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Processo n.º 260/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º
78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, da decisão
sumária proferida pelo relator, de não conhecimento do recurso de
constitucionalidade interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Lisboa (TRL), de 12 de Outubro de 2006, aduzindo em fundamento:
“[…]
1. Os presentes autos foram iniciados em 27 de Maio de 2005, com a
denúncia apresentada pelo ora Reclamante junto do DIAP pelos factos ocorridos na
noite de 26 para 27 de Janeiro de 1999, no Hospital São Francisco Xavier, que
consubstanciam a prática, por um conjunto de 11 pessoas determinadas e
identificadas, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p.
pelos artigos 144.º, alíneas b), c) e d), e 146.º, n.º 1, do Código Penal, que
deixou a filha do Recorrente – ofendida nos presentes autos e hoje com a idade
de 7 anos e já sem grande esperança de vida – com uma deficiência permanente,
global e definitiva que se traduz numa incapacidade na ordem dos 99,8%. Desde
então que o Recorrente tem tentado recorrer ao sistema judicial do seu país que,
no entanto, lhe tem negado sucessiva e escandalosamente o acesso à justiça,
através de decisões surpreendentes e inconcebíveis, muitas vezes explicadas pela
pura e simples falta de leitura dos requerimentos apresentados, outras vezes
explicadas pela lei do menor esforço, não tendo o Recorrente conseguido, sequer,
que nos presentes autos tenha sido realizado um inquérito ou aberta a instrução.
Esta é a última das últimas instâncias a que o ora Reclamante, já desesperado,
recorre, na esperança de ser, pela primeira vez, ouvido.
2. O inquérito (NUIPC 5714/05.6TDLSB), que correu termos pela 6.ª
Secção do DIAP, contra pessoas determinadas, foi aberto e, nove meses depois,
encerrado sem que nenhuma diligência, nem sequer as legalmente obrigatórias,
tenha sido efectuada.
3. Isto porque os mesmos factos teriam sido já objecto de
um anterior processo de inquérito e instrução (Proc. n.º 13351/99.6TDLSB, em que
estava em causa a prática de um crime negligente por uma só pessoa) o que
dispensaria qualquer outra investigação (apesar de nestes autos terem sido
denunciadas pessoas diferentes pela prática de um crime doloso…).
4. O Recorrente requereu a sua constituição como assistente
e arguiu, junto do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, a nulidade da falta
de inquérito (artigo 119.º, alínea d), do CPP) e, subsidiariamente, a nulidade
da insuficiência do inquérito (artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP).
5. Na mesma peça processual, para o caso de o Tribunal
considerar não existirem nulidades, o Recorrente requereu, em tempo, a abertura
de instrução, invocando todas as razões de facto e de direito de discordância
relativamente à não acusação.
6. A abertura de instrução foi inexplicavelmente rejeitada,
pelo despacho de fls. 168 a 197, por inadmissibilidade legal. E o Tribunal de
Instrução Criminal de Lisboa – nesse mesmo despacho e também inexplicavelmente –
não conheceu das nulidades arguidas relativamente à falta do inquérito, porque
considerou que esse conhecimento ficava prejudicado (?) pela rejeição da
abertura de instrução.
7. O Recorrente interpôs recurso deste absurdo e
incompreensível despacho (de rejeição da abertura de instrução e não
conhecimento das nulidades processuais invocadas) para o Tribunal da Relação de
Lisboa, invocando, nesta sede, a inconstitucionalidade de uma série de normas.
8. O Tribunal da Relação de Lisboa logo revelou a pouca ou
nenhuma atenção que dedicou à leitura dos autos, pois que deu início ao seu
acórdão afirmando e pensando estar a conhecer de um recurso do despacho de não
pronúncia dos arguidos, quando nem sequer fora aberta a instrução e nem sequer
haviam sido constituídos arguidos aqueles contra quem deveria ter corrido o
inquérito, se este tivesse existido para além dos formais e vazios actos de
abertura e encerramento.
9. O Tribunal da Relação de Lisboa conheceu e não declarou
as nulidades invocadas (apesar de nenhuma diligência de inquérito ter sido
realizada, nem sequer as obrigatórias, como o interrogatório dos arguidos) e
manteve a decisão de não abertura de instrução por inadmissibilidade legal.
10. O Recorrente interpôs recurso deste acórdão para o Supremo
Tribunal de Justiça e, não tendo este sido admitido, recorreu do acórdão da
Relação para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea
b), da Lei do Tribunal Constitucional, o que fez em tempo e com respeito dos
requisitos estabelecidos pelo artigo 75.º-A da mesma Lei.
11. Foi decidido pelo Venerando Conselheiro Benjamim Rodrigues,
Relator do processo, não conhecer do presente recurso, por várias ordens de
razões, expostas nas páginas 14 a 24 da sua decisão, que se prendem com o modo
como o Recorrente invocou a inconstitucionalidade das normas que pretende ver
apreciadas e com o tempo processual dessa invocação. Vejamos:
12. No requerimento de recurso para o Tribunal da Relação de
Lisboa, o Recorrente suscitou a inconstitucionalidade das normas contidas nos
artigos 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, todos do CPP, na medida em que
permitam a interpretação segundo a qual pode o inquérito ser arquivado sem que
nenhuma diligência probatória haja sido levada a cabo, por violação do artigo
20.º da Constituição da República Portuguesa.
13. Suscitou ainda, na mesma peça processual, a
inconstitucionalidade da norma contida no artigo 287.º, n.º 3, do CPP, na medida
em que permita a interpretação segundo a qual pode a instrução ser rejeitada por
dos autos não resultarem suficientes indícios do dolo do agente dos factos
puníveis, por violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
14. Quando interpôs recurso para Supremo Tribunal de Justiça, o
Recorrente invocou de novo a inconstitucionalidade das normas supra referidas e,
ainda, a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 119.º, alínea d),
120.º, n.º 2, alínea d), e 272.º, n.º 1, todos do CPP, na medida em que permitam
a interpretação segundo a qual pode o inquérito ser arquivado sem que nenhuma
diligência probatória haja sido levada a cabo, por violação dos mais elementares
princípios do Estado de Direito, designadamente os consagrados nos artigos 2.º,
20.º e 202.º da Constituição da República Portuguesa.
15. Invocou, ainda, no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
a inconstitucionalidade das norma contida no artigo 287.º, nºs 2, conjugada com
o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP, na medida em que
permitam a interpretação segundo a qual pode a instrução ser rejeitada, por dos
autos não resultarem suficientes indícios do dolo do agente ou dos factos
puníveis, por violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
16. Ora, admitindo que a invocação da inconstitucionalidade destas
normas perante o Supremo Tribunal de Justiça, num requerimento de recurso que
não foi admitido, já não foi feita a tempo de o Juiz da Relação se pronunciar
sobre a suscitada questão de inconstitucionalidade, resta, porém, a esse
Tribunal, a apreciação da questão da constitucionalidade de todas as outras
normas suscitada, em tempo e de modo adequado, perante o Tribunal da Relação de
Lisboa. Tais normas são as que constam dos artigos 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º,
nºs 1 e 2, e 287.º, n.º 3, todos do CPP.
17. Começando pelas primeiras normas – as relativas ao inquérito –,
vejamos como o Tribunal da Relação de Lisboa aplicou, no seu acórdão, as normas
(constantes dos artigos 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, do CPP) cuja
inconstitucionalidade havia sido suscitada, e na interpretação pelo Recorrente
reputada de inconstitucional, ao contrário do sustentado a páginas 20, 21 e 22
da decisão ora reclamanda.
18. É defendido na decisão reclamanda que:
(i) o Recorrente
impugnou, “não a norma, enquanto critério de decisão judicial, com o qual foi
contrastado o quadro factual, mas o resultado do juízo efectuado pelo tribunal
consequente da aplicação desse critério normativo aos factos”;
(ii) a decisão recorrida não
se funda no entendimento de que, segundo tais preceitos, o inquérito possa ser
arquivado sem que nenhuma diligência probatória haja sido levada a cabo, antes
se fundando no entendimento de que não constitui nulidade a não realização, pelo
Ministério Público, de diligências probatórias de prática não obrigatória
legalmente, dado caber na autonomia do Ministério Público levar a cabo ou
promover as diligências que entender necessárias; e que
(iii) a falta de impugnação
atempada dos artigos 119.º, alínea d), e 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP sempre
teria por resultado o de que a declaração de inconstitucionalidade das normas
contidas nos artigos 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, do CPP nunca
poderia ter por efeito a anulação do processo de inquérito nos autos em causa,
pelo que não se teria por verificado o pressuposto da instrumentalidade do
recurso para o Tribunal Constitucional.
19. Importa, em primeiro lugar, salientar que o Recorrente –
antecipando a possibilidade de o Tribunal da Relação interpretar as normas
contidas nos artigos 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, do CPP num sentido
inconstitucional – suscitou perante aquele Tribunal a inconstitucionalidade
daquelas normas, em determinada interpretação, e não a inconstitucionalidade de
qualquer decisão.
20. Fê-lo com toda a clareza, como se pode ver do excerto do
requerimento de recurso para a Relação que se transcreve: “O Recorrente desde já
invoca, para todos os efeitos, a inconstitucionalidade dos artigos 262.º, n.º 1,
267.º e 277.º, nºs 1 e 2, todos do CPP, na medida em que permitam a
interpretação segundo a qual pode o inquérito ser arquivado sem que nenhuma
diligência probatória haja sido levada a cabo, por violação do artigo 20.º da
Constituição da República Portuguesa.”.
21. Em segundo lugar, é inequívoco que o acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa se funda na aplicação destas normas, na interpretação
referida. Se é certo que o Tribunal a quo entendeu que o modo como o Ministério
Público conduziu o inquérito não acarreta a nulidade da insuficiência do
inquérito, uma vez que, no seu entender, o artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do
CPP só se aplica aos casos de “ausência absoluta de inquérito” ou “omissão de
diligências impostas por lei”, também é certo que, para chegar a esta conclusão,
a decisão recorrida teve de interpretar e aplicar ao caso concreto as normas
constantes dos artigos 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, do CPP.
22. Com efeito, como poderia o Tribunal concluir pela inexistência
da nulidade da insuficiência do inquérito sem antes determinar e aplicar as
normas que determinam quais as diligências que devem ser levadas a cabo no
inquérito? Como dizer que o inquérito não foi insuficiente sem antes definir em
que deve consistir a fase do inquérito, para que este seja suficiente?
23. Foi este o caminho percorrido pelo acórdão ora recorrido:
depois de afirmar que só existe a nulidade da insuficiência do inquérito quando
ocorra ausência absoluta ou total de inquérito (o que não deixa de causar
perplexidade, na medida em que inutiliza assim por completo a norma contida no
artigo 119.º, alínea d), do CPP), ou se omita acto que a lei prescreve como
obrigatório, o Tribunal fundamenta este entendimento na interpretação que faz
das normas que enformam a fase do inquérito propriamente dita e que ditam os
deveres e poderes do Ministério Público.
24. Assim, diz-se no acórdão (cfr. página 7): “Ancora-se esta
solução no entendimento de que a titularidade do inquérito, bem como a sua
direcção, pertencem ao Ministério Público, art.º 262.º e 263.º do Código
Processo, sendo este livre – dentro do quadro legal e estatutário em que se move
e a que deve estrita obediência, art.º 53.º, 267.º do Código Processo Penal – de
promover as diligências que entender necessárias, ou convenientes com vista a
fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar, com excepção dos actos de prática
obrigatória no decurso do inquérito, como sejam os actos de interrogatório do
arguido […]. A investigação decorre naquilo que se chama a fase de inquérito,
art.º 262.º, sob a direcção do Ministério Público.” (sublinhados nossos).
25. A interpretação expressamente dada pelo acórdão da Relação às
normas constantes dos artigos 262.º e 267.º do CPP e implicitamente dada às
normas contidas nos nºs 1 e 2 do artigo 277.º do CPP é a de que o Ministério
Público, como titular do inquérito, é, na sua autonomia, livre de promover as
diligências que entender necessárias ou convenientes com vista a fundamentar uma
decisão de acusar ou arquivar.
26. Note-se que só aparentemente é que, na sua interpretação, o
Tribunal da Relação “salvaguarda” “os actos de prática obrigatória e as
exigências decorrentes do princípio da legalidade” (cfr. página 8). Com efeito,
em momento algum se afirma terem sido realizados os actos de prática obrigatória
– por exemplo, o interrogatório dos arguidos imposto pelo artigo 272.º, n.º 1,
do CPP – no inquérito dos presentes autos. Faz-se apenas alusão a um outro
processo de inquérito (cfr., na página 6, a referência ao Processo n.º
13351/99.6TDLSB). E ninguém, nem mesmo o Tribunal da Relação, nega que nenhuma
diligência foi realizada no inquérito dos presentes autos.
27. E o certo é que o Tribunal conclui pela inexistência da
nulidade da insuficiência de inquérito. O mesmo é dizer que a abertura e
encerramento do inquérito sem que nenhuma diligência seja feita, nem mesmo as
obrigatórias, cabem ainda – na interpretação dada às normas dos artigos 262.º,
n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, do CPP – dentro dos limites de liberdade que o
Tribunal da Relação traçou a páginas 7 e 8 do seu acórdão para a actuação do
Ministério Público.
28. Quando o Tribunal afirma ficarem salvaguardados os actos de
prática obrigatória, de três, uma: ou disse mais do que queria dizer, ou entende
que não há nenhum acto que deva ser obrigatoriamente realizado na fase do
inquérito, ou entende que tais actos, como o interrogatório daqueles contra quem
o inquérito corre, podem ser praticados em outros processos, anteriores, com
outras pessoas…
29. Seja como for, o Tribunal da Relação, ao discorrer sobre os
poderes do Ministério Público na direcção do inquérito e sobre o mínimo de
diligências que devem existir para que exista inquérito, e ao concluir pela
existência e suficiência do inquérito, sem ter negado – por ser inegável – que
nenhuma diligência de inquérito foi feita, deu às normas contidas nos artigos
262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, do CPP uma “interpretação segundo a qual
pode o inquérito ser arquivado sem que nenhuma diligência probatória haja sido
levada a cabo”.
30. Esta foi a interpretação dada pelo Tribunal da Relação àquelas
normas e foi esta a interpretação cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo
Recorrente no seu requerimento de recurso para a Relação.
31. E dúvidas não há de que “a questão de inconstitucionalidade
suscitada pode respeitar não apenas à norma ou a uma sua dimensão parcelar,
considerada em si, mas também à interpretação ou sentido com que ela foi tomada
no caso concreto e aplicada na decisão recorrida – sendo objecto idóneo do
recurso de constitucionalidade fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei n.º 28/82 a inconstitucionalidade dessa norma enquanto assim interpretada na
decisão recorrida.” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional 238/94, in Boletim
do Ministério da Justiça, 435-389).
32. O que não se pode é negar que o Tribunal da Relação tenha
interpretado e aplicado aquelas normas no sentido de admitir que nenhuma
diligência de inquérito seja feita. Nem se pode continuar a sustentar que a
interpretação do Tribunal da Relação salvaguarda os actos de prática
obrigatória… Como sustentar tal afirmação, se o facto de não ter sido realizada
nenhuma das diligências obrigatórias de inquérito não alterou, em um milímetro,
a conclusão do Tribunal no sentido claro da existência e suficiência do
inquérito dos presentes autos?
33. A interpretação dada foi só uma: a de que ainda são respeitadas
as normas constantes dos artigos 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, do CPP
quando o Ministério Público abre e arquiva o inquérito sem realizar qualquer
diligência.
34. Continuar a afirmar que o Tribunal da Relação interpretou
aquelas normas num sentido que salvaguarda sempre os actos de prática
obrigatória – cuja falta traria consigo a insuficiência do inquérito –, não
obstante ter o mesmo Tribunal decidido ser suficiente um inquérito em que nenhum
acto foi realizado é afirmar a total incoerência do acórdão recorrido e admitir
a completa “decisão surpresa” – incoerência e surpresa que, para mais, são
insusceptíveis de fiscalização judicial por qualquer instância superior.
35. Admitir a total incoerência do acórdão e colocar sobre os
ombros do Recorrente o prejuízo e o peso da imodificabilidade do mesmo é uma
forma inadmissível de contornar a possibilidade de sindicância da
constitucionalidade das normas pelo Tribunal Constitucional, porque, em casos
como este, os tribunais a quo passariam a poder disfarçar a sua decisão
expressando “interpretações correctas e constitucionais” das normas, do mesmo
passo que, “pela calada”, aplicariam as mesmas normas numa interpretação
diferente – esta sim, inconstitucional, mas, por não ser expressamente declarada
no acórdão, subtraída do poder de fiscalização pelo Tribunal Constitucional.
36. Assim, a interpretação dada pelo Tribunal da Relação às normas
contidas nos artigos 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, do CPP, não pode
ser outra senão aquela que resultou na decisão adoptada (a de considerar
existente e suficiente um inquérito em que nenhuma diligência foi feita), por
mais que tenham sido afirmadas expressamente outras interpretações – como a de
que a liberdade do Ministério Público não abrange os actos de prática
obrigatória – incompatíveis com a interpretação efectivamente sustentada e
aplicada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
37. Ainda quanto à invocação da inconstitucionalidade destas normas
relativas ao inquérito, cumpre, finalmente, fazer referência ao terceiro
argumento utilizado pela decisão de que ora se reclama (cfr. supra o ponto 18.
(iii)) para sustentar o não conhecimento do recurso.
38. Diz-se na decisão reclamanda que a falta de impugnação atempada
dos artigos 119.º, alínea d), e 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP sempre teria por
resultado o de a declaração de inconstitucionalidade das normas contidas nos
artigos 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, do CPP não poder ter por efeito
a anulação do processo de inquérito nos autos em causa, pelo que se teria por
não verificado o pressuposto da instrumentalidade do recurso para o Tribunal
Constitucional.
39. Ora, como vimos, a decisão de não declarar as nulidades da
falta ou insuficiência do inquérito foi apenas o ponto de chegada do caminho de
interpretação – inconstitucional – e aplicação das normas contidas nos artigos
262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, do CPP, no sentido de que o Ministério
Público é livre de promover as diligências que considere necessárias ou
convenientes com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar e de, se
entender não ser necessária qualquer diligência, não promover nenhuma
diligência.
40. O Recorrente, ora Reclamante, discorda do que vai afirmado na
página 22 da decisão reclamanda, quando sustenta que a declaração de
inconstitucionalidade dos referidos preceitos, mesmo na interpretação impugnada
pelo Recorrente, não teria por efeito a anulação do inquérito, por a aplicação
daqueles preceitos com o sentido reputado inconstitucional não se achar prevista
como causa de nulidade nos artigos 119.º, alínea d), e 120.º, n.º 2, alínea d),
do CPP.
41. É que não foi na interpretação inconstitucional dos artigos
119.º, alínea d), e 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP que o Tribunal da Relação
fundou a sua decisão. Foi na errada delimitação dos poderes do Ministério
Público na direcção do inquérito – na interpretação inconstitucional já referida
– que assentou a decisão do acórdão recorrido.
42. Com efeito, para poder decidir se havia insuficiência do
inquérito, o Tribunal teve de traçar primeiro as fronteiras dos poderes do
Ministério Público na definição das diligências em que deve consistir o
inquérito. E foi porque o Tribunal definiu amplamente – e inconstitucionalmente
– aqueles poderes (ao ponto de o Ministério Público poder não realizar qualquer
diligência sem que deixe de existir um inquérito válido) que se tornou
inevitável a conclusão de que o inquérito havia sido suficiente.
43. A aplicação dos artigos 119.º, alínea d), e 120.º, n.º 2,
alínea d), do CPP ao caso dos autos depende inteiramente da interpretação que
previamente se faça das normas que regulam a fase do inquérito. E foi neste
ponto que residiu a inconstitucionalidade suscitada.
44. Ora, a ser julgado o presente recurso, uma vez acolhida a
impugnação das normas constantes dos artigos 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1
e 2, do CPP, na interpretação feita pelo Tribunal da Relação, a consequência
será a da automática subsunção do inquérito (ou do não inquérito) dos autos às
normas que estabelecem a nulidade da falta ou, pelo menos, insuficiência do
inquérito, sem que estas normas – as dos artigos 119.º, alínea d), e 120.º, n.º
2, alínea d), do CPP – tenham, também elas, de ser julgadas inconstitucionais.
45. A declaração de inconstitucionalidade das normas constantes dos
artigos 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, nºs 1 e 2, do CPP, na interpretação que
lhes foi dada pelo acórdão recorrido, terá por efeito o da aplicação imediata,
pelo menos, da norma do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, pois que, se o
Tribunal Constitucional fixar, como interpretação daquelas normas, que um
inquérito só é suficiente quando realizadas, pelo menos, as diligências
legalmente obrigatórias, passará imediatamente a ser insuficiente o inquérito
dos autos, por nele não ter sido realizada qualquer diligência, nem sequer as
obrigatórias.
46. O recurso mantém, pois, a sua utilidade e todo o seu carácter
instrumental, donde nada impede que dele seja tomado conhecimento.
47. Passemos, finalmente, às razões apontadas para o não
conhecimento da suscitada inconstitucionalidade do artigo 287.º, n.º 3, do CPP
(cfr. páginas 23 e 24 da decisão de que ora se reclama).
48. As razões apontadas vão no sentido de que a dimensão normativa
do artigo 287.º, n.º 3, em que se fundou o acórdão recorrido (no entender da
decisão reclamanda, a de poder ser rejeitada a abertura de instrução por não
terem sido articulados no requerimento de abertura de instrução factos concretos
donde resultasse o dolo) não coincide com a dimensão normativa que o Recorrente
suscitou perante o Tribunal da Relação (a de poder ser rejeitada a abertura de
instrução por dos autos não resultarem suficientes indícios do dolo do agente
dos factos puníveis).
49. Ora, salvo o devido respeito, se é certo que, no final da
página 12 do acórdão recorrido, o Tribunal da Relação afirma que “o assistente
não articulou factos concretos donde resulte o elemento cognitivo do dolo, ou
seja, de que forma e quando os arguidos tiveram conhecimento de que as lesões
ocorreriam em face da sua acção/omissão e se conformaram com a sua produção.” (o
que é falso, como se poderá ver pela leitura do requerimento de abertura de
instrução), também é certo que o Tribunal da Relação assenta fundamentalmente a
sua decisão, quanto a este aspecto, no que vai referido na página 13 do acórdão,
além de acolher expressamente toda a fundamentação aduzida na decisão então
recorrida (o despacho de fls. 168 a 197).
50. Na verdade, se, no início da página 13 do acórdão, este parece
querer fundar a decisão na falta de articulação de factos susceptíveis de
integrar o elemento subjectivo do dolo, logo se percebe que, afinal, o
fundamento da decisão (e a dimensão normativa do artigo 287.º, n.º 3, do CPP) é
o de não resultarem dos autos suficientes indícios do dolo dos agentes.
51. Tal fundamentação é expressa e inegável. Vejamos (cfr. página
13 do acórdão):
“Isso mesmo resulta das diligências efectuadas no âmbito do Pº 13351/99.6TDLSB,
aliás, mencionadas no despacho recorrido, donde se pode concluir pela não
conformação dos acusados no que concerne ao resultado ocorrido, mesmo a titulo
de dolo eventual.
Na verdade conforme resulta da queixa, os denunciados tinham conhecimentos
especiais e bem sabiam que uma actuação desconforme às legis artis poderiam ter
causado efeitos como os sucedidos, mas tal raciocínio que em abstracto se pode
admitir não se encontra minimamente indiciado nos autos por qualquer facto ou
indício e não pode valer em termos probatórios face aos princípio do sistema
penal. […]” (sublinhado nosso).
52. Se esta fundamentação não se refere a indícios (prova) do dolo,
então a que se refere? À falta de articulação de factos? Certamente que não. É o
próprio acórdão que admite em abstracto o facto articulado pelo assistente – o
de que os denunciados tinham conhecimentos especiais e bem sabiam que uma
actuação desconforme às legis artis poderia ter causado efeitos como os
sucedidos – para logo concluir que faltam… os indícios. Isto é, que dos autos
não resultam os indícios do dolo.
53. Como pode então a decisão reclamanda negar que seja esta a
dimensão normativa do artigo 287.º, n.º 3, do CPP que serviu de fundamento à
decisão do acórdão recorrido? É que se não é esta a dimensão, então o Tribunal
da Relação induziu o Recorrente em erro, e esse erro tem de ser desculpado.
54. Mas o acórdão continua:
“Na verdade, para assim ser, teria de resultar dos autos a previsão em concreto
pelos imputados do resultado ocorrido e consequente conformação com o mesmo,
mesmo a título de mera possibilidade, o que não resulta de qualquer diligência
efectuada nem se vislumbra possa resultar de outras que fossem efectuadas.”
(sublinhado nosso).
55. Não estamos aqui de novo perante considerações sobre indícios e
prova do dolo? O facto de o Tribunal da Relação de Lisboa, num juízo que não se
sabe donde vem, não vislumbrar que a prova do dolo possa resultar de outras
diligências que fossem efectuadas é razão para se rejeitar a abertura de
instrução?
56. Que tal começar-se pela diligência mais óbvia e tantas vezes
requerida, quase suplicada, pelo ora Reclamante – a do interrogatório das 11
pessoas contra quem deveria ter corrido o inquérito e que estiveram (ou deviam
ter estado) a assistir a ofendida na noite das lesões à sua integridade física?
Não vislumbrou o Tribunal da Relação esta diligência?
57. Do exposto resulta com clareza que, se esta dimensão normativa
do artigo 287.º, n.º 3, do CPP não foi a única que serviu de base à manutenção,
pelo Tribunal da Relação, da decisão de rejeição da abertura de instrução, foi,
pelo menos, preponderante naquela decisão.
58. Pelo que a dimensão normativa do artigo 287.º, n.º 3, do CPP
que serviu de fundamento à decisão recorrida coincide com aquela que o
Recorrente suscitou e definiu no seu requerimento de interposição de recurso.
59. Aqui chegados, não restam obstáculos ao conhecimento, por esse
Venerando Tribunal, do recurso interposto pelo ora Reclamante.
60. O Recorrente pretende, assim, que o Tribunal Constitucional
aprecie a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 262.º, n.º 1,
267.º e 277.º, nºs 1 e 2, todos do CPP, na medida em que permitam a
interpretação segundo a qual pode o inquérito ser arquivado sem que nenhuma
diligência probatória haja sido levada a cabo, nem sequer o interrogatório dos
arguidos,
61. e, ainda, a inconstitucionalidade da norma contida no artigo
287.º, n.º 3, do CPP, na medida em que permita a interpretação segundo a qual
pode a abertura de instrução ser rejeitada por dos autos não resultarem
suficientes indícios do dolo do agente ou dos factos puníveis,
62. tudo por violação dos princípios consagrados nos artigos 20.º,
nºs 1, 4 e 5, e 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve ser conhecido por esse Venerando Tribunal o presente recurso
do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, com os legais efeitos e
consequências.».
2 – O Procurador-Geral Adjunto respondeu dizendo:
1º
“A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º
Na verdade, a longa exposição deduzida pelo reclamante em nada abala os
fundamentos da decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação dos
pressupostos do recurso interposto.
3º
Devendo, pois, confirmar-se inteiramente tal decisão”.
3 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea
b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual
versão (LTC), do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), de
12 de Outubro de 2006, através de requerimento do seguinte teor, na parte aqui
relevante:
«1.O Recorrente pretende interpor recurso do Acórdão proferido
em 12 de Outubro de 2006 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nos autos que, com
o nº 6197/06-9 correram pela respectiva 9ª Secção, que manteve em parte o
decidido no despacho do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, proferido a
fls. 168 a 197 dos autos que aí correram pelo 1º Juízo, com o nº 5714/05.6TDLSB.
2. Este despacho não conheceu das nulidades do inquérito arguidas
pelo ora Recorrente e indeferiu o requerimento de abertura de instrução, por
“inadmissibilidade legal”, invocando o artigo 287º, nº 3, do Código de Processo
Penal (CPP).
3. Deste despacho o Assistente recorreu para o Tribunal da Relação de
Lisboa, em tempo e apresentando a respectiva motivação, tendo suscitado, no
requerimento de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, a
inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 262º, nº 1, 267º e 277º,
nºs 1 e 2, todos do CPP, na medida em que permitam a interpretação segundo a
qual pode o inquérito ser arquivado sem que nenhuma diligência probatória haja
sido levada a cabo, por violação do artigo 20º da Constituição da República
Portuguesa.
4. Suscitou ainda, na mesma peça processual, a inconstitucionalidade
da norma contida no artigo 287º, nº 3, do CPP, na medida em que permita a
interpretação segundo a qual pode a instrução ser rejeitada por dos autos não
resultarem suficientes indícios do dolo do agente dos factos puníveis, por
violação do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
5. Não obstante, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de que
ora se recorre, aplicou as referidas normas, na interpretação cuja
inconstitucionalidade havia sido suscitada, tendo mantido a decisão da rejeição
de abertura de instrução e, conhecendo das nulidades invocadas, não as
declarando.
6. Deste acórdão o Recorrente interpôs recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça, invocando de novo a inconstitucionalidade das normas supra
referidas e, ainda, das normas contidas nos artigos 119º, alínea d), 120º, nº 2,
alínea d), e 272º, nº 1, todos do CPP, na medida em que permitam a interpretação
segundo a qual pode o inquérito ser arquivado sem que nenhuma diligência
probatória haja sido levada a cabo, por violação dos mais elementares princípios
do Estado de Direito, designadamente os consagrados nos artigos 2º, 20º e 202º
da Constituição da República Portuguesa.
7. Invocou, ainda, no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a
inconstitucionalidade das norma contida no artigo 287º, nºs 2, conjugada com o
disposto no artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), do CPP, na medida em que
permitam a interpretação segundo a qual pode a instrução ser rejeitada, por dos
autos não resultarem suficientes indícios do dolo do agente ou dos factos
puníveis, por violação do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
8. O despacho de fls. 368 e 369 do Tribunal da Relação de Lisboa
decidiu, porém, não admitir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
9. Desta rejeição o Recorrente reclamou, tendo a reclamação sido
indeferida, só então se tendo tornado definitiva a decisão que não admitiu o
recurso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, para os efeitos de contagem
do prazo para o presente recurso previstos no artigo 75º, nº 2, da Lei do
Tribunal Constitucional.
10. O ora Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a
inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 119º, alínea d), 120º, nº
2, alínea d), 262º, nº 1, 267º, 272º, nº 1, e 277º, nºs 1 e 2, todos do CPP, na
medida em que permitam a interpretação segundo a qual pode o inquérito ser
arquivado sem que nenhuma diligência probatória haja sido levada a cabo, nem
sequer o interrogatório dos arguidos,
11. e, ainda, a inconstitucionalidade das normas contidas no artigo 287º,
nºs 2 e 3, conjugadas com o disposto no artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), do
CPP, na medida em que permitam a interpretação segundo a qual pode a abertura de
instrução ser rejeitada, por dos autos não resultarem suficientes indícios do
dolo do agente ou dos factos puníveis,
12. tudo por violação dos princípios consagrados nos artigos 20º, nºs 1,
4 e 5, e 202º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
13. Não sendo o Acórdão da Relação de Lisboa de que ora se recorre
susceptível de recurso ordinário, conforme decidido pelo despacho de fls. 368 e
369 e confirmado pelo Despacho de 19 de Dezembro de 2006 do Supremo Tribunal de
Justiça, verificam-se todos os pressupostos da recorribilidade do referido
acórdão para o Tribunal Constitucional».
2 – O recurso foi admitido pelo tribunal a quo. Todavia, como se
estabelece no art. 76.º, n.º 3, da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal
Constitucional. Por isso, e, porque se configura uma situação que se enquadra no
n.º 1 do art. 78.º-A, da LTC, passa a decidir-se imediatamente.
3 – O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que o recorrente
impugna constitucionalmente tem o seguinte teor:
«I.
No processo de instrução nº 5714/05.6 TDLSB do 1º Juízo do Tribunal de Instrução
Criminal de Lisboa, o assistente, A., inconformado com o despacho de fls. 168 a
197, que não pronunciou os arguidos, Maria Isabel Ramos Soares Rocha e outros,
melhor identificados a fls. 179, pela prática de um crime de ofensa à
integridade física qualificada p.p. pelos art°s. 144º, als b), c) e d) do
C.Penal e art. 146º nº 1 do mesmo diploma, vem, nos termos dos artigos 399º e
400º a contrario, ambos do Código de Processo Penal, dele interpor o presente
recurso com os fundamentos constantes da respectiva motivação e as seguintes
conclusões:
-“…
- O Recorrente invocou de forma suficiente e fundamentada as nulidades da falta
e insuficiência do inquérito, nulidades estas que haviam de ter sido apreciadas
pelo juiz de instrução antes do requerimento de abertura de instrução, como
mandava a lógica mais elementar.
- Por não ter sido feito nenhum acto de inquérito, nenhuma das diligências
exigidas pelos artigos 262º, nº 1, e 267º do CPP, o presente processo padece da
nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea d), do CPP, uma vez que a
abertura e encerramento formais de um inquérito, quando este é vazio de
conteúdo, não basta para existir inquérito, no sentido que lhe é dado pela lei
penal.
- Para o caso de se entender que existiu inquérito, o que se coloca sem
conceder, o Recorrente, vem arguir a nulidade da insuficiência do inquérito,
prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d), do CPP, por estar ainda em tempo, já
que estamos em momento anterior ao do encerramento do debate instrutório.
- Não tendo o juiz de instrução apreciado as invocadas nulidades, ao estabelecer
uma errada relação de prejudicialidade, violou a norma contida no artigo 660º nº
2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º do CPP, pois que
devia ter apreciado as nulidades processuais antes de apreciar o requerimento de
abertura de instrução.
- Requer-se a esse Tribunal da Relação que aprecie as nulidades invocadas, a
primeira das quais é, aliás, de conhecimento oficioso, concluindo pela
verificação da primeira ou da segunda e ordenando a repetição do inquérito.
- O Recorrente invoca, para todos os efeitos, a inconstitucionalidade dos
artigos 262º, nº 1, 267º e 277º, nºs 1 e 2, todos do CPP, na medida em que
permitam a interpretação segundo a qual pode o inquérito ser arquivado sem que
nenhuma diligência probatória haja sido levada a cabo, por violação do artigo
20º da Constituição da República Portuguesa.
- Mas caso não se entenda existir qualquer das nulidades supra arguidas – o que
se admite sem conceder –, o ora Recorrente requer a esse Tribunal da Relação que
anule a decisão da rejeição da abertura de instrução e a declare aberta, para
investigação dos factos alegados no requerimento de abertura de instrução e
realização das diligências aí solicitadas.
- Isto porque o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo
Recorrente não era “legalmente inadmissível”. Vejamos:
- Os factos objecto dos presentes autos consubstanciam a prática, pelas pessoas
nos autos identificadas e por outras cuja identidade venha a apurar-se, de um
crime de ofensa à integridade física de B., grave e na forma qualificada,
previsto e punido pelas disposições conjugadas constantes dos artigos 144º,
alíneas b), c) e d), 146º, nºs 1 e 2, e 132º, nº 2, alínea b), todos do CP.
- Na sequência do arquivamento do inquérito, durante o qual não foi realizada
qualquer diligência probatória, o ora Recorrente constituiu-se assistente e, em
tempo, requereu a abertura de instrução.
- Deixou bem claro, no seu requerimento, que se justificava plenamente, neste
processo, uma nova investigação dos factos que já haviam sido investigados no
anterior processo nº 13351/99.6TDLS6, uma vez que o crime agora sujeito a
investigação era um crime punível a título de dolo e que era essencial averiguar
da existência de indícios de dolo – coisa que naturalmente não foi feita no
âmbito do outro processo, pois que a existência ou não de dolo era irrelevante,
na investigação de um crime negligente.
- Não podia o Tribunal ter fundamentado aquela rejeição em conclusões
exclusivamente retiradas do processo anterior que, como já se disse e repetiu,
tinha por objecto um crime negligente.
- A apreciação do requerimento de abertura de instrução não comporta, em si, o
julgamento, a priori, da causa, a decisão final sobre se os agentes agiram
dolosamente ou sem dolo (sobretudo sem que nenhuma prova tenha sido produzida!).
- Não é isso que a lei pretende quando, no artigo 287º, nº 3, do CPP, fala da
inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução. Não pretendeu,
certamente, o legislador, que o juiz de instrução, aquando da decisão sobre a
abertura ou não da instrução, fizesse logo o julgamento da causa e só admitisse
a instrução quando já estivessem provados o tipo objectivo e o tipo subjectivo
do crime em causa! O que restaria, então, para a própria fase da instrução e
para a fase do julgamento, se tantas certezas fossem necessárias para a simples
abertura de instrução?
- Não pode ser rejeitada a instrução com fundamento na inadmissibilidade legal
da mesma, apoiando-se tal conclusão na inexistência nos autos de indícios
suficientes para integrar os crimes que são imputados ao arguido no requerimento
de abertura de instrução.
- A decisão recorrida violou o artigo 287º, nº 3, interpretando a expressão
“inadmissibilidade legal” de modo contrário à correcta interpretação, expressa
na conclusão anterior.
- E nem o princípio “ne bis in idem” obsta a esta conclusão. É que, como já foi
dito, não são as mesmas pessoas que estão sujeitas a novo procedimento criminal,
antes os mesmos factos, já que o processo nº 133551/99.6TDLSB, dependente de
queixa, prosseguiu apenas contra uma pessoa, sendo que no presente processo se
pretende sejam constituídas arguidas onze pessoas identificadas, para além dos
incertos cuja responsabilidade venha a ser apurada.
- O Tribunal interpretou erradamente o artigo 29º, nº 5, da CRP, pois que dessa
norma conclui que os mesmos factos não podem ser investigados em mais do que um
processo.
- O Recorrente desde já invoca, para todos os efeitos, a inconstitucionalidade
do artigo 287º, nº 3, do CPP, na medida em que permita a interpretação segundo a
qual pode a instrução ser rejeitada, por dos autos não resultarem suficientes
indícios do dolo do agente dos factos puníveis, por violação do artigo 20º da
Constituição da República Portuguesa.
- O Tribunal a quo violou o artigo 20º da CRP, pois que negou injustificadamente
ao Recorrente o acesso à justiça.
Nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o douto suprimento de Vossa
Excelência, requer seja revogado o Despacho de fls. 168 e seguintes, na parte em
que rejeita a abertura de instrução e considera prejudicada a apreciação das
nulidades processuais invocadas e, consequentemente:
a) seja declarada a nulidade prevista no artigo 119º alínea d), do CPP,
consistente na falta de inquérito, com a consequente revogação do despacho de
arquivamento, e seja ordenada a realização de inquérito com as diligências
referidas no ponto II. (iii) do requerimento de abertura de instrução,
concluindo-se pela acusação das pessoas nomeadas na denúncia e das demais
pessoas responsáveis cuja identidade venha a apurar-se pela prática do crime de
ofensa à integridade física grave na forma qualificada;
b) quando assim não se entenda, seja declarada a nulidade prevista no artigo
120º, nº 2, alínea d), do CPP, consistente na insuficiência do inquérito, com a
consequente revogação do despacho de arquivamento, e seja ordenada a repetição
do inquérito, com a realização das diligências referidas no ponto II. (iii) do
requerimento de abertura de instrução, concluindo-se pela acusação das pessoas
nomeadas na denúncia e das demais pessoas responsáveis cuja identidade venha a
apurar-se pela prática do crime de ofensa à integridade física grave na forma
qualificada;
c) quando assim não se entenda, seja declarada aberta a instrução e realizadas
as diligências instrutórias referidas no ponto II. (iii) do requerimento de
abertura de instrução, concluindo-se pela pronúncia das pessoas nomeadas na
denúncia e no requerimento de abertura de instrução e das demais pessoas
responsáveis cuja identidade venha a apurar-se, pela prática do crime de ofensa
à integridade física grave na forma qualificada.
Admitido o recurso respondeu o Ex. Mº.Pº. concluindo da seguinte forma:
-Nada temos a censurar ao despacho ora recorrido por se encontrar devidamente
fundamentado e fazer uma correcta leitura da matéria de facto e dos indícios dos
autos.
-Existe na verdade uma impossibilidade de prosseguimento dos autos não sendo a
instrução apta a prosseguir como muito bem foi analisado no despacho em crise.
- O Assistente procura estribar a existência do dolo nos denunciados afirmando
que os denunciados possuem conhecimentos científicos que lhes permitem
configurar um quadro de possibilidades de evolução dos acontecimentos de uma
perspectiva claramente privilegiada relativamente a qualquer leigo.
- Tal conclusão consubstancia porém um comportamento negligente não podendo ser
retirada nenhuma conclusão quanto a eventual comportamento doloso dos
denunciados.
- Ora esta conclusão e a análise global do processo inicial demonstram com
evidência suficiente que a instrução se mostra inapta a demonstrar a existência
de comportamento doloso dos restantes intervenientes, aliás em conformidade com
a doutas conclusões do despacho ora recorrido.
- Os factos que o Assistente pretende provar não têm qualquer suporte na matéria
de facto alegada e não têm em si o suporte necessário à própria pronúncia.
-Em momento algum o Assistente esclarece de que forma é que os médicos e
enfermeiros que assistiram o parto, se concertaram a forma de provocar as lesões
na menor, onde decorreu esse pacto que sustenta a comparticipação
(necessariamente dolosa), e de que factos concretos resulta o elemento cognitivo
do dolo, ou seja de que forma e quando os mesmos tiveram conhecimento de que as
lesões ocorreriam em face da sua acção/omissão e se conformaram com a sua
produção.
- Assim a instrução requerida não tem reunidos os seus pressupostos legais, pois
não tem alegados os factos necessários a uma acusação, no caso a alegação do
elemento volitivo do dolo e de comportamentos e factos concretos que o
sustentem.
Pelo que é nosso entendimento que o recurso não deverá merecer provimento,
devendo ser rejeitado.
Neste Tribunal a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos e emitiu o
douto parecer de fls. 264, concluindo pela improcedência do recurso.
Questão a decidir:
O objecto do recurso, tal como decorre das conclusões da motivação, reporta-se à
apreciação das seguintes questões:
- conhecer das nulidades p. nos art°s. 119º - d) e 120º nº 2 - d), ambos do
C.P.P. – falta e insuficiência de inquérito –;
- averiguar se o requerimento formulado pelo assistente para abertura da
instrução, contem a indicação dos factos necessários e suficientes para que aos
arguidos possa ser imputada a alegada prática do crime de ofensa à integridade
física qualificada p.p. pelos art°s. 144º al. b), c) e d) e art. 146º nº 1 do
C.Penal.
Cumpre Decidir:
1 - Entende o recorrente que:
- não se realizou nestes autos nenhum acto de inquérito, o que acarreta a
nulidade p. no art. 119º - d) do C.P.P.
- e, por outro lado, considerando-se ter existido inquérito, foi o mesmo
insuficiente, o que acarreta a nulidade p. no art. 120º nº 2 - d) do C.P.P.
Vejamos:
Os presentes autos iniciaram-se em 27 de Maio de 2005 com a queixa apresentada
pelo assistente pelos mesmos factos analisados no âmbito do P° 13351/99.6 TDLSB,
que terminou com despacho de não pronúncia.
Sendo os factos os mesmos, o M° P°., não realizou nestes autos, nenhum acto de
inquérito.
Contudo, existiu por parte do Mº. Pº. decisão de fundo e apreciação de mérito
com base nos meios de prova recolhidos no mencionado processo. – conf. fls. 97 a
101.
Por outro lado, permitindo a matéria de facto apurada naquele processo retirar
as conclusões do despacho de arquivamento, entendeu o Mº. Pº. não efectuar
quaisquer diligências adicionais na perspectiva de uma investigação direccionada
ao imputado crime da mesma natureza, mas na sua forma dolosa, já que nessa fase
processual não se encontra vinculado pela qualificação jurídica dos factos dada
pelo assistente.
Vejamos:
Perante a formulação legislativa constante do art. 120º nº 2 al. d) do Código
Processo Penal, tem a jurisprudência questionado se a insuficiência do inquérito
respeita apenas à omissão de actos obrigatórios, ou a esses e ainda a quaisquer
outros actos de investigação e de recolha de prova necessários à descoberta da
verdade. A solução maioritariamente seguida, partindo daquilo que consideramos
uma correcta ponderação da estrutura acusatória do processo penal, art. 32º nº 5
da Constituição, dos princípios do contraditório e da oficialidade, entende que
só se verifica esta nulidade quando ocorra ausência absoluta ou total de
inquérito [Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.1099 Colectânea de
Jurisprudência Ano XXIV Tomo 4, p. 158.1, e/ou se omita acto que a lei prescreve
como obrigatório. Ancora-se esta solução no entendimento de que a titularidade
do inquérito, bem como a sua direcção, pertencem ao Ministério Público, art.
262º e 263º do Código Processo Penal, sendo este livre – dentro do quadro legal
e estatutário em que se move e a que deve estrita obediência, art. 53º, 267º do
Código Processo Penal – de promover as diligências que entender necessárias, ou
convenientes com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar, com
excepção dos actos de prática obrigatória no decurso do inquérito, como sejam os
actos de interrogatório do arguido, salvo se não for possível notificá-lo, de
notificação ao arguido, ao denunciante com a faculdade de se constituir
assistente e às partes civis do despacho de encerramento do inquérito e no que
respeita a certos crimes, actos investigatórios imprescindíveis para se aferir
dos elementos de certos tipos de crimes, nomeadamente os exames periciais nos
termos do art. 151º do CPP. [Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa citado, e
Acórdão do Tribunal Constitucional 395/04 de 2.6.2004, DR II série de 9.10. 04,
p. 149751).
Na decisão desta problemática olvida-se não raramente o modelo de autonomia que
em sede de exercício da acção penal o legislador no actual Código Processo Penal
desenhou para a actividade do Ministério Público [Pertence ao Estado o dever de
administração da justiça, art. 202º da Constituição através de uma entidade
pública que é o Ministério Público, art. 219º da Constituição, art. 48º do
Código Processo Penal. O Ministério Público promove o processo penal depois de
adquirir a notícia do crime, art. 241º do Código Processo Penal. A investigação
decorre naquilo que se chama a fase de inquérito, art. 262º, sob a direcção do
Ministério Público]. Como se refere no Acórdão nº 581/00 do Tribunal
Constitucional de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 219º da Constituição,
ao Ministério Público compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da
legalidade. Esse exercício é regulado pela lei e, como decorre da remissão
contida neste preceito para o número seguinte, acarreta um estatuto próprio do
Ministério Público e a sua autonomia. Do nº 1 do artigo 219º da Constituição
pode retirar-se que o exercício da acção penal pelo Ministério Público comporta
a direcção e a realização do inquérito por esta magistratura, não se cingindo
esse exercício à sustentação da acusação em juízo [Figueiredo Dias, “Sobre os
sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito
Processual Penal (O Novo Código de Processo Penal), 1988, p. 8-9].
No mesmo sentido se pronuncia Germano Marques da Silva [Curso de Processo Penal,
volume III, 2ª edição, p. 91) sustentado que a insuficiência de inquérito é uma
nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um
acto que a lei prescreva como obrigatório e desde que para essa omissão a lei
não disponha de forma diversa e que a omissão de diligências de investigação não
impostas por lei, não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois
a apreciação da necessidade de actos de inquérito é da competência exclusiva do
Ministério Público.
Do exposto resulta que só a ausência absoluta de inquérito ou a omissão de
diligências impostas por lei determinam nulidade do inquérito por insuficiência,
art. 120º nº 2 al. d) do Código Processo Penal; assim a omissão de diligências
não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência
pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência
exclusiva do Ministério Público. O Ministério Público é livre, salvaguardados os
actos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da
legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender
necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o
inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de
diligências de investigação não impostas por lei [Acórdão do Tribunal
Constitucional 395/04 de 2.6.2004, DR II série de 9.10. 04, p. 14975).
Assim, nesta parte, improcede a pretensão do recorrente.
2 – Da rejeição do requerimento de abertura de instrução.
Vejamos:
Em 28/04/2006, foi proferida a decisão recorrida, cujo teor ora relevante é o
seguinte:
(...)
No presente caso, o requerimento de abertura de instrução pretende que aos
arguidos (ainda não formalmente constituídos como tal), seja imputada a prática
de um crime de ofensa à integridade física qualificada – art°s 144º, als. b), c)
e d) do CP e art. 146º, nº 1 do mesmo diploma legal.
Refere-se em tal requerimento que o dolo, no presente caso seria pelo menos
eventual, uma vez que a equipe médica e de enfermagem ao omitirem o tratamento
mais adequado (parte dos arguidos) ou pura e simplesmente ao não actuarem, com
os conhecimentos técnicos que possuíam, sabiam que existia a possibilidade de
surgirem complicações no parto das quais, poderiam advir o resultado verificado
ou mesmo a morte do bebé e conformaram-se com tal resultado.
Da leitura dos factos constantes do requerimento, e acima transcritos, não
resulta a alegação de factos que possam alicerçar as conclusões de direito
apresentadas, designadamente aquelas que se referem ao crime doloso. Sublinhe-se
que é referido em tal requerimento que “(...) Em nenhum momento em que C. e o
feto se encontraram em maior sofrimento, tal como é possível apurar através do
registo do CTG, surgiu algum membro da equipa médica que estava de serviço e era
composta pelos elementos supra referenciados. Não obstante a equipa médica de
serviço, à data da ocorrência dos factos ora descritos, ser composta por seis
médicos e por cinco enfermeiros, o que é certo é que C., durante todo o período
deste trabalho de parto, apenas foi vista pela médica D., que adoptou os
procedimentos supra descritos às 3:00 horas da manhã do dia 27 de Janeiro de
1999, e pelas enfermeiras, E. e F., que observaram a parturiente,
respectivamente, às 4:50 e às 7:30 horas do dia 27 de Janeiro de 1999.
Ao articularem-se estes factos, ao afirmar-se que a única médica interveniente
no processo de dilatação foi a Drª D., não se consegue vislumbrar em que medida
terceiros (médicos e enfermeiros que não assistiram a parturiente) apenas por se
encontrarem de serviço possam ser responsáveis a título doloso (ou até
negligente) pelas lesões graves e dramáticas sofridas pelo bebé.
Acresce que os factos que estão em causa neste processo são os mesmos que
estavam em causa no NUIPC 13351/99.6 TBLSB (processo referido quer no despacho
de arquivamento, quer no requerimento de abertura de instrução), não estando o
Mº Pº sujeito à qualificação jurídica ali feita pelos assistentes (princípio da
não vinculação temática), e, caso se estivesse em presença de um crime doloso
não estaria a legitimidade do Mº Pº sequer espartilhada pelo não exercício de
queixa, uma vez que se trataria de um crime público.
Sendo os factos (REPETE-SE NÃO A QUALIFICAÇÃO JURÍDICA) os mesmos que constam
daquele outro inquérito, admitir o seguimento destes autos para a fase de
instrução seria violar o princípio constitucional do ne bis in idem (art. 29º,
nº 5 da CRP), segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo
mesmo crime. Tem-se entendido que este princípio é não apenas formal mas
material, querendo isto significar que ninguém pode ser julgado mais do que uma
vez pelos mesmos factos. Determina o art. 287º, nº 3 do CPP que o requerimento
de abertura de instrução, só pode ser rejeitado se for extemporâneo, se existir
incompetência do juiz, ou se for legalmente inadmissível a instrução.
A rejeição por inadmissibilidade legal da instrução inclui os casos em que aos
factos não corresponde infracção criminal – falta de tipicidade – e aqueles em
que exista um obstáculo que impeça o procedimento criminal ou a abertura da
instrução, designadamente a falta de factos que possam conduzir a uma pronúncia
(cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado - 1996, 7Q Ed., pgs. 455).
No presente caso o requerimento de abertura de instrução apresentado não contêm
os elementos necessários a uma eventual pronúncia pelo crime pretendido, pelas
razões acima apontadas, existindo também um obstáculo que impede o procedimento
criminal ou a abertura da instrução, a saber o referido princípio do ne bis in
idem.
Em face do exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado.
Fica prejudicado o conhecimento das nulidades invocadas.
Preliminar:
O actual Cod. Proc. Penal, no nº 2 do art. 283º considera “suficientes os
indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a
ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.
A definição do que deve entender-se por “suficientes indícios” contida neste
preceito, bem como no art. 308º nº 1 do CPP, é idêntica à que, no âmbito do Cód.
Proc. Penal de 1929 havia sido colhida pela Jurisprudência e pela Doutrina, que
“por indícios suficientes entendem-se vestígios, suspeitas, presunções, sinais,
indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o
arguido responsável por ele. Porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza
da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e
bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo
persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que
lhe é imputado” – cfr. Ac. do S.T.J. de 01/03/61, BMJ 105, 439; Ac. da Relação
de Coimbra de 26/06/63, “J.R.” 3º, 777; Ac. da Relação de Lisboa de 28/02/64,
id., 1º, 117; Ac. da Relação do Porto, de 24/03/76, C.J., 1976, Tomo I, pág. 131
e Ac. da Relação de Coimbra de 3 1/03/93, C.J., 1993, Tomo II, pág. 65.
A instrução, que tem sempre carácter facultativo, visa estabelecer um controlo
jurisdicional da acusação ou de arquivamento do inquérito em ordem a submeter ou
não a causa a julgamento [286º].
Segundo o disposto no art. 287º, nº 2 “O requerimento não está sujeito a
formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de
direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como,
sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente
pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido
considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se
espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no
artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c)....”.
Neste último segmento normativo estipula-se que “A acusação contém, sob pena de
nulidade: b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a
aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se
possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação
que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a
determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições
legais aplicáveis”.
Nesta conformidade num requerimento de abertura de instrução deve-se, em geral,
proceder-se:
- a uma exposição, de forma sumária, dos factos e das razões de direito que lhe
servem de fundamento e que divergem daqueles que motivaram o despacho acusatório
ou de arquivamento;
- a indicação da actividade probatória que se pretende efectuar ou que não foi
devidamente ponderada, explicitando, respectivamente, os factos que, com a
mesma, se pretendem demonstrar ou que se devem considerar como suficientemente
indiciados. Tratando-se de uma instrução requerida pelo assistente, que visa
sempre a pronúncia do(s) arguido(s), acresce ainda mais um requisito, ou seja,
deve tal requerimento conter ainda a narração própria de uma acusação, mediante
a descrição dos factos integradores de um crime e a indicação da correspondente
disposição legal que o tipifica.
Tal descrição factual deverá conter os factos concretos susceptíveis de integrar
todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o assistente
considere ter sido preenchido.
Por sua vez e de acordo com o citado artigo 287º, através do seu nº 3 “O
requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz
ou por inadmissibilidade legal da instrução”.
Nesta conformidade o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo
assistente deve sempre descrever, de modo autónomo, os factos imputados ao(s)
arguido(s), indicando ainda os tipos legais de crime que os mesmos integram.
Se tal não suceder, esse requerimento é nulo e susceptível de rejeição, por ser
destituído dos requisitos enunciados no art. 287º, nº 2 parte final, conjugado
com o art. 283º, nº 3, alíneas b) e c) do C.P.P.
Cumpre Apreciar e Decidir:
Relendo o requerimento de abertura de instrução, – quanto ao elemento subjectivo
do imputado crime – é feita unicamente, uma descrição factual conducente à
verificação dos, actuação dos arguidos, sob a forma de dolo eventual, nos
seguintes termos:
“os arguidos ao omitirem o tratamento mais adequado ou ao não actuarem, com os
conhecimentos técnicos que possuíam, sabiam que existia a possibilidade de
surgirem complicações no parto, das quais poderiam advir o resultado verificado
ou mesmo a morte do bebé e conformaram-se com tal resultado”.
Ou seja, o assistente não articulou factos concretos donde resulte o elemento
cognitivo do dolo, ou seja, de que forma e quando os arguidos tiveram
conhecimento de que as lesões ocorreriam em face da sua acção/omissão e se
conformaram com a sua produção.
Salvo o devido respeito, os factos articulados no requerimento rejeitado só
contêm uma descrição factual susceptível de integrar os elementos objectivos e
subjectivos do tipo criminal correspondente ao crime de ofensa à integridade
física grave por negligência, p.p. pelos art°s. 148º nº 1 e 3 com referência ao
art. 144º, ambos do C.Penal, que a ter sido praticado, prescreveu em
26/01/2004.(conf. art°s. 118º nº 1 – c); 120º e 121º do C.P).
Isso mesmo resulta das diligências efectuadas no âmbito do Pº 13351/99.6TDLSB,
aliás, mencionadas no despacho recorrido, donde se pode concluir pela não
conformação dos acusados no que concerne ao resultado ocorrido, mesmo a titulo
de dolo eventual.
Na verdade conforme resulta da queixa, os denunciados tinham conhecimentos
especiais e bem sabiam que uma actuação desconforme às legis artis poderia ter
causado efeitos como os sucedidos, mas tal raciocínio que em abstracto se pode
admitir, não se encontra minimamente indiciado nos autos por qualquer facto ou
indício e não pode valer em termos probatórios face aos princípios do sistema
penal.
Na verdade para assim ser, teria de resultar dos autos a previsão em concreto
pelos imputados do resultado ocorrido e consequente conformação com o mesmo,
mesmo a título de mera possibilidade o que não resulta de qualquer diligência
efectuada nem se vislumbra possa resultar de outras que fossem efectuadas.
Face ao exposto, estando nós em concordância com a análise que foi feita na
decisão recorrida, entendemos, com os fundamentos aduzidos nesta – art. 425º nº
5 do C.P.P. – confirmar a decisão de rejeição do requerimento de abertura de
instrução apresentado pelo recorrente.
III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, julga-se improcedente o presente recurso
interposto pelo assistente, e, em consequência, confirma-se o despacho
recorrido».
4.1 – O objecto do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da
Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, disposição esta que
se limita a reproduzir o comando constitucional, apenas pode traduzir-se numa
questão de (in)constitucionalidade de(s) norma(s) de cuja efectiva aplicação
haja resultado a decisão recorrida ou que tenha constituído o fundamento
normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e
incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra
recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da
constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da
natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. Cardoso da Costa,
«A jurisdição constitucional em Portugal», in Estudos em homenagem ao Professor
Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, I,
1984, pp. 210 e ss., e, entre muitos outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado
no Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado
no mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de
pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de
20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o
Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de
2000).
Por outro lado, importa acentuar que, neste domínio da fiscalização
concreta de constitucionalidade, a intervenção do Tribunal Constitucional se
limita ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o
tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado.
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade há-de
poder, efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida, demandando a sua
reforma, no caso de o recurso obter provimento, em termos de implicar a sua
alteração ou a sua reforma.
Estamos perante uma exigência que constitui um postulado da própria
natureza da função jurisdicional constitucional, por lhe incumbir decidir
questões concretas e não questões hipotéticas ou académicas.
Tal só é possível quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal
Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida,
ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
4.2 – Concretizando, ainda, aspectos do seu regime, cumpre acentuar
que, sendo o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade
constituído por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios
constitucionais, há-de a questão de inconstitucionalidade ter sido suscitada em
termos adequados, claros e perceptíveis, durante o processo, de modo que o
tribunal a quo ainda possa conhecer dela antes de esgotado o poder jurisdicional
do juiz sobre tal matéria, sendo que desse ónus de suscitar adequadamente a
questão de inconstitucionalidade em termos do tribunal a quo ficar obrigado ao
seu conhecimento decorre a exigência de se dever confrontar a norma sindicanda
com os parâmetros constitucionais que se têm por violados, só assim se
possibilitando uma razoável intervenção dos tribunais no domínio da fiscalização
da constitucionalidade dos actos normativos.
É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o
tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que
convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional,
que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma posição de
substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de
constitucionalidade, fora da via de recurso.
É por isso que se entende que não constituem já momentos
processualmente idóneos aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição
de nulidades, pedidos de aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a
obtenção de decisão com aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento
ou modificação, com base em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia
ter pronunciado (cf., entre outros, os acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário
da República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 33º vol., p. 663; n.º 374/00, publicado no Diário da República
II Série, de 13 de Julho de 2000, BMJ 499º, p. 77, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 47º vol., p.713; n.º 674/99, publicado no Diário da República II
Série, de 25 de Fevereiro de 2000, BMJ 492º, p. 62, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 45º vol., p. 559; n.º 155/00, publicado no Diário da República
II Série, de 9 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º
vol., pp. 821, e n.º 364/00, inédito).
4.3 – É certo que tal doutrina sofre restrições, como se salientou no
Acórdão n.º 354/94, inédito, mas isso apenas acontece em situações excepcionais
ou anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para
suscitar a questão de constitucionalidade antes proferida ou não era exigível
que o fizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação
de todo insólita e imprevisível.
Usando os termos do Acórdão n.º 192/2000, publicado no Diário de
República II Série, de 30 de Outubro de 2000, dir-se-á, ainda, que “quem
pretenda recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento na aplicação de
uma norma que reputa inconstitucional tem, porém, a oportunidade de suscitar a
questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferido
o acórdão da conferência de que recorre...”.
E é claro que não poderá deixar de entender-se que o recorrente tem
essa oportunidade quando a apreensão do sentido com que a norma é aplicada numa
decisão posteriormente proferida poderá/deverá ser perscrutado no(s)
articulado(s) processual(ais) funcionalmente previsto(s) para discretear
juridicamente sobre as questões cuja resolução essa decisão tem de ditar, por
antecedentemente colocadas, e em que aquele sentido, cuja constitucionalidade se
poderá questionar, se apresenta como sendo um dos plausíveis a ser aplicados
pelo juiz.
Ao encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação
das normas, as partes não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o
facto de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os
considerar na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da
(in)validade da norma em face da lei fundamental.
Digamos que as partes têm um dever de prudência técnica na antevisão
do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à sua
conformidade constitucional. O dever de suscitação da inconstitucionalidade
durante o processo e pela forma adequada enquadra-se dentro destes parâmetros
acabados de definir.
5.1 – Ora, confrontando o requerimento de interposição de recurso de
constitucionalidade com a decisão agora recorrida – recorde-se, o acórdão do TRL
– constata-se que o recorrente não suscitou a questão de constitucionalidade dos
art.ºs 119.º, alínea d) e 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal
(CPP), cuja constitucionalidade pretende agora ver apreciada, no recurso
interposto do despacho de não pronúncia, proferido pela 1.ª instância, para o
TRL.
Em ponto algum das alegações desse recurso, aliás transcritas no
acórdão recorrido, se vê réstia do sentido de uma tal suscitação.
A questão de constitucionalidade de tais preceitos apenas foi
introduzida pelo recorrente, tal como o próprio afirma no ponto 6 do seu
requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, no recurso
interposto para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) do acórdão do TRL, agora
recorrido, mas que não foi admitido pelo tribunal de 2.ª instância, vindo esta
decisão a ser confirmada na reclamação deduzida nos termos do art.º 405.º do
CPP.
Deste modo, e independentemente de o prazo para a interposição do
recurso de constitucionalidade do acórdão do TRL, agora recorrido, se contar
apenas a contar do trânsito em julgado da decisão que não admitiu o recurso para
o STJ, por força do disposto no n.º 2 do art.º 75.º da LTC, o certo é que, face
ao acima expendido, apenas se poderá relevar para efeitos do cumprimento do ónus
de suscitação da questão de constitucionalidade a alegação feita perante aquele
TRL.
A suscitação da questão de constitucionalidade em momento posterior
ao da decisão agora recorrida não poderá considerar-se como idónea e adequada,
porquanto o poder jurisdicional do tribunal recorrido já se havia esgotado.
E também não é caso de considerar-se o recorrente dispensado do
cumprimento desse ónus de suscitação, porquanto, tendo colocado ao tribunal ad
quem a questão da nulidade e da insuficiência do inquérito e tendo suportado a
sua verificação na possível aplicação, com um sentido por si reputado de
inconstitucional, de certas normas (os art.ºs 262.º, n.º 1, 267.º, 277.º, nºs 1
e 2, e 287.º, n.º 3, todos do CPP), era-lhe inteiramente exigível que
questionasse a constitucionalidade das normas que não abrangiam no efeito da
nulidade nelas constituído a aplicação daquelas normas com o sentido tido por
inconstitucional.
Assim sendo, por falta de atempada e adequada suscitação, não se
conhecerá do recurso de constitucionalidade das normas constantes dos art.ºs
119.º, alínea d) e 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP.
5.2 – Pretende, também, o recorrente que o Tribunal Constitucional
aprecie a questão de constitucionalidade de um outro grupo de normas: a saber,
de um lado, as normas constantes dos art.ºs 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, n.º 1,
e, do outro, a norma constante do art.º 287.º, n.º 3, todos os preceitos do CPP,
e na acepção por ele precisada no requerimento de interposição de recurso.
Acontece, porém, que também não poderá tomar-se conhecimento do
recurso relativo a tais normas.
Senão vejamos.
5.2.1 - Relativamente àquele primeiro grupo de normas, o recorrente
controverte a sua inconstitucionalidade “na medida em que permitam a
interpretação segundo a qual pode o inquérito ser arquivado sem que nenhuma
diligência probatória haja sido levada a cabo”, por violação do art.º 20.º da
Constituição.
Ora, colocada assim a questão, verifica-se que o recorrente acaba por
impugnar não a norma, enquanto critério de decisão judicial, com o qual foi
contrastado o quadro factual, mas o resultado do juízo efectuado pelo tribunal
consequente da aplicação desse critério normativo aos factos. O recorrente
afronta, assim, a decisão judicial em si própria.
Todavia, como se disse, no nosso sistema de fiscalização concreta de
constitucionalidade, de controlo difuso e instrumental, só podem constituir
objecto do recurso de constitucionalidade normas jurídicas e não decisões
judiciais, ainda que estas façam aplicação directa (porventura errada) de
preceitos ou princípios constitucionais.
Mas que assim se não entenda e se considere que o recorrente
configura ainda, sob a expressão precisada, uma determinada acepção normativa
susceptível de ser inferida, por via interpretativa, de tais preceitos, ainda
assim, não poderá tomar-se conhecimento do recurso.
Na verdade, a decisão recorrida, em ponto algum do seu discurso
fundamentador, se abona no entendimento de que, segundo tais preceitos, o
inquérito “possa ser arquivado sem que nenhuma diligência probatória haja sido
levada a cabo”.
O que o acórdão recorrido sustenta é que não constitui nulidade, por
ausência absoluta de inquérito ou por insuficiência do mesmo, a situação em que
o M.º P.º considerou que, sendo os factos denunciados pela queixa apresentada
pelo assistente em 27 de Maio de 2005 os mesmos que haviam sido analisados no
âmbito do P.º 13351/99.6 TDLSB, não tinha o mesmo de efectuar quaisquer outras
diligências adicionais, dirigidas à imputação pelo assistente do mesmo crime,
conquanto, agora, na forma dolosa, dado não se achar vinculado à qualificação
jurídica dos factos, por “a omissão de diligências não impostas por lei não
determina(r) a nulidade, pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito
é da exclusiva competência do Ministério Público” e por “o Ministério Público
[ser] é livre, salvaguardados os actos de prática obrigatória e as exigências
decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou promover as
diligências que entender necessárias”.
Resulta, pois, claro que aquilo que o tribunal a quo entendeu não foi
que o inquérito “possa ser arquivado sem que nenhuma diligência probatória haja
sido levada a cabo” mas que, no caso, não constitui nulidade a não realização,
pelo Ministério Público, de diligências probatórias de prática não obrigatória
legalmente, cuja produção o assistente havia requerido, por este magistrado
entender que os factos, não obstante a atribuição pelo assistente de uma outra
qualificação jurídica, eram os mesmos que já haviam sido investigados em outro
inquérito anterior, dado caber na autonomia do Ministério Público “levar a cabo
ou promover as diligências que entender necessárias”.
Temos, portanto, de concluir que o critério normativo aplicado pelo
tribunal a quo como fundamento da decisão foi outro que não aquele que foi
definido pelo recorrente e pelo mesmo assacado a tais preceitos.
Também por esta razão não se poderá conhecer do recurso.
Mas acresce, relativamente ao mesmo grupo de normas, que existe ainda
um outro fundamento pelo qual se não poderia conhecer do recurso. É que o
recorrente não questionou, no tempo adequado (que, como se disse, seria no
recurso para a Relação), a constitucionalidade dos art.ºs 119.º, alínea d) e
120.º, n.º 2, alínea d) enquanto entendidos no sentido de não preverem como
fundamento de nulidade a aplicação dos referidos art.ºs 262.º, n.º 1, 267.º e
277.º, n.º 1, do CPP, com o sentido reputado de inconstitucional (a este
propósito, cf. Acórdão n.º 612/99, in Diário da República II Série, de
22/2/2000).
A falta de impugnação art.ºs 119.º, alínea d) e 120.º, n.º 2, alínea
d), do CPP conduziria ao resultado de, mesmo a ser julgada inconstitucional a
dimensão normativa dos art.ºs 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, n.º 1, do mesmo CPP,
definida pelo recorrente, não resultar necessariamente daí a anulação do
processo de inquérito, por a aplicação de tais preceitos com o sentido reputado
inconstitucional não se achar prevista como causa de nulidade naqueles
preceitos. Ou seja, da interpretação dos art.ºs 262.º, n.º 1, 267.º e 277.º, n.º
1, do CPP tida pelo recorrente como inconstitucional, e a ser aceite uma tal
posição, nunca se poderia distrair o efeito de anulação do processo de inquérito
e a realização das diligências requeridas.
E a ser assim, estaremos perante a falta do pressuposto do recurso de
constitucionalidade da utilidade do seu conhecimento, cuja exigência deriva não
só da natureza da função jurisdicional como do seu carácter instrumental.
Donde, por esta razão, não se poderá, também, tomar conhecimento do
recurso.
5.2.2 – Vejamos agora o recurso de constitucionalidade relativo à
norma constante do art.º 287.º, n.º 3, do CPP.
Antes de mais, vale aqui mutatis mutandis o que acabou de dizer-se
relativamente ao primeiro grupo de normas.
Por outro lado, constata-se, também, que a dimensão normativa do
art.º 287.º, n.º 3 do CPP que serviu de fundamento à decisão recorrida não
coincide com aquela que o recorrente suscitou e definiu no seu requerimento de
interposição de recurso.
Na verdade, o recorrente invocou a inconstitucionalidade de tal
preceito legal, “na medida em que permita a interpretação segundo a qual pode a
instrução ser rejeitada, por dos autos não resultarem suficientes indícios de
dolo do agente dos factos puníveis”, por violação do art.º 20.º da Constituição.
Ora, o tribunal rejeitou a instrução não porque “dos autos não
resultavam suficientes indícios de dolo do agente dos factos puníveis”, mas
porque “o assistente não articulou factos concretos donde resulte o elemento
cognitivo do dolo, ou seja, de que forma e quando os arguidos tiveram
conhecimento de que as lesões ocorreriam em face da acção/omissão e se
conformaram com a sua produção” (itálico acrescentado), descrição essa factual
que pudesse e devesse ser investigada através da produção da prova oferecida.
O objecto do recurso não coincide, assim, com a ratio decidendi
normativa e portanto não pode ser admitido.
De qualquer modo, importa notar que tal como o recorrente define o
que tem por critério normativo, a definição feita se ajusta não a qualquer
parâmetro legal (critério normativo) com o qual devesse ser confrontado o quadro
de facto, mas antes, mais adequadamente, ao resultado de um juízo probatório
efectuado sobre as provas constantes dos autos quanto à inexistência dos
indícios factuais susceptíveis de integrarem elementos o tipo legal de crime
imputado ao denunciado.
Desta sorte, não pode conhecer-se, também, desta parte do objecto do
recurso de constitucionalidade.
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide
não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 8 UCs.».
B – Fundamentação
4 – O reclamante em nada logra abalar, na sua longa
dissertação, a bondade dos fundamentos em que decisão sumária reclamada se
abonou e que aqui se reiteram.
Na verdade, o reclamante não demonstra que o julgamento,
nela efectuado, quanto à inverificação dos pressupostos específicos do recurso
de constitucionalidade padeça de erro, maxime, no que toca à identificação, nela
realizada, das concretas normas ou concretos juízos que foram assumidos pelo
acórdão recorrido como rationes juris ou rationes judicis da solução que ditou
para o pleito e à relação de prejudicialidade entre o conhecimento do recurso de
constitucionalidade relativo às normas constantes dos art.ºs 262.º, n.º 1, 267.º
e 277.º, n.º 1, do CPP e a não impugnação constitucional, em tempo oportuno, das
normas constantes dos art.ºs 119.º, alínea d), e 120.º, n.º 2, alínea d), do
mesmo código, enquanto entendidos no sentido de não preverem como fundamento de
nulidade a aplicação daqueles preceitos, com o sentido reputado de
inconstitucional.
Assim sendo, a reclamação é de indeferir.
C – Decisão
5 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal
Constitucional decide indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa
em 20 UCs.
Lisboa, 2 de Maio de 2007
Benjamim Rodrigues
Rui Pereira
Rui Manuel Moura Ramos