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Processo n.º 928/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 70º, nº 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(LTC), do Acórdão da Relação do Porto, de 9 de Junho de 2004. Esta decisão negou provimento ao recurso, confirmando a sentença do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão que havia condenado A. como autor material de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido no artigo
347º do Código Penal.
2. O ora reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, tendo sido proferida decisão sumária, em 10 de Fevereiro de 2005, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da LTC. Foi então decidido não conhecer do objecto do recurso, com os fundamentos que importa agora destacar:
“(...) da motivação do recurso e das conclusões respectivas (fl. 138 e ss.) resulta que o recorrente não suscitou uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, de modo processualmente adequado, em termos de o Tribunal da Relação do Porto estar obrigado a dela conhecer. Por outras palavras, quando este Tribunal acordou negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida, o recorrente não tinha ainda suscitado uma qualquer questão daquele tipo, não tinha ainda identificado a norma cuja inconstitucionalidade pretende agora que o Tribunal Constitucional aprecie.
É só no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que o recorrente identifica o artigo 127º do Código de Processo Penal no sentido de ser a norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada. Porém, independentemente da questão de saber se esta identificação está feita em termos correctos, sempre terá sido tarde demais, pois este já não é o momento adequado para suscitar a inconstitucionalidade da norma em causa. Como se conclui no
(...) Acórdão do Tribunal Constitucional nº 15/95, 'na norma do artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro [e na que lhe corresponde, do artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição], a locução 'durante o processo' exprime precisamente o desiderato da suscitação na pendência da causa da questão de constitucionalidade, em termos de essa mesma questão ser tida em conta pelo tribunal que decide. Esta ideia é, afinal, corolário da natureza e do sentido da fiscalização concreta de constitucionalidade das normas e, em especial, do recurso de parte que dela participa. Aí a questão de constitucionalidade é uma questão incidental, em estreita relação com o 'feito submetido a julgamento' (CRP, artº
207º), só podendo incidir sobre normas relevantes para o caso. O 'interesse pessoal na invalidação da norma' (G. Canotilho e Vital Moreira) só faz sentido e se concretiza na medida em que a parte confronte, em tempo, o tribunal que decide a causa com a controversa validade constitucional das normas que aí são convocáveis' (...) O que resulta da peça processual indicada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, enquanto peça em que se suscitou a questão de inconstitucionalidade (motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto e conclusões) é, antes, isso sim, a pretensão de questionar a decisão do tribunal de 1ª instância. Nomeadamente, quando se escreve que
'foi assim flagrantemente violado o princípio do in dubio pro reo' (fl. 149);
'foi desta forma violado o princípio da Presunção da Inocência do Arguido' (fl.
152); 'em consequência do acima descrito foi violado o dito princípio 'in dubio pro reo' previsto no art. 32º da Constituição da República Portuguesa' (fl.
157); 'foi assim mais uma vez flagrantemente violado o aludido princípio 'in dubio pro reo' (art. 32º da CRP)' (fl. 158): 'argui-se aqui a violação sistemática do aludido princípio 'in dubio pro reo', para os devidos efeitos'
(fl. 158); 'foi assim violado o princípio da presunção de inocência, igualmente previsto no art. 32º da CRP, violação que para os devidos efeitos aqui é arguida' (fl 158).
Em suma, na medida em que o recurso de constitucionalidade previsto nos artigos
280º, nº 1, alínea b) da CRP e 70º, nº 1, alínea b), da LTC se enquadra num sistema de controlo normativo, de controlo da constitucionalidade e da legalidade de normas e não de decisões judiciais, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do objecto de um recurso, como o presente, em que falta um dos seus requisitos específicos – a suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. Não se estranha, assim, que o Tribunal da Relação do Porto não tenha decidido qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, o que só confirma a conclusão no sentido de não estar preenchido aquele requisito do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC. 'De facto, a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, quando tal questão se coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver – o que, obviamente exige que quem tem o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade a coloque de forma clara e perceptível. Bem se compreende que assim seja, pois que, se o tribunal recorrido não for confrontado com a questão de constitucionalidade, não tem o dever de a decidir. E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso, em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria conhecer dela ex novo' (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 569/94, Diário da República, II Série, de 10 de Janeiro de 1995)”.
3. Desta decisão vem agora o recorrente reclamar para a conferência, nos termos do nº 3 do artigo 78º-A da LTC, invocando o seguinte:
“O despacho sob reclamação sustenta que a questão da inconstitucionalidade normativa em que se refere ao art. 127 do Código de Processo Penal não foi suscitada durante o processo pelo que este Digníssimo Tribunal não pode conhecer do recurso. Ora entende o recorrente que a aludida questão da inconstitucionalidade acima indicada foi correctamente suscitada, porquanto, com o devido respeito, ao contrário do alegado pela Ex.ma Senhora Juiz Conselheira Relatora, foi identificada a norma cuja inconstitucionalidade invocada é pretensão do recorrente ver apreciada por este Digníssimo Tribunal. Com efeito, nas alegações de recurso interposto para o Venerando Tribunal da Relação do Porto, é identificado o art. 127 do C.P.P., tendo sido expressamente referido no que concerne a este artigo que a aplicação do mesmo nos moldes em que foi decidida pelo Tribunal recorrido, está ferida de inconstitucionalidade
(tendo esta violação constitucional sido expressamente arguida) porquanto violou o preceito constitucional também identificado no ante indicado recurso, em concreto, o art.º 32 da Constituição da República Portuguesa, em decorrência da violação dos princípios 'in dubio pro reo' e da presunção da inocência, ínsitos nesta norma constitucional. De modo a comprovar-se o acima explanado, atente-se em dois extractos das alegações de recurso em apreço (em concreto, a fls. 42, 43 e 44 respectivamente).
«Ainda que se alegue que a Excelentíssima senhora Juíza do Tribunal ‘a quo’ socorreu-se do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127.º do C.P.P. para valorar positivamente o depoimento do alegadamente agredido e negativamente (no que a esta questão importa) o depoimento do arguido, sempre se dirá que este princípio não é absoluto, e como tal teria que ceder perante o dito princípio ‘in dubio pro reo’ (art. 32° do CRP) que em consequência foi assim desrespeitado.» (negrito, itálico e sublinhado, nosso).
«Ao apreciar do modo acima explanado (nos pontos 2.º ao 6.º das presentes conclusões) a prova produzida, o Tribunal “a quo” violou os princípios constitucionais da presunção de inocência e do ‘in dubio pro reo’, expressos no já referido art.º 32 do CRP, que mais uma vez, e por cautela, se argui e que para os devidos efeitos se invoca a inconstitucionalidade da interpretação levada a cabo pelo dito Tribunal recorrido daquela disposição processual ao apreciar como o fez, a matéria de facto» (negrito, itálico e sublinhado nosso).
(Para que, não subsistam dúvidas quando é referida “daquela disposição processual ao apreciar como o fez, a matéria de facto”, está-se obviamente a fazer-se referência ao art. 127 do Código de Processo Penal, daí referir-se disposição processual ou seja, do código de processo Penal). Como se pode verificar através dos extractos das alegações de recurso supra expostos, foi efectivamente suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, uma vez que como já anteriormente descrito nesta reclamação e como é constatável através da análise dos extractos acima identificados das alegações de recurso interposto para o Venerando Tribunal da Relação do Porto, já nestas se tinha invocado que a interpretação que a decisão do Tribunal de 1.ª instância fizera do art. 127 do C.P .P ., de modo a estabelecer os factos provados desta decisão, violava um preceito constitucional. De qualquer das formas e ainda que assim não se entenda, sem naturalmente conceder, sempre se dirá que as questões de inconstitucionalidade decorrentes da aplicação de normas por parte de tribunais recorridos, são de conhecimento oficioso, pelo que não poderá este Digníssimo Tribunal deixar de apreciar o mérito da inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente”.
4. Notificado da reclamação, o Ministério Público junto deste Tribunal respondeu nos termos que se seguem:
“1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, o recorrente não pretende questionar qualquer critério normativo, concretizador do princípio da livre apreciação da prova em processo penal, de índole geral, mas tão-somente pôr em causa a concreta e casuística valoração dos meios probatórios produzidos na audiência - matéria que, como é evidente, não constitui objecto idóneo da fiscalização da constitucionalidade cometida ao Tribunal Constitucional”.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Na decisão sumária que é objecto da presente reclamação concluiu-se pelo não conhecimento do objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, em virtude de o recorrente não ter suscitado um questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer
(cf. artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC). Por outras palavras, naquela decisão concluiu-se que, durante o processo, o recorrente questionou a constitucionalidade de uma decisão judicial e não a constitucionalidade de uma qualquer norma. Sustenta agora o reclamante que, nas alegações de recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto, “foi efectivamente suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”. Para tal concluir destaca os seguintes extractos daquelas alegações:
«Ainda que se alegue que a Excelentíssima senhora Juíza do Tribunal ‘a quo’ socorreu-se do princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127.º do C.P.P. para valorar positivamente o depoimento do alegadamente agredido e negativamente (no que a esta questão importa) o depoimento do arguido, sempre se dirá que este princípio não é absoluto, e como tal teria que ceder perante o dito princípio ‘in dubio pro reo’ (art. 32° do CRP) que em consequência foi assim desrespeitado.» (negrito, itálico e sublinhado, nosso).
«Ao apreciar do modo acima explanado (nos pontos 2.º ao 6.º das presentes conclusões) a prova produzida, o Tribunal “a quo” violou os princípios constitucionais da presunção de inocência e do ‘in dubio pro reo’, expressos no já referido art.º 32 do CRP, que mais uma vez, e por cautela, se argui e que para os devidos efeitos se invoca a inconstitucionalidade da interpretação levada a cabo pelo dito Tribunal recorrido daquela disposição processual ao apreciar como o fez, a matéria de facto».
Destes extractos, pelo contrário, resulta a confirmação de que estava em causa a pretensão de suscitar a inconstitucionalidade da sentença condenatória. Por um lado, não se identifica uma qualquer interpretação da norma contida no artigo 127º do Código de Processo Penal, um qualquer critério normativo concretizador do princípio da livre apreciação da prova aí consagrado, o que, por si só, indicia que, em bom rigor, é a inconstitucionalidade da decisão judicial que o recorrente questiona. Especificamente no ponto em que a sentença valora positivamente o depoimento do alegadamente agredido e negativamente o depoimento do arguido, sem observar, no entender do recorrente, o princípio in dubio pro reo. Princípio geral do processo penal que não se sobrepõe ao princípio da presunção de inocência do arguido até ao trânsito da sentença de condenação, previsto no nº 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, já que o princípio in dubio pro reo é apenas uma, entre outras, das concretizações daquele princípio. Assim, muito embora o recorrente tenha feito referência àquele artigo da Constituição – “(art. 32º da CRP)” – não suscitou, de facto, uma qualquer questão de inconstitucionalidade. Limitou-se, isso sim, a alegar a violação do princípio in dubio pro reo. Por outro lado, o recorrente denuncia a pretensão de questionar a decisão judicial quando conclui que “ao apreciar do modo acima explanado (nos pontos 2º ao 6º das presentes conclusões) a prova produzida, o Tribunal ‘a quo’ violou os princípios constitucionais da presunção de inocência e do ‘in dubio pro reo’, expresso no já referido art.º 32 da CRP” (itálico nosso). Tanto mais quanto os pontos assinalados das conclusões terminam do seguinte modo: “Em consequência do acima descrito foi violado o dito princípio ‘in dubio pro reo’ previsto no art.
32.º da Constituição da República Portuguesa” (ponto 2); “Foi mais uma vez flagrantemente violado o aludido princípio ‘in dubio pro reo’ (art. 32.º da CRP)” – ponto 4; “Em virtude do disposto nos pontos 2, 3 e 4 destas conclusões, argui-se aqui a violação sistemática do aludido princípio ‘in dubio pro reo’”
(ponto 5); “Foi assim violado o princípio da presunção da inocência, igualmente previsto no art. 32º da CRP” (ponto 6). Como o reclamante não contrariou o sustentado na decisão sumária, demonstrando que suscitou uma questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, resta concluir pelo indeferimento da presente reclamação. E é óbvio que tal demonstração cabia ao reclamante, uma vez que sobre os recorrentes impende o
ónus da suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo (artigos
70º, nº 1, alínea b), 75º-A, nºs 1, 2, 5, 6 e 7, e 76º, nº 2, da LTC).
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 15 Março de 2005
Maria João Antunes Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício