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Processo nº 618/95
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Maio de 1995 e de 20 de Junho de 1995, localizando a questão de constitucionalidade como 'questão da inconstitucionalidade do artº 486º/3/do CPC, por violação, além do mais, do artº 8º/2/ da Lei Fundamental
[e que] foi suscitada logo desde início, quando o podia ser, e manteve-se essa matriz inconstitucional ao longo dos autos, tendo sido ajuizadas nos Acórdãos impugnados pelo recorrente'.
2. Nas suas alegações, formulou o recorrente as seguintes conclusões:
'Primeira
A norma do artº 486º/3/do CPC é nitidamente inconstitucional por o ESTADO PORTUGUÊS ficar incompreensivelmente numa situação de superioridade processual inadmissível e intolerável, impondo aos cidadãos um prazo inferior àquele com que se privilegia, quando devia dar o exemplo constitucional da igualdade entre as partes e da celeridade processual.
Segunda
No caso em foco, até se verifica a circunstância escandalosa de a certidão de citação estar datada de 14.4.93 e a contestação do R. só ter sido apresentada em
31.1.94, passados mais de 9 meses, estando mais que ultrapassados os prazos de
20 dias ou de 3 meses improrrogáveis. (Ac. RE, de 7.12.83: BMJ-334º-547).
Terceira
Acresce ainda que após a aprovação para ratificação pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro e depósito do respectivo instrumento em 9.11.78, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, deve considerar-se revogado o disposto no nº 3 do artº
486º do CPC, que permitia a prorrogação do prazo para o MP contestar em acção em que seja parte, face ao disposto no artº 6º/1/ daquela Convenção (Ac. Rel., de
26.7.84: Col. Jur., 1984 - 4º - 103).
Quarta
Tal é exigido pelo princípio da 'igualdade de armas' ou 'igualdade de meios', consagrado no artº 6º da Convenção Europeia e no artº 8º/2/ da Lei Fundamental.
Quinta
Donde, os Acórdãos recorridos violaram o disposto no artº 486º/3/ do CPC, no artº 6º/1/da Convenção Europeia dos Direitos e nos arts. 8º/2/ e 13º da Lei Fundamental.
Sexta Efectivamente, a redacção do nº 3 do artº 486º do CPC introduzida pelo artº 1º do DL 242/85 de 9 de Julho, reduziu a três meses, improrrogáveis, e eliminou o preceituado no nº 4, relativamente às acções de simples apreciação negativa.
Sétima
O nº 3 do artº 486º do CPC é aplicável a todos os articulados, de harmonia com o disposto no artº 504º do CPC.
Oitava
A apresentação da contestação fora do prazo é de conhecimento oficioso. (artº
166º/2/ do CPC).
Nona
O artº 486º/3/ do CPC é nitidamente inconstitucional por violar o princípio da
'igualdade de armas' ou 'igualdade de meios' consagrado no artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como os arts. 8º/2/ e 13º da Lei Fundamental.
Décima
O artº 486º/3/ do CPC ofende também o princípio da igualdade dos cidadãos perante a Lei, constante do artº 13º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que devem revogar-se ou anular-se os ARESTOS recorridos de prorrogação de prazo improrrogável, porque ilegais e aplicadores de norma revogada e inconstitucional'.
3. Contra-alegou o recorrido Estado Português, representado pelo Ministério Público, concluindo como se segue:
'1º - A atribuição ao Ministério Público da faculdade de obter a prorrogação do prazo para contestar, nos termos previstos no nº 3 do artigo 486º do Código de Processo Civil, não viola o princípio da igualdade das partes, proclamado pelo artigo 13º, e ínsito no direito de acesso à justiça e aos tribunais, afirmado pelo artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, já que se não configura como solução legislativa arbitrária, desrazoável ou carecida de qualquer suporte ou justificação material.
2º - Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso'.
4. Vistos os autos, cumpre decidir.
O primeiro acórdão recorrido, de 9 de Maio de 1995, negou
'provimento ao agravo', ou seja, ao recurso de agravo interposto pelo recorrente do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20 de Outubro de 1994, que
'concluiu pela tempestividade da apresentação da contestação pelo Ministério Público, em acção declarativa, instalada no 1º juízo da comarca de Vila Franca de Xira, movida por A. contra o Estado Português' ('Ali o agravante recorreu, sem êxito, dos despachos que prorrogaram, ao abrigo do nº 3 do art 486 C.P.Civil, os prazos de contestação do R e que foram para além dos três meses improrrogáveis aí previstos').
Nele concluiu-se que não há inconstitucionalidade e o discurso é este:
'7. O problema só se coloca a nível da sua constitucionalidade, frente ao artigo
13º da Constituição.
E a sua solução passa pelo princípio da igualdade.
A igualdade dos homens foi consagrado juridicamente, pela primeira vez, no Virginia Bill of Rights, em 12-6-1776, aperfeiçoada na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 e consagrada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793.
Não nos interessa a igualdade aristotélica, simbolizada na balança da justiça ligada à justiça geral de equilíbrio e harmonia entre os homens.
Mas sim a que parte inversamente da desigualdade qualitativa, da luta contra privilégios em busca de uma justiça relativa que proteja o indivíduo, tomando em consideração o mundo real onde está inserido.
(...) Há que previamente determinar se as situações devem ser consideradas iguais ou desiguais para depois lhes dar o mesmo ou diverso tratamento.
Há que surpreender a ratio do tratamento jurídico.
Daí a indispensável conexão entre o critério material que vai qualificar o igual e o fim visado no tratamento jurídico, que terá de ser razoável e suficiente.
Tudo para evitar o arbítrio: tudo o que é injusto, desconexo e violador do fim.
(...)
8. Entendido assim o princípio constitucional - artigo 13º - da igualdade, fácil é concluir que dada a organização hierárquica do Ministério Público, sua funcionalidade e diversas dificuldades que encontra em obter informações ou autorizações, a sua situação e substancialmente desigual à que se encontra o particular.
Daí a legitimidade da desigualdade de tratamento inserida no nº 3 do artigo 486º.
Desigualdade que hoje reveste tratamento proporcionalmente desigual à situação em causa.
Não há, pois, inconstitucionalidade'.
No segundo acórdão recorrido, de 20 de Junho de 1995, concluindo-se não haver 'qualquer nulidade', foi indeferido o requerido pelo recorrente, quanto à anulação daquele outro acórdão, 'por não ter percorrido o calendário do ano de 1993 e não ter feito a contagem do prazo judicial em causa'
('O Ac. do S.T.J., seguindo a calendarização dos diversos pedidos de prorrogação do prazo para contestar apresentados pelo Ministério Público e contando-os a partir da notificação dos correspondentes despachos de deferimento, concluiu, à imagem do Ac. recorrido, pela tempestividade da apresentação da contestação' - é o que se lê nesse aresto).
Registe-se ainda que o mesmo Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão posterior de 23 de Janeiro de 1996, e na mesma acção intentada pelo ora recorrente, num recurso interposto pelo Ministério Público, constatou o seguinte: 'Com base na mesma situação fáctica - (...) - os acórdãos da Relação de Lisboa, de 20.10.94 e de 26 de Abril de 1995, decidiram a questão de saber se deve ser considerada tempestiva (ou não) a contestação do Ministério Público a quem foi concedido o prazo de prorrogação da mesma. Decisões de sinais opostos: o primeiro a considerar tempestiva; a segunda, a considerar não tempestiva.
- A mesma questão (consabido o seu alcance conceitual - A. dos Reis, Cód. Proc. Civil anot. vol. V, págs. 54) suscitada na presente causa (conforme ressalta do despacho da 1ª instância - objecto de recurso e da situação fáctica descrita no § anterior presente acórdão) foi objecto de duas decisões contraditórias da 2ª Instância (Tribunal da Relação de Lisboa)'.
E, posta a questão de saber qual dessas decisões prevalece, pois 'não podem ser atendidas' ambas, considerou que 'o acórdão da Relação de Lisboa, de 26 de Abril de 1995 é, como acto inexistente, insusceptível de ter qualquer valor no mundo do direito; o que equivale a dizer que ninguém se pode socorrer do mesmo para fazer valer os seus direitos', decidindo 'não conhecer do recurso' (o recurso então interposto pelo Ministério Público).
5. Desde já deixa-se consignado que nenhuma repercussão acabou por ter na sequência do presente recurso de constitucionalidade aquele acórdão de 23 de Janeiro de 1996, tendo até ambas as partes entendido que os autos deviam prosseguir a sua normal tramitação, pois a prevalência dada ao acórdão proferido em primeiro lugar pelo tribunal de relação - e foi sobre ele que se pronunciaram os acórdãos recorridos do Supremo Tribunal de Justiça - implica que nada obste a que se conheça do mérito do recurso de constitucionalidade. Isto é acertado e, por consequência, há que prosseguir no conhecimento de mérito.
À partida, interessa delimitar o objecto do recurso, dado que o recorrente se reporta sempre no plural aos dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1995, mas é evidente que só pode interessar na causa o primeiro acórdão de 9 de Maio de 1995, que se debruçou concretamente sobre a questão da inconstitucionalidade posta pela recorrente, considerando até que o
'problema só se coloca a nível da sua constitucionalidade', ou seja, a constitucionalidade da norma do nº 3 do artigo 486º, do Código de Processo Civil.
6. Prevê aquela norma do nº 3 do artigo 486º, aplicável ao caso, um regime mais favorável para o Ministério Público contestante em qualquer acção cível, pois dispõe ele da faculdade de requerer a prorrogação do prazo inicial para contestar, devendo 'ser fundamentado' o pedido 'e a prorrogação não pode, em caso algum, ir além de 3 meses'.
Estamos, por consequência, no domínio do regime processual da intervenção principal do Ministério Público e no ponto que é costume apelidar de 'privilégios processuais' do Estado - e é a hipótese sub judicio - nos litígios de direito privado em que esteja envolvido.
Ora, a solução a buscar tem apenas a ver com a aproximação ou o afastamento do normal estatuto atribuído à parte principal num litígio daquele tipo, em que ela dispõe apenas de um prazo inicial para contestar.
Solução que passa pela essencial ponderação do tema da igualdade processual das partes, à luz dos artigos 20º, nº 1, e 13º, da Constituição, pois na garantia de acesso à via judiciária tem de incluir-se a dimensão do princípio da igualdade de armas, na base de um processo equitativo, como é jurisprudência corrente deste Tribunal Constitucional e consta agora do artigo 3º-A do Código revisto (cfr. Decretos-Leis nºs
180/96, de 25 de Setembro, e 329-A/95, de 12 de Dezembro), talqualmente se fez no acórdão deste Tribunal Constitucional nº 529/94, publicado no Diário da República, II Série, nº 292, de 20 de Dezembro de 1994, ainda que a propósito de outra norma do Código de Processo Civil (a norma do nº 4 do artigo 490º, dispensando o ónus de impugnação especificada na contestação; cfr. o acórdão nº
324/86, publicado no mesmo Diário, nº 65, de 19 de Março de 1987, com referência à norma do artigo 485º, b), do mesmo Código, sobre a cominação da confissão dos factos alegados pelo autor na acção cível).
Lê-se naquele acórdão nº 529/94:
'Neste contexto, e não olvidando que o direito de acesso aos tribunais , como se viu já, é elemento que faz parte do próprio princípio da igualdade ('elemento integrante do princípio material da igualdade ... e do próprio princípio democrático', nas palavras de G. Canotilho e V. Moreira, ibidem, 162), o que há que saber é se a norma sub specie vai, na realidade, estabelecer de modo injustificado, intolerável, irrazoável e arbitrário, um regime discriminatório para uma das «partes» da acção de molde a tornar a posição processual de uma desvantajosa em relação a outra no tocante ao pleno desfrute dos meios adjectivos postos à sua disposição, o que, a suceder, necessariamente se reflectiria na própria decisão final sobre a questão cuja
dilucidação é colocada ao tribunal'.
E a questão pode colocar-se nos mesmos termos em que se posicionou aquele acórdão:
'Nestes termos, o que relevará saber é se, de uma banda, a posição processual do Ministério Público, quando represente uma «parte» processual (in casu o Estado), deve, concretamente, ser visualizada em termos exactamente idênticos ao do representante processual - maxime mandatário judicial - de outra qualquer
«parte»; e, de outra, também, se podem postar em identidade de circunstâncias uma «parte» particular e o Estado, quando, como é a presente situação, seja este o demandado. E efectua-se uma tal dualidade porquanto, como se sabe, não é à partida líquido dizer- se que, em casos como o dos autos, o que está em causa é uma questão de um eventual 'privilégio' concedido ao Ministério Público atento o seu estatuto de representante processual de uma «parte», como igualmente não será inequívoco entender que, pelo contrário, o que deve ser considerada é a existência de um eventual 'privilégio' da «parte» representada que, mercê das suas próprias características, justificará, porventura, a adopção de determinados mecanismos processuais para que se possa colocar, perante a outra, em condições de igualdade'.
Só que a resposta é diferente da que se chegou naquele aresto, servindo o mesmo tipo de discurso para concluir diversamente que o
'privilégio processual' do Ministério Público de dispor de um prazo tão dilatado para contestar uma acção cível vem quebrar a paridade das partes no processo, que implica uma igualdade de armas para os sujeitos processuais.
Na verdade, embora a posição processual do Ministério Público, quando representante do Estado, não deva 'ser visualizada em termos exactamente idênticos ao do representante processual - máxime mandatário judicial - de outra qualquer 'parte', o certo é que para certos efeitos processuais (aqueles sobre que se pronunciaram os citados acórdãos do Tribunal Constitucional), já o Ministério Público goza da dispensa do ónus de impugnação especificada na contestação e beneficia da excepção da cominação da confissão dos factos alegados pelo autor na acção cível, não tendo, pois, justificação razoável o direito a ver prorrogado até ao limite máximo de três meses um prazo processual, aqui o prazo para apresentar uma contestação, quando qualquer parte processual não dispõe da possibilidade de requerer tal prorrogação (cfr., aliás, a solução do actual Código revisto, que no artigo 486º prevê uma prorrogação até ao limite máximo de 30 dias - e não são já os três meses -, a requerimento do Ministério Público (nº 4) ou de outra parte no processo (nº
5)).
Assim, o que é injustificado, irrazoável, intolerável e arbitrário é um benefício de poder aditar ao prazo inicial uma prorrogação de prazo até ao limite máximo de três meses - prorrogação dificilmente controlável e comumente usada pelo Ministério Público -, face às dificuldades que também pode ter outra qualquer parte processual, mas dispondo só do prazo inicial, para organizar a defesa, e tendo de cingir-se irremediavelmente àquele prazo.
Com o que se verifica brigar a norma do artigo 486º, nº 3, do Código de Processo Civil, com os artigos 20º, nº 1, e 13º, da Constituição, na perspectiva da consagração do princípio da igualdade de armas que deve valer para um processo equitativo.
7. Termos em que, DECIDINDO:
a) julga-se inconstitucional, por violação dos artigos
20º, nº 1, e 13º, da Constituição, a norma do artigo 486º, nº 3, do Código de Processo Civil, na versão anterior à revisão de 1995 e 1996;
b) e, em consequência, concede-se provimento ao
recurso, revogando-se o acórdão recorrido, para ser reformado em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 19 de Março de 1997 Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra
(Muito embora não deixe de reconhecer que os privilégios processuais conferidos ao Ministério Público pelas normas dos artigos 420º, nº 4 125º, alínea b) e
486º, nº 3, todos do Código de Processo Civil, representam objectivamente, uma
'quebra' do princípio da paridade das partes no direito adjectivo civil, entendo que são as realidades da vida que ao Ministério Público com todas as limitações decorrentes da dificuldade de contacto com as entidades públicas que corporizam o seu patrocinado - o Estado -, dificuldades essas sublinhadas, verbi gratia, no Acordão nº 529/94, de que fui relator, justificam a concessão da dilatação do prazo previsto no nº3 do aludido art. 468º, concessão essa que, de todo o modo,
é efectivada após o juiz dar por provada a ocorrência de justificação para tanto. Em face dessa perspectiva, que sigo, entendo que foi excessivo o juízo a que se chegou no presente aresto). Luís Nunes de Almeida