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Processo nº 142/97
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - No tribunal judicial da comarca de Loures, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi o arguido A. julgado como autor de um crime do artigo 287º, nº 2, de quatro crimes dos artigos 313º e 314º, alíneas a) e c) (um dos quais sob a forma tentada), de três crimes do artigo 317º, nºs 1, alínea a) e 5, (um dos quais sob a forma tentada), de um crime do artigo 157º, nº 1, alínea a), sob a forma tentada, e de um crime do artigo 228º, nºs 1, alínea a), e 2, todos do Código Penal, vindo a ser condenado, por acórdão de 30 de Julho de 1992, como autor de um crime do artigo 287º, nº 2, em três anos de prisão, cuja execução foi declarada suspensa por três anos, sendo-lhe perdoado um ano de prisão em conformidade com o artigo 14º, nº 1, alínea b) da Lei nº
23/91, de 4 de Julho.
Não conformado com o assim decidido levou o arguido recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, havendo fechado a respectiva motivação com a seguinte síntese conclusiva:
'1 - A convicção do Tribunal colectivo funda-se num prejuízo não abonado por prova validamente produzida. Realmente:
2 - Baseia-se em escutas telefónicas, não fiáveis, deficientemente tratadas por um agente investigador tecnicamente impreparado, tendencioso no sentido da incriminação, que as transcreveu, arbitrariamente, com graves incorrecções, omissões e comentários marginais manipuladores.
3 - Escutas que, exceptuadas as referidas, na acta da audiência de 7 de Julho e que são irrelevantes para a incriminação do recorrente, não foram objecto de audição em plenário com aplicação do princípio contraditório.
4 - Em prova testemunhal colhida unicamente do agente da Polícia Judiciária, titular do processo, cujo depoimento se mostra viciado pelo que se dispõe no artº. 356º, nº 7 do C.P.P.. Realmente,
5 - Como o próprio Juiz Presidente do colectivo bem observou no decurso da audiência (que falta faz o registo fonográfico da audiência, oportunamente requerido pela defesa), o referido agente, o seu auxiliar e Inspector, limitavam-se a emitir opiniões e conclusões cuja razão de ciência era o conhecimento dos autos por si organizados, nomeadamente, as declarações que lhe foram prestadas por alguns dos arguidos. Um mero testemunho indirecto que não pode ser usado, por, não fiável.
6 - Não há prova documental que implique o recorrente em actos ilícitos da B. ou do seu único dono, o falecido C..
7 - Não se caracterizou em parte alguma do acórdão, a vinculação dos arguidos e menos ainda do recorrente aos elementos típicos do crime de associação criminosa, com o objecto de prática de burlas, extorsão e coacção.
8 - Pelo contrário, o próprio acórdão mostra que tudo passava, exclusivamente, pela vontade, orientação, chefia e disposição de meios de um só indivíduo. O dono da B., o falecido C..
9 - Este é que colhia os proveitos de toda a actividade. Os arguidos desconheciam totalmente quais os proveitos. Desconheciam até em extensão qual a actividade da empresa a cada momento.
10 - Havia um dono, único patrão, única vontade. Uma só vontade individual a definir os destinos e o objecto da B..
11 - Os arguidos e, neles, o recorrente sabiam apenas o que o C. lhes comunicava de forma fragmentária e apenas para que pudesse obter o efeito
útil, imediato, do trabalho daqueles.
12 - Não houve associação criminosa - veja-se o estudo do Prof. Figueiredo Dias em 'As associações criminosas' no Código Penal Português de 1982
(artºs 287º e 288º) em revista de Legislação e Jurisprudência no 3751 a 3760.
13 - O colectivo violou em audiência e no seu acórdão os preceitos combinados dos artºs 18º e nº 5 e 6 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa ao subverter a ordem da produção de prova em audiência (artº 341º do C.P.P.), ao privilegiar a prova testemunhal da acusação com sucessivos adiamentos e interrupções por falta destas testemunhas (328º, nº 3 do C.P.P.), ao inquiri-las, de forma anárquica e sem obediência à casuística em que a sua ciência poderia ser analisada, logicamente, e em tempo oportuno com sujeição a esclarecimentos ou até a acareações.
14 - Bem assim ao privilegiar as escutas telefónicas referidas nestas conclusões, atendendo à forma como foram transcritas (com apartes, comentários e omissões sem audição em plenário, não podendo sequer servir para livre apreciação de prova. Esse é aliás, o sentido do douto acórdão 7/87 do Tribunal Constitucional (que as escutas são permitidas, mas obedecendo a regras muito definidas) (vide Marques Ferreira in Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, pág. 269 e 270).
Pelo que deve ser julgada improdecente e não provada a prática de crime de associação criminosa (artº 287º, nº 2 do C. Penal) por parte do recorrente absolvendo-o ou sem conceder, caso assim não seja decidido, anulado o julgamento pela violação das citadas normas constitucionais.'
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2 - Por acórdão de 29 de Janeiro de 1997, aquele Alto Tribunal negou provimento ao recurso, mantendo integralmente a condenação fixada na decisão recorrida, havendo contudo, por força da aplicação da Lei nº 15/94, de
11 de Maio, entretanto publicada, perdoado ao arguido um ano de prisão sob a forma condicional estabelecida neste diploma.
Não conformado com o assim decidido, sob invocação do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, trouxe então recurso a este Tribunal 'para apreciação da inconstitucionalidade dos artigos
341º e 328º, nº 3, do Código de Processo Penal, tal como concretamente foram interpretadas e aplicadas na primeira instância, com acolhimento no douto acórdão recorrido, por violação dos artigos 32º, nº 6 e 18º, nº 5 da Constituição da República, já suscitada nas alegações do recurso interposto para esse Supremo Tribunal de Justiça'.
E, nas alegações depois oferecidas concluiu assim:
'1 - Tal como foram concretamente interpretados e aplicados, quer em primeira instância, quer no Acórdão recorrido, os artºs 341º e 328º nº 3, do Cód. P. Penal são inconstitucionais, por violação do disposto no artº 32º nºs 1 e 6 da Constituição.
2 - Foi directamente violado o artº 32º nº 5 in fine da Constituição da República.'
Na contralegação entretanto produzida pelo senhor Procurador-Geral Adjunto suscitou-se a questão prévia do não conhecimento do recurso com base na inverificação dos pressupostos de que aquele se acha dependente.
Como suporte desta suscitação no quadro conclusivo da respectiva peça alegatória escreveu-se assim:
'1 - Tendo sido imputada a inconstitucionalidade à decisão do tribunal, ao acto judicial em si, não se verifica um dos pressupostos de admissibilidade do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - ter sido a questão de inconstitucionalidade suscitada durante o processo.
2 - Não deve, assim, tomar-se conhecimento do recurso.'
Notificado o recorrente para responder à matéria da questão preliminar pronunciou-se no sentido do seu desatendimento.
Tendo em atenção que a questão a decidir se apresenta com um
âmbito relativamente circunscrito e se insere num mero quadro processual, foram dispensados os vistos.
Cabe então apreciar a questão prévia do não conhecimento do recurso por força da alegada insuficiência dos pressupostos processuais que condicionam a abertura da via da sindicância constitucional.
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II - A questão prévia
1 - Em conformidade com o disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b) da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28//82, cabe recurso para este Tribunal das decisões dos tribunais que apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
A admissibilidade deste tipo de recurso - aquele a que o recorrente lançou mão - acha-se condicionada, além do mais, pela confluência de dois pressupostos essenciais: a) a inconstitucionalidade da norma deverá ter sido suscitada durante o processo pelo próprio recorrente; b) tal norma haverá de ser utilizada na decisão impugnada como seu suporte normativo.
O legislador constituinte elegeu como conceito identificador do objecto típico da actividade do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização da constitucionalidade (cfr. os artigos 278º, 280º e 281º da Constituição) o conceito de norma jurídica pelo que apenas estas (e não já as decisões judiciais em si mesmas consideradas), podem nesta sede, na qual se incluem os processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de sindicância.
Com efeito, os recursos de constitucionalidade, sendo embora interpostos de decisões dos outros tribunais (decisões de provimento ou de rejeição) não visam impugnar a inconstitucionalidade de tais decisões, mas antes o juízo que nelas se contenha sobre a inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade de normas com interesse para o julgamento da causa.
E assim sendo, impende sobre os recorrentes o ónus de suscitar, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade das normas convocadas e aplicadas pela decisão da causa, havendo de fazê-lo de modo directo, explícito e perceptível através da indicação das disposições legais sobre que se faz recair a suspeita do vício de inconstitucionalidade, em ordem a que os tribunais aquando do respectivo julgamento sejam confrontados com a matéria da inconstitucionalidade e sobre ela possam proferir decisão de provimento ou de rejeição.
É que, como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, p. 1993, p.
1018, a lógica fundamental da fiscalização concreta de constitucionalidade é 'a de que só há recurso para o TC quando outro tribunal tenha decidido (expressa ou implicitamente) uma questão de constitucionalidade. O recurso tem precisamente por objecto a reapreciação dessa decisão. Não se pode levar ao TC questões que não tenham já sido apreciadas (ou não devam ter sido apreciadas) por um outro tribunal (o tribunal recorrido)'.
E, por outro lado, a suscitação da inconstitucionalidade durante o processo há-de entender-se não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser invocada até à extinção da instância), mas sim num sentido funcional, isto é, o levantamento da questão que põe em crise, com fundamento em inconstitucionalidade, uma certa e determinada norma jurídica, haverá de ser feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão. Ou seja: a inconstitucionalidade terá de ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que tal questão respeita (Sobre esta matéria acha-se estabelecida uma jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal, cfr. por todos, os acórdãos nºs 90/85, 94/88 e 155/95, Diário da República, II série, de, respectivamente, 11 de Julho de 1985, 22 de Agosto de 1988 e 20 de Junho de 1995).
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2 - Ora, à luz destes princípios, há-de dizer-se que o recorrente não suscitou durante o processo de modo directo, adequado e funcionalmente operativo a questão de inconstitucionalidade das normas dos artigos 341º e 328º, nº 3 do Código de Processo Penal, cuja legitimidade constitucional pretendia agora ver sindicada.
Com efeito, na motivação do recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça - momento capital para invocar a inconstitucionalidade - e do qual se deixaram já transcritas as respectivas conclusões, não foi impugnada a constitucionalidade daquelas normas que regem, respectivamente, sobre a ordem de produção da prova e sobre as causas de adiamento da audiência, verberando-se, sim e tão somente, a própria decisão do tribunal de 1ª instância.
Esta evidência resulta com meridiana clareza do texto da conclusão 13ª daquela peça alegatória, na qual se procurou sintetizar a retórica argumentativa anteriormente vertida nos pontos 3.3 e 3.4 da fundamentação do recurso, assim construída:
'3.3. Mais grave violação do princípio do contraditório e dos direitos da defesa no sentido de com a sua prova se opor à prova da acusação, foi a injustificada alteração da ordem fixada no artº 341º do Código de Processo Penal. Permitiu-se que grande parte das testemunhas de acusação fossem ouvidas muito depois da produção da prova pela defesa. Não se diga que foi ao abrigo do disposto na al. a) do artº 323º do Código de Processo Penal que tal prática, gravemente lesiva dos interesses dos arguidos, foi admitida e cometida.
A inquirição dessas testemunhas, aleatoriamente presentes em dias insistente e sucessivamente designados (como emerge das actas) não se limitaram a interrogatórios ou inquirições directas pelo meretíssimo Juiz Presidente, no sentido de aclarações ou esclarecimentos, mas sim a tomadas de declarações pelo M.P. e instâncias.
Tudo sempre de forma anárquica, saltando de caso para caso, criando profunda perturbação na recolha harmónica e lógica da informação testada contraditoriamente em audiência, designadamente para a defesa.
3.4. Houve assim, grande violação do nº 5 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa por se ter previlegiado, com o procedimento atrás exposto, a prova da acusação em detrimento da prova da defesa - impondo adiamentos e subvertendo a ordem de sua apresentação.
As regras e a eficácia do contraditório foram profundamente diminuídas e o Tribunal a quo reformulou os meios da acusação não lhe impondo os limites do princípio do acusatório constitucionalmente consagrado.'
Há-de assim concluir-se que o recorrente não impugnou, por vício de inconstitucionalidade, uma certa e determinada norma jurídica, mas sim a própria decisão condenatória, sendo certo que tal forma de impugnação não se mostra adequada à abertura da via do recurso de constitucionalidade.
Aliás, é significativo que no acórdão recorrido não se faça qualquer alusão a uma eventual inconstitucionalidade das normas invocadas pelo recorrente, e tanto porque aquele Tribunal, certamente, não se considerou confrontado com qualquer questão de constitucionalidade.
É certo que no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal o arguido se reporta pela primeira vez no processo à
'inconstitucionalidade dos artigos 341º e 328º, nº 3 do Código de Processo Penal, tal como concretamente foram interpretados e aplicados na primeira instância, com acolhimento no douto acórdão recorrido'.
Mas, então, esgotado já o poder jurisdicional do tribunal a quo, tal suscitação tem de se considerar irrelevante, por extemporânea, não potenciando o preeenchimento do pressuposto - suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo - de que depende o conhecimento do recurso de constitucionalidade.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em dez (dez) Ucs.
Lisboa, 15 de Julho de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Vítor Nunes de Almeida Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa