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Processo nº 422/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Tribunal de Instrução Criminal do
Porto, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº
1, alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal, de 14 de Outubro de 2004.
2. Em 12 de Maio de 2004, o Ministério Público determinou a suspensão provisória
do processo em que é arguido A., por um período de 6 meses, impondo-lhe a
injunção de entregar, na instituição denominada Centro de Solidariedade B., a
quantia de 300€, devendo fazer prova no processo da referida entrega, no prazo
estabelecido para a suspensão.
Conclusos os autos ao juiz de instrução, nos termos e para os efeitos do artigo
281º, nº 1, do Código de Processo Penal, foi proferida a seguinte decisão:
“Discordamos da decisão de suspensão provisória do processo pelas seguintes
razões:
- primeira – O Ministério Público não tem competência jurisdicional para decidir
e impor injunções e regras de conduta ao arguido.
O Ministério Público faz uma interpretação literal do artigo 281.º do Código de
Processo Penal, interpretação que deve ser considerada inconstitucional,
conforme nos parece dever resultar do Ac. n.º 7/87, de 9 de Janeiro de 1987, do
Tribunal Constitucional, publicado no D.R., I Série, de 9 de Fevereiro de 1987.
Nesse douto acórdão, apreciando a constitucionalidade do artigo 281.º do Código
de Processo Penal, na redacção que havia sido aprovada em 4 de Dezembro de 1986
pelo Conselho de Ministros, e que não continha qualquer referência ao juiz de
instrução, refere-se o seguinte:
“Naturalmente que, praticados os actos necessários, compete também ao MP
encerrar o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação (artigos 276.º, 277.º e
283.º).
O artigo 281.º consagra, porém, uma inovação nesta matéria, estabelecendo o
princípio da oportunidade do exercício da acção penal pelo MP relativamente à
pequena criminalidade, atribuindo-lhe o poder de suspender o processo, quando se
verifiquem conjuntamente certas condições [as constantes do proémio do n.º 1 e
das alíneas a) a e) do mesmo número], mediante a imposição – pelo próprio MP –
de injunções e regras de conduta (as definidas nas alíneas a) a i) do n.º 2].
É a inconstitucionalidade de todo este processo que vem suscitada.
A questão posta, ou seja, a suspensão do processo do MP, findo o inquérito, pode
cindir-se em duas: uma, a da admissibilidade da suspensão, em si mesma
considerada; a outra, a da competência para ordenar a suspensão e a imposição
das injunções e regras de conduta.
A admissibilidade da suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo
constitucional.
Já não se aceita, porém a atribuição ao MP da competência para a suspensão do
processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei, sem a
intervenção de um juiz, naturalmente o juiz de instrução, e daí a
inconstitucionalidade, nessa medida, dos n.os 1 e 2 do artigo 281.°, por
violação dos artigos 206.º e 32.º, n.° 4, da CRP.”
(sublinhado nosso).
Ora, o artigo 206.º da CRP na redacção anterior à Revisão de 1989, tinha o teor
que hoje corresponde ao artigo 202.º, n.º 2, da Constituição, sob a epígrafe
“Função jurisdicional”:
“Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da
legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e
privados”.
Os actos que devam constituir “actos judiciais” para os efeitos do artigo 202.º
da Constituição (artigos 205.º e 206.º antes da Revisão de 1989) devem ser
praticados pelo juiz de instrução, como foi expressamente afirmado no Acórdão
n.º 7/87, de 9 de Janeiro, à semelhança do entendimento defendido pelo Prof.
Figueiredo Dias, e publicado em “Para Uma Nova Justiça Penal”, 1983, págs. 189 e
segs., citado no acórdão (DR n.º 33, de 9/02/1987, pág. 504-(6).
Como refere José António Barreiros, “o Ministério Público actua no processo
penal como órgão autónomo de administração de justiça, o que se não confunde com
a acção dos órgãos judiciais, nem com a função jurisdicional e lhe garante
independência de actuação face ao Ministro da Justiça.” (…) O Ministério Público
não é, assim, órgão judicia1, nem lhe cabe a função jurisdicional, a qual é
património exclusivo do poder judicial (artigo 205.°da Constituição).” (“Sistema
e Estrutura do Processo Penal Português”, II, págs. 109 e 110).
No mesmo sentido, pode ler-se Germano Marques da Silva: “Sujeitos processuais
são o juiz, a quem cabe o exercício da jurisdição, o Ministério Público, o
arguido, o assistente e o defensor, aos quais cabe o exercício de poderes e
deveres que soe conglobar-se na noção de acção, que na forma de acusação, quer
na forma de defesa. (…) Tomamos aqui a acção num sentido muito amplo, como o
conjunto de poderes e deveres da acusação e da defesa em ordem ao reconhecimento
do direito pela jurisdição.” (Curso de Processo Penal”, 1993, tomo 1, págs. 95 e
96).
Citando Figueiredo Dias, “a específica função judicial há-de caracterizar-se
materialmente pela declaração do direito do caso, através de uma decisão
susceptível de transitar em julgado” (Direito Processual Penal, Coimbra, 1974,
pág. 366).
No entanto, no regime da suspensão provisória do processo não é isso que se
verifica. Nos termos do artigo 281.º do Código de Processo Penal, o juiz de
instrução não decide a suspensão provisória do processo e não escolhe nem aplica
as injunções e regras de conduta. Quem decide é o Ministério Público, e o juiz
encontra-se numa situação idêntica à do arguido e à do assistente: concorda ou
discorda (artigo 281.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, e similar à
que o Ministério Público tem na instrução, fase em que “é correspondentemente
aplicável o disposto no artigo 281.º, obtida a concordância do Ministério
Público” (artigo 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
Ou seja, nos termos do artigo 281.º do Código de Processo Penal, como se
verifica no caso dos autos, o juiz não decide, nem tem qualquer intervenção na
decisão do Ministério Público. Ou seja, atribui-se a função jurisdicional ao
Ministério Público, que decide o caso concreto, cabendo ao juiz de instrução uma
intervenção processual acessória e não jurisdicional, de mera concordância, sem
qualquer intervenção na escolha das injunções ou regras de conduta a aplicar ao
arguido. Nesse mesmo sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Évora, de
8/04/97 – in C.J., XXII, 2, p. 275: “Quem decide pela suspensão provisória do
processo é o Ministério Público. Quem impõe ao arguido as injunções e regras de
conduta é o Ministério Público. (…) O juiz de instrução não pode substituir-se
ao Ministério Público no sentido de impor por sua iniciativa injunções e regras
de conduta que não sejam as propostas pelo Ministério Público.”
Ao atribuir-se ao Ministério Público a competência para a prática daqueles actos
jurisdicionais, viola-se o princípio de tutela jurisdicional dos direitos
fundamentais, e a reserva de jurisdição dos tribunais a quem compete
“administrar a justiça em nome do povo”, “assegurar a defesa dos direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos” bem como “reprimir a violação da
legalidade democrática” (artigo 202.º, nº 1 e nº 2, da Constituição).
- segunda – O artigo 281.º do Código de Processo Penal viola o princípio da
independência dos tribunais consagrado no artigo 203.º da Constituição, uma vez
que não prevê qualquer intervenção do juiz de instrução para a escolha e
determinação da solução de direito do caso concreto. O Ministério Público decide
a suspensão provisória e determina as injunções ou regras de conduta a aplicar
ao arguido, sem qualquer intervenção do juiz de instrução, que é depois colocado
diante do “facto consumado”, por vezes com a injunção já cumprida pelo arguido.
Nas palavras de Castro Mendes, “a independência dos Juízes é a situação que se
verifica quando, no momento da decisão, não pesam sobre o decidente outros
factores que não os judicialmente adequados a conduzir à legalidade e à justiça
da mesma decisão” (“Estudos sobre a Constituição”, 3.º vol., 1979, pág. 654). O
que manifestamente não sucede na previsão do artigo 281.º do Código de Processo
Penal, condicionando o juiz pela anterior decisão do Ministério Público,
nomeadamente quanto à selecção das injunções e regras de conduta e à
determinação do período de suspensão, de uma forma ofensiva da dignidade da
função de julgar.
- terceira – Acresce que o artigo 281.º do Código de Processo Penal é também
inconstitucional quando interpretado em conjunto com o disposto no artigo 64.º
do Código de Processo Penal, no sentido de ser dispensada a assistência de
defensor ao arguido no acto em que este é chamado a concordar com a suspensão
provisória do processo e com as injunções e regras de conduta que lhe são
apresentadas pelo Ministério Público.
Na verdade, ainda que se defenda que as injunções ou regras de conduta não
constituem uma pena no sentido do direito penal material nem uma sanção de
natureza para-penal (Lowe/Rosenberg, citados por Manuel da Costa Andrade,
“Consenso e Oportunidade”, in “Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo
Código de Processo Penal”, pág. 353), as mesmas representam sempre uma limitação
aos direitos e liberdades do arguido.
“Do ponto de vista do direito penal substantivo, trata-se aqui de uma sanção de
índole especial não penal a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena
nem a correspondente comprovação da culpa. Significativo para o efeito que o
arguido não possa ser coagido nem à aceitação das injunções e regras nem ao
respectivo adimplemento: o efeito de sanção que lhe está ligado assenta na
liberdade de decisão (FreiwilligKeit) do arguido” (Riess, citado por Manuel da
Costa Andrade, Ob. cit. p. 353).
No entanto, essa liberdade de decisão não existe se ao arguido não for garantida
a assistência de um defensor, nomeadamente para o efeito de se poder pronunciar
sobre a necessidade e adequação das regras de conduta e injunções apresentadas
pelo Ministério Público. Só há verdadeira liberdade quando esta é esclarecida e
informada, nomeadamente quanto à “ponderação das vantagens e desvantagens
ligadas às alternativas em causa”, na expressão utilizada por Costa Andrade (Ob.
cit.). E esse esclarecimento deve resultar da obrigatoriedade de assistência do
defensor no acto de audição do arguido sobre a pretendida suspensão provisória
do processo.
No caso do autos, essa assistência não se verificou. O arguido foi chamado a
prestar o seu consentimento para a suspensão provisória do processo sem a
adequada assistência de defensor.
Salvo melhor opinião, estas razões explicam de forma suficiente o nosso
dissentimento em relação à aliás douta decisão do Ministério Público».
3. Foi então interposto o presente recurso de constitucionalidade, pretendendo o
recorrente:
«A apreciação da inconstitucionalidade do artº 281º do C.P.Penal por, no
entendimento do Sr. Juíz de Instrução, violar o princípio de independência dos
Tribunais consagrado no artº 203° da C.R.P., o princípio de tutela jurisdicional
dos direitos fundamentais, e a reserva de jurisdição dos Tribunais consagrado no
artº 202° nºs 1 e 2 da C.R.P., e ainda o artº 32° n° 3 da C.R.P. por dispensar a
assistência de defensor ao arguido no acto em que é chamado a dar a sua
concordância à suspensão provisória do processo».
4. Notificado para alegar, o Ministério Público formulou as seguintes
conclusões:
«1 – A suspensão provisória do processo regulada no artigo 281º do Código do
Processo Penal, configurando um mecanismo que requer uma co-decisão do
Ministério Público e do juiz de instrução criminal, não podendo em caso algum
ser aplicada sem a concordância expressa deste último, não colide com qualquer
norma ou princípio constitucionais, designadamente, com os que regem a função
jurisdicional e a independência dos tribunais.
2 – Não é exigência constitucional a assistência obrigatória de advogado ao
arguido, em acto processual em que está em causa a sua eventual concordância com
a aplicação de uma injunção consistente na entrega de quantia não superior a 500
euros a uma instituição de solidariedade social.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso».
5. Notificado o recorrido não apresentou alegações.
II. Fundamentação
Sobre as questões de constitucionalidade que são objecto do presente recurso,
pode ler-se no Acórdão o Tribunal Constitucional nº 67/2006 o seguinte:
«3. Cumpre apreciar e decidir as seguintes questões de constitucionalidade, que
constituem o objecto do recurso:
1.ª - Se a norma do artigo 281.º do Código de Processo Penal, no segmento em que
atribui ao Ministério Público o poder de decidir-se, com a concordância do juiz
de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de
injunções e regras de conduta, viola o artigo 202.º (reserva de função
jurisdicional) ou o artigo 203.º (independência dos tribunais) da Constituição;
2.ª - Se a norma do artigo 281.º em conjunto com o disposto no artigo 64.º do
mesmo Código de Processo Penal, interpretados no sentido de ser dispensada a
assistência de defensor ao arguido no acto em que este é chamado a dar a sua
concordância à suspensão provisória do processo, viola o n.º 3 do artigo 32.º da
Constituição.
4. Dispõe o artigo 281.º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º
7/2000, de 27 de Maio:
“Artigo 281.º
(Suspensão provisória do processo)
1. Se o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com
sanção diferente da prisão, pode o Ministério Público decidir-se, com a
concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a
imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, se se verificarem os
seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de antecedentes criminais do arguido;
c) Não haver lugar a medida de segurança e internamento;
d) Carácter diminuto da culpa; e
e) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda
suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
2. São oponíveis ao arguido as seguintes injunções e regras de conduta:
a) Indemnizar o lesado;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa
quantia;
d) Não exercer determinadas profissões;
e) Não frequentar certos meios ou lugares;
f) Não residir em certos lugares ou regiões;
g) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas;
h) Não ter em seu poder determinados objectos capazes de facilitar a prática de
outro crime;
i) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso.
3. Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a
dignidade do arguido.
4. Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta
podem o juiz de instrução e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer
aos serviços de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades
administrativas.
5. [ … ]
6. [ … ]”
Destacam-se os seguintes traços marcantes do regime legal da suspensão
provisória do processo com particular interesse para apreciação das questões
relativas à violação da reserva de função jurisdicional e à independência dos
tribunais:
- O processo suspende-se na fase de inquérito, por decisão do Ministério
Público, mas com o consenso do arguido e do assistente e a concordância do juiz
de instrução, durante um prazo determinado que pode ir até 2 anos (artigo 282.º,
n.º1), mediante a sujeição do arguido a injunções e regras de conduta;
- Se o arguido cumprir as injunções ou as regras de conduta a que a suspensão
tenha ficado condicionada, o processo é arquivado (n.º 3 do artigo 282.º), isto
é, não chega a haver acusação e termos posteriores;
- Se o processo tiver entrado na fase de instrução, ainda pode optar-se pela
suspensão provisória do processo, obtida a concordância do Ministério Público,
sendo agora a decisão primária do juiz de instrução (n.º 2 do artigo 307.º).
Estamos perante um instituto introduzido no ordenamento jurídico português pelo
Código de Processo Penal de 1987, constituindo uma limitação ao dever de o
Ministério Público deduzir acusação sempre que tenha indícios suficientes de que
certa pessoa foi o autor de um crime (artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal), deixando o princípio da legalidade na promoção do processo penal de ser
comandado por uma ideia de igualdade formal, para ser norteado pelas intenções
político-criminais básicas do sistema penal, assentes na ideia de que, visando
toda a intervenção penal a protecção de bens jurídicos e, sempre que possível, a
ressocialização do delinquente, é adequado que a intervenção formal de controlo
tenda para observar as máximas da mais lata diversão e da menor intervenção
socialmente suportáveis (Discutindo-se se esta realidade melhor se exprime pelo
conceito de oportunidade regulada ou de legalidade atenuada. No sentido de que
as hipóteses de cessação do dever de acusar positivadas no direito português não
significam necessariamente uma mudança de paradigma na perseguição penal, Pedro
Caeiro, “Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da ‘justiça
absoluta’ e o fetiche da ‘gestão eficiente’ do sistema”, in Revista do
Ministério Público, n.º 84, Outubro/Dezembro 2000, págs. 31 e segs.). Do ponto
de vista substantivo, é um dos casos de introdução de medidas de diversão
(diversão com intervenção; cf. sobre a tipologia das formas de diversão,
socorrendo-se da lição de Faria Costa em “Diversão (Desjudiciarização) e
Mediação: Que Rumos”, BFD-LXI, p. 91 e sgs, Pinto Torrão, A Relevância
Político-Criminal da Suspensão Provisória do Processo, p. 121) e consenso na
solução do conflito penal relativamente a situações de pequena e média
criminalidade, para cuja consagração concorrem tanto razões de funcionalidade do
sistema de justiça penal (desobstrução da máquina judicial e promoção da
economia e celeridade processuais, com isso se fortalecendo globalmente a crença
na efectividade dos mecanismos de reacção penal, com o que simultaneamente se
realiza o objectivo de prevenção), como de prossecução imediata de objectivos do
programa político-criminal substantivo (evitar a estigmatização e o efeito
dissocializador, ligados à submissão formal a julgamento, relativamente a
delinquentes ocasionais com prognóstico favorável, o que se insere no princípio
de redução da aplicação das sanções criminais ao mínimo indispensável).
Além do consenso dos demais sujeitos processuais (Ministério Público, arguido e
assistente), a lei exige a concordância do juiz de instrução. Esta intervenção
de um juiz na suspensão provisória do processo em fase de inquérito não estava
inicialmente prevista (também não estava previsto que a suspensão pudesse ser
decretada na fase de instrução, o que veio a ser permitido pela Lei n.º 59/98,
de 25 de Agosto). Resultou de o Tribunal Constitucional se ter pronunciado, no
acórdão n.º 7/87, publicado no Diário da República, I Série, de 9 de Fevereiro
de 1987 (cf. também, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9º, págs. 7 e
segs.), pela inconstitucionalidade dos nºs 1 e 2 do artigo 281.º do Código de
Processo Penal, então ainda só aprovado em Conselho de Ministros pelo decreto
registado sob o n.º 754/86, que foi submetido a fiscalização preventiva de
constitucionalidade. De notar que o Tribunal não viu obstáculos de
constitucionalidade ao instituto da suspensão provisória do processo, em si
mesmo. O que não aceitou foi “a atribuição ao MP da competência para a suspensão
do processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei, sem
a intervenção de um juiz, naturalmente o juiz de instrução, e daí a
inconstitucionalidade, nessa medida, dos n.ºs 1 e 2 do artigo 281.º, por
violação dos artigos 206.º e 32.º n.º 4 da CRP”. E, posteriormente à entrada em
vigor do Código, o Tribunal reiterou o mesmo juízo de que a admissibilidade da
suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo constitucional, no acórdão
n.º 244/99, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Julho de 1999.
5. Não há que recuar na análise da questão de constitucionalidade ao ponto de
reabrir o debate sobre se a intervenção do juiz é (continua a ser)
constitucionalmente exigida para a suspensão provisória do processo, na fase de
inquérito, mediante a imposição ao arguido de injunções ou regras de conduta. O
que cumpre ao Tribunal averiguar, no presente recurso de fiscalização concreta
de constitucionalidade, é se dos termos em que o n.º 1 do artigo 281.º do Código
de Processo Penal consagra a intervenção do juiz de instrução criminal resulta a
violação de normas ou princípios constitucionais, designadamente dos que se
inscrevem nos artigos 202.º (reserva de função jurisdicional) e 203.º
(independência dos tribunais) da Constituição.
Comecemos por recordar que o artigo 202.º da Constituição preceitua no n.º 1 que
os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a
justiça em nome do povo e o n.º 2 que na administração da justiça incumbe aos
tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos
dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os
conflitos de interesses públicos e privados. É o princípio da reserva da função
jurisdicional aos tribunais [sobre este princípio, cf. os Acórdãos deste
Tribunal n.ºs 72/84, 56/85, 98/88 e 143/88 (Diário da República, II série, de 10
de Janeiro de 1985, de 28 de Maio de 1985, de 22 de Agosto de 1988 e de 15 de
Setembro de 1988, respectivamente)]. E que o artigo 203.º dispõe que os
tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei. Correspondem a
disposições constitucionais que se mantêm inalteradas desde a versão inicial da
Constituição, embora com aglutinações e renumerações [O artigo 202.º foi gerado
pela RC/89 que aglutinou no então artigo 205.º, que passou na RC/97 a artigo
202.º, os primitivos artigos 205.º e 206.º (correspondendo aos n.ºs 1 e 2
respectivamente, que são os que para o caso interessam) e 209.º (corresponde
actualmente ao n.º 3) e aditou o n.º 4. O artigo 203.º corresponde à renumeração
do artigo 206.º da RC/89 que renumerara o primitivo artigo 208.º].
Um dos corolários ou dimensões do princípio da independência dos tribunais é o
de que o juiz, no exercício da sua função jurisdicional, apenas está submetido
às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas (independência
funcional). Por outro lado, como diz Gomes Canotilho, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, pág. 658, a independência judicial postula o
reconhecimento de uma reserva de jurisdição, entendida como reserva de um
conteúdo material típico da função jurisdicional, o que implica que em
determinadas matérias cabe ao juiz não apenas a última, mas também a primeira
palavra. É o que se passa, desde logo, no domínio tradicional das penas
restritivas da liberdade e das penas de natureza criminal na sua globalidade. Os
tribunais são os “guardiões da liberdade” e daí a consagração do princípio nulla
poena sine judicio (artigo 32.º, n.º 2, da CRP).
A questão que agora é colocada ao Tribunal Constitucional tem relevantes pontos
de contacto com o que foi versado a propósito do sistema de determinação
concreta de competência permitido pelo n.º 3 do artigo 16.º do Código de
Processo Penal. Melhor dizendo: a crítica de constitucionalidade que é dirigida
à atribuição ao Ministério Público do poder de decidir a suspensão provisória do
processo mediante injunções e regras de conduta filia-se na mesma compreensão
das imposições que decorrem dos princípios constitucionais invocados na
modelação do processo penal quanto à repartição de funções entre o Ministério
Público e o juiz que levou a que se tivesse questionado a conformidade
constitucional daquela outra opção do legislador. Também a constitucionalidade
dessa norma foi posta em causa, além de outras razões, por violação da reserva
constitucional da função jurisdicional e da independência dos tribunais, em
virtude de permitir que a opção do Ministério Público condicionasse ou limitasse
o conteúdo da decisão hipoteticamente possível do juiz face ao conteúdo
abstracto da lei.
O Tribunal julgou sempre essas críticas improcedentes, em abundante
jurisprudência iniciada com o acórdão n.º 393/89 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, n.º 13, págs. 1057 e segs.), de que se evidenciam as seguintes
passagens:
“A independência dos tribunais conclama a independência dos juízes.
A independência dos juízes, que é, acima de tudo, um dever ético-social, vem a
traduzir-se no dever de julgar «apenas segundo a Constituição e a lei», sem
sujeição, portanto, a quaisquer ordens ou instruções. Na interpretação e
aplicação das leis, hão-de, pois, os juízes agir sem outra obediência que não
seja aos ditames da sua própria consciência [cf. artigo 4.º da Lei n.º 21/85, de
30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais)].
Nenhum destes princípios é violado pelo artigo 16.º, n.º 3, do Código de
Processo Penal, pois quem julga é o juiz, e não o Ministério Público. É aquele,
e não este, quem fixa a medida concreta da pena, movendo-se para tanto dentro da
moldura abstracta fixada na lei.
Sucede é que o juiz, ao fixar a pena do caso, não pode exceder três anos (cf.
citado artigo 16.º, n.º 4). Isso, porém, significa tão-só que ele não pode
utilizar toda a moldura abstracta constante do tipo.
O Ministério Público condiciona, assim, a fixação da pena do caso: como
porta-voz que é do poder punitivo do Estado, diz ao juiz que, face às
circunstâncias do caso e tendo presentes os critérios legais de aplicação
concreta das penas, a colectividade que ele representa não pretende que ao réu
se aplique por aquele caso pena superior a três anos. E di-lo no exercício de um
poder expressamente definido na lei.
Ora, isto não viola qualquer dos apontados princípios constitucionais.
Escreve a propósito Figueiredo Dias:
“O problema que então ficava para resolver era outro: era o de saber se, no
caso (decerto, excepcional) em que, no fim do julgamento, o juiz lograsse a
convicção de que deveria aplicar uma sanção em medida superior à
pré-determinada, deveria ter competência para a aplicar (e não há rigorosamente
nada na Constituição que o impedisse), ou seria preferível que limitasse a sua
convicção pelo máximo de medida da sanção que estava na sua competência normal
aplicar. A Comissão decidiu-se, no artigo 16.º, n.º 3, pela última alternativa
e, quanto a mim, com excelentes razões político-criminais, que seria deslocado
explanar aqui.
O que interessa é acentuar que, deste modo – e como agora, porventura, já se
terá tornado claro –, o princípio da reserva da função jurisdicional permanece
intocado: é o juiz singular que julga, como é ele que determina concretamente a
sanção dentro dos limites abstractos em que a lei lhe permite que mova a sua
discricionaridade vinculada. A lei acrescento e acentuo – e só ela, de sorte
que a independência do juiz também não é, no que quer que seja, afectada. O que
sucede é que – e é isto o que há de singular no método de determinação concreta
da competência – «lei» não é apenas o preceito do Código Penal onde se prevêem
os limites abstractos das sanções aplicáveis; «lei» é também, e a igual título,
o preceito do Código que limite a convicção do juiz pelo máximo das sanções que
ele pode aplicar, quando o Ministério Público – como representante do Estado e
porta-voz, portanto, do seu poder punitivo – entenda que, no caso, aquele máximo
não deve ser ultrapassado. Esse entendimento tem na base um processo de
«aplicação do direito»? Decerto que sim, como o tem qualquer outro que o
Ministério Público assuma no exercício da acção penal e, nomeadamente, na sua
decisão de acusar ou antes de arquivar o processo: «aplicação do direito»,
porém, não «jurisprudência». O Ministério Público co-determina deste modo, em
certa medida, o sentido da decisão final? Decerto que sim, como o codetermina
qualquer acto próprio de um sujeito processual, nomeadamente a sua decisão de
recorrer ou de não recorrer! Os poderes do juiz são assim limitados, para além
do que resulta da lei penal substantiva aplicável? Decerto que sim, como o são
através de inúmeros comportamentos dos sujeitos processuais, nomeadamente aquele
em que se traduz a fixação do objecto do processo pelo Ministério Público, ou –
de uma forma ainda mais paradigmática para o caso aqui em discussão – aquele
outro que põe em funcionamento a proibição de «reformatio in peius». De uma
forma ainda mais paradigmática, digo, porque a argumentação dos opositores desta
proibição – que, durante tantos anos, impediu a verdadeira conquista
democrática em que uma tal proibição se traduz – não era no fundo outra senão a
de que o regime próprio desta proibição tornaria parcialmente disponível o
objecto do processo e permitiria assim que a actuação processual dos eventuais
recorrentes subtraísse ao juiz funções que deveriam caber-lhe de forma
indisponível!
Toda esta linha de argumentação não colhe face a um processo penal dotado, nos
termos do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, de «estrutura acusatória», Não
quero significar com isto que a estrutura acusatória do processo penal implique
por necessidade soluções como a da proibição da reformatio in peius ou a
constante do artigo 16.º, n.ºs 2 e 3. Digo, sim, que estas soluções são
compatíveis com aquela estrutura acusatória e devem ser compreendidas à sua luz;
e, ainda mais, que elas representam «um autêntico reforço da estrutura
acusatória do processo penal», sem por isso porem em causa o princípio da
investigação ou o carácter indisponível do objecto do processo: que elas
representam, numa palavra, a realização da «máxima acusatoriedade do processo
penal» compatível com os restantes princípios gerais que lhe presidem. Pela
simples e boa razão – que o conjunto do presente trabalho, mas nomeadamente a
sua parte final, procura tornar clara – de que levar ao ponto de censura
soluções como aquelas de que aqui se trata não significaria respeito pelos
princípios da indisponibilidade e da investigação: significaria, sim, conceder
a um processo de estrutura inquisitória, ou de estrutura mista
acusatória/inquisitória – esse, na verdade, irremediavelmente inconstitucional
perante o disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
Julgo poder agora concluir: face à Constituição, tanto o sistema do projecto
como o do Código, relativos ao artigo 16.º, são perfeitamente legítimos. Não é,
pois, no domínio da arguição de inconstitucionalidade – que, a este como a
outros propósitos, mal encobre o circunstancialismo político e sociológico em
que hic et nunc se processam as relações institucionais e corporativas entre as
magistraturas judicial e do Ministério Público – que a discussão entre os dois
sistemas deve ser colocada. E, sim, no domínio das vantagens e desvantagens
político-criminais que cada um apresenta para a máxima realização possível das
finalidades antinómicas do processo penal que o problema deve ser posto e –
assim se espera – aprofundado no futuro. [cf. «Sobre os sujeitos processuais no
novo Código de Processo Pena1», Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de
Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, pp. 3
e segs., especialmente pp. 19-22.]”.
Esta doutrina é perfeitamente transponível para a crítica que a decisão
recorrida faz à violação da reserva de jurisdição e do princípio da
independência dos tribunais pela posição em que o juiz de instrução é colocado
face ao entendimento do Ministério Público de utilizar o mecanismo instituído
pelo artigo 281.º do Código de Processo Penal.
6. O facto de o juiz de instrução estar condicionado pela decisão do Ministério
Público, nomeadamente quanto à selecção das injunções e regras de conduta e à
determinação do período de suspensão do processo, mais precisamente, de o seu
leque de opções decisórias estar limitado à concordância ou discordância com a
anterior aplicação do direito ao caso feita pelo Ministério Público e pela
aceitação dos demais sujeitos processuais, não contende com o princípio
constitucional da independência dos tribunais. Do mesmo modo que não pode
considerar-se que assuma essa natureza ou tenha esse efeito o poder que o
Ministério Público tem de pôr ou não em funcionamento o órgão judicial através
do exercício da acção penal (cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I
Vol., p. 383) ou os termos em que apresenta a pretensão punitiva do Estado (ac.
n.º 393/89), também não belisca a independência funcional do juiz de instrução a
circunstância de o Ministério Público submeter a concordância judicial uma
decisão sua, que obteve já a aceitação dos restantes sujeitos processuais e que
consiste em renunciar à submissão imediata do caso a julgamento, sempre que as
exigências de prevenção geral e especial não requeiram a efectiva aplicação e
cumprimento de uma pena. Os termos em que o juiz decidirá se deve ou não dar a
sua concordância não dependem senão do que, em sua consciência, decorra da
situação de facto revelada pelo processo e dos comandos legais. Seja qual for a
extensão dos seus poderes – ainda naquela interpretação mais restritiva de que
ao juiz não cabe senão a apreciação dos pressupostos e condições da suspensão
que se analisem (ou na parte em que se analisem) num mero juízo verificativo de
conformidade à lei, estando-lhe vedada a intervenção nos juízos de prognose ou
na margem de apreciação por parte do titular da acção penal (a previsão da
alínea e) do n.º 1 e a adequação das injunções ou regras de conduta adoptadas)
–, a decisão do juiz não depende de quaisquer ordens ou instruções mas,
directamente e só, das fontes normativas a que constitucionalmente deve
obediência.
A limitação do campo de pronúncia judicial relativamente às possibilidades
abstractas da lei substantiva em decorrência das opções dos sujeitos processuais
é, aliás, embora sem carácter absoluto, postulada relativamente a todo o
processo judicial pelo princípio da imparcialidade e vai implicada noutros
princípios constitucionais do processo penal, designadamente no princípio do
acusatório e da proibição da reformatio in pejus. Mas a liberdade do acto de
julgar, que é a única vertente ou perspectiva da independência judicial de que
tem sentido falar-se a propósito da norma em causa, não sofre com o facto de não
caberem ao juiz de instrução quer a opção primária por suspender ou não o
processo, quer a escolha das injunções ou regras de conduta. O juiz de instrução
concordará ou não com a solução que lhe é apresentada, (i) livre de instruções
de qualquer tipo e provenientes de qualquer entidade, (ii) livre de toda a
espécie de pressões, directas ou indirectas, susceptíveis de influenciar a
declaração do direito do caso, (iii) cabendo-lhe encontrar a solução
juridicamente imposta, no âmbito dos poderes que é chamado a exercer. São estas
as condições da independência funcional dos juízes. Neste sentido, a maior ou
menor extensão dos poderes que exerce não torna o juiz mais ou menos
independente.
Acresce dizer, com Figueiredo Dias, «A “pretensão” a um juiz independente como
expressão do relacionamento democrático entre o cidadão e a justiça”», Sub
Judice, n.º 14 – Janeiro/Março de 1999, p. 27 e segs., que o estrito dever do
juiz de obediência à lei é um “mero limite externo da independência, que nada
tem a ver estruturalmente com ela e em nada pode, por isso, afectá-la”. É um
contrapolo da independência judicial, sem o que a função jurisdicional poderia
resvalar para o exercício de um poder democraticamente ilegítimo.
Conclui-se, pois, que a norma em causa não viola o princípio da independência
dos tribunais e dos respectivos juízes, consagrado no artigo 203.º da
Constituição.
7. Entende a decisão recorrida que também é infringido o artigo 202.º da
Constituição na medida em que não é um juiz (o juiz de instrução) quem decide a
suspensão do processo e a imposição de injunções e regras de conduta, mas antes
o Ministério Público. Passando a analisar este fundamento do juízo de
inconstitucionalidade efectuado pelo tribunal a quo, importa averiguar se a
decisão do Ministério Público pela suspensão provisória do processo
consubstancia um acto materialmente jurisdicional.
O Ministério Público constitui, ao lado do tribunal, um órgão autónomo de
administração da justiça, constitucionalmente incumbido de “exercer a acção
penal orientada pelo princípio da legalidade”, que goza de estatuto próprio e de
autonomia, nos termos da lei, sendo integrado por magistrados hierarquicamente
subordinados que não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos
senão nos caos previstos na lei (artigo 219.º da Constituição). Cabe-lhe dirigir
o inquérito, o que implica necessariamente aplicar o direito e formular juízos.
Ao decidir-se, nesta fase, pela suspensão provisória do processo, o Ministério
Público opta por não exercer imediatamente a acção penal. Esse acto, em si
mesmo, não colide mais nem menos com o monopólio da função jurisdicional pelos
juízes do que o seu reverso: a dedução imediata da acusação.
É certo que tal opção pode tornar-se definitiva se as injunções ou regras de
conduta forem cumpridas. Mas não é por isso, pelo facto de a opção ser
potencialmente definitiva ou, mais exactamente, de coenvolver a expectativa de
que o processo virá a ser arquivado, sem a qual a opção pela suspensão não seria
tomada, que pode dizer-se que o Ministério Público pratica um acto materialmente
jurisdicional. Haverá, apenas, se esse vier a ser o desenvolvimento do processo,
um conflito que acabará por ser dissipado ou suprimido; não a sua resolução e,
muito menos a aplicação de qualquer pena, por entidade diversa do juiz.
Por outro lado, como o Tribunal reconheceu logo no acórdão n.º 7/87,
centrando-se sobretudo no parâmetro específico do n.º 4 do artigo 32.º da
Constituição, não há obstáculo de ordem constitucional à direcção do inquérito
pelo Ministério Público, como ele vem desenhado no Código, e a que lhe compita
encerrá-lo, arquivando-o ou deduzindo acusação. Não pode também havê-lo quanto a
algo que é um minus relativamente ao arquivamento, sempre que as exigências de
prevenção não justifiquem os custos do prosseguimento formal típico para os
propósitos político-criminais da intervenção mínima, da não-estigmatização do
agente, do consenso e da economia processual. E também o não há face ao artigo
202.º, porque a concretização da reserva para administrar justiça mediante a
atribuição de competência aos tribunais para reprimir a violação da legalidade
democrática (artigo 202.º, n.º 2 da Constituição) não é incompatível com
soluções em que a actuação do tribunal, mesmo no processo penal, seja
condicionada pelo impulso processual inicial ou sucessivo de outros sujeitos
processuais, nem impede que a intervenção do juiz de instrução se limite, na
fase de inquérito, a uma função de garantia, sempre que se torne necessária a
prática de actos que colidam com a esfera dos direitos, liberdades e garantias
(juiz de garantias ou juiz das liberdades).
Acresce, por último, que o acto processual em causa – a decisão primária de
suspensão e escolha das injunções e regras de conduta – também não cabe em
qualquer das hipóteses singulares de reserva de acto jurisdicional ou “casos
constitucionais de reserva judicial” (Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág. 792) no domínio do
processo penal, designadamente no n.º 2 do artigo 27.º da Constituição, porque
as injunções e regras de conduta não revestem a natureza jurídica de penas,
embora se consubstanciem em medidas que são seus “equivalentes funcionais” (Cf.
neste sentido Pinto Torrão, op. cit., pág. 192, Anabela Miranda Rodrigues,
Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, pág.
193, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª ed., pág.
112).
E é assim por três razões fundamentais. Trata-se de uma sanção a que não está
ligada a censura ético-jurídica da pena, nem a correspondente comprovação da
culpa. Ao arguido cabe decidir, na sua estratégia de defesa, se aceita
submeter-se a tais injunções e regras de conduta ou se prefere que o processo
prossiga para julgamento. E a todo o momento pode a elas subtrair-se –
obviamente se não forem de execução instantânea –, bastando-lhe deixar de
cumpri-las (n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal).
Em conclusão, a norma do artigo 281.º do Código de Processo Penal, na
interpretação de que, na fase de inquérito, cabe ao Ministério Público a
competência para decidir a suspensão provisória do processo, com a concordância
do juiz de instrução, também não viola a reserva de função jurisdicional
consagrada nos n.ºs 1 e 2 do artigo 202.º da Constituição.
8. Na razão terceira do despacho recorrido, o tribunal a quo considerou, ainda,
que o artigo 281.º do Código de Processo Penal também é inconstitucional quando
interpretado em conjunto com o disposto no artigo 64.º do Código de Processo
Penal, no sentido de ser dispensada a assistência de defensor ao arguido no acto
em que este é chamado a concordar com a suspensão provisória do processo e com
as injunções e regras de conduta que lhe são apresentadas pelo Ministério
Público.
Quanto a esta questão é conveniente começar por precisar um aspecto: no contexto
do despacho recorrido “ser dispensada a assistência de defensor ao arguido”
significa “não ser imposta a obrigatoriedade de assistência de defensor ao
arguido”. Aquilo que o juiz “a quo” censura ao legislador ordinário não é violar
o direito do arguido “a não estar só”, mas infringir o dever do Estado de “não
deixá-lo só” perante as autoridades judiciárias.
O n.º 3 do artigo 32º da Constituição remete para a lei a definição dos casos em
que é obrigatória a assistência por advogado, o que significa que cabe no âmbito
da liberdade de conformação do legislador a selecção das situações em que a
assistência deve ser obrigatória. E, embora seja constitucionalmente exigível
que essa selecção seja materialmente adequada à relevância dos diversos actos e
fases do processo criminal, desde logo por ser condição de garantia dos direitos
de defesa do arguido (cf. acórdão n.º 413/2004, Diário da República, II Série,
de 23 de Julho de 2004), a verdade é que não se encontra razão para que essa
obrigatoriedade se imponha ao legislador, de modo taxativo, para todos os casos
de suspensão provisória do processo, como subjaz ao entendimento perfilhado pelo
despacho recorrido.
Efectivamente, o que aqui pode estar em causa, o objectivo específico da
assistência de defensor para o acto de concordância, é assegurar que a
aceitação, pelo arguido, da suspensão do processo e das injunções ou regras de
conduta, traduza um consentimento informado, isto é, que seja o produto de uma
vontade esclarecida quanto à ponderação das vantagens e desvantagens ligadas às
alternativas em presença. Alternativas e consequências que, na generalidade dos
casos, são facilmente inteligíveis e representáveis, sem necessidade de
aconselhamento técnico-jurídico, por um arguido dotado de normal capacidade
intelectual e volitiva e experiência da vida.
Assim, o legislador não faz um uso materialmente inadequado da margem de
conformação que lhe é outorgada no n.º 3 do artigo 32.º da Constituição ao não
incluir o acto de concordância pelo arguido com a suspensão provisória do
processo no elenco daqueles em que taxativamente e sem excepção tem de ser
assegurada a presença de defensor (n.º 1 do artigo 64.º do Código de Processo
Penal). Basta, para que o comando constitucional se considere cumprido,
relativamente às situações cabíveis no tipo de acto em causa no artigo 281.º, o
disposto na cláusula geral do n.º 2 do artigo 64.º do Código de Processo Penal
que prescreve, além dos casos previstos no número anterior, o poder-dever de o
tribunal nomear defensor ao arguido, oficiosamente ou a pedido deste, sempre que
as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido
ser assistido por defensor.
Cumpre, aliás, recordar que o presente recurso de constitucionalidade respeita a
uma situação em que está em causa a aceitação da suspensão provisória do
processo, pelo período de dois meses, mediante o pagamento de duas prestações
mensais a favor de uma instituição de solidariedade social e não praticar,
durante o período de suspensão do processo, qualquer facto criminalmente punível
a título de dolo. O que demonstra, pela evidência do exemplo, que a preocupação
que afligiu o despacho recorrido só em concreto pode ser resolvida e tem na
claúsula geral solução normativa idónea.
Tanto basta para que se conclua que a norma do artigo 281.º em conjunto com o
artigo 64.º do mesmo Código, interpretada no sentido de ser dispensada a
assistência de defensor ao arguido no acto em que este é chamado a dar a sua
concordância à suspensão provisória do processo, não viola o n.º 3 do artigo
32.º da Constituição».
É esta jurisprudência – para cuja fundamentação se remete – que agora se
reitera.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando a
reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de
constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2006
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício