Imprimir acórdão
Processo n.º 552/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, da sentença proferida na acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos e de injunção, regulada pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, pelo 1º Juízo Cível da Comarca do Funchal que absolveu a Ré B., do pedido de condenação de pagamento à A. da quantia de € 2.775,73, acrescida dos juros de mora, à taxa de 12%, entre
26 de Abril de 2003 e 30 de Outubro de 2003, no montante de € 143,29, proveniente de fornecimento de bens e serviços; do despacho, de 15 de Janeiro de
2004, que indeferiu a arguição de nulidade do julgamento deduzida pela recorrente e do despacho, de 2 de Fevereiro de 2004, que não admitiu o recurso de apelação interposto pela mesma recorrente, ambos do mesmo Tribunal.
2 – De acordo com o despacho do relator, no Tribunal Constitucional, constante de fls. 115 e ss. dos autos, transitado em julgado, no qual se procedeu à delimitação do objecto do recurso, este visa a apreciação de inconstitucionalidade:
«a) da norma do art.º 678º, n.º 1 do CPC, por violação do art.º 20º da CRP, bem como dos artigos 6º, n.º 1, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, vigentes na nossa Ordem Jurídica por força do disposto no artigo 8º da CRP, quando interpretado no sentido de não admitir recurso da sentença quando o valor da causa não excede a alçada do tribunal de comarca de que se recorre em casos sujeitos ao regime de procedimento anexo ao artigo 1º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, e em que a audiência de julgamento foi efectuada sem intervenção do mandatário judicial do autor, sem a presença do autor e sem audiência das testemunhas que este pretendia nela apresentar, por todas essas pessoas terem chegado ao Tribunal depois de finda a audiência e tendo-se esta iniciado dez minutos depois da hora (do dia) antes designada pelo juiz em despacho notificado às partes;
b) da norma constante dos artigos 201º, n.º 2, e 666º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e do artigo 4º, n.ºs 2 e 3 do Regime dos Procedimentos a que se refere o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, por violação do artigo 20º, em particular o seu n.º 4, da CRP, do artigo 6º, § 1º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem aplicável por força do artigo 8º, n.º 2 da CRP, do princípio do Estado de direito (artigo 2º da CRP) e do princípio da igualdade
(artigo 13º da CRP), na interpretação conjugada de tais preceitos segundo a qual, em processo sujeito ao regime de procedimento anexo ao artigo 1º do Decreto-Lei n.º 269/98, não constitui nulidade processual que importe a anulação da sentença a realização da audiência de julgamento na ausência do autor e do respectivo mandatário e sem audição das testemunhas que o mesmo autor pretendia nela apresentar, por todas essas pessoas terem chegado ao Tribunal depois de finda a audiência e tendo-se esta iniciado dez minutos depois da hora (do dia) antes designada pelo juiz em despacho notificado às partes.».
3 – Alegando sobre o objecto do recurso, a recorrente concluiu o seu discurso argumentativo do seguinte jeito:
«a) A equidade do processo impõe a verificação de pelo menos uma instância em que tenha sido assegurada, efectiva e materialmente, a oportunidade de defesa a ambas as partes;
b) A oportunidade de defesa que é, assim, condição, sine qua non, da equidade do processo, concretiza-se, designadamente, através do respeito pelo princípio do contraditório, da igualdade das partes, do tratamento compatível com a dignidade da advocacia, da cooperação, correcção e urbanidade recíprocas;
c) Ora, no procedimento anexo ao DL. n.º 269/98, toda a oportunidade de defesa encontra-se centrada, praticamente em termos exclusivos, no momento da própria Audiência de Julgamento;
d) Deve, nessa sequência, ser particularmente cuidada a realização da Audiência de Julgamento nesse tipo de procedimento, sob pena de a pôr irremediavelmente em crise como a oportunidade, única, de defesa;
e) É da nossa praxe judicial a realização de duas chamadas para a Audiência de Julgamento, com um mínimo de intervalo entre a primeira e a segunda, bem como com um mínimo de tolerância em relação a qualquer atraso minimamente razoável, de forma a assegurar a comparência exigível;
f) Quanto à definição do que possa constituir atraso minimamente razoável, além da subjectividade e carácter casuístico necessariamente associados a tal conceito, sempre encontra alguma concretização legal no disposto no art. 266º-B/3 do CPC, o qual consagra o prazo de espera pela realização das diligências em 30 minutos, e nunca 10 minutos apenas;
g) Do que decorre a inconstitucionalidade 'da norma do art. 678º, n.º
1, do CPC, por violação do art. 20º da CRP, bem como dos artigos 6º, n.º 1, e
13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, vigentes na nossa Ordem Jurídica por força do disposto no artigo 8º da CRP, quando interpretado no sentido de não admitir recurso da sentença quando o valor da causa não excede a alçada do tribunal de comarca de que se recorre em casos sujeitos ao regime de procedimento anexo ao artigo 1º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, e em que a audiência de julgamento foi efectuada sem intervenção do mandatário judicial do autor, sem a presença do autor, e sem a audiência das testemunhas que este pretendia nela apresentar, por todas essas pessoas terem chegado ao Tribunal depois de finda a audiência e tendo-se esta iniciado dez minutos depois da hora (do dia) antes designada pelo juiz em despacho notificado às partes',
h) Bem como a inconstitucionalidade 'da norma dos art.ºs 201º, n.º 2, e
666º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e do artigo 4º, n.ºs 2 e 3 do Regime dos Procedimentos a que se refere o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, por violação do art. 20º, em particular do seu n.º 4, da CRP, do artigo 6º § 1°, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicável por força do artigo 8º, n.º 2, da CRP, do princípio do Estado de Direito (artigo 2º da CRP) e do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP), na interpretação conjugada de tais preceitos segundo a qual, em processo sujeito ao regime de procedimento anexo ao artigo 1º do Decreto-Lei n.º 269/98, não constitui nulidade processual que importe a anulação da sentença a realização de audiência de julgamento na ausência do autor e do respectivo mandatário e sem a audição das testemunhas que o mesmo autor pretendia nela apresentar, por todas essas pessoas terem chegado ao Tribunal depois de finda a audiência e tendo-se esta iniciado dez minutos depois da hora (do dia) antes designada pelo juiz em despacho notificado às partes.».
4 – A recorrida não contra-alegou.
5 – Por conveniente à compreensão do thema decidendum, convém deixar uma resenha do quadro processual do qual emergem as questões de inconstitucionalidade. A recorrente requereu a injunção judicial da ora recorrida para pagamento de certa dívida advinda de um fornecimento de bens e serviços. A recorrida deduziu oposição, alegando ter pago a dívida. O processo passou então a seguir a forma de acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos e injunção, regulada pelo Dectreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, tendo sido designado como dia de julgamento o dia 14 de Janeiro de 2004, pelas 14,30 horas. Na hora designada, o mandatário judicial da autora e as testemunhas que a mesma pretendia apresentar em audiência de julgamento não estavam presentes em tribunal, tendo chegado, segundo o alegado, pelas 14,45 horas, numa altura em que a audiência de julgamento já havia terminado. A audiência de julgamento começou pelas 14,40 horas do dia designado e nela o juiz procedeu à audição de uma testemunha apresentada pela Ré e ordenou a junção aos autos de 7 documentos então exibidos pela mesma parte. Produzidas alegações pelo mandatário da Ré, o juiz proferiu sentença, absolvendo-a do pedido. No mesmo dia, a A. apresentou um articulado arguindo a nulidade da audiência de julgamento e da sentença subsequente, com fundamento, em síntese, no facto de aquela ter sido levada a cabo sem se ter esperado, por um período mínimo de 15 minutos, pela presença do seu mandatário judicial e testemunhas que pretendia apresentar em audiência e que viajavam com ele, afirmando ser “praxe” geral do país a realização de duas chamadas para a audiência de julgamento com um intervalo de 10 a 15 minutos entre cada uma e não ter tido a possibilidade de apresentar a sua prova, pelo que o tribunal teria violado o disposto nos artigos 32º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, 3º e
4º do Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, 58º do Estatuto da Ordem dos Advogados, 3º, n.º 3, 3º-A, 266º-B, n.º 1, do Código de Processo Civil, 20º da CRP e 6º, § 1º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a interpretação feita daqueles preceitos ofendido o princípio do Estado de direito democrático
(art.º 2º), o princípio da igualdade (art.º 13º) e o princípio do contraditório
(art.º 20º), todos da CRP e ainda o disposto no art.º 8º, n.º 2, da referida Convenção.
6 – A nulidade arguida foi desatendida pelo despacho recorrido, do seguinte teor:
«Requerimento que antecede: Considerando que para o dia 14/1 do corrente se encontravam designados três julgamentos, dois - uma acção ao abrigo do DL 269/98 (a presente), e uma acção sumaríssima – para as 14,30 horas, e outro – outra acção ao abrigo do 269/98- para as 15 horas, e considerando a celeridade que lei imprimiu à tramitação destes processos, não podia o tribunal fazer mais do que o que fez, ou seja, aguardar dez minutos pela chegada do Ex.mo mandatário da autora, representante legal da autora e testemunhas. Vai, assim indeferido o requerido, mais notificando Ex.mo mandatário subscritor do requerimento ora em análise, para, no prazo de 10 dias, juntar procuração aos autos.».
7 – Notificado de tal despacho, a A. interpôs recurso de apelação da sentença absolutória e do despacho que indeferiu a arguição de nulidade.
8 – A acta de audiência de julgamento e a sentença recorrida têm o seguinte teor:
«ACTA DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Processo: 4061/03.2TBFUN - Acção Especial Cump. Obrig. Pecuniárias DL 269/98 Autora: A. Ré: B. Data: 14 de Janeiro de 2004, 14:40 horas. Magistrado Judicial: Dr. C.. Escrivã Auxiliar: D.. Mandatário da Autora: Dr. E.. Mandatário da Ré: Dr. F.. Presentes: o ilustre mandatário da ré e as testemunhas apresentadas pela ré – G., H. e I..
* Iniciada a audiência, pelo ilustre mandatário da ré foram apresentados sete documentos para prova dos artigos 2º e 3º da oposição de fIs. 6. Vistos os documentos, o Mmo. Juiz rubricou-os e ordenou a sua junção aos autos.
* Em seguida, o Mmo. Juiz procedeu à audição das seguintes: Testemunhas da Ré G. - Prestou juramento legal. Aos costumes disse ser técnico de contas da ré, não o impedindo tal de responder com verdade. Depôs a toda matéria.
* Nesta altura, pelo ilustre mandatário da ré foi pedida a palavra e no uso da mesma prescindiu do depoimento das testemunhas H. e I..
* Seguidamente, o Mmo. Juiz deu a palavra ao ilustre mandatário da ré para que proferisse as suas alegações e findas estas, proferiu o seguinte: Despacho Discutida a causa não se provaram os factos constantes do requerimento inicial. Dispõe o artigo 342º, n.º 1, do Código Civil que: 'Aquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado'. Sendo assim, e não tendo a autora feito qualquer prova dos factos alegados no requerimento inicial, necessariamente se terá de concluir que a acção vai improceder.
É o que se decide. Pelo exposto, e nos termos do preceito legal acima referido julgo a presente acção improcedente e não provada, em consequência do que absolvo a ré do pedido. Custas pela autora. Notifique e registe.
* Do douto despacho foram os presentes notificados. A audiência foi encerrada pelas 14:50 horas. A presente acta foi lavrada em 15/01/2004 (acumulação de serviço – Proc.º
1676/03 e 3858/03).».
9 – O recurso de apelação não foi admitido, dizendo-se no respectivo despacho o seguinte: “Por inadmissível, nesta espécie de processo, não admito o recurso interposto a fls. 76”.
B – Fundamentação
10 – Como se disse, o recurso interposto tem por objecto duas questões de constitucionalidade.
10.1 – A primeira respeita à questão de saber se «a norma do art.º
678º, n.º 1, do CPC, quando interpretado no sentido de não admitir recurso da sentença quando o valor da causa não excede a alçada do tribunal de comarca de que se recorre em casos sujeitos ao regime de procedimento anexo ao artigo 1º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, e em que a audiência de julgamento foi efectuada sem intervenção do mandatário judicial do autor, sem a presença do autor e sem audiência das testemunhas que este pretendia nela apresentar, por todas essas pessoas terem chegado ao Tribunal depois de finda a audiência e tendo-se esta iniciado dez minutos depois da hora (do dia) antes designada pelo juiz em despacho notificado às partes», viola o disposto no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 6º, n.º 1, e 13º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
10.2 - A questão de constitucionalidade que vem suscitada prende-se com o regime da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato e injunção instituída, inovatoriamente, pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, na senda da intenção legislativa já manifestada no Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro (art.º 7º), aquando da revisão do processo civil levada a cabo por este diploma em 1995.
Através daquele diploma, o legislador pretendeu dar resposta ao crescente aumento de litigiosidade relativa ao incumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, configurando uma acção iluminada pelo regime das acções de processo sumaríssimo, mas simplificando-o, e elegendo-a como forma de processo de exigência do cumprimento dessa espécie de obrigações até ao valor da alçada dos tribunais de 1ª instância.
Concomitantemente o Decreto-Lei n.º 269/98 procedeu à reformulação do procedimento de injunção, anteriormente previsto, “procurando incentivar o recurso à injunção, em especial pelas possibilidades abertas pelas modernas tecnologias ao seu tratamento informatizado e pela remoção de obstáculos de natureza processual que a doutrina opôs ao Decreto-Lei n.º 404/93, nomeadamente no difícil, senão impraticável, enlace entre a providência e certas questões incidentais nela suscitadas, a exigirem decisão judicial, caso em que a injunção passará a seguir como acção”, ao mesmo tempo que, com esse objectivo e coerentemente com o “enlace” existente entre os dois procedimentos, elevou até à alçada dos tribunais de 1ª instância o seu valor. Neste âmbito a acção veio, assim, a ocupar o lugar do processo sumaríssimo cuja tramitação, em tais hipóteses, estava então prevista no art.º 6º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro, diploma este que instituiu, no direito subjectivo português, o procedimento de injunção destinado a “obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias decorrentes de contrato cujo valor não exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1ª instância”.
Deste modo, a acção especial tanto pode corresponder a um processo autónomo desde a sua instauração como surgir como processo consequente de um procedimento de injunção ao qual se tenha deduzido oposição ou em que tenha sido frustrada a notificação (cf. art.º 16º do Regime Anexo).
10.3 - Com pertinência para a compreensão da situação donde emerge a questão de constitucionalidade, cabe referir que uma vez deduzida oposição ou frustrada a notificação do requerido, no procedimento de injunção, o secretário do tribunal apresenta os autos à distribuição, seguindo-se os termos da acção especial
(art.º 16º do Regime Anexo). De acordo com o disposto nos art.ºs 3º e 4º deste Regime Anexo, “a audiência de julgamento realiza-se dentro de 30 dias, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs
1 a 3 do art.º 155º do Código de Processo Civil” (procedimento de concertação entre o tribunal e os mandatários das partes relativo à designação da data de julgamento); “as provas são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas”; “a falta de qualquer das partes ou seus mandatários, ainda que justificada, não é motivo de adiamento”; “quando as partes não tenham constituído mandatário judicial ou este não comparecer, a inquirição das testemunhas é efectuada pelo juiz”; “finda a produção de prova, pode cada um dos mandatários fazer uma breve alegação oral” e, finalmente, “a sentença, sucintamente fundamentada, é logo ditada para a acta”.
10.4 - O Decreto-Lei n.º 269/98 não prevê expressamente a indamissibilidade do recurso ordinário nesta espécie de acção. Tal solução legal deriva da conjugação do disposto no seu artigo 1º com o disposto no art.º 678º, n.º 1, do CPC, na medida em que ali se prevê que essa acção apenas possa ser exercida para “exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância” e aqui se prescreve que “Só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal; em caso, porém, de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, atender-se-á somente ao valor da causa”. E a aplicação desta disposição do CPC impõe-se por força do facto de a acção ser uma acção própria de processo civil.
Neste âmbito, a conclusão é a mesma que haveria de inferir-se do regime da providência de injunção constante do Decreto-Lei n.º 404/93 (cf. art.ºs 1º e 6º), sendo que aqui o valor da acção seria apenas até metade do valor da alçada do tribunal de 1ª instância.
10.5 - A questão de constitucionalidade do art.º 678º, n.º 1, do CPC já foi apreciada por diversas vezes por este Tribunal e sempre no mesmo sentido
– o da sua conformidade com a Lei Fundamental – pelo que tal solução há-de entender-se como correspondendo a jurisprudência firme do Tribunal que aqui se renova. Entre os muitos arestos sobre a matéria, podem referir-se os Acórdãos n.ºs 163/90, 210/92, 346/92, 340/94, 95/95 e 739/98.
Discreteou-se, a propósito, logo no primeiro aresto, tendo esses fundamentos sido continuamente repetidos:
«15 - A norma que assim limita o direito de recurso será constitucionalmente legítima? O artigo 20º, n.º 1, da Constituição prescreve:
1 - A todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
Este direito de acesso aos tribunais «para defesa dos seus direitos e interesses legítimos» é, entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das regras da imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento do contraditório. Este direito há-de exercer-se em condições de plena igualdade. Designadamente, a justiça não pode ser «denegada por insuficiência de meios económicos», e, no processo, as partes hão-de ser colocadas em perfeita paridade de condições no tocante à defesa dos respectivos direitos e interesses: cada uma delas - como diz Manuel de Andrade - há-de poder «deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e de outras» (cfr. Noções Elementares de Processo Civil I, Coimbra, 1956, p. 364).
16 - Mas terá este acesso aos tribunais que ser assegurado sempre em mais de um grau de jurisdição? Terá que haver, pelo menos, um duplo grau de jurisdição, e, assim, no mínimo, direito a um recurso?
É óbvio que, achando-se constitucionalmente garantido o direito de acesso aos tribunais e prevendo a Constituição a existência de tribunais de recurso [cfr. artigos 211º, n.º 1, alínea a), e 212º, n.ºs 1, 3, 4 e 5] daí há-de decorrer - como se acentuou no Acórdão deste Tribunal n.º 178/88 (Diário da República II Série, de 30 de Novembro de 1988) - «que o legislador não é inteiramente livre da definição de quais sejam as decisões recorríveis [...]». Embora disponha de
«uma larga margem de liberdade no tocante à definição das decisões susceptíveis de ser impugnadas por via de recurso [...]», não pode ele - como este Tribunal também assinalou no seu Acórdão n.º 31/87 (Diário da República II Série, de 1 de Abril de 1987) - «eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso», nem «inviabilizar na prática» essa faculdade. Assim, no tocante ao processo criminal o princípio constitucional das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, n.º 1, «impõe ao legislador que consagre a faculdade de os arguidos recorrerem das sentenças condenatórias» e bem assim o direito de recorrerem de quaisquer «actos judiciais que, no decurso do processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de quaisquer outros dos [seus] direitos fundamentais» (cfr. citado Acórdão n.º 31/87). E isto, porque «a faculdade de recorrer em processo penal traduz uma expressão do direito de defesa», pois «é ela que permite ao arguido superar a antítese entre o interesse público à condenação e o seu próprio interesse de defesa e obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento» (cfr. Acórdão n.º 61/88, publicado no Diário da República II Série, de 20 de Agosto de 1988). A Constituição não impõe, porém - ainda que, só para o processo penal - que o legislador consagre a faculdade de recorrer de todo e qualquer acto do juiz. No Acórdão n.º 178/88 já citado, escreveu-se o seguinte:
O direito a um duplo grau de jurisdição, sendo, embora, uma exigência constitucional que, como decorrência do princípio de defesa do arguido, há-de valer, ao menos em geral, no domínio do processo penal, não é, porém, uma garantia que deva cobrir todos os actos judiciais do processo [cfr., também, Acórdão nº 259/88 (Diário da República II Série, de 11 de Fevereiro de 1989)].
17 - Se, no processo penal, onde está em jogo a liberdade e a honra das pessoas, não existe sempre a garantia de um duplo grau de jurisdição (não existe ao menos em termos de cobrir todos os actos judiciais do processo), muito menos essa garantia é imposta pela Constituição para valer no domínio do processo civil, onde, em geral, se discutem simples interesses materiais (económicos). No processo civil o que o legislador tem de assegurar sempre a todos, sem discriminações de ordem económica, é o acesso a um grau de jurisdição. E, se a lei previr que o acesso à via judiciária se faça em mais que um grau, tem ele que abrir a todos também essas várias vias judiciárias, garantindo que o acesso a elas se faça sem discriminação alguma, maxime para os economicamente desfavorecidos. Este Tribunal já teve, de resto, ocasião de afirmar, a propósito, o seguinte:
O princípio jurisdicional para que aponta o artigo 20º, n.º 2 (hoje n.º 1), da Constituição [...] tem pois um alcance muito breve: imperativamente, apenas garante um patamar de jurisdição (cfr. Acórdão n.º 65/88, publicado no Diário da República II Série, de 20 de Agosto de 1988).
E, mais adiante, fazendo a síntese da jurisprudência da Comissão Constitucional sobre a matéria, escreveu-se nesse Acórdão n.º 65/88:
A Comissão Constitucional [...] não entendeu, pois, que o artigo 20º, n.º 1
[...], ao assegurar a todos o acesso aos tribunais, estivesse a impor que a legislação ordinária, em qualquer hipótese, houvesse de garantir sempre aos interessados, para defesa dos seus direitos, o acesso a sucessivos graus de jurisdição. Apenas considerou que ali, onde a legislação ordinária tivesse já aberto a via de recurso para uma segunda ou mesmo terceira instância, o nº 1 do artigo 20º da CRP (primitiva redacção) postularia então que tal via, ao nível dos vários graus de jurisdição admitidos, fosse a todos consentida sem quaisquer discriminações de ordem económica [cfr., no mesmo sentido, Acórdão deste Tribunal n.º 359/86 (Diário da República II Série, de 11 de Abril de 1987)].
18 - Na doutrina, Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional IV, Coimbra,
1988, p. 258), sobre o direito de acesso aos tribunais, escreve:
[...] não parece que compreenda o direito a recurso para uma instância superior ou a um duplo ou triplo grau de jurisdição. A Constituição pressupõe-no, mas não o declara, salvo no domínio de fiscalização concreta da constitucionalidade ou da legalidade de normas jurídicas [...]. O que, em nenhum caso, pode haver é qualquer obstáculo de natureza económica, insuperável pelos mecanismos de apoio judiciário, que inviabilize o direito de recorrer quando admitido.
Também Armindo Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III, Lisboa, 1982, p.
124) escreve:
Tal como sucede com a Constituição italiana de 1947, a nova Constituição não se refere qua tale à garantia do duplo grau de jurisdição ou à previsão sequer da existência de recursos em processo civil ou penal. A Constituição garante a todos o «acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos». Mas a Constituição não garante expressis verbis a existência de um duplo grau de jurisdição no domínio das jurisdições civil, penal ou administrativa. Nem tão-pouco o recurso à Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos termos do artigo 16º, n.º 2, da Constituição, permite integrar uma eventual lacuna sobre os contornos da garantia do duplo grau de jurisdição. É que aquela Declaração não contempla tal garantia.
E noutro passo (cfr. p. 128) acrescenta o mesmo Autor:
[...] inclino-me para supor que não há qualquer imposição constitucional absoluta do duplo grau de jurisdição, tendo o legislador ordinário a liberdade de alterar pontualmente as regras sobre a recorribilidade das decisões e a existência dos recursos, desde que não afecte substancialmente o sistema existente à data da entrada em vigor (da Constituição). O legislador ordinário não poderá, porém, ir até ao ponto de limitar de tal modo o direito de recorrer que, na prática, se tivesse de concluir que os recursos tinham sido suprimidos. Assim, parece-me que seria inconstitucional [...] a lei que viesse considerar irrecorríveis as decisões proferidas em causas de valor superior a 10.000 contos, independentemente das alçadas, ou que viesse elevar as alçadas dos tribunais de comarca de 120 para 10.000 contos. Respeitados, estes limites, o legislador ordinário poderá ampliar ou restringir os recursos cíveis, quer através da alteração dos pressupostos da admissibilidade, quer através da mera actualização dos valores das alçadas.
19 - Dir-se-á ainda que o artigo 678º, n.º 1, do Código de Processo Civil, condicionando o direito de recurso ao facto de a decisão recorrida haver sido proferida em acção cujo valor exceda a alçada do tribunal que a proferiu, não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição. Na verdade, de um lado, trata por igual todas as partes nos processos cujo valor seja igual; e, de outro, a distinção estabelecida assenta no valor económico do pedido formulado na acção, e não na situação económica das partes no processo - o que, há-de convir-se, é um critério que, podendo embora ser discutível, não é arbitrário, nem irrazoável.
20- A finalizar, dir-se-á que não se vê em que é que a inexistência de um generalizado direito de recurso em todas as acções cíveis possa violar o princípio do Estado-de-Direito.
É certo que os recursos se destinam ao reexame das decisões judiciais e, desse modo, a corrigir eventuais erros de julgamento. Mas, o recurso aos tribunais, ainda que em uma única instância, continua a ser o meio de defesa por excelência dos «direitos e interesses» legalmente protegidos
- um meio de defesa que responde minimamente às exigências de justiça que vão implicadas na ideia de Estado de Direito. Isto, que é assim em geral, não tem por que sofrer qualquer inflexão em casos como o dos autos. Desde logo, porque - contrariamente ao que pretendem os recorrentes e como já atrás se disse - nele, a controvérsia não incidiu sobre direitos fundamentais, sim sobre a interpretação de uma cláusula negocial. De facto, o que na verdade se discutiu na acção foi se a venda feita por escritura pública dos «fundos ou sub-solo» do prédio denominado «Campo da Fonte do Piolho» atribui ou não aos compradores o direito de, aí, explorarem as águas do respectivo sub-solo, com exclusão dos vendedores. Ora, é em vista dessa controvérsia que há que decidir se a Constituição impõe ou não a consagração pela lei de um direito de recurso; ou seja, do duplo grau de jurisdição.».
10.6 - Ora esta fundamentação continua a ser completamente transponível para o caso dos autos, não obstante o recurso versar sobre decisão proferida em acção especial que foi criada pelo legislador em momento posterior e sujeita a um regime específico, até porque, como diz Carlos Lopes do Rego, apreciando essa jurisprudência, «temos como evidente que não pode pretender pôr-se seriamente em causa a existência, no ordenamento processual, de limites objectivos à admissibilidade do recurso, estabelecidos para as causas de menor relevância, tendo em conta a natureza dos interesses nelas envolvidos ou a sua repercussão económica para a parte vencida: é que tais limitações derivam, em
última análise, da própria «natureza das coisas», da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os tribunais superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos tribunais inferiores – sob pena de o número daqueles ter de ser equivalente ao dos tribunais de 1ª instância e com a consequente dispersão das tendências jurisprudênciais...’ (Acesso ao Direito e aos Tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Lisboa,
1993, pág. 83)».
Na verdade, o regime de tal acção especial, embora simplificado, não deixa de colocar as partes em condições de plena igualdade no tocante às possibilidades de defesa dos respectivos direitos e interesses, bem podendo cada uma delas, como diz Manuel de Andrade - «deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e de outras».
Mesmo na circunstância de a audiência se ter “efectuado sem intervenção do mandatário judicial do autor, sem a presença do autor e sem a audição das testemunhas que este pretendia apresentar, por todas essas pessoas terem chegado ao Tribunal depois de finda a audiência e tendo-se esta iniciado dez minutos depois da hora designada pelo juiz e notificada às partes”, a parte que se diz prejudicada não deixou de estar, de acordo com o regime da acção especial sob exame, em rigorosa situação de paridade processual relativamente à contra-parte.
Se todas essas circunstâncias são susceptíveis de acontecer (e aconteceram) não é (foi) porque a parte e os demais intervenientes processuais
(mandatário e testemunhas) estejam colocados pelo regime da acção em condições de desigualdade relativamente à contra-parte e outros intervenientes, mas porque aqueles não são diligentes na sua conduta, deixando de orientar a sua vida de modo a poderem estar presente no tribunal, à hora designada, prevendo designadamente a possibilidade de verificação de acontecimentos susceptíveis de ocasionar atrasos na sua chegada ao tribunal.
Não poderá, pois, atribuir-se à ocorrência de circunstâncias como as que a recorrente incorpora na definição da norma cuja constitucionalidade sindica e aos efeitos que as mesmas são susceptíveis de desencadear legalmente – a realização da audiência de julgamento sem a presença da parte e a inquirição das testemunhas que estiverem presentes pelo juiz – a natureza de ónus que sejam arbitrários ou que dificultem ou limitem desproporcionadamente o exercício do direito de acesso aos tribunais, na sua dimensão de direito a produzir prova sobre os factos alegados em defesa, e muito menos, na dimensão de direito ao recurso.
Na verdade, o ónus de pontualidade exigido pelo regime sob censura constitucional obriga igualmente cada um das partes e intervenientes processuais e o efeito decorrente da sua violação atinge indiferenciadamente qualquer delas, não deixando de corresponder às exigências de um processo equitativo e justo
ínsitas no direito constitucional do acesso aos tribunais. A pontualidade há-de também ser vista como requisito indispensável e imprescindível ao bom funcionamento dos serviços judiciais e até como dever de respeito por aqueles que cumprem, postando-se, também por esta razão, na linha daqueles postulados constitucionais.
Considerar irrelevante a ausência das pessoas à hora designada para a audiência de julgamento ou conceder-lhe garantias acrescidas, como decorreria da posição defendida pela recorrente, corresponderia, por um lado, a admitir a arbitrariedade, na medida em que deixaria os efeitos decorrentes da falta dependentes do critério de cada juiz sobre o momento adequado para o início do julgamento e, por outro, a premiar quem deixara de cumprir um ónus cuja imposição é por demais materialmente justificada. Temos, assim, de concluir que a norma em causa não afronta o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20º da CRP.
10.7 - Pretexta a Recorrente que a norma em causa afronta o disposto nos artigos
6º, n.º 1, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Ora, independentemente de o vício imputado não importar a inconstitucionalidade da norma de direito interno que estivesse em oposição com tais preceitos, verifica-se que o direito de acesso aos tribunais consagrado no art.º 20º da Constituição tem o mesmo conteúdo normativo de tais normas de direito internacional, pelo menos depois da revisão de 1997, não fazendo, sequer, por isso sentido apelar a tais preceitos para integrar os preceitos constitucionais que prevêem e regulam tal direito fundamental. Sendo assim, sempre improcederia a questão de constitucionalidade suscitada pela recorrente.
11 – Importa agora conhecer da segunda questão de constitucionalidade. Trata-se de saber se «a norma constante dos artigos 201º, n.º 2, e 666º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e do artigo 4º, n.ºs 2 e 3 do Regime dos Procedimentos a que se refere o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, na interpretação conjugada de tais preceitos segundo a qual, em processo sujeito ao regime de procedimento anexo ao artigo 1º do Decreto-Lei n.º 269/98, não constitui nulidade processual que importe a anulação da sentença a realização da audiência de julgamento na ausência do autor e do respectivo mandatário e sem audição das testemunhas que mesmo autor pretendia nela apresentar, por todas essas pessoas terem chegado ao Tribunal depois de finda a audiência e tendo-se esta iniciado dez minutos depois da hora (do dia) antes designada pelo juiz em despacho notificado às partes», viola o disposto no «artigo 20º, em particular o seu n.º 4, da CRP, o artigo 6º, § 1º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem aplicável por força do artigo 8º, n.º 2 da CRP, do princípio do Estado de direito (artigo 2º da CRP) e do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP)».
Ora, antes de mais, continuam a valer aqui as considerações feitas acima sobre a impertinência da convocação dos preceitos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Sendo assim, o Tribunal apenas confrontará a norma com os parâmetros constitucionais constantes dos artigos 20º, 2º e 13º da Lei Fundamental. Mas antes de mais impõe-se fazer já uma precisão. Embora à primeira vista a questão suscitada possa parecer tratar-se de uma questão de inconstitucionalidade por omissão, na medida em que aparentemente parece referir-se à falta de uma provisão legislativa em certo sentido – o que a ser verdadeiro implicaria que o Tribunal dela não pudesse conhecer por falta dos requisitos, mormente de legitimidade para a requerer, a que o art.º 283º da Constituição sujeita a sua verificação – em boa verdade assim não é. Na verdade, a inconstitucionalidade está imputada a uma certa norma enquanto entendida no sentido de, não obstante esta ter prefigurado a hipótese em análise, todavia, não a incluir dentro das situações pressupostas em que segundo ela se verifica o vício de nulidade processual. Não se trata, deste modo, de inexistência de norma jurídica, mas sim de norma que exclui da hipótese que sanciona com o efeito jurídico da nulidade os casos ali não incluídos. Como se disse já, o direito de acesso aos tribunais consagrado no art.º 20º da CRP abrange, como uma das suas dimensões, o direito a obter uma decisão dos conflitos por um tribunal imparcial e independente em prazo razoável e mediante um processo equitativo. Um processo equitativo pressupõe, desde logo, como acima se acentuou, a possibilidade de, sem constrangimentos advindos de insuficiência económica, o requerente e requerido poderem expor os seus pontos de vista sobre os aspectos factuais e jurídicos que coenvolvem o pleito existente entre eles, de poderem oferecer e requerer a produção das provas necessárias à demonstração desses factos e de poderem contraditar, cada um, o ponto de vista do outro quer relativamente aos factos quer ao direito – um processo enformado, em suma, segundo o princípio da igualdade de armas postulado, desde logo, pelo princípio da igualdade das pessoas. Mas dentro de tais parâmetros constitucionais o legislador ordinário goza de discricionariedade para, dentro das exigências postuladas pelo princípio constitucional da proporcionalidade (art.º 18º, n.º 2, da CRP), moldar ou conformar o processo, aí se incluindo a definição da tramitação a seguir e das sanções processuais que a violação dessa tramitação importe, apenas lhe estando vedada a adopção de medidas ou conformação de efeitos jurídicos que se apresentem como desnecessários, desproporcionados ou arbitrários.
Ora, atento o que já se disse sobre a justificação material da conformação do
ónus de pontualidade exigido aos diversos intervenientes processuais, há-de convir-se que a atitude legislativa de não valorar como “nulidade processual que importe a anulação da sentença a realização da audiência de julgamento na ausência do autor e do respectivo mandatário e sem audição das testemunhas que o mesmo autor pretendia nela apresentar, por todas essas pessoas terem chegado ao Tribunal depois de finda a audiência e tendo-se esta iniciado dez minutos depois da hora (do dia) antes designada pelo juiz em despacho notificado às partes” não se apresenta como susceptível de ser sancionada constitucionalmente. Na verdade, tal regime jurídico não se apresenta como desnecessário, desproporcionado ou arbitrário. Temos, portanto, que a norma em causa não viola o direito constitucional de acesso aos tribunais consagrado no art.º 20º da Constituição.
E também não se vê como possa ela violar o princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art.º 2º da CRP, em qualquer das suas dimensões materiais, maxime, as que contendem com o acesso à justiça e aos tribunais, porquanto o efeito projectado pela lei não deixa de estar suportado em razões de justiça, de autoresponsabilidade processual das partes, de necessidade, de eficácia do sistema de justiça.
Por outro lado, também não se descortina como a norma possa violar o princípio constitucional da igualdade, consagrado no art.º 13º da CRP, seja na sua acepção positiva de obrigar o legislador a dar tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais, seja na sua dimensão negativa ou de controlo, de proibição de adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável
(vernünfliger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. (cf. a propósito, o recente Acórdão n.º 232/2003, publicado no Diário da República I Série-A, de 17 de Junho de 2003, onde se faz uma recompilação da jurisprudência e doutrina sobre a matéria). No domínio da legislação processual, o princípio da igualdade afirma-se através do princípio da igualdade de armas e do princípio do contraditório, consubstanciados em qualquer das partes, em condições de rigorosa igualdade,
«poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e de outras» (cf., além dos referidos e entre muitos, os Acórdãos n.º
516/93, n.º 497/96, n.º 249/97, n.º 608/99, n.º 601/04, publicados no Diário da República II Série, respectivamente, de 19 de Janeiro de 1994, 17 de Julho de
1996, 17 de Maio de 1997, 16 de Março de 2000, 25 de Novembro de 2004 e n.º
452/04, este disponível em www.tribunal constitucional.pt). Ora, como se viu já, os efeitos estabelecidos pela lei decorrentes do incumprimento do ónus de pontualidade ao julgamento estão previstos sem distinção da posição que a parte ocupe no processo ou seja, sem distinção se o faltoso é autor ou réu, não violando a norma o princípio da igualdade (cf. art.ºs 3º, n.ºs 2 e 3, e 4º, n.ºs 2 a 6, do Regime Anexo ao Decreto-Lei n.º
269/98). Por outro lado, não é possível estabelecer qualquer comparação na perspectiva da exigência de tratamento igual, como ao fim e ao cabo pretende a recorrente, entre a posição de quem cumpre o dever de pontualidade e aquele que o não cumpre, precisamente porque se trata de categorias diferentes, faltando-lhe o tertium comparationis.
Há, pois, que concluir que a norma não ofende o art.º 13º da CRP.
C – Decisão
12 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso. Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 20 UC.
Lisboa, 29 de Março de 2005
Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos