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Procº nº 78/95 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. A., professor efectivo do ensino secundário, impugnou contenciosamente, em 4 de Junho de 1993, no Supremo Tribunal Administrativo, o despacho de 17 de Março de 1993 do Secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário, que lhe foi comunicado por ofício datado de 6 de Abril, e que lhe indeferiu três pretensões: que lhe fossem pagos os vencimentos não recebidos durante o cumprimento da pena disciplinar de suspensão entre 23 de Outubro de
1990 e 19 de Junho de 1991; que lhe fosse contado esse tempo como tempo de serviço; e que tal pena fosse apagada do seu registo biográfico, tudo em resultado da alínea gg) do artigo 1º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, que declarou amnistiadas as infracções disciplinares punidas com pena não superior à de suspensão.
Suscitou, logo na petição inicial, a inconstitucinalidade da norma do nº 4 do artigo 11º do Estatuto dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, imputando-lhe a violação dos artigos 2º, 26º, nº 1, e 32º, nº 2, da Constituição, por fazer perdurar os efeitos de uma sanção amnistiada.
O Secretário de Estado da Educação e do Desporto, que sucedeu à entidade recorrida na respectiva competência, respondeu, referindo que, no momento da publicação da Lei da Amnistia, já o recorrente tinha cumprido a totalidade da pena - o que, nos termos do nº 4 do artigo 11º do mencionado Estatuto Disciplinar, impedia a destruição dos efeitos já produzidos, tanto mais que o recorrente não usara da faculdade conferida pelo artigo 9º da Lei da Amnistia (não produção dos seus efeitos e continuação do processo até final).
2. Por Acórdão de 10 de Novembro de 1994, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, entendendo que o artigo 32º, nº 2, da Constituição 'tem um âmbito bem delimitado: o de definir as garantias do processo criminal', tendo 'como sede privativa da sua aplicação o processo criminal e não qualquer outro processo sancionatório'. Ainda segundo aquele aresto, 'nunca a regra do nº 2 do artigo 32º da Constituição poderia funcionar em pleno no processo disciplinar, que é um procedimento administrativo que não culmina com uma 'sentença de condenação', mas com um acto administrativo, como tal gozando de presunção de legalidade, que, sem embargo de estar sujeito a censura judicial (...), não perde essa natureza e como tal actua e produz os seus efeitos.
Assim o direito fundamental consagrado na Constituição quanto ao processo disciplinar não está no nº 2 do seu artigo 32º, mas no nº 3 do artigo
269º'.
3. Interposto recurso para o Tribunal Constitucional com vista à apreciação da constitucionalidade da norma constante do nº 4 do artigo 11º do referido Estatuto Disciplinar - norma arguida de inconstitucional 'durante o processo' e aplicada na decisão recorrida -, o recorrente concluiu assim as suas alegações:
'1. A amnistia gera uma ficção legal no âmbito da qual, aos olhos da Justiça e do Direito, se considera como se nunca tivessem existido os factos que originaram a punição - Beleza dos Santos, in R.L.J.; pág. 339;
2. Não se tratando de 'amnistia imprópria' não incide sobre os efeitos da sanção mas sobre os próprios factos que estiveram na sua origem;
3. Tendo sido amnistiada, a coberto de uma 'amnistia própria', a própria sanção disciplinar aplicada é como se não existissem os factos que estiveram na sua origem;
4. Sendo embora ditada por razões de oportunidade ou de ordem política a amnistia preserva a partir daí o direito ao bom nome e reputação por apagamento dos factos 'indignos' que legitimaram a sanção aplicada;
5. Não é por isso conforme com a defesa do bom nome e reputação, com o princípio da presunção de inocência e com o princípio de garantia de efectivação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais a norma jurídica que permite a manutenção dos efeitos já produzidos pela sanção disciplinar entretanto amnistiada;
6. É assim inconstitucional a norma do nº 4 do artº 11º do Dec-Lei
24/84 ao colidir com o disposto nos artigos 2º, 32º, nº 2, e 26º, nº 1, da Constituição'.
Por sua vez, a entidade recorrida retomou a argumentação do acórdão aqui sob recurso, concluindo pela não inconstitucionalidade da norma impugnada e pela manutenção do decidido no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.
4. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
5. A distinção entre a amnistia 'própria' e 'imprópria' - entendendo-se pela primeira a que respeita ao próprio crime e pela segunda a relativa à consequência jurídica - tem sido apresentada pela doutrina penalista.
Só que, como refere J. Figueiredo Dias (Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Lisboa, Aequitas/Editorial Notícias, Lisboa,
1993, p. 691), 'uma tal distinção, se na verdade se aceita, todavia não deve considerar-se susceptível de fundar efeitos jurídicos diversos, reconduzindo-se portanto a um dispensável e inconveniente luxo de conceitos. Não se trata minimamente, na verdade, de que na amnistia própria exista uma espécie de
«descriminalização», enquanto na amnistia imprópria se estaria perante uma mera
«despenalização»: ainda na amnistia própria, e mesmo quando ela seja feita por apelo a certos tipos de factos, o que definitivamente está em causa (e só) é o impedir-se que o agente agraciado sofra a sanção a que poderia vir a ser (ou a que já foi) condenado. Em suma: tanto a amnistia própria como a imprópria (ou perdão genérico) se reconduzem à mesma fonte de legitimação e devem possuir os mesmos efeitos jurídico-penais'.
No mesmo sentido, Eduardo Correia/Taipa de Carvalho [cfr. Direito Criminal III (2), policopiado, Coimbra, 1980, p. 18] escrevem que 'a nossa lei, diferentemente de outras, não distingue entre amnistia própria (a concedida antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória) e amnistia imprópria (a aplicada posteriormente à condenação definitiva)', adiantando que tal solução é a correcta, 'pois que a amnistia se dirige à própria infracção'.
6. No caso da alínea gg) do artigo 1º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, não estamos perante uma amnistia de um crime, mas de uma infracção disciplinar. Seja como for, quer a amnistia de crimes, quer a amnistia de infracções disciplinares estão sujeitas a princípios comuns. Constituindo um obstáculo à efectivação da punição, as amnistias são da competência reservada da Assembleia da República [cfr. o artigo 164º, alínea g), da Constituição] e revestem forma de lei. Nessa medida, quaisquer limitações estabelecidas na lei quanto às condições ou aos efeitos da amnistia - como as do nº 4 do artigo 11º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local ou as do artigo 126º do Código Penal de 1982 - valerão apenas na medida em que, por força da lei da amnistia, não sejam afastadas. É que, sendo esta posterior - e especial -, as normas que a compõem sempre prevalecerão sobre as antes estabelecidas em normas de igual hierarquia (cfr. J. Figueiredo Dias, ob. cit., p. 695, que considerava o referido artigo 126º do Código Penal de 1982 'legislação subsidiária').
Assim, na medida em que a norma do nº 4 do artigo 11º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local só se aplica no caso de a lei de amnistia não dispor diferentemente
[sendo certo que, como salienta J. Figueiredo Dias (cfr. ob. cit., p. 694), 'a Assembleia da República pode conformar livremente o conteúdo da lei, amnistiando grupos de factos ou grupos de agentes, segundo os critérios fundados que entenda fixar e combinar da forma que repute preferível'], a questão da sua inconstitucionalidade coincide, ao cabo e ao resto, com a questão de saber quais os limites do poder de graça do Parlamento.
Neste contexto, poderá perguntar-se: é constitucional- mente admissível à Assembleia da República amnistiar infracções disciplinares sem destruir os efeitos já produzidos pela aplicação da pena - como o determina aquele normativo e, por omissão de expressa previsão noutro sentido, se tem de entender que foi querido pelo legislador da Lei nº 23/91, de 4 de Julho?
7. Tendo em conta a liberdade de conformação reconhecida neste domínio ao legislador (cfr., neste sentido, os Acórdãos deste Tribunal nºs.152/93 e 153/93, publicados no Diário da República, II Série, de 16 de Março de 1993 e de 23 de Março de 1993, respectivamente), não poderá deixar de responder-se afirmativamente àquele quesito, desde que seja salvaguardada a legitimidade material da amnistia, a qual, segundo Eduardo Correia/Taipa de Carvalho (cfr. ob. cit., p. 17), 'deve afirmar-se sempre e apenas quando ocorrerem situações em que a defesa da comunidade sócio-política seja melhor realizada através da clemência que não da punição' ou, como refere J. de Sousa e Brito, sempre que a amnistia se reconduzir à 'totalidade dos fins do Estado, legítimos num Estado de Direito', e não apenas 'aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado e ainda menos à prevenção dos factos do tipo de infracção visado pela norma amnistiante' [cfr. Sobre a amnistia, in Revista Jurídica da AAL, nº 6 (1986), p. 43].
Sob o ponto de vista constitucional, a legitimidade das leis de amnistia de infracções punidas por normas de direito público deve ser aferida à luz do princípio do Estado de Direito, donde resulta que os fins das leis de amnistia não podem ser incompatíveis com a realização de um tal princípio.
8. No que respeita à não percepção de vencimentos durante o período em que o recorrente cumpriu a sanção disciplinar, ela não pode ser tida como puro efeito da aplicação da pena. Tal só aconteceria se, mantendo-se a prestação de trabalho, deixasse de ser paga a correspectiva retribuição. No entanto, do que se trata, no caso, é da aplicação de uma pena disciplinar (de suspensão) que importou uma interrupção bilateral numa relação sinalagmática: o vencimento deixou de ser pago, não tanto por isso constituir um efeito da pena, mas por ter sido deixado de prestar o trabalho que tal vencimento remunerava. Ao apagar a infracção disciplinar, o que a amnistia apaga são os efeitos disciplinares - e suas repercussões - não os outros efeitos (salvo disposição legal expressa em contrário). Assim, conforme este Tribunal decidiu no Acórdão nº 107/92
(publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Julho de 1992), 'não tendo os interessados exercido as suas funções, não têm eles direito a receber os respectivos vencimentos, que ... representam a contraprestação pelo exercício efectivo do cargo'. Decorrendo do nosso ordena- mento jurídico que 'o vencimento consiste na remuneração recebida pelo exercício do cargo em que o funcionário esteja provido, salvo nos casos excepcionais considerados na lei' (cfr. o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 134/80, de
4 de Dezembro de 1980, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 318, p. 172), tal perda de remuneração não é um puro efeito da aplicação da pena, mas de outras normas jurídicas, que mantêm a sua aplicação qualquer que seja o entendimento conferido à extensão dos efeitos das amnistias - e cuja inconstitucionalidade não foi sindicada pelo recorrente [sobre o entendimento de que 'o exercício efectivo do cargo postula e condiciona o direito a receber os vencimentos e, consequentemente, os servidores não têm, em princípio, o direito de perceber vencimentos pelo tempo em que, mesmo por circunstâncias estranhas à sua vontade, estão impedidos de exercer as suas funções, salvo excepção expressa na lei', cfr. os Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº
9/80, de 4 de Junho de 1980, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 303, p. 29, e 61/90, in Diário da República, II Série, de 16 de Julho de 1991, p. 7430
(19)].
9. Tendo o legislador que aprova a amnistia liberdade para definir os efeitos desta, designadamente para, no âmbito da amnistia das infracções disciplinares, destruir ou não os efeitos já produzidos pela aplicação da pena, e, por isso, liberdade para manter ou não o regime constante da norma questionada no presente recurso - a norma constante do nº 4 do artigo 11º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes de Administração Central, Regional e Local -, dúvidas não podem subsistir em que esta norma não enferma de qualquer vício de inconstitucionalidade, não violando, por isso, os artigos 2º,
26º, nº 1, e 32º, nº 2, da Constituição. Acrescentar-se-á, no entanto, mais alguma coisa em abono da solução acabada de avançar.
No que respeita à imputada violação do princípio do Estado de direito democrático, condensado no artigo 2º da Lei Fundamental, não faz sentido invocar o desrespeito de um tal princípio por uma norma que limita os efeitos da amnistia, mantendo os efeitos produzidos pela aplicação da sanção disciplinar, uma vez que a aprovação ou não da lei da amnistia e a definição do seu âmbito cabem, dentro dos limites acima assinalados, no domínio da discricionariedade do legislador.
No que toca à invocada colisão da norma objecto do presente recurso de constitucionalidade com o princípio da presunção de inocência do arguido, constante do artigo 32º, nº 2, da Lei Fundamental - princípio esse que não se circunscreve aos domínios penal e processual penal, antes é aplicável, em geral, aos procedimentos sancionatórios de natureza administrativa, designadamente ao processo disciplinar (cfr., neste sentido, Giorgio Pagliari, Profili Teorici della Sanzione Amministrativa, Padova, Cedam, 1988, p. 279, 280; E. García de Enterría/T.- Ramón Fernández, Curso de Derecho Administrativo, II, 3ª ed., Madrid, Civitas, 1991, p. 166, 167; e J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora,
1993, p. 947) -, deve acentuar-se que um tal princípio foi observado no momento e no local adequados, isto é, no decurso do procedimento disciplinar, não se vendo, por isso, como é que a concessão de uma amnistia não destruidora dos efeitos já produzidos pela aplicação da pena disciplinar pode brigar com um tal princípio.
Finalmente, no que concerne ao apontado desrespeito pela norma aqui impugnada do direito ao bom nome e reputação do recorrente - direito esse plasmado no artigo 26º, nº 1, da Constituição -,importa referir que um tal direito nunca pode ser posto em cheque por uma lei de amnistia, quer esta tenha como objecto crimes e respectivas penas ou quaisquer outras categorias sancionatórias públicas e quer mantenha ou não os efeitos já produzidos pela aplicação da pena, uma vez que as amnistias não têm como finalidade necessária o
'apagamento dos factos «indignos» que legitimaram a sanção aplicada' (expressão utilizada pelo recorrente nas suas alegações), antes visam, entre outros fins, a
'pacificação social', a participação de certas pessoas 'na alegria suscitada por eventos particularmente faustos da Nação' (cfr. A. Rodrigues Queiró, Lições de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1976, p. 93-95, nota) ou, ainda, a correcção de orientações consideradas erradas da lei ou da jurisprudência (cfr. J. de Sousa e Brito, ob. cit., p. 42--44).
III - Decisão.
10. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Lisboa, 16 de Abril de 1997 Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa