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Processo n.º 562/2005
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos foi proferida a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente A. e como
recorrido o Ministério Público, o recorrente interpôs recurso de
constitucionalidade do acórdão de 25 de Maio de 2005 nos seguintes termos:
Porque tem legitimidade e está em tempo, vem, nos termos do disposto no art.
70°, n° 1, alínea b), da LTC, interpor recurso para o Tribunal Constitucional,
do acórdão do STJ proferido nos presentes autos, para apreciação da
inconstitucionalidade da norma, aplicada pela decisão posta em crise, ínsita no
n° 2 do art. 30° do Código Penal, com a interpretação que dela é feita naquela
peça, por violação do disposto no art. 29° da Constituição da República
Portuguesa.
O recurso deverá ser admitido com efeito suspensivo e a subir imediatamente nos
próprios autos.
Notificado para explicitar, ao abrigo do artigo 75º‑A da Lei do Tribunal
Constitucional, o sentido normativo que considera inconstitucional, o recorrente
respondeu o seguinte:
A., Recorrente nos autos de recurso em epígrafe, notificado do douto despacho
antecedente,
Vem, em cumprimento do doutamente determinado e nos termos do disposto no art.
75°-A, n° 6, da LTC, informar que a questão da inconstitucionalidade que
pretende ver apreciada foi por si levantada na motivação do recurso apresentado
perante o Supremo Tribunal de Justiça, sintetizada na alínea F) das respectivas
conclusões.
Mais esclarece que considera materialmente inconstitucional a norma contida no
art. 30°, n° 2, do Cód. Penal, com a interpretação que dela é feita na decisão
recorrida, por violação do disposto no art. 29° da Constituição da República
Portuguesa, na medida em que - considerando que a factualidade dada como provada
revela que o arguido agiu motivado por uma única resolução, surgindo as condutas
imputadas ao agente na sequência de uma mesma decisão, dadas as estreitíssimas
dependência temporal e interligação de tais condutas - condenar o recorrente
pela prática de um crime tipificado no n° 1 do art. 172° do CP e por um crime
previsto no n° 2 do mesmo art. 172°, em vez de o condenar pela prática de um
único crime continuado punível nos termos do n° 2 do mencionado art. 172°, faz
com que, quando estejam em causa os tipos legais em apreço, seja automática e
sistematicamente afastada a sua qualificação como crime continuado o que viola o
princípio da legalidade e faz com que o arguido seja julgado (e condenado) duas
vezes pela prática de um mesmo crime.
A alínea f) das conclusões das alegações a que o recorrente alude na resposta
transcrita tem o seguinte teor:
F) A interpretação do art. 30°, n° 2, do Cód. Penal nos termos em que é feita
pela decisão recorrida seria materialmente inconstitucional por violação do
disposto no art. 29° da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre apreciar.
2. O recorrente nos presentes autos insurge‑se contra a condenação em concurso
efectivo, pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança (artigo 172º,
nºs 1 e 2, do Código Penal).
Foi a seguinte a matéria de facto dada como provada:
1. O arguido é vizinho dos pais de B., nascido a 2/3/1990, e deste. Foi o
arguido quem efectuou todo a instalação eléctrica da casa onde aqueles vivem.
2. O arguido era visita assídua desta casa e tinha um relacionamento próximo com
o pai do B., que conhecia há mais de 25 anos, dado que este visitava o seu pai
(de quem era sócio), pelo menos uma vez por semana, e tinha um relacionamento
muito próximo com a mãe do B., que conheceu através do marido, há mais de 15
anos.
3. O B. foi, desde sempre, visita da casa dos pais do arguido, aonde se
deslocava quase semanalmente na companhia do respectivo progenitor, e onde, com
muita frequência, se encontrava com o arguido.
4. Em inícios de 2000, o B. foi a casa do arguido e aí, este, ciente do natural
interesse e curiosidade das crianças da idade daquele por assuntos do foro
sexual, perguntou-lhe se queria ver um filme, tendo-lhe este dito que sim.
5. Então o arguido colocou no seu leitor de vídeo uma das várias cassetes que
possuía que era um filme em que se podiam visionar cenas de sexo explícito.
6. Volvidos alguns instantes de visionamento do filme, o arguido disse ao B. que
fizessem o mesmo e que baixasse as suas calças e cuecas.
7. Após ter tirado também as suas calças e cuecas, o arguido pegou no B. ao colo
e colocou-o no seu regaço.
8. Acto contínuo, tentou introduzir o seu pénis erecto no ânus do B., fazendo
movimentos com o corpo para cima e para baixo, só parando alguns instantes
depois, não obstante o B. já lhe tivesse referido que lhe estava a doer.
9. Ambos já vestidos e compostos, o arguido pediu então ao B. que não contasse
nada a ninguém, vindo este a abandonar de seguida a residência do arguido.
10. No dia 5/10/2000, o B., sem que tivesse contado a ninguém o que lhe havia
acontecido, voltou a casa do arguido, a pedido do seu pai, a fim de o chamar
para ir arranjar um motor eléctrico que se tinha avariado e o arguido, com o
pretexto de estar ocupado com o arranjo de uma antena, afirmou não poder ir.
11. Antevendo o que poderia voltar a acontecer e aproveitando a situação que
pensava ser de conivência por parte do B., gerada pelo silêncio deste
relativamente ao episódio atrás descrito, o arguido disse‑lhe que tinha um filme
de 'foda' para lhe mostrar.
12. Depois, o arguido colocou no leitor de vídeo uma das várias cassetes que
possuía de cariz pornográfico e ambos começaram a ver vários cenas explícitas de
sexo, nomeadamente de sexo oral.
13. Na altura em que se podia visionar na televisão uma mulher a praticar sexo
oral com um homem, o arguido, que se encontrava sentado ao lado no sofá,
desapertou, então, o fecho das suas calças, desceu-as, juntamente com as cuecas,
até ao joelho, e disse ao B. que lhe 'tocasse ao bicho'.
14. O B. acabou por colocar a mão sobre o pénis erecto do arguido e passou a
fazer com a mão movimentos para baixo e para cima.
15. Depois o arguido disse-lhe que lhe 'chupasse o pita', acabando por lhe meter
o seu pénis erecto na boca e começou a fazer, com a cabeça daquele, movimentos
descendentes e ascendentes.
16. Uns momentos depois, o arguido mandou-o lavar a boca e deu‑lhe um iogurte
alegadamente para tirar o sabor e, com promessas de vária ordem, mais uma vez
lhe pediu que não contasse a ninguém.
17. O arguido, no intuito de satisfazer os seus instintos sexuais com a prática
de relações sexuais com o menor, agiu sempre livre, voluntária e
conscientemente, estando perfeitamente ciente da idade daquele e que a sua
conduta era proibida e punida por lei.
18. Na sequência dos factos de 5/10/2000 e do conhecimento, na família e no meio
onde vive, dos factos de inícios de 2000 e de 5/10/2000, o B. ficou perturbado,
com sintomas de ansiedade excessiva (sono agitado, pesadelos, disfagia) e
tendência aos acidentes.
19. Numa avaliação feita em 19/9/2001 e 2/10/2001 apresentava um estado
neurótico em que predominava o sentimento de permanente ameaça associado ao
receio de rejeição/abandono, estado esse que denunciava já uma perturbação ao
nível da organização da personalidade e que tem geralmente continuidade na vida
adulta se não for devidamente tratada.
20. Até a altura dos factos ocorridos em 5/10/2000, o B. era considerado uma
criança alegre, comunicativa e extrovertida.
21. Depois, o B. mostrou alterações no seu comportamento, tanto na família como
na escola, tomando-se uma criança assustada, triste e com medo, pedindo
constantemente a protecção dos pais.
22. O B. foi assistido por um psicólogo na escola, por falta de rendimento
escolar (já tinha chumbado de ano antes dos factos em causa nestes autos).
23. Na sequência, o B. necessitou de acompanhamento psicológico.
24. O B. sofreu angústia por saber que os factos chegaram ao conhecimento de
muita gente, pois vive num meio pequeno, e também porque teve de os descrever
várias vezes perante entidades diversas.
25. Com o recurso à via judicial e deslocações da sua residência para o tribunal
e para o Hospital de Aveiro, os pais do menor tiveram despesas.
26. O arguido não tem antecedentes criminais.
27. É pessoa reputada de educada e equilibrada por alguns dos seus conhecidos e
amigos.
28. Sempre manteve um comportamento cordato e respeitador com aqueles, sendo,
por isso, por eles considerado e respeitado.
O Supremo Tribunal de Justiça considerou o seguinte:
A. O crime continuado:
Há, por conseguinte, que enquadrar jurídico-penalmente a actividade do
recorrente, e, designadamente, apurar da compatibilidade do número de crimes de
abuso sexual de crianças a ele imputados, face ao normativo do artigo 30º do CP.
Que estabelece:
1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente
cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela
conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime
ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico,
executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma
mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
A estruturação do crime continuado, como é sabido, encontra o seu fundamento
numa diminuição da culpa do agente, decorrente da facilidade criada, por certas
circunstâncias externas, para a prática de novos actos da mesma ou idêntica
natureza.
Pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a
existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a
repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente
que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
Sempre recorrendo à ideia fundamental daquilo que legitima, em última instância,
o funcionamento deste instituto: a diminuição considerável do grau de cultura do
agente.
Sintetizando, eis os pressupostos, cumulativos, do crime continuado:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam
fundamentalmente o mesmo bem jurídico);
- homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);
- unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção ). As diversas resoluções
devem conservar-se dentro de uma 'linha psicológica continuada';
- lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado);
- persistência de uma 'situação exterior' que facilite a execução e que diminua
consideravelmente a culpa do agente.
A Doutrina indica algumas das situações exteriores que, diminuindo
consideravelmente a culpa do agente, poderão estar na base de uma continuação
criminosa:
- ter-se criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação ou
um certo acordo entre os sujeitos (como no adultério);
- voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já
foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa (como
na descoberta de um acesso utilizável à caixa-forte de um Banco);
- perduração do meio apto para a realização de um crime – meio que se criou ou
adquiriu para executar a primeira conduta criminosa (como no fabrico de uma
chave falsa de um cofre);
- a circunstância de o agente, depois de executar a resolução criminosa,
verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o seu âmbito (o ladrão
furta a jóia que deseja e também o dinheiro que junto dela se encontrava e com
que não contava).
O acórdão recorrido, a esta questão, que expressamente lhe foi colocada em sede
recursiva, limitou-se a confirmar a decisão da 1ª Instância.
E nos seguintes termos:
«A conduta do arguido, tal como resulta dos factos provados prolonga-se no
tempo, embora sequenciais, obedecendo às mesmas solicitações endógenas e
exógenas, e por tal, como faz a sentença, tipifica o crime continuado» .
Por aqui se ficou.
Como impressivamente se salientou, só há crime continuado quando se verifica uma
diminuição considerável da culpa do agente que deriva dum condicionalismo
exterior que propicia a repetição das várias acções criminosas, mediante um
procedimento que se reveste de uma certa uniformidade.
O fundamento da diminuição da culpa encontra-se assim no circunstancialismo
exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente, e o
pressuposto da continuação criminosa deverá ser encontrado numa relação que, de
modo considerável, e de fora, facilitou aquela repetição.
Tudo conduzindo a que seja, a cada crime, menos exigível ao agente que se
comporte de maneira diversa.
Sem diminuição de culpa e sem a correspondente envolvência externa ao agente não
existe crime continuado.
Da matéria de facto transcrita não só não está directamente provada como não
resulta, por forma alguma, configurada, uma situação exterior ao agente que o
impeliu à repetição da conduta criminosa, nem a mencionada diminuição de culpa.
Antes resulta uma agravação dessa culpa, agora face à inovação de uma diversa
conduta criminosa (o coito oral).
A circunstância de se verificar a repetição (no coito oral), face ao outro
delito em confronto (actos de masturbação), do modus operandi utilizado, não
permite, só por si, configurar algum dos aludidos índices referidos pela
Doutrina, v.g., 'a perduração do meio apto para realizar o delito que se criou
ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa', como ensaia, ou parece
ensaiar, a 1ª Instância, com o aplauso da Relação recorrida, ao afirmar a
existência da continuação criminosa com base na contemporaneidade e continuidade
da prática dos dois crimes sub juditio, 'com as facilidades daí decorrentes'
para o arguido, face ao sucesso obtido na primeira acção, o que implicaria a
diminuição da sua culpa.
Efectivamente, a matéria de facto apurada não permite afirmar que foi a
perduração do meio apto, ou as facilidades encontradas, que levou ao cometimento
de novos crimes, assim diminuindo a culpa do agente.
Bem pelo contrário no que toca à culpa do arguido que, face a uma diversa
actuação, esta com o perfil fáctico comprovado, se apresenta, in casu,
superiormente aumentada.
Ademais, nestas circunstâncias, e sempre, só seria configurável a existência de
crime continuado, se a prática do coito oral tivesse sido determinada por uma
situação que fosse exterior ao arguido, facilitando-lhe a execução do crime e
diminuindo-lhe consideravelmente a culpa.
Por outras palavras: dos factos provados não resulta que esta reiteração
criminosa tenha sido fruto mais de uma falada situação exterior (circunstâncias
exógenas) do que de motivos endógenos inerentes à personalidade do arguido.
Resulta, ao invés, ter sido o próprio arguido a criar e a dominar o
condicionalismo favorável à concretização do seu propósito criminoso quanto ao
cometimento dos crimes em questão, não tendo surgido, assim, por acaso, tais
circunstâncias exógenas ou exteriores em ordem à facilitação do seu objectivo em
vista, de modo a conduzirem-no para a reiteração das descritas condutas, antes
estas apresentaram-se conscientemente procuradas por ele próprio para
concretizar a sua intenção - o que, obviamente, exclui uma persistente
solicitação exterior que o tenha arrastado para o crime, e traduz uma inequívoca
persistência delituosa com manifesta intensidade dolosa.
O processo executivo, em qualquer dos dois meios agora previstos, pressupõe
motivação não coincidente e decisões autónomas, implicando para o ofendido uma
diferente intromissão e compressão da sua liberdade e autodeterminação sexual,
bem como da sua intimidade sexual.
Concluindo: sendo a matéria de facto omissa de qualquer circunstancialismo
externo que se possa considerar como redutor da culpa, dentro dos parâmetros
expostos, inexiste lugar, in casu, para o crime continuado, excluída, ainda, e
sem margem para quaisquer dúvidas, a ideia‑chave de nos encontrarmos perante uma
única resolução criminosa, mais concretamente, numa linha psicológica
continuada, enquanto inexistente que se afirma o denominado 'dolo global', isto
é, a intenção que abarca o
resultado total do facto nas suas linhas essenciais.
E daí que o arguido, quanto aos factos ocorridos em 5 de Outubro de 2000, seja
autor de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível no artigo
172°, n° 1 (actos de masturbação), em concurso real com um crime de abuso sexual
de crianças, previsto e punível pelo artigo 172°, n° 2 (coito oral), do CP.
Nesta área, da qualificação jurídico-criminal, desde já, se revogando o acórdão
recorrido.
O recorrente refere uma dada interpretação do artigo 30º, nº 1, do Código Penal.
No entanto, notificado para explicitar a interpretação que considera
inconstitucional, o recorrente limitou‑se a descrever a circunstância específica
do caso concreto, reportando‑se, desse modo, à própria decisão.
Ora, o recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, só pode ter por objecto normas jurídicas, ou seja, critérios de
decisão de casos concretos dotados de generalidade e de abstracção. O recorrente
apenas impugna a decisão. Não identifica um qualquer critério normativo.
É particularmente elucidativa do que se deixa dito a parte da resposta ao
Despacho proferido ao abrigo do artigo 75º‑A da Lei do Tribunal Constitucional,
na qual o recorrente, procurando identificar a dimensão normativa que pretende
impugnar, refere “a norma contida no artigo 30º, nº 1, do Código Penal, (…) na
medida em que – considerando a factualidade dada como provada revela que o
arguido agiu motivado por uma única resolução, surgindo as condutas imputadas ao
agente na sequência de uma mesma decisão, dadas os estreitíssimos desperdício
temporal e interligação de tais condutas”.
Trata‑se, manifestamente, de uma referência à decisão do caso.
É verdade que o recorrente ainda refere aquilo que considera um efeito da
decisão: afirma o recorrente que, quando estão em causa os tipos legais em
apreço, será automática e sistematicamente afastada a sua qualificação como
crime continuado.
No entanto, o tribunal recorrido jamais assumiu essa alegada autenticidade no
afastamento da figura do crime continuado nem os autos indiciam que tal
perspectiva fundamentou a decisão recorrida. Com efeito, na perspectiva do
Supremo Tribunal de Justiça, não existe crime continuado no caso em face de uma
interpretação das circunstâncias concretas dos autos e da não subsunção dessas
circunstâncias no nº 2 do artigo 30º do Código Penal. Não foi, pois, aplicada
uma qualquer regra de automaticidade no afastamento da figura do crime
continuado quando está em causa determinado tipo incriminador pela decisão
recorrida.
Não se verificam, portanto, os pressupostos processuais do recurso interposto.
Nessa medida, não se tomará conhecimento do objecto do presente recurso.
3. Em face do exposto, decide‑se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso.
O reclamante vem agora reclamar nos seguintes termos:
A.,
Recorrente nos autos de recurso em epígrafe, notificado do douto despacho do
Juiz Relator que decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso, vem, ao
abrigo do disposto no artigo 78°-A, n° 3, da LTC, reclamar para a conferência,
com os seguintes fundamentos:
A decisão de que aqui se reclama fundamenta-se na circunstância de,
alegadamente, não se verificarem os pressupostos processuais do recurso
interposto, por o recorrente se limitar a impugnar a decisão do STJ e não
identificar o critério normativo violado.
Com toda a consideração, que é muita, pensamos que tal critério normativo foi
invocado (porventura sem o recurso às palavras mais adequadas), até porque, ao
contrário do que é referido no despacho em apreço, no acórdão do STJ recorrido,
o crime continuado não é afastado apenas em função das circunstâncias concretas
dos autos, mas por razões abstractas e gerais resultantes da sua subsunção ao n°
2 do artigo 30° do Cód. Penal relacionado com os tipos legais de crime previstos
nos nºs 1 e 2 do art. 172° do mesmo diploma.
Na motivação do recurso interposto para o STJ, o recorrente alegou que as
circunstâncias em que se teriam verificado as condutas que lhe vêm imputadas,
dada a sua dependência temporal e interligação, não revelam resoluções autónomas
ou diferentes, antes evidenciando terem sido levadas a cabo na sequência de uma
mesma e única resolução.
Mais alegou que, estando em causa, em ambos os referidos ilícitos, a protecção
dos mesmos bens jurídicos, no quadro de uma única resolução, a conduta
integradora do tipo previsto no n° 1 do art. 172° não tem autonomia criminal
relativamente ao comportamento previsto no n° 2 daquele normativo legal.
Dos factos dados como provados resulta que o arguido adoptou um comportamento
composto de acções sequenciais e interligadas pela prossecução de um único
objectivo - a satisfação do instinto sexual do agente à custa de terceiros -
verificando-se uma única resolução criminosa a dominar toda a actuação, não
ocorrendo a violação de bens jurídicos distintos. Assim, os factos susceptíveis
de preencher o tipo do n° 1 do art. 172° não têm autonomia criminal
relativamente ao do n° 2 da mesma norma, pelo que não existe continuação
criminosa mas antes, o preenchimento de um único tipo legal de crime.
O douto acórdão recorrido, não só não perfilhou a interpretação do recorrente,
como entendeu que, relativamente aos factos situados em 05.10.2000, não ocorreu
um crime continuado, mas o preenchimento dos dois tipos legais de crime
previstos nos n° 1 e 2 do citado art. 172°.
Isto, não obstante referir que a Doutrina indica algumas das situações
exteriores que, diminuindo consideravelmente a culpa do agente, poderão estar na
base de uma continuação criminosa, como seja, ali se cita, 'a circunstância de o
agente, depois de executar a resolução criminosa, verificar que se lhe oferece a
possibilidade de alargar o seu âmbito', dando como exemplo o ladrão que furta a
jóia pretendida e o dinheiro que se encontrava perto dela.
Ora os factos dados como provados, transmitem-nos uma situação que não deixa de
cair neste enquadramento. No entanto, é excluída a continuação criminosa por se
entender que o condicionalismo favorável à concretização do propósito do agente
se apresenta conscientemente procurado por ele próprio, e que o processo
executivo pressupõe motivação não coincidente e decisões autónomas.
Quer isto dizer, que o acórdão posto em crise parte de um princípio, abstracto e
geral, de que, em crimes de foro sexual praticados com menores, todas as
condicionantes são determinadas pelo agente, em função da sua determinação
criminosa, e que a cada acto, ainda que preliminar e antecedente do outro,
corresponde uma autónoma decisão do agente.
Este entendimento, parte dos factos dados como provados mas não se reduz a eles,
devido ao seu apontado carácter geral e abstracto. E deste entendimento resulta
que estejam em causa os tipos legais em apreço, será automática e
sistematicamente afastada a sua qualificação como crime continuado.
E, embora o citado entendimento não seja explicitado enquanto tal pelo acórdão
recorrido, como se refere no douto despacho em apreço, a verdade é que o mesmo
não resulta do art. 30°, n° 1, do Cód. Penal, quando relacionado com os ilícitos
tipificados do artigo 172° do mesmo diploma.
Pretende-se atacar com o recurso que não foi admitido, não singelamente o
acórdão em concreto, mas o critério geral e abstracto que o determinou, que
viola manifestamente a norma contida no art. 29° da CRP.
Entende, por isso, o recorrente que se verificam in casu os pressupostos
estabelecidos na alínea b) do n° 1 do art. 70° da LTC, pelo que o recurso
interposto deveria ter sido admitido e apreciado.
O Ministério Público pronunciou‑se do seguinte modo:
1 - A presente reclamação é manifestamente infundada.
2 - Na verdade - e como é óbvio - não se mostra suscitada, em termos adequados,
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando‑se o
arguido/recorrente a questionar a valoração da matéria de facto e o
enquadramento jurídico que, na ordem dos Tribunais Judiciais, lhe foi dado.
3 - Não cabendo manifestamente no âmbito de um recurso de fiscalização concreta
a verificação casuística dos pressupostos da figura do crime continuado, a
existência ou inexistência de uma ou várias resoluções criminosas, bem como da
pretensa violação do 'princípio da legalidade' em tal subsunção do caso concreto
às normas penais incriminadoras.
Cumpre apreciar.
2. O reclamante, procurando demonstrar que suscitou durante o processo uma
questão de constitucionalidade normativa, refere, mais uma vez, que as
circunstâncias em que se verificaram as condutas em causa evidenciam que houve
apenas uma única resolução criminosa, e que dos factos dados como provados
resulta que a conduta do arguido se enquadra no nº 1 do artigo 172º do Código
Penal.
O reclamante reitera as referências aos “factos dados como provados” para tecer
considerações sobre o crime continuado, referindo que considera inconstitucional
o entendimento segundo o qual sempre que estão em causa os crimes dos nºs 1 e 2
do artigo 172º do Código Penal “será automaticamente e sistematicamente afastada
a sua qualificação como crime continuado”.
Ora, como se referiu e demonstrou na Decisão Sumária, o reclamante apenas
impugnou a decisão referida nos autos, nunca uma norma jurídica que tenha sido
aplicada.
Quanto à alegada automaticidade do afastamento do crime continuado, quando estão
em causa os nºs 1 e 2 do artigo 172º do Código Penal, como se referiu na Decisão
Sumária, tal entendimento jamais foi assumido nos autos.
É pois manifesta a improcedência da presente reclamação, remetendo‑se para o que
se disse na Decisão Sumária reclamada.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 9 de Novembro de 2005
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos