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Processo n.º 901/05
2.ª Secção
Relator: Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A., melhor identificado nos autos, reclama, ao abrigo do
disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, do
despacho do relator – fls. 1018 a 1021 – na parte em que se decidiu delimitar o
recurso interposto pelo Recorrente A. à questão da fiscalização da
constitucionalidade do artigo 111.º do Código Penal, na interpretação «que o
considerou aplicável como consequência da prática dos factos integrantes do
“crime de abuso de informação”, por que o recorrente foi condenado, previsto e
punível, em 25 de Janeiro de 2000, “pelo artigo 666.º, n.º 1, alínea a), com
referência aos nºs 4 e 5 do Código dos Valores Mobiliários e (…) [após 1 de
Março de 2000] pelo artigo 378.º, n.º 1, com referência ao n.º 4, do Código dos
Valores Mobiliários», por violação do disposto no artigo 29.º da Constituição da
República Portuguesa.
2 – O despacho reclamado estribou-se na seguinte fundamentação:
“(...)
Perscrutado o cumprimento dos requisitos fundamentais para que o
Tribunal Constitucional possa conhecer do objecto dos recursos, constata-se que
os pressupostos estabelecidos na alínea b) do artigo 70º, n.º 1, da LTC, não se
verificam em relação ao recurso interposto por A., na parte em que visa a
apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 358.º e 359.º do Código
de Processo Penal, «na interpretação (…) [de] imputar ao recorrente a qualidade
de “accionista” do “emitente” B. e por esta via julgar “preenchida (…) a
qualidade de agente do ilícito”, assim se admitindo a alteração, na sentença,
dos factos constantes da acusação», por violação do disposto no artigo 32.º, nºs
1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, é manifesto que tal questão – ressalvada uma análise
formalista estritamente radicada num plano semântico-gramatical – não corporiza
uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, antes remetendo o
Tribunal Constitucional a um controlo do mérito da decisão judicial que, em face
da factualidade constante dos autos, concluiu não haver qualquer “alteração dos
factos constantes da acusação.
Ora, como refere Carlos Lopes do Rego («O objecto idóneo dos recursos
de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas
sindicáveis pelo Tribunal Constitucional», in Jurisprudência Constitucional, n.º
3, pp. 8 e ss.), “não basta, porém, que a parte tenha, de um ponto de vista
formal, equacionado uma questão de inconstitucionalidade de normas (não se
limitando a impugnar directamente a constitucionalidade de decisões judiciais e
indicando ou especificando o sentido ou interpretação com que considera ter sido
tomado e aplicado o preceito alegadamente violador da Constituição), já que (…)
importa prevenir os casos de abuso ou ficção do conceito de interpretação
normativa, apenas com o objectivo de forjar artificiosamente uma norma
sindicável pelo Tribunal Constitucional”.
Assim será, indubitavelmente, quando o recorrente pretenda controverter
a concreta e casuística valoração do julgador das especificidades de cada caso,
principaliter quando se conteste, como sucede no caso dos autos, que a decisão
recorrida adoptou uma interpretação contraditória com a norma legal aplicável
por não lhe haver subsumido uma determinada realidade.
Posto este entendimento, logo se compreende que, in casu, o Recorrente
coloca este Tribunal perante a questão de saber se houve, ou não, uma alteração
substancial dos factos, para só a posteriori e a partir da conclusão aí
alcançada se pronunciar sobre o mérito da aplicação realizada pelo Tribunal a
quo.
Tal perspectiva é confirmada pelo Recorrente que contesta
especificamente «a interpretação (…) [de] imputar ao recorrente a qualidade de
“accionista” do “emitente” B. e por esta via julgar “preenchida (…) a qualidade
de agente do ilícito”», assumindo, contra o juízo do Tribunal a quo, que houve
uma “alteração, na sentença, dos factos constantes da acusação”.
Em todo o caso, mesmo que assim não fosse – e a admitir-se
academicamente que a questão de constitucionalidade suscitada se referia
efectivamente a uma “norma” –, seria manifesto que o resultado do seu julgamento
não lograria abalar a decisão recorrida que assenta a sua ratio decidendi num
fundamento autónomo em relação ao que vem controvertido pelo Recorrente.
De facto, o Tribunal da Relação considerou, entre o mais, que
independentemente da sua qualidade de accionista, o facto de exercer funções
como membro do Conselho Superior do B., tendo acesso à informação em causa nos
autos, o colocaria sob a alçada subjectiva do ilícito pelo qual foi condenado.
(...)”.
3 – A presente reclamação vem apoiada nos seguintes fundamentos:
“(...)
1
O recorrente, ora reclamante, interpôs recurso para este Tribunal
Constitucional, em Secção, em ordem à apreciação da inconstitucionalidade
material das normas constantes dos artºs. 358º e 359º do Código de Processo
Penal, por violação do disposto no art. 32º, 1 e 5, da Constituição da República
Portuguesa, e do art. 111º do Código Penal, por ofensa do preceituado no art.
29º também da Constituição, na interpretação e aplicação que delas fez o acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa, de fls. (datado de 20 de Abril de 2005).
2
No que respeita ao recurso para apreciação da inconstitucionalidade das normas
dos artºs 358º e 359º do Código de Processo Penal, o reclamante interpô-lo,
considerando que foram alterados os factos constantes da acusação.
Na verdade,
3
Para enquadrar a conduta do reclamante na previsão do art. 666º, 1, a), do
Código dos Valores Mobiliários (aprovado pelo Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de
Abril), e actualmente no art. 378º, 1, do Código dos Valores Mobiliários
(aprovado pelo art. 1º do Decreto-Lei nº 486/99, de 13 de Novembro), necessário
era
que ele fosse «titular de uma participação no respectivo capital» - «accionista»
do B.
ou que tivesse «a qualidade de titular de um órgão de administração ou de
fiscalização» do B..
4
Nenhum destes factos, porém, se encontra descrito na acusação.
5
Para a acusação.[fls. 79 a 96 (I volume)] - maxime, artºs. 8º, 9º, 10º, 33º,
34º, 35º, 38, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 46º, 47º, 48º, 99º, 106º e 107º -
o arguido ora reclamante dispôs da «informação privilegiada»a que os autos se
referem, «devido à sua qualidade de» membro do Conselho Superior do Banco B.
(B.):
«em razão das suas funções de membro do Conselho Superior do B.» [art. 99º, fls.
93 (I volume)]; no exercício das (…) funções» (de membro do Conselho Superior do
B.) [art. 107º, fls. 94 (I volume)].
6
O Conselho Superior do B. é um «corpo social», assim designado [artºs. 9º, 2 e
3, 28º-A, 28º-B e 28º-C do contrato social (fls. 232, 242 e 243 do Apenso A/II
volume)], constituindo uma categoria sem consagração na lei, não constante das
modalidades de estruturação da administração e fiscalização das sociedades, à
margem portanto do modelo organizativo legalmente consagrado no art. 278º do
Código das Sociedades Comerciais, que não faz - não pode fazer - parte dos
«órgãos sociais» das sociedades.
7
O Conselho Superior do B. não é susceptível de qualificar-se como «órgão de
administração e fiscalização»,
assim não se podendo integrar a conduta atribuída ao reclamante na previsão do
art. 666º, 1, a), do Código dos Valores Mobiliários (aprovado pelo Decreto-Lei
nº 142-A/91, de Abril), e actualmente, do art. 378º, 1, do Código soa Valores
Mobiliários (aprovado pelo art. 1º do Decreto-Lei nº 486/99 de 13 de Novembro) –
crime de abuso de informação.
8
Da acusação não consta, pois, o que quer que seja passível de legitimar a
conclusão de que, na época a que os factos a que se reportam ou em qualquer
outra, o reclamante fosse
* accionista do B.
– ou –
* membro do seu «órgão de administração» ou do «de fiscalização» do B..
9
Na sentença da 1ª instância, foi considerado resultar provado da «discussão da
causa» [fls. 347 (II volume)] que
o reclamante «é accionista do B.
e por via disso
membro do Conselho Superior do B.»
[fls. 358, in medio (II volume); sublinhado nosso].
10
Por seu turno, para o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de fls. ---
(datado de 20 de Abril de 2005),
«o Conselho Superior faz parte dos “órgãos e corpos sociais” do B.» (fls. 37 do
acórdão, linhas 2 e 3; o destaque corresponde a itálico no original; o
sublinhado á nosso).
11
O mesmo acórdão da Relação, de fls. ---, dá por adquirido que
O reclamante «é (…) accionista do B.»
(fls. 37 do acórdão, (linha 10), acrescentando, em nota [(4)], que, «[n]os
termos do disposto no art. 28-A [por evidente lapso, foi escrito “2º”] nº 3 do
Contrato Social (…), [tal qualidade é] condição para a eleição para tal órgão [o
Conselho Superior], sendo certo que parece transparecer até dos autos que é
mesmo “um accionista importante” e até “fundador subscritor do capital do
Banco”…».
12
Segundo o estipulado no contrato social do B. [art. 28º-A, 2 e 3 (fls. 242 do
Apenso A/II volume)]:
«1 – (…).
«2 – São, por inerência, membros do Conselho o presidente da Mesa da Assembleia
Geral, o presidente do Conselho de Administração e o presidente do Conselho
Fiscal.
«3 – Os restantes membros do Conselho Superior serão accionistas, eleitos em
Assembleia Geral por períodos de três anos, e reelegíveis uma ou mais vezes,
podendo também o próprio Conselho Superior, sob proposta do Conselho de
Administração, cooptar novos membros, nos casos de vacatura ou de deliberação de
alargamento da sua própria composição, aplicando-se para o efeito o disposto no
nº 2 do artigo 9º-A e ficando a cooptação sujeita a ratificação na assembleia
geral seguinte.
«4 – (…).
«5 – (…).
«6 – (…)».
13
Tal tendo presente que nada impedia que «accionista» não fosse o reclamante, mas
sim uma sociedade em representação da qual ele exercesse as funções de membro do
Conselho Superior [no caso, a sociedade então denominada A. & Cª, L.DA (cfr.
fls-.35 a o I volume)].
14
Neste contexto,
mencionar que «o Conselho Superior faz parte dos “órgãos e corpos sociais' do
B.» (fls. 37 do acórdão, linhas 2 e 3; o destaque corresponde a itálico no
original; o sublinhado é nosso), para, na sequência, sugerir que esse Conselho é
um «órgão social» e, dentro desta categoria, «de administração ou de
fiscalização» da sociedade,
- e –
considerar que o reclamante «é (...)accionista do B.» (fls. 37 do acórdão, linha
10),
implica um acrescento à acusação, consubstanciando uma «alteração substancial
dos factos», sobre que não foi dada ao arguido, ora reclamante, oportunidade de
se pronunciar - portanto, ofensiva das garantias de defesa e dos princípios do
acusatório e do contraditório.
15
É neste quadro que se situa a inconformação do reclamante e que se origina o
recurso do acórdão da Relação, visando a impugnação, não desse acto, por si só –
do acto de julgamento em si –, mas do sentido decisório dele, referido à
interpretação desconforme à Constituição que contém.
16
Socorrendo-se, com a devida vénia, das palavras do acórdão do Tribunal
Constitucional nº 674/99 [processo nº 24/97 – 2ª; relator: Juiz‑Conselheiro Luís
Nunes de Almeida], in www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia, o reclamante
declara que visa obter, pela via do recurso interposto do acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa, de fls --- (datado de 20 de Abril de 2005), uma
decisão deste tribunal sobre se
os art.ºs 358º e 359º do Código de Processo Penal,
«quando interpretados no sentido de se não entender como alteração dos factos -
substancial ou não substancial - a consideração», no acórdão recorrido,.«de
factos atinentes» aos elementos essenciais, típicos, do crime imputado ao
reclamante, «não especificamente enunciados, descritos ou discriminados no texto
da (...) acusação (...),
serão conformes com as garantias de defesa em processo penal
e com os princípios do acusatório e do contraditório,
de acordo com o que se preceitua no artigo 32º da Constituição da República».
17
É esta dimensão normativa que o ora reclamante pretende ver apreciada.
18
Assim, salvo o devido respeito – e muito é –, este tribunal deve conhecer do
objecto do recurso, na parte em que o mesmo se refere à inconstitucionalidade
material das normas dos art.ºs 358º e 359º do Código de Processo Penal, por
violação do disposto no art. 32º, 1 e 5, da Constituição da República
Portuguesa”.
4 – O Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, em
resposta, concluiu pela manifesta improcedência da reclamação, dizendo que «a
argumentação expendida pelo reclamante apenas vem confirmar que o mesmo não
suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de
integrar o objecto idóneo da fiscalização concreta cometida ao Tribunal
Constitucional - apenas questionando o estrito momento subsuntivo, na sua
conexão com a matéria de facto, com a titularidade de participação no capital
social e com a integração do conceito de 'órgãos sociais' da sociedade em
causa».
Cumpre agora decidir.
B – Fundamentação
5 – Na decisão reclamada entendeu-se que o Recorrente não havia
equacionado um verdadeiro problema de constitucionalidade normativa e que a
decisão recorrida fazia assentar a sua ratio decidendi num fundamento autónomo
em relação ao controvertido pelo Recorrente.
Para uma perspectivação mais apurada destes alicerces, importa
lembrar os termos em que a questão de “constitucionalidade” foi suscitada pelo
ora Reclamante e o juízo que o Tribunal a quo proferiu sobre a matéria.
5.1 – Nas suas alegações para o Tribunal da Relação, o Reclamante
sustentou, em síntese, que:
«1ª O Recorrente foi acusado pelo MºPº da «prática, em co-autoria, de um crime
de abuso de informação» p.p. «à data (25/01/00) pelo art. 666º nº 1 al. a), com
referência aos nºs 4 e 5 do CVM e actualmente pelo art. 378º nº 1, com
referência ao nº 4 do CVM»
2ª É elemento essencial, típico, do crime imputado ao recorrente a qualidade do
agente, de membro de órgão de administração ou de fiscalização ou de titular de
participação no capital social de sociedade emitente de valores mobiliários ou
de trabalhador ou prestador de serviços, profissional ou funcionário público com
acesso a informação privilegiada, por via do exercício das suas funções.
3ª A acusação (fls. 79 a 96) - maxime nos artºs 8º a 10º, 33º a 35º, 38º, 40º a
44º, 46º a 48º, 99º, 106º e 107º - alega que o recorrente dispôs da «informação
privilegiada» a que os autos se referem «devido à sua qualidade de» membro do
Conselho Superior do Banco B. («em razão das suas funções de membro do Conselho
Superior do B.» - art. 99º, fls. 93; «no exercício das (...) funções (de membro
do Cons. Superior do B.)» (art. 107º, fls. 94).
4ª O Conselho Superior do B. não é órgão da respectiva sociedade (artºs 9º 1 a),
b) e c), 28-A a C do contrato social (fls. 232 242 do Ap. A - 1 vol.); muito
menos de «administração», que esse é o Conselho de Administração (artºs 390 do
CSC e 9.1 a), e 20º a 24º do contrato social (fls. 232 e 238 a 241 do Apenso «A»
-I vol.) ou de «fiscalização», que é o Conselho Fiscal (artºs 413º do CSC e 9º,
1 c) e 25º a 28º também do contrato social (fls. 232 e 241 e 242 do Ap. A-I
vol.).
5ª Além do preenchimento dos demais elementos essenciais típicos da infracção, a
atribuição ao recorrente da qualidade de «membro de órgão de administração ou de
fiscalização» do B. ou de «titular de participação no capital social» era
absolutamente decisiva para a caracterização da sua conduta como crime de abuso
de informação privilegiada.
6ª A sentença sub censura considerou resultar provado da «discussão da causa»
que o recorrente «é accionista do B. e por via disso membro do Conselho Superior
do B.».
7ª Em parte alguma da acusação consta que, na época a que os factos a que ela se
reporta ou em qualquer outra, o recorrente fosse accionista do B..
8ª A consideração de semelhante facto modificou a base factual do processo,
transformou a factualidade imputada ao arguido, tornou incriminável uma conduta
que, antes de tal acrescento, não o era, através da qualificação como crime de
um comportamento que, tal como se encontrava descrito na acusação, não integrava
tipo legal algum.
9ª Consubstanciou uma «alteração substancial dos factos», sobre que não foi dada
ao arguido oportunidade de se pronunciar - portanto, ofensiva das garantias de
defesa e dos princípios do acusatório e do contraditório.
10ª Por expressamente não se referir às normas dos artºs 358º e 359º do CPP, a
sentença sob censura ou as ignorou, considerando-as irrelevantes no transe e,
por via disso, inaplicáveis, ou as interpretou no sentido de a previsão sobre as
alterações dos factos - «não substancial» ou «substancial», qualquer que seja o
entendimento - a que se referem, não quadrar à concreta situação dos autos.
11ª A sentença sob censura violou as normas dos artºs 283º 3 b), 358º e 359º do
CPP.
12ª Condenando «por factos diversos dos descritos na acusação», em caso e em
condições não previstos nos artºs 358º e 359º do CPP, a sentença de fls. 343 a
374 é nula, nos termos do disposto no art. 379º 1 b) do CPP, por ofensa do
estatuído nos artºs 283º 3 b), 358º e 359º também do CPP e no art. 32º 1 e 5 da
CRP.
13º A sentença sub censura, imputando ao arguido um facto absolutamente novo,
estranho ao objecto do processo, tal como este resulta da acusação, extravasou
os limites que esta assinara ao julgamento e à decisão nele a proferir.
14ª Violou os princípios do acusatório, da vinculação temática do tribunal (da
correlação entre a acusação e a sentença) e da identidade do objecto do
processo.
15ª A ter considerado relevantes as normas dos artºs 358º e 359º do CPP, então a
sentença sub censura interpretou-as no sentido de a previsão sobre as alterações
dos factos - não substancial e substancial - a que se referem, não quadrar à
concreta situação dos autos.
16ª Assim interpretadas - no sentido de não se verificar uma alteração dos
factos - não se conformam com o preceituado na Constituição em matéria de
garantias de defesa e de observância do acusatório e do contraditório.
17ª Padecem de inconstitucionalidade material por violação do disposto no art.
32º, 1 e 5 da CRP.
(...)».
5.2 – Quanto a esta questão, considerou-se no acórdão recorrido que:
«(...) O fundamento da nulidade, diz o Recorrente, baseia-se no facto de, para
preencher a previsão do crime de abuso de informação privilegiada p.p. no então
art. 666º nº 1 al. a) do CMVM, aprovado pelo então Dec.Lei 142-A/91, de 19/04 -
e actualmente também no art. 378º nºs 1 e 4 do CVM, aprovado pelo Dec.Lei
486/99, de 13/11- constituir 'elemento essencial... a qualidade, do agente, de
membro de órgão de administração ou de fiscalização ou de titular de
participação no capital social de sociedade emitente de valores mobiliários ou
de trabalhador ou prestador de serviços, profissional ou funcionário público com
acesso a informação privilegiada, por via do exercício das suas funções'.
Constando da acusação que o arguido dispôs de tal informação 'devido à sua
qualidade de membro do Conselho Superior do B.' e não sendo este um 'órgão da
respectiva sociedade...muito menos de administração... ou de fiscalização', e
constando da 'sentença sub censura...que o recorrente é accionista do B. e por
via disso membro do Conselho Superior do B.”, o que 'em parte alguma da acusação
consta', tal consubstancia uma alteração substancial, dos factos relativamente à
qual 'não foi dada ao arguido uma oportunidade de se pronunciar', deste modo se
mostrando violadas 'as garantias de defesa e os princípios do acusatório e do
contraditório'. Adianta depois que o tribunal, 'a ter considerado relevantes as
normas dos artºs 358º e 359º do CPP, então...interpretou-as no sentido de... não
quadrar à concreta situação dos autos' e 'não se conformam com o preceituado na
Constituição em matéria de garantias de defesa e de observância dos princípios
do acusatório e do contraditório', padecendo assim de 'inconstitucionalidade
material, por violação do disposto no art. 32º, 1 e 5 da CRP'.
Que dizer?
[1-] Desde logo, que é de todo redutora a posição defendida pelo Recorrente
nesta matéria.
Com efeito, se é verdade que o nº 1 do citado art. 378º nº 1 do CVM, aprovado
pelo Dec.Lei 486/99, de 13/11 - tal como o anteriormente vigente art. 666º nº 1
do CMVM [aprovado pelo Dec-Lei 142-Al91, de 10/04] - tipifica como agentes do
crime de 'abuso de informação' o 'titular de um órgão de administração ou de
fiscalização de um emitente', é contudo bem mais ampla a sua abrangência, ali se
incluindo também e ainda o 'titular de uma participação no respectivo capital”,
'quem disponha de informação privilegiada em razão do trabalho ou serviço que
preste, com carácter permanente ou ocasional, a essa ou outra entidade ou em
virtude de profissão ou função pública que exerça' – nº 2.
Acresce ainda que, de acordo com o nº 3 seguinte, abrangida está também
'qualquer pessoa não abrangida pelos números anteriores que, tendo conhecimento
de uma informação privilegiada cuja fonte seja alguma das pessoas referidas nos
nºs 1 e 2'.
Em tudo idêntico, dispunha já também o 'velho' art. 524º nºs 1, 2 e 4 do Cód.
das Sociedades Comerciais e no mesmo sentido dispunha ainda a Directiva
89/592/CEE, de 13/11/89, em cujo art. 2º nº 1 eram abrangidas as '...pessoas
que:
- devido à sua qualidade de membros dos órgãos administrativos, directivos ou de
fiscalização do emitente,
- devido à sua participação no capital do emitente, ou
- porque têm acesso a essa informação devido ao desempenho do seu trabalho, da
sua profissão ou das suas funções'.
O art. 4º seguinte desta Directiva Comunitária adiantava também que 'cada
Estado-membro imporá igualmente a proibição prevista no artigo 2º a qualquer
pessoa, além das referidas nesse mesmo artigo 2º que, com conhecimento de causa,
esteja na posse de uma informação privilegiada cuja fonte directa ou indirecta
só possa ser uma pessoa referida no artigo 2º”.
É hoje também o sentido da actual Directiva 2003/06/CE, do Parlamento Europeu e
do Conselho, de 28/01/03, cujo art. 2º a manda aplicar 'a qualquer pessoa que
detenha a informação em questão:
a) Em virtude da sua qualidade de membro dos órgãos de administração, de gestão
ou de fiscalização do emitente;
b) Em virtude da sua participação no capital do emitente;
c) Em virtude do acesso a essa informação privilegiada por força do exercício da
sua actividade, da sua profissão ou das suas funções; ou
d) Em virtude das suas actividades criminosas' [Jornal Oficial da UE L 96/16, de
12/04/03. Ainda no mesmo sentido, tendo em conta o disposto no art. 180º do
decreto legislativo italiano, de 24/02/98, vd Elisa Ragni, L 'abuso di
informazioni privilegiate in www.diritto.it].
E, diremos nós, compreende-se até que assim seja, já que em causa está 'a
regularidade e a eficiência de um sector do sistema financeiro reconhecido
constitucionalmente' [Frederico L. da Costa Pinto, O Novo Regime dos Crimes e
Contra-ordenações no CVM, pág. 17, Almedina] pelo art. 101º da CRP.
Ora,
[2-] Contrariamente ao que o Recorrente refere, o Conselho Superior faz parte
dos 'órgãos e corpos sociais' do B., nos termos expressamente previstos no art.
9º nºs 2 e 3 do respectivo contrato social, sendo a sua composição, competência
e modo de funcionamento definidos pelos artºs. 28ºs-A a -C seguintes, como
facilmente se constará de fls. 229 e sgs. do Ap. A, I vol.
De acordo com o disposto no art. 28º-B nº 2 al. i) seguinte, era até
'obrigatória' a 'apreciação' pelo referido Conselho Superior relativamente ao
'projecto de fusão' aqui em causa.
Por outro lado, é o ora Recorrente accionista do B.[nos termos do disposto no
art. 2º n.º 3 do Contrato Social referido, condição para a eleição para tal
órgão, sendo certo que parece transparecer até dos autos que é mesmo 'um
accionista importante' e até 'fundador subscritor do capital do Banco'...] desde
há muito participando nas suas reuniões, concretamente - como não põe em causa -
na que teve lugar em 25/01/00, que aqui releva, como se constata da respectiva
'Acta N 37' – fls. 174 do Ap. A- I vol.
Ainda que assim não fosse - mas que é - sempre se diria - porque até o não nega
também - que o ora Recorrente, no exercício das suas funções de membro do
Conselho Superior referido, teve conhecimento da informação aqui em causa.
Dúvidas não temos assim que preenchida está, desde logo, a qualidade de agente
do ilícito em causa.
[3-] Por outro lado, e de novo contrariamente ao que se diz - o que não deixa de
se estranhar também - sempre tais factos constam dos nºs 8º a 10º da douta
acusação e como tal foram dados por provados na douta sentença, como facilmente
se constatará, quase ipsis verbis.
Assim sendo, e presente que é a noção de alteração substancial dos factos dada
pelo art. 1º al. f) do CPP, confessamos não vislumbrar, minimamente que seja,
que tal aqui ocorra.
[4-] Consequentemente, e também, nenhuma inconstitucionalidade se vislumbra
ocorrer em sede dos também citados artºs 358º e 359º».
6 – Cumpre lembrar, em face do exposto pelo reclamante, que este Tribunal não
detém competência para proceder à apreciação da matéria fáctica ou para proceder
à apreciação da sua qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal a quo,
nem tão-pouco determinar se ocorreu, ou não, uma alteração substancial dos
factos ou uma alteração não substancial dos factos.
Nessa medida, é insindicável pelo Tribunal Constitucional a aplicação normativa
que é feita “à concreta situação dos autos” e, bem assim, quanto ao juízo que
concluiu pela inexistência de qualquer alteração da base fáctica constante da
acusação.
Tal é, na verdade, o que resulta do facto de não existir, no sistema
jurídico-constitucional português, um processo de «queixa constitucional»
(Verfassungsbeschwerde, staatsrechtliche Beschwerde, recurso de amparo) que
permita uma sindicância do mérito das decisões judiciais qua tale em confronto
com os parâmetros constitucionais.
Assim, o objecto do recurso de constitucionalidade há-de ser sempre
materialmente constituído por uma norma ou por uma dimensão normativa de um
preceito, aprioristicamente individualizada em face da casuística valoração que
o julgador faz das especificidades do problema concreto.
Projectado este critério no caso sub judicio, é manifesto que a
suscitada questão de “constitucionalidade” que o Reclamante trouxe a este
Tribunal, insurgindo-se contra o resultado da aplicação concreta, sem
controverter o critério normativo que permitiu ao Tribunal alcançar esse
resultado, traduz-se na sindicância material da própria decisão recorrida, que
vem precisamente posta em crise na parte em que, subsuntivamente, considera o
Conselho Superior do B. como elemento integrante dos seus “órgãos e corpos
sociais” e refere o Reclamante, enquanto membro desse órgão, como accionista.
Em rectas contas, é a própria argumentação aduzida pelo Reclamante
que acaba por confirmar que este apenas se insurge contra o juízo que determinou
a integração dos factos descritos na acusação na hipótese delimitada pela norma
incriminadora, dando por preenchido o tipo na medida em que se considera o
Reclamante como membro de um “órgão ou corpo social” [e] que obteve conhecimento
da informação em causa nos autos em virtude das suas funções no referido
“Conselho Superior”.
É certo que o Reclamante diz agora que a dimensão normativa que pretende ver
apreciada recai sobre os artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal
quando interpretados no sentido de se não entender como alteração dos factos –
substancial ou não substancial – a consideração (...) de factos atinentes aos
elementos essenciais, típicos, do crime imputado ao reclamante, não
especificamente enunciados descritos ou discriminados no texto da acusação.
Contudo, para além de tal norma não ter sido aplicada com esse sentido pela
decisão recorrida – posto que, segundo o Tribunal, a sua qualidade de membro do
Conselho Superior do B. e, consequentemente, de accionista, sempre constou dos
autos –, é patente que não foi este o objecto do recurso definido no
requerimento de interposição.
De facto, nesse requerimento o Reclamante apenas se referiu, sem mais, à
interpretação e aplicação das referidas normas no sentido de “imputar (...) a
qualidade de ‘accionista’ do ‘emitente’ B. e por esta via julgar ‘preenchida
(...) a qualidade do agente do ilícito”.
Ora, nessa formulação nada se refere quanto ao critério ou dimensão normativa
que permitiram tal imputação além de que, sendo irrelevante, na perspectiva do
recurso de constitucionalidade, a valoração fáctico-casuística do julgador no
preenchimento de um determinado tipo legal de crime, fica-se sem saber qual o
critério normativo, inferido do artigo 358.º e 359.º do Código de Processo
Penal, que permitiu ao Tribunal a quo alcançar a conclusão controvertida pelo
Reclamante.
7 – Por outro lado, mantém total validade o que se disse na decisão
reclamada sobre a existência de um fundamento autónomo em relação ao juízo
contestado pelo Reclamante e que não está abrangido pela delimitação do objecto
do recurso constante do respectivo requerimento de interposição, pelo que, mesmo
a conhecer-se do recurso na parte em que contesta a qualidade de accionista,
sempre se manteria o juízo de imputação subjectiva com base no facto do
Reclamante ser membro do Conselho Superior do B. e de ter acesso, em razão do
exercício das suas funções, à informação em causa no processo, não havendo, por
isso, em face das rationes decidendi fundamentantes do acórdão recorrido e não
controvertidas no recurso de constitucionalidade, utilidade no conhecimento da
questão colocada pelo Recorrente.
C – Decisão
8 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide
indeferir a presente reclamação.
Custas pelo Reclamante com 20 (vinte) UCs. de taxa de justiça.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2006
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos