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Proc.nº 80/97
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção da Tribunal Constitucional :
I RELATÓRIO
1. No Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, foi a arguida A. pronunciada, num processo envolvendo outros cinquenta e sete arguidos, por um crime previsto e punido pelo artigo 28º nº 2 do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro e, sob a forma continuada, por outro crime previsto e punido pelos artigos 21º nº 1 e 24º alíneas b) e c) do mesmo diploma. No final deste despacho e sob a epígrafe
'Situação processual dos Arguidos', consignou-se, quanto à mesma arguida e a outros co-arguidos, o seguinte:
'(...) aguardarão os ulteriores termos do processo na situação em que se encontram, isto é, de presos preventivamente, uma vez que quanto a eles não se mostram alterados os pressupostos ou diminuídas as exigências cautelares que determinaram a sua prisão.'
Notificada deste despacho veio a arguida A. interpor recurso deste trecho, formulando as seguintes conclusões:
'1ª Não obstante a recorrente ter negado qualquer intervenção delituosa nos presentes autos, não obstante não lhe ter sido apreendido qualquer produto estupefaciente na sua pessoa ou em sua casa e não obstante inexistir algum auto no processo do qual decorra com segurança que a mesma praticou qualquer acto de tráfico de droga, considerou-se que a matéria indiciária vertida era suficiente para imputar à recorrente em co-autoria a prática do crime do artigo 28º nº 2 e
21º e 24º alíneas b) e c) do DL 15/93.
2ª E assim sendo temos que para efeitos de medidas de coacção, particularmente no que concerne ao disposto no artigo 202º nº1 alínea a) do CPP, requisito específico, se têm por verificados fortes indícios da prática de crime doloso com pena de prisão superior a três anos.
3ª Porém entende a recorrente que não se encontram, contudo, verificados os requisitos gerais, dos quais depende a aplicação da prisão preventiva e sufragados no artigo 204º do CPP, pelo que temos por violada essa norma no despacho recorrido.
4ª Com efeito, quando da prisão da recorrente, e em relação a esses requisitos gerais, foi referida a existência de perigo de continuação de actividade criminosa e perigo de perturbação do inquérito no que tange à aquisição e manutenção da prova.
5ª Quanto ao segundo dos requisitos atrás referidos, o perigo de perturbação do inquérito, ele inexiste atenta a fase processual em que os autos se encontram e quanto ao perigo de continuação de actividade criminosa, louvamo-nos nos motivos exarados no despacho recorrido, particularmente os expendidos na alínea G, para propugnar que tal receio também não pode ser aplicado à recorrente.
6ª Com efeito e conforme aí se escreveu nessa alínea G atrás referida, também se encontram afastadas da recorrente as pessoas que, segundo a pronúncia, lhe forneciam a droga, artigos 87º e 88º, porquanto se encontram presas, bem como aliás, a grande maioria dos arguidos aí referidos.
7ª Porém sempre se dirá que a recorrente é primária, casada, com dois filhos menores e com residência certa, pelo que, nada fará prever que uma vez colocada em liberdade e sujeita a uma medida de coacção que directa ou indirectamente permita às autoridades exercer um controlo sobre a mesma, a mesma tivesse o
'arrojo' e a 'audácia' para voltar a delinquir depois de passar o que já passou.
8ª Em relação ao perigo de fuga, pensamos que ele inexiste, uma vez que todas as raízes da recorrente se encontram ligadas à área da sua residência, sendo que é aí que vive, tem dois filhos com ela residentes e o marido encontra-se também detido à ordem dos mesmos autos.
9ª Por outro lado a decisão recorrida violou a paridade processual e até a justiça processual que se afigura resultar do artigo 13º do CRP.
10º Com efeito, não se entende, que após o despacho de pronúncia, existindo uma incriminação exactamente igual para a recorrente e para 4 arguidos referidos em D do despacho recorrido, sendo que ela e os outros fazem parte da mesma imputada associação, referida em 88 da pronúncia, e são imputados a todos o mesmo ilícito de tráfico dos artigos 21º e 24º alíneas b) e c), conforme se verifica do ponto
15 da parte decisória da pronúncia, esteja a recorrente a sofrer uma medida de coacção mais gravosa do que todos aqueles a quem é imputado o mesmo tipo de ilícito, sem que para estes tenha havido necessidade de aplicar a medida de coacção mais grave.
11ª Ora não se nos afigura que seja justo que existindo imputações, que por estarem sufragadas num despacho de pronúncia, fazem concluir a existência de fortes indícios da prática de crime, sendo essas imputações iguais, venha um a ter um regime e outros a ter outro regime de medidas de coacção, afigurando-se assim que existe uma violação do artigo 13º da CRP.'
Foi este recurso decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa constante de fls. 245/249. Neste, fixou-se o objecto do recurso na questão de saber se, posteriormente a anterior decisão da mesma Relação ( a certificada a fls. 25/42 do primeiro volume) mantendo a prisão preventiva da arguida inicialmente decretada, 'ocorreram circunstâncias (...) determinantes da alteração dos pressupostos, em que se baseou a prisão preventiva'. Respondendo a esta interrogação, concluiu aquele Tribunal permanecer o perigo de continuação da actividade criminosa (ou seja o requisito da alínea c) do nº 1 artigo 204º da Constituição), negando, em função deste entendimento, provimento ao recurso.
2. É deste aresto que vem interposto recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro frisando a aqui recorrente no seu requerimento de interposição:
'A norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver declarada é a constante do artigo 204º alínea c) do CPP, se interpretada no âmbito de existir perigo de continuação de actividade criminosa, desde que se baseie tal perigo na matéria indiciária descrita no inquérito ou na pronúncia proferidas nos autos, por violação do disposto no artigo 32º nº 1 e 2 da CRP.'
E acrescenta a recorrente na mesma peça processual :
'Só agora vem arguida tal inconstitucionalidade porquanto a recorrente foi surpreendida com a aplicação desse dispositivo legal de modo abstracto, já que a norma foi aplicada tendo em conta matéria indiciária descrita, quando a própria norma alude, como condição de aplicação da mesma, que o perigo de continuação de actividade criminosa se verifique, em concreto.'
3. Admitido o recurso e produzidas alegações junto deste Tribunal foi determinada a audição das partes quanto à possibilidade de conhecimento do recurso (despacho de fls.275), isto aplicando o princípio subjacente ao artigo 3º nº 3 do Código de Processo Civil, ex vi do disposto no artigo 69º da Lei nº 28/82, sendo certo não ter sido elaborada exposição prévia nem sido suscitada pelo Ministério Público a questão da admissibilidade do recurso.
A este respeito refere a recorrente ter ocorrido uma
'aplicação anómola' da alínea c) do artigo 204º do Código de Processo Penal, o que legitimaria uma suscitação posterior à decisão.
O Ministério Público, por sua vez, considerando a questão
'não isenta de dúvidas', propende para a admissibilidade do recurso.
Colhidos os pertinentes vistos, cumpre decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO
4. Coloca-se, previamente, como se disse, a questão da possibilidade de conhecimento do recurso.
Tratando-se de recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, importará saber, desde logo, se ocorreu uma invocação, durante o processo, de inconstitucio-nalidade da norma objecto ou, não tendo tal invocação ocorrido, se a situação configurada é do tipo daquelas em que este Tribunal, numa linha jurisprudencial que é uniforme, vem entendendo não ser exigível essa prévia suscitação.
Está em causa a alínea c) do artigo 204º do Código de Processo Penal que, relativamente aos requisitos gerais de aplicação de medidas de coacção, estabelece não poder ser aplicada qualquer medida, com excepção do
«termo de identidade e residência», sem que, 'em concreto', se verifique:
'Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa'.
A decisão recorrida, com efeito, aplica esta norma numa das suas vertentes, ao manter a prisão preventiva anteriormente determinada, por entender subsistir uma situação de perigo de continuação da actividade de tráfico de estupefacientes.
A questão que se coloca é a de saber se esta norma foi aplicada pela decisão recorrida numa dimensão interpretativa específica que tornasse inexígível à recorrente a suscitação desse problema de inconstitucionalidade, previamente à mesma decisão.
5. A resposta do Tribunal a tal pergunta é decididamente negativa.
Com efeito, estando fora de questão - pois não constitui função deste Tribunal - apreciar a situação fáctica subjacente à decisão (ou seja, saber se existe ou não perigo de continuação da actividade em causa), não oferece dúvida alguma que à recorrente era exigível afastar - previamente ao Acórdão recorrido e apresentando-o como questão de inconstitucionalidade - um entendimento em que esse perigo de continuação fosse alicerçado 'na matéria indiciária descrita no inquérito ou na pronúncia proferidos nos autos' (a interpretação do artigo 204º alínea c) que, como se alcança de fls. 252, a recorrente considera inconstitucional).
A previsibilidade do emprego na decisão desta norma, sendo evidente não o é menos quando encaramos a norma no específico sentido referido no requerimento de interposição.
Efectivamente, deduzir o perigo de continuação da actividade criminosa dos elementos recolhidos no processo em causa (que é o que o Acórdão faz) traduz uma prática tão comum e lógica que não se vê como se pode falar em surpresa a tal propósito.
Assim sendo, ausente que se mostra das alegações de recurso para a Relação tal questão de inconstitucionalidade, é evidente o não preenchimento dos pressupostos do recurso interposto e, consequentemente, a impossibilidade de conhecimento deste.
III DECISÃO
6. Pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do recurso e condenar a recorrente nas custas, com 5 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 19 de Junho de 1997 José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa