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Processo n.º 904/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A MAGISTRADA DO MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Supremo Tribunal
Administrativo recorre, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do
Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal
Administrativo, de 22 de Janeiro de 2002, completado pelo acórdão do mesmo
Pleno, de 2 de Junho de 2004, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade
da «norma constante do art.º 40º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de
Abril, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 229/96, de 26 de Novembro,
interpretada como atribuidora ao Tribunal Central Administrativo de competência
para sindicar todos os actos administrativos praticados por “órgãos centrais
independentes” (no caso, pela Alta Autoridade para a Comunicação Social)», por
violação da «norma do art.º 112º, n.º 2, da CRP, já que desrespeita o sentido da
autorização legislativa concedida pela Lei n.º 49/96, de 04/09, sentido esse
definido no seu artigo 2º».
2 – A A., interpôs recurso contencioso de anulação da deliberação de
17 de Setembro de 1997 da Alta Autoridade para a Comunicação Social que foi
tomada sobre a “Queixa do B. contra a A.” relativamente ao programa televisivo
por ela transmitido no dia 2 de Maio de 1997, designado por “C.”.
Tal recurso foi inicialmente interposto no Tribunal Administrativo
do Círculo de Lisboa, mas este Tribunal julgou-se hierarquicamente incompetente
para o seu conhecimento, pois a competência cabia, segundo ele, ao Tribunal
Central Administrativo (TCA), nos termos do art.º 40º, alínea b), do ETAF
(Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril), na redacção introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Dezembro.
Remetidos os autos ao TCA, este Tribunal, pela sua Secção de
Contencioso Administrativo e por acórdão de 14 de Janeiro de 1999, julgou-se,
também, hierarquicamente incompetente para conhecer do recurso contencioso.
Deste acórdão a A. interpôs recurso jurisdicional para o Supremo
Tribunal Administrativo (STA). Apreciando este recurso, a Secção de Contencioso
Administrativo deste Supremo Tribunal, por acórdão de 21 de Setembro de 1999, e
contra o parecer do Magistrado do Ministério Público emitido nos autos, revogou
o acórdão recorrido e julgou competente o TCA para conhecer do recurso
contencioso.
Alegando a oposição do decidido com o julgado no acórdão proferido
no processo n.º 43 518, de 27 de Janeiro de 1999, do mesmo Tribunal – o qual
decidira ser competente o Tribunal Administrativo de Círculo para conhecer de
acto administrativo praticado pela mesma entidade - o Ministério Público
recorreu para o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do STA,
questionando, nas alegações apresentadas sobre o fundo da causa – admitida que
fora a alegada oposição de julgados - a constitucionalidade da norma constante
da alínea b) do art.º 40º do ETAF, na redacção dada pelo citado Decreto-Lei n.º
229/96 quando interpretado no sentido de atribuir ao TCA a competência que antes
cabia aos Tribunais Administrativos de Círculo nos termos do art.º 51º, n.º 1,
alínea a), do ETAF para conhecer dos recursos contenciosos interpostos de actos
praticados por “órgãos centrais independentes do Estado” por efectuada a
descoberto da Lei n.º 49/96, de 4 de Setembro.
O referido Pleno, pelo seu acórdão de 22 de Janeiro de 2002, negou
provimento ao recurso jurisdicional, sem, todavia, apreciar a questão de
inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente.
Arguida a nulidade deste acórdão pelo Magistrado recorrente, veio o
acórdão ora recorrido em conjunto com o anterior a julgar improcedente essa
alegação de inconstitucionalidade e a manter o decidido, abonando-se na seguinte
fundamentação:
«[...]
Em síntese, defende o recorrente M.º P.º que a interpretação dada pelo acórdão
recorrido viola a credencial legislativa (Lei n.º 49/96 de 4/9) ao ir buscar
competências aos Tribunais Administrativos de Círculo e transferi-las para o
então criado Tribunal Central Administrativo.
E sobre este assunto, este tribunal não se pronunciou no seu acórdão.
De fundo não assiste qualquer razão ao Ex.mo Magistrado do Ministério Público.
Na verdade, nos termos do art.º 1º da Lei n.º 49/96 de 4/9 'é concedida
autorização legislativa ao Governo para criar e definir a organização e
competência de um tribunal superior da jurisdição administrativa e fiscal,
designado de Tribunal Central Administrativo'.
Acrescenta-se no art. 2º seguinte que “o sentido da presente autorização
legislativa é o de, através da introdução de alterações ao estatuto dos
tribunais Administrativos e Fiscais e à Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos, permitir a criação e o funcionamento de um tribunal superior da
jurisdição administrativa e fiscal que receba uma parte substancial das
competências do Supremo tribunal Administrativo, designadamente da sua Secção do
Contencioso Administrativo e respectivo pleno”
O art.º 3º, n.º 1, al. s), do mesma Lei refere que “as alterações ao Estatuto
dos Tribunais Administrativos e Fiscais tem a extensão de introduzir outras
adaptações na competência e na organização dos tribunais administrativos e
fiscais que se mostrem coerentes com as alterações ora autorizadas, bem como
necessárias à viabilização do eficaz funcionamento do órgão jurisdicional cuja
criação ora se autoriza”.
Resulta, assim, desta lei autorizativa que a mesma concede poderes ao Governo
para definir a organização e competência de um tribunal superior da jurisdição
administrativa e fiscal, designado de Tribunal Central Administrativo.
Por outro lado, é autorizada a criação e o funcionamento de um tribunal superior
da jurisdição administrativa e fiscal que receba uma parte substancial das
competências do Supremo Tribunal Administrativo, designadamente da sua Secção do
Contencioso Administrativo e respectivo pleno.
Não tem razão o M.º P.º quando defende que as competências do TCA advêm todas do
STA, pois, que o citado art.º 2º refere que o TCA receberá uma parte substancial
das competências do Supremo tribunal Administrativo.
Sendo certo que a citada al. s), dá competências ao Governo para introduzir
outras adaptações na competência e na organização dos tribunais administrativos
e fiscais que se mostrem coerentes com as alterações ora autorizadas, bem como
necessárias à viabilização do eficaz funcionamento do TCA.
Acresce que no preâmbulo do DL. n.º 229/96 se diz que 'que a Lei n.º 49/96
concedeu autorização legislativa ao Governo para criar e definir a organização e
competência do novo TCA..., instância jurisdicional intermédia entre os
tribunais administrativos de círculo e o STA, destinada a receber grande parte
das competências hoje a cargo deste último, por forma a descongestionar o seu
crescente volume de serviço'.
De tudo o que acaba de ser dito, retira-se a grande parte das competências do
TCA advêm do STA, mas não exclui a lei que outras competências, designadamente
do TAC não lhe possam ser conferidas.
E é neste contexto que aparece a nova redacção do art.º 40º do ETAF e,
nomeadamente a sua alínea b), onde se refere que, além de outros, 'compete à
Secção do Contencioso Administrativo do TCA conhecer dos recursos de actos
administrativos praticados por outros órgãos centrais independentes ou
superiores do Estado de categoria mais elevada que a de director-geral'.
Assim, a interpretação dada no acórdão ora arguido de nulidade não viola
qualquer preceito constitucional, designadamente o invocado pelo ora arguente.
Todo este raciocínio subjaz ao acórdão de fls. 170 a 175 quando se decidiu que
'para conhecer dos actos praticados pelos órgãos independentes do Estado e, no
caso concreto, os actos praticados pela Autoridade para a Alta Comunicação
Social é competente a Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central
Administrativo'.
Mas se de fundo não assiste qualquer razão ao M.º P.º, também da mesma carece
quanto à invocada omissão de pronúncia sobre a questão da inconstitucionalidade,
na medida em que a sua não verificação foi decidida, ainda que implicitamente,
pelo sentido da decisão, quando se decidiu ser o TCA competente agora para o seu
conhecimento e não o Tribunal Administrativo de Círculo.
Em concordância com tudo o exposto indefere-se a arguida nulidade do acórdão.
Sem custas.».
3 – Alegando neste Tribunal Constitucional o recorrente Ministério
Público, concluiu do seguinte jeito o seu discurso argumentativo:
«1 - Todas as alterações legislativas a introduzir em sede de organização e
competência dos tribunais se situam dentro da reserva de competência legislativa
da Assembleia da República, carecendo, deste modo, - quando consagradas em
decreto-lei - de assento legitimador no sentido e na extensão da respectiva lei
de autorização legislativa.
2 - O programa normativo subjacente à Lei n.º 49/96, de 4 de Setembro
consubstancia-se exclusivamente no objectivo de - por razões de
'descongestionamento' do Supremo Tribunal Administrativo - transferir
determinado leque - 'substancial” ou relevante - de competências anteriormente
detidas pelo Supremo Tribunal Administrativo para o recém-criado Tribunal
Central Administrativo.
3 - Pelo contrário, não encontra qualquer fundamento na referida Lei n.º 49/96 a
transferência - de sentido oposto - de competências anteriormente detidas pelos
tribunais administrativos de círculo para aquele tribunal 'superior' - o
Tribunal Central Administrativo, já que a lógica substancial a tal transferência
de competências seria precisamente de sentido oposto ao pretendido
'descongestionamento' dos tribunais 'superiores' da jurisdição administrativa -
não sendo tal alteração 'coerente' com as autorizadas através da tipificação
taxativa do artigo 3º, n.º 1, nem obviamente 'necessária à viabilização do
eficaz funcionamento' do Tribunal Central Administrativo.
4 - Deste modo, não tendo qualquer fundamento, face ao programa normativo
delineado pela Lei n.º 49/96, a transferência de competências dos tribunais
administrativos de círculo para o Tribunal Central Administrativo, é
organicamente inconstitucional a norma constante da alínea b) do artigo 40º do
Decreto-Lei n.º 129/84- na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de
29 de Novembro - enquanto atribui, em termos inovatórios, ao Tribunal Central
Administrativo a competência para sindicar todos os actos administrativos
praticados por 'órgãos centrais independentes', 'deslocando' para o Tribunal
Central Administrativo matéria anteriormente atribuída aos tribunais
administrativos de círculo.
5 - Termos em que deverá proceder o presente recurso.».
4 – A recorrida não contra-alegou.
B – Fundamentação
5 – A questão decidenda
A questão a conhecer é a de saber se a norma constante da alínea b)
do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 129/84, na redacção introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, interpretada como atribuindo,
inovatoriamente, ao Tribunal Central Administrativo competência para sindicar
contenciosamente todos os actos administrativos praticados por “órgãos centrais
independentes” (no caso, pela Alta Autoridade para a Comunicação Social) é
organicamente inconstitucional por haver sido emitida a descoberto da
autorização legislativa concedida pela Lei n.º 49/96, de 04/09.
6 – Do mérito do recurso de constitucionalidade
Na versão originária do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais constante do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril (ETAF), a
competência para conhecer, em primeira instância, dos recursos contenciosos de
actos administrativos (não relativos a questões fiscais ou aduaneiras) estava
atribuída apenas a dois tribunais administrativos – os tribunais administrativos
de círculo e o Supremo Tribunal Administrativo - , sendo que este funcionava
ainda como instância de recurso jurisdicional das decisões proferidas por
aqueles, constando, respectivamente, dos artigos 51º e 26º.
E nesse tempo do ETAF era seguro que a competência para conhecer dos
recursos contenciosos de actos administrativos praticados por entidades
administrativas centrais independentes - entre as quais importa incluir a Alta
Autoridade para a Comunicação Social (a quem é imputada a prática do acto
contenciosamente recorrido), criada na revisão constitucional de 1989 e cujo
regime, na concretização que vai além da constante dos preceitos que em cada uma
das versões da Constituição a ela se referem (art.º 39º), foi sucessivamente
enunciado nas Leis n.º 15/90, de 30 de Junho e n.º 30/94, de 29 de Agosto (cf.
sobre o ponto o acórdão deste Tribunal n.º 505/96, publicado nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional 33º vol., pp. 741), e que actualmente consta da Lei n.º
43/98, de 6 de Agosto – não cabia na previsão do seu art.º 26º, que contemplava
a competência da Secção de Contencioso Administrativo do STA mas pertencia antes
aos tribunais administrativos de círculo, por força do disposto no seu art.º
51º, n.º 1, alínea a).
A polémica corporizada na questão decidenda tem que ver com a
circunstância de a competência desses tribunais administrativos ter sido
posteriormente alterada pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, diploma
este que foi emitido sob invocação de uso de autorização legislativa concedida
pela Lei n.º 49/96, de 4 de Setembro.
Na verdade, através desta Lei o legislador parlamentar concedeu
autorização legislativa ao Governo “para criar e definir a organização e a
competência de um novo tribunal superior da jurisdição administrativa e fiscal
designado de Tribunal Central Administrativo” (TCA), vindo este Tribunal, nas
palavras do exórdio do referido Decreto-Lei n.º 229/96, a corresponder a uma
“instância jurisdicional intermédia entre os tribunais administrativos de
círculo e o STA, destinada a receber grande parte das competências hoje a cargo
deste último, por forma a descongestionar o seu crescente volume de serviço”.
Pretendendo desembaraçar-se da tarefa em si delegada, e no que
importa à competência dos tribunais administrativos, o legislador do Decreto-Lei
n.º 229/96, de 29 de Novembro, veio a fixar, criando-a ex novo, a competência da
Secção de Contencioso Administrativo do TCA nos termos constantes do seu artigo
40º, aí incluindo algumas das antes atribuídas ao STA, na versão originária do
art.º 26º do ETAF. Por seu lado, diminuiu o leque de competências da Secção de
Contencioso Administrativo do STA, tendo estas continuado a constar deste artigo
26º. E finalmente inseriu no art.º 51º do ETAF novas competências dos tribunais
administrativos de círculo [Anote-se aqui que o Estatuto dos Tribunais
Administrativos e a repartição das respectivas competências foi recentemente
objecto de nova e profunda alteração que andou de par com uma profunda reforma
da lei de processo nos tribunais administrativos que foi levada a cabo,
respectivamente, pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e n.º 15/2002,de 22
de Fevereiro, posteriormente alteradas pela Lei n.º 4-A/2003, de 19 de
Fevereiro].
A solução da questão está assim em saber se a alteração de
competência em razão da hierarquia para conhecer dos recursos contenciosos de
actos praticados pela autoridades administrativas centrais independentes, antes
cometida pelo art.º 51º, n.º 1, alínea a), do ETAF (versão originária) aos
tribunais administrativos de círculo para a esfera da Secção de Contencioso do
TCA, mediante a alínea b) do art.º 40º do ETAF, na interpretação sufragada e
aplicada pelo acórdão recorrido, dispõe de credencial parlamentar bastante.
Na verdade, segundo resulta do disposto na alínea q) do art.º 168º
da CRP, na versão vigente ao tempo da emissão do Decreto-Lei n.º 229/96 [a que
corresponde hoje a alínea p) do art.º 165º], inscreve-se na competência
exclusiva da Assembleia da República legislar sobre a competência dos tribunais,
salvo autorização dada ao Governo.
Assim sendo, também a alteração da competência dos tribunais administrativos
antes prevista, para conhecer em 1ª instância dos recursos contenciosos de actos
administrativos, aqui relativa a acto praticado por entidade administrativa
independente, só poderá ter-se por constitucionalmente legítima se for
efectuada por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei do Governo
emitido no uso de autorização legislativa concedida pelo Parlamento.
Caso contrário o decreto-lei do Governo é organicamente inconstitucional por
invasão da competência constitucional da Assembleia da República. Como não
poderá deixar de ser, sofrerá do mesmo vício de inconstitucionalidade a norma
constante de diploma legislativo do Governo que regule matérias abarcadas na
reserva de competência da Assembleia da República a descoberto da autorização
concedida por lei deste órgão constitucional.
Ora a divergência entre o acórdão recorrido e o recorrente versa precisamente
sobre a questão de saber se a referida alteração de competência da órbita dos
tribunais administrativos de círculo para a do TCA, como entendeu o acórdão
recorrido, foi efectuada pelo Decreto-Lei n.º 229/96 com violação do
condicionamento que o artigo 168º, n.º 2, da CRP (hoje equivalente ao n.º 2 do
art.º 165º) estabelece para as leis de autorização legislativa, quanto à
indicação do seu objecto, sentido e extensão, defendendo o primeiro a resposta
afirmativa e o segundo a solução negativa.
A este respeito cabe anotar que o Tribunal Constitucional não se encontra
vinculado à interpretação feita pelo acórdão recorrido da lei de autorização
legislativa por ela constituir um pressuposto jurídico do conhecimento da
questão de inconstitucionalidade.
A temática dos condicionamentos das leis de autorização legislativa tem sido
abordada por este Tribunal, por diversas vezes e a propósito dos mais variados
diplomas legislativos delegados. Sobre ela se pronunciou profundamente, mesmo em
termos de análise do direito comparado, o Acórdão n.º 358/92, de 11/11/1992,
publicado no Diário da República, I Série, de 26 de Janeiro de 1993.
Escreveu-se, então, aí: «Quanto ao objecto da autorização, ele consiste na
enunciação da matéria sobre a qual a autorização vai incidir, enunciação essa
que, sem prejuízo das garantias de segurança do sistema jurídico, pode ser feita
por remissão e abranger inclusive mais do que um tema ou assunto. Como já se
escreveu, “a determinação do objecto definido pode ser feita de forma indirecta
ou até implícita, quer por referência a actos legislativos preexistentes (que a
delegação pretenda coordenar, refundir ou pôr em execução), quer por natural
decorrência dos princípios e critérios directivos aplicados a uma matéria
genericamente enunciada ou a matérias complexas”» (cf. António Vitorino, As
Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, ed. pol.; Lisboa, 1985, p.
231).
E abordando a matéria da extensão discreteou-se, igualmente: «Por seu turno, a
extensão da autorização especifica quais os aspectos da disciplina jurídica da
matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do
exercício dos poderes delegados».
E sobre o que deve ser entendido por sentido da autorização, afirmou-se aí, por
remissão para o Autor citado: «O sentido da autorização legislativa, sendo algo
mais do que a mera conjugação dos elementos objecto (matéria ou matérias da
reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sobre que
incidirão os poderes delegados) e extensão (aspectos da disciplina jurídica
daquelas matérias que integram o objecto da autorização que vão ser
modificados), não constitui, contudo, exigência especificada de princípios e
critérios orientadores [...], mas algo mais modesto ou de âmbito mais restrito,
que deve constituir essencialmente um pano de fundo orientador da acção do
Governo numa tripla vertente:
- por um lado, o sentido de uma autorização deve permitir a expressão pelo
Parlamento da finalidade da concessão dos poderes delegados na perspectiva
dinâmica da intenção das transformações a introduzir na ordem jurídica vigente
(é o sentido da óptica do delegante);
- por outro lado, o sentido deve constituir indicação genérica dos fins que o
Governo deve prosseguir no uso dos poderes delegados, conformando, assim, a lei
delegada aos ditames do órgão delegante (e o sentido na óptica do delegado); e
- finalmente, o sentido da autorização deverá permitir dar a conhecer aos
cidadãos, em termos públicos, qual a perspectiva genérica das transformações que
vão ser introduzidas no ordenamento jurídico em função da outorga da autorização
(é o sentido da óptica dos direitos dos particulares, numa zona revestida de
especiais cuidados no texto constitucional - as matérias que incluem a reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da República)».
Temos, deste modo, que na definição do sentido da autorização legislativa, a
Assembleia da República pode ir mais ou menos longe, vinculando o legislador
delegado a adoptar soluções que podem transportar uma maior ou menor
pré-definição do regime jurídico adoptando e que, deste modo, podem, assim, ser
enunciadas por uma forma mais ou menos precisa, mais ou menos minuciosa e mais
ou menos completa - «já que resta sempre a possibilidade de apreciar
ulteriormente e corrigir, se necessário, a legislação governamental (art.º 172º,
hoje o art.º 169º, da CRP); e com isso fica também (sem que haja violação da
Constituição) uma margem maior ou menor para o Governo modelar, em definitivo,
as soluções normativas».
Analisemos agora os condicionamentos estabelecidos pela Lei n.º 49/96, de 4 de
Setembro.
O objecto da autorização é apontado no seu artigo 1º que dispõe do seguinte
jeito:
“É concedida autorização legislativa ao Governo para criar e definir a
organização e a competência de um novo tribunal superior da jurisdição
administrativa e fiscal, designado de Tribunal Central Administrativo”.
O sentido encontra-se definido pelo artigo 2º, nos seguintes termos:
“O sentido da presente autorização legislativa é o de, através da introdução de
alterações ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e à Lei de
Processo nos Tribunais Administrativos, permitir a criação e o funcionamento de
um tribunal superior da jurisdição administrativa e fiscal que receba uma parte
substancial das competências do Supremo Tribunal Administrativo, designadamente
da sua Secção do Contencioso Administrativo e do respectivo pleno”.
Por último, a extensão da autorização é dada pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 2, contendo
aquele 18 alíneas [ de a) a s)].
Na sua grande maioria, estas alíneas tipificam as matérias a ser objecto de
alteração legislativa, versando essencialmente sobre deslocação de competências
do âmbito do Supremo Tribunal Administrativo, com acentuação da conferida à
Secção de Contencioso Administrativo e do respectivo pleno, para a esfera da
Secção de Contencioso Administrativo do TCA.
Por seu lado, o n.º 2 refere-se à extensão das alterações a adoptar no domínio
da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
Para o acórdão recorrido, a solução legislativa de deslocar a competência para
conhecer dos recursos contenciosos dos actos administrativos praticados pelas
entidades administrativas centrais independentes dos TAC para o TCA encontra
total apoio no sentido e extensão da referida lei de autorização, porquanto,
embora esta disponha que a competência do TCA seja constituída por uma parte
substancial das competências do STA, “não exclui que outras competências,
designadamente do TAC, não lhe possam ser atribuídas”, dado que “a citada alínea
s) [do referido art.º 3º] dá competências ao Governo para introduzir outras
adaptações na competência e na organização dos tribunais administrativos e
fiscais que se mostrem coerentes com as alterações ora autorizadas, bem como
necessárias à viabilização do eficaz funcionamento do TCA”, aí cabendo a
questionada.
Mas um tal juízo interpretativo não é de acolher, como, de seguida, se verá.
Ao definir, no preceito já transcrito, o sentido da autorização, o legislador
parlamentar quis deixar bem claro que a criação e funcionamento do TCA devia ser
efectuada pelo legislador delegado em termos de tal tribunal superior da
jurisdição administrativa e fiscal receber “uma parte substancial das
competências do Supremo Tribunal Administrativo, designadamente da sua Secção do
Contencioso Administrativo e respectivo pleno”. Quer isto dizer que o legislador
delegado deveria conformar o leque de competências do TCA em termos de lhe ficar
a caber uma parte relevante e significativa da competência que antes pertencia
à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, dado
que se pretendia, mediante a reconfiguração de competências entre ambos os
tribunais, um verdadeiro e significativo descongestionamento deste Supremo
Tribunal.
A expressão “parte substancial” qualifica, assim, apenas o âmbito de
competências a transferir do Supremo Tribunal Administrativo para o TCA, de modo
a atingir-se o pretendido descongestionamento daquele Tribunal, não se referindo
a qualquer deslocação de competência dos tribunais de 1ª instância para o TCA,
ao contrário do que entendeu o acórdão recorrido.
E para se possibilitar a concretização de um tal projecto legislativo
autorizou-se o Governo a “dividir entre o Supremo Tribunal Administrativo e o
Tribunal Central Administrativo o conhecimento dos recursos de decisões dos
tribunais administrativos de círculo quer em função da matéria objecto da causa
quer da natureza do meio processual utilizado” [al. f) do art.º 3º] e a
“restringir aos actos que não sejam relativos ao funcionalismo público a
competência do Supremo Tribunal Administrativo para o conhecimento de grande
parte de recursos contenciosos, reservando para o Tribunal Central
Administrativo o conhecimento dos recursos relativos àquela matéria” (itálico
acrescentado para sublinhar a intencionalidade legislativa).
Anote-se aqui - por razões de simples informação, por a contenda se situar fora
do respectivo âmbito material - que, no que importa à definição da competência
do TCA em matéria tributária e aduaneira, o legislador parlamentar optou por a
fazer corresponder, na sua quase totalidade, à simples “transformação” do
Tribunal Tributário de 2ª Instância na Secção do Contencioso Tributário do TCA
[cf. alíneas i) e l), do mesmo art.º 3º] e que as alterações de competência dos
tribunais tributários de 1ª instância e dos tribunais fiscais aduaneiros
previstas na mesma lei de autorização se quedaram pela adaptação “às profundas
modificações introduzidas na jurisdição pelo Código de Processo Tributário” e
pela transferência para tais tribunais de 1ª instância de algumas competências
então atribuídas ao Tribunal Tributário de 2ª Instância [cf. alíneas o) e p) do
mesmo artigo].
Examinando todo o n.º 1 do art.º 3º da Lei n.º 49/96 constata-se, porém – no que
tange a matéria de competência dos tribunais administrativos – que em nenhuma
das suas alíneas que vão de a) a r) é possível colher qualquer indicação de que
a alteração autorizada pode envolver também a competência dos tribunais
administrativos de círculo.
O regime jurídico nelas projectado através das alterações aí autorizadas
respeita, nesse específico âmbito, essencialmente à definição da competência do
TCA [alíneas f), e g)], à atribuição ao pleno da Secção de Contencioso
Administrativo do STA e à mesma Secção de competências relacionadas com a
interposição, na hierarquia de tais tribunais, do novo TCA [alíneas d), e e)] e
à alteração e adequação da competência do plenário do STA e do pleno daquela
Secção tendo em conta a nova realidade [alíneas b), e c)].
Argumenta, porém, o acórdão recorrido que a legitimidade da norma
questionada poderá ser colhida na alínea s) desse n.º 1 do art.º 3º que assim
dispõe:
[As alterações ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
têm a seguinte extensão]:
“Introduzir outras adaptações na competência e na organização dos tribunais
administrativos e fiscais que se mostrem coerentes com as alterações ora
autorizadas, bem como necessárias à viabilização do eficaz funcionamento do
órgão jurisdicional cuja criação ora se autoriza”.
Como se vê, o preceito autoriza o Governo a introduzir “outras adaptações na
competência e na organização dos tribunais administrativos e fiscais”.
E não se fazendo aí distinção de tribunais administrativos, entende o acórdão
recorrido poder a adaptação traduzir-se numa transferência de competência do
âmbito dos tribunais administrativos de círculo para o do TCA.
Diga-se que o preceito em causa não se apresenta como sendo passível de um único
sentido.
É que as duas condições estabelecidas no preceito para a conformação de
adaptações na competência e organização dos tribunais administrativos e fiscais
por parte do pelo legislador autorizado – coerência com as alterações
autorizadas nas alíneas anteriores do mesmo número e necessidade à viabilização
do eficaz funcionamento do TCA - tanto poderão ser entendidas em sentido
cumulativo como em sentido disjuntivo.
Como quer que seja, sempre a conclusão tirada pelo acórdão recorrido não será de
acolher.
Vistas essas condições em sentido cumulativo - e tendo em conta que não está
prevista nas alíneas anteriores a atribuição ao TCA de qualquer competência que
antes coubesse aos tribunais administrativos de círculo – não se vê que
adaptação na competência destes tribunais administrativos de círculo houvesse de
fazer-se como sendo postulada logicamente pela definida relativamente ao TCA,
para ser havida como coerente com as alterações autorizadas nas alíneas
anteriores.
Acresce, por outro lado, que uma deslocação de competência da esfera dos
tribunais administrativos de círculo para a do TCA andaria a revés da ideia de
“desgraduação” da atribuição da competência dentro da nova hierarquia dos
tribunais administrativos que preside ao espírito das alterações antes concreta
e especificamente previstas.
Toda a lógica subjacente à Lei n.º 49/96 é a de “desconcentrar” e “desgraduar”
anteriores competências do STA, deslocando-as para a esfera de competência do
recém criado TCA, destinado expressamente a “receber grande parte das
competências hoje a cargo deste último, por forma a descongestionar o seu
crescente volume de serviço”.
Nesta perspectiva, a solução normativa adoptada pelo acórdão recorrido
inserir-se-ia numa lógica oposta: ampliar-se-ia o volume de litígios decididos
em 1ª instância por tribunais superiores da hierarquia administrativa
subtraindo-os à esfera anterior dos tribunais administrativos de círculo.
E é também evidente que não poderá justificar-se uma deslocação de competência,
como a que está em causa nos autos, da esfera dos TAC para a do TCA em uma
qualquer ideia de “necessidade à viabilização do eficaz funcionamento” do TCA,
estabelecida como segunda condição.
Se projectada a eficácia de funcionamento do TCA pelo prisma que levou à sua
criação e à adopção, como regra geral, do princípio do duplo grau de jurisdição,
também na jurisdição administrativa - o objectivo de se conseguir, mediante a
sua criação e funcionamento, uma justiça mais célere naquele tipo de litígios
cuja decisão cabia antes na competência do STA e nos que continuaram a
pertencer-lhe, seja pela via de recurso contencioso, seja pela via do recurso
jurisdicional - a deslocação da competência em causa mostrar-se-á perfeitamente
irrelevante, por lhe ser estranha.
Se olhada essa eficácia relativamente ao próprio desempenho do TCA, a
permanência deste tipo de litígios nos tribunais de 1ª instância administrativa
propiciará antes o melhor funcionamento do TCA, porquanto o conhecimento desse
tipo de litígios em via de recurso tende notoriamente a ser menos oneroso para o
seu serviço e logo, portanto, mais célere.
Por último, é insofismável que, como sustenta o Procurador-Geral Adjunto no
Tribunal Constitucional, “não seria certamente a permanência de tais litígios na
esfera da 1ª instância que perturbaria minimamente a eficaz actuação daquele
tribunal superior” (TCA).
Temos, assim, de concluir que a solução adoptada transborda da autorização
concedida pela referida Lei n.º 49/96, enquanto interpretado o referido preceito
no sentido da satisfação cumulativa das mencionadas condições, pelo que, cabendo
a competência para a sua edição à Assembleia da República [alínea q) do art.º
168º da CRP, na versão vigente ao tempo], a mesma é organicamente
inconstitucional.
Mesmo que se perfilhe o entendimento de que as referidas condições estão
previstas disjuntivamente, a conclusão a tirar não será diferente. Na verdade,
se se encarar o preceito na perspectiva de a satisfação da exigência da
coerência a que se refere dizer respeito ao âmbito das alterações nele
especificadamente previstas nas alíneas anteriores, valerão aqui igualmente os
argumentos antes aduzidos relativamente a esse requisito. Se se perspectivar a
condição da coerência estabelecida na alínea s) para fora do âmbito das
alterações autorizadas nas alíneas anteriores do n.º 1 do art.º 3º da Lei n.º
49/96 ou seja, agora, por referência ao âmbito em geral da competência de todos
os tribunais administrativos (1ª instância e tribunais superiores), então,
haverá de reconhecer-se que o seu sentido prescritivo será de tal modo
indefinido, elástico e omnicompreensivo que não poderá ser tido como adequado
para precisar “quais os aspectos da disciplina jurídica da matéria em causa
sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do exercício dos
poderes delegados” e para “dar a conhecer aos cidadãos, em termos públicos, qual
a perspectiva genérica das transformações a ser introduzidas no ordenamento
jurídico em função da autorização” ou seja, não satisfará os requisitos de
densidade normativa que a Constituição estabelece para a definição do sentido e
alcance das leis de autorização, acima caracterizados.
E o mesmo se dirá relativamente à condição estabelecida no preceito da
necessidade das adaptações na competência e organização dos tribunais
administrativos para a viabilização do eficaz funcionamento do TCA. Também aqui
a definição do “programa legislativo” a concretizar e da “perspectiva genérica
das transformações” a introduzir, mediante a ponderação da necessidade das
adaptações na competência e na organização dos tribunais administrativos para
que seja viável o eficaz funcionamento do TCA, se apresenta feita em termos tão
indecifráveis que não pode ver-se como cumprindo aqueles requisitos das leis de
autorização.
Assim sendo, sempre haverá de concluir-se que a norma em causa foi
emitida com invasão da competência da Assembleia da República, por transbordar
do sentido e alcance da lei de autorização invocada pelo Governo.
C – Decisão
7 – Destarte, atento tudo o exposto, decide o Tribunal Constitucional:
a) Julgar organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo
168º, nº 1, alínea q), da Constituição da República Portuguesa, na redacção
dada pela revisão de 1989, a norma constante do art.º 40º, alínea b), do
Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º
229/96, de 26 de Novembro, na interpretação segundo a qual cabe ao Tribunal
Central Administrativo a competência para sindicar todos os actos
administrativos praticados por “órgãos centrais independentes”;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma do
acórdão recorrido em função do precedente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 19 de Abril de 2005
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos