de processo Penal”. Assim, o que está verdadeira e expressamente em causa é a apreciação de uma inconstitucionalidade normativa, ou melhor, de uma inconstitucionalidade de uma interpretação normativa, realizada pela decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, e não, tal como entende a decisão de que ora se reclama, a própria decisão em si. Aliás, este foi o entendimento aquando foi suscitada pelo ora reclamante a questão da inconstitucionalidade no requerimento incidental que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, relativo ao Acórdão proferido por este Tribunal.
7. Destarte, deverá ser formulado pelo Ex.mo Juiz Conselheiro Relator, o despacho-convite previsto no n.º.5, do artigo 75º-A, da LTC, por força do disposto no nº.6, da mesma disposição legal, por forma a possibilitar ao requerente dar cabal cumprimento ao previsto no n.º2, do dito artigo 75º-A, da LTC, do mesmo diploma legal, tornando esse Tribunal, então, conhecimento do objecto de recurso, tal qual supra alegado. Nestes termos e melhores de Direito: a) deverá o despacho de que ora se reclama ser julgado nulo por violação do n.º5, do artigo 75º-A, da LTC, por força do disposto no n.º6, da mesma disposição legal, sendo substituído por despacho-convite a formular pelo Ex.mo Juiz Conselheiro Relator, por forma a dar cumprimento àquela disposição legal, possibilitando assim ao requerente dar cabal cumprimento ao previsto no n.º 2, do dito artigo 75º-A, do mesmo diploma legal; b) deverá o requerimento de interposição de recurso, e tal como decorre expressamente do mesmo, ser interpretado no sentido de definir como objecto de recurso a apreciação da constitucionalidade da interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão proferido das regras do artigo 379º, n.º1 , alínea c), do Código de Processo Penal, cabendo, portanto, nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, encontrando-se verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b), do nº1 , do artigo 70º da LTC.
O representante do Ministério Público neste Tribunal entende que a reclamação é manifestamente improcedente.
Cumpre decidir.
A reclamação assenta, em primeiro lugar, num lapso manifesto do recorrente; tal como se entendeu na decisão reclamada, é inútil o convite para corrigir a deficiência resultante de o recorrente não haver identificado a norma constante da alínea c) do artigo 379º do Código de Processo Penal que teria sido aplicada na decisão recorrida e por si reputada de inconstitucional, visto que ao recurso faltam ostensivamente outros requisitos de admissibilidade. É, assim, improcedente tudo quanto na reclamação se afirma a propósito do convite previsto no n.º5 do artigo 75º-A da LTC.
Quanto ao resto, isto é, quanto à verdadeira razão pela qual se decidiu não conhecer do objecto do recurso, afirma o reclamante que não acusa de inconstitucional a decisão recorrida, mas antes “a interpretação que a mesma faz da alínea c) do artigo 379º do Código de Processo Penal”, pelo que em causa está
“a apreciação de uma inconstitucionalidade normativa, ou melhor, de uma inconstitucionalidade de uma interpretação normativa, realizada pela decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, e não, tal como entende a decisão de que ora se reclama, a própria decisão em si”, acrescentando ter sido este o entendimento que expressou “quando foi suscitada pelo ora reclamante a questão da inconstitucionalidade no requerimento incidental que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, relativo ao Acórdão proferido por este Tribunal”.
Ora bem: na decisão reclamada procurou demonstrar-se que, ao contrário do que devia, o recorrente nunca suscitou perante o Tribunal recorrido qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
E na verdade assim é.
A referência que o arguido faz, no requerimento apresentado ao Supremo Tribunal de Justiça em reclamação do acórdão condenatório, demonstra, sem margem para dúvida, que nenhuma questão de inconstitucionalidade foi por si atempada e oportunamente suscitada perante aquele Tribunal. Na verdade, ao afirmar invocamos aqui, para todos os devidos e legais efeitos, estar a decisão proferida por esse Colendo Supremo Tribunal de Justiça ferida de inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º n. 5 da Constituição
(violação do princípio do contraditório), o recorrente não estava a suscitar qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, para além de o não poder já fazer naquela fase processual.
É certo que os termos em que se apresenta formulado o requerimento de recurso para este Tribunal – Por considerar inconstitucional, por violação do artigo 32º n. 1 da Constituição, a interpretação feita em tal aresto, das regras do artigo
379º n.º 1 alínea c) do Código de processo Penal – invocam uma questão normativa. Mas tal não permite fazer concluir que, antes, fora devidamente suscitada no processo, perante o Tribunal recorrido, uma questão dessa natureza. Na verdade, a questão não havia sido suscitada no processo, razão pela qual não cabe o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC.
Improcede, nestes termos, a reclamação, pelo que se decide manter a decisão de não conhecer do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos