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Processo n.º 639/03
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do
art.º 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da
decisão proferida pelo relator, no Tribunal Constitucional, de não conhecimento
do recurso para aqui interposto do despacho prolatado, também, pelo relator, mas
agora no Tribunal da Relação de Guimarães, no recurso para aí interposto da
sentença proferida, com intervenção do juiz singular, pelo 3º Juízo do Tribunal
Judicial da comarca de Braga, despacho da Relação esse que decidiu indeferir o
pedido feito pelo próprio arguido no sentido de que lhe fosse notificado
pessoalmente o acórdão proferido pelo mesmo Tribunal da Relação, em 05/05/2003.
2 – O reclamante contesta a decisão reclamada com base na seguinte
fundamentação:
«A doutíssima decisão aqui reclamada não toma conhecimento do recurso interposto
com o fundamento de que o recorrente não reclamou para a conferência dos juízes
do Tribunal da Relação do despacho de que aqui pretende recorrer, como
estipulado no art. 700º, n.º 3, do Código de Processo Civil, logo não cumpriu os
pressupostos de esgotamento das instâncias judiciais ordinárias, conditio sine
qua non para a apreciação do presente recurso nesta instância superior, em sede
de fiscalização concreta de constitucionalidade, por imperativo do n.º 2 do art.
70º da supra citada LTC.
Ora, salvo o devido respeito, enferma a douta decisão reclamada de erro básico
que a decapita, qual seja o de que pretende sustentar-se em dispositivos
processuais civis - o art. 700º, n.º 3 - quando se está recorrendo de decisão
das secções criminal do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, isto é em
sede penal cujo lei adjectiva tem regras próprias e bem distintas em matéria de
recursos.
Em verdade, o Livro IX do Código de Processo Penal contém normas reguladoras dos
recursos substancialmente diversas das que emanam do Capítulo VI do Título II do
Livro III do Código de Processo Civil
Este simples facto afastaria, de per se, a integração de lacunas prevista no
art. 4º C.P.P., na modesta opinião do recorrente.
Acresce que, em sede de exame preliminar, prevista com rigor e pormenor no art.
417º do mesmo C.P.P., deve o juiz relator fixar se o recurso é decidido em
conferência ou não, sendo esta obrigatória no caso de rejeição de recurso, como
está plasmado na alínea a) do n.º 4 do art. 419º da lei adjectiva penal.
Norma alguma é ali fixada quanto à decisão do juiz relator, ao contrário do que
está previsto em sede de processo civil.
Mas sempre se terá que verificar que aquilo de que é trazido a este tribunal
superior não é um recurso sobre a decisão tomada em sede criminal mas tão só um
recurso sobre um despacho de mero expediente sobre reclamação de não notificação
pessoal ao arguido do acórdão confirmante da condenação, numa errada
interpretação do art. 425º, n.º 6, do C.P.P.
Sendo este um despacho de mero expediente não tem tutela recursiva ordinária ex
vi o dispositivo do art. 400º, n.º 1, alínea a), C.P.P.
Fica claro, pois, que a decisão geradora de interpretação legislativa
inconstitucional, aquela que decide que não há que notificar pessoalmente o
arguido do acórdão que confirma a sua condenação, não é, sequer sobre um
recurso, não é passível de sujeição à conferência da secção criminal do Tribunal
da Relação, nem de qualquer recurso ordinário.
Pelo que não está sujeita ao regime do art. 70º, n.º 2, da LTJ, podendo e
devendo ser apreciada neste Tribunal Constitucional, como requerido ab initio e
ora se reitera.».
3 – O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional respondeu
nos seguintes termos:
«1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 - Desde logo, mostra-se inquinada a tese do reclamante por um erro elementar,
que consiste em supor que, em processo constitucional, se aplicam as regras do
processo penal - e não, como manda o artigo 69º da LTC, as disposições do
processo civil, naquilo que não estiver especificamente regulado.
3 - É, por outro lado, dificilmente inteligível a tese segundo a qual a decisão
que, na óptica do recorrente, teria afrontado o seu direito de defesa seria
insusceptível de reclamação para a conferência, assumindo antes a natureza de
'despacho de mero expediente' - portanto absolutamente insusceptível de afectar
os direitos das partes ou sujeitos processuais!
4 - E sendo evidente que tal incongruência da argumentação do reclamante não
impede que este Tribunal valore, em termos correctos e adequados, se se
esgotaram ou não os meios impugnatórios 'ordinários' existentes.».
4 – A decisão reclamada é do seguinte teor:
«1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional do despacho proferido pelo
relator no Tribunal da Relação de Guimarães, de 02/06/2003, que decidiu
indeferir o pedido feito pelo próprio arguido no sentido de que lhe fosse
notificado pessoalmente o acórdão proferido pelo mesmo Tribunal da Relação, em
05/05/2003, no recurso por ele interposto da sentença proferida, com intervenção
do juiz singular, pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Braga,
acórdão esse que decidiu manter a sua condenação no pagamento à assistente da
indemnização da quantia de 200 000$00 e alterar a condenação antes imposta, pela
prática do crime de injúrias, p. e p. pelo art. 181º, n.º 1, do Código Penal, da
pena de 150 dias de multa à taxa diária de 2 000$00 para a pena de 80 dias de
multa à taxa diária de cinco euros.
2 – O despacho recorrido abonou-se na consideração de que a lei processual não
impõe a notificação pessoal ao arguido do acórdão da Relação, ao contrário do
que se prevê relativamente às sentenças, bastando-se com a notificação do seu
defensor (art.ºs 421º, n.º 2, 425º, 63º, n.º 1, e 113º, n.º 7, do Código de
Processo Penal), e de que o arguido esteve representado na audiência de
julgamento feita na Relação por defensor.
3 – Deste despacho o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional nos
termos seguintes:
«[...]
tendo sido notificado da decisão que considera não existir obrigatoriedade de
notificação ao arguido do acórdão proferido no recurso interposto, por não
concordar com a mesma e não se conformar, encontrando-se esgotadas as demais
instâncias, vem interpor recurso para o Tribunal nos termo da alínea b) do n.º 1
do art.º 70º, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção última que lhe
foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, por considerar violado o art.
32º, n.º 1 e n.º 7, da Constituição da República Portuguesa, na interpretação
que é feita do n.º 6 do art.º 425º, do CPP, no sentido da não obrigatoriedade de
notificação ao arguido do acórdão proferido no recurso por ele interposto, tendo
sido tal inconstitucionalidade suscitada no requerimento em que solicitava a
aludida notificação».
4 – Constata-se do relatado estar-se perante uma situação que se enquadra na
hipótese delineada no n.º 1 do art.º 78º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na sua actual versão (LTC), razão pela qual se passa imediatamente a decidir.
5 - Resulta dos autos que o arguido recorre directamente para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no art.º 70º, n.º 1, alínea b), da LTC, do
despacho proferido pelo relator no Tribunal da Relação de Guimarães que lhe
indeferiu o seu pedido de notificação pessoal do acórdão proferido por esse
tribunal de 2ª instância.
Ora, de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 70º da LTC, os recursos
previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do mesmo artigo, categoria aquela em que
cabe o presente, “apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário,
por a lei o não prever ou por já terem sido esgotados todos os que no caso
cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência”.
E no n.º 3, seguinte, diz-se que “são equiparadas a recursos ordinários as
reclamações para os presidentes dos tribunais superiores, nos casos de não
admissão ou de retenção do recurso, bem como as reclamações dos despachos dos
juizes relatores para a conferência” (itálico acrescentado para marcar a
intencionalidade).
A solução decorrente destes preceitos encontra a sua razão de ser no facto de a
nossa Constituição ter adoptado um sistema difuso e instrumental de controlo da
constitucionalidade das leis, ao impor aos tribunais o dever de “não aplicarem
normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela
consignados” (art.º 204º da CRP), donde resulta que, quando exista uma
hierarquia de tribunais com possibilidade de recurso dentro dela, apenas possam
ser sindicadas pelo Tribunal Constitucional, como órgão jurisdicional de
fiscalização concentrada de constitucionalidade, as decisões jurisdicionais que
constituam a palavra definitiva dessas ordens desses tribunais nos casos em que
estes se tenham pronunciado pela conformidade da norma questionada com a
Constituição e os princípios nela consignados [cfr. Cardoso da Costa - A
jurisdição constitucional em Portugal - in Estudos em homenagem ao Professor
Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, I, 1984, pp. 210 e ss.].
O despacho pretendido recorrer constitui um incidente surgido no recurso
interposto pelo arguido para o Tribunal da Relação de Guimarães da sentença
condenatória prolatada pelo tribunal de 1ª instância, tendo sido proferido pelo
relator ao abrigo do disposto 700º, n.º 1, alínea f), do Código de processo
Civil, sendo certo caber dele reclamação para a conferência, de acordo com o
disposto no n.º 3º do mesmo artigo.
Ora, o recorrente não reclamou para a conferência dos juizes do Tribunal da
Relação do despacho agora pretendido recorrer.
Sendo assim, constata-se não se encontrar satisfeito aquele requisito ou
pressuposto específico do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade.
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar
conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 6 UC.».
Cumpre apreciar e decidir.
B – Fundamentação
5 – Argumenta o reclamante que a figura da reclamação para a conferência de
despacho do relator em que se baseia a decisão reclamada, de não conhecimento do
recurso, não tem lugar no processo penal, porquanto o Livro IX do Código de
Processo Penal contém normas reguladoras dos recursos substancialmente diversas
das que emanam do Capítulo VI do Título II do Livro III do Código de Processo
Civil.
Mas o reclamante não em razão. Na verdade, a circunstância de o livro IX do
Código de Processo Penal conter, no que se refere à regulação do recurso em
processo penal, algumas normas “substancialmente diversas” das que constam do
Capítulo VI do Título II do Livro III do Código de Processo Civil não implica
que o Código de Processo Penal pretenda regular toda a matéria dos recursos
penais.
As normas “substancialmente diversas”, a que o reclamante se refere, regulam
domínios do processo penal onde a solução legislativa não podia deixar de ser
enformada pela específica natureza da matéria em causa no processo penal e no
recurso ou seja, a definição da relação jurídico-criminal.
Ora, a previsão do instrumento processual de reclamação do despacho do relator
para a conferência, em nada é arredada pela especificidade da matéria a que
respeitam os recursos penais.
Pelo contrário, tendo a reapreciação do despacho do relator por parte da
conferência a natureza de um reexame do seu mérito que é levado a cabo por um
outro órgão jurisdicional (aqui colectivo, em vez daquele singular), o meio
processual aqui em causa acaba por equivaler-se a um modo de concretização do
princípio constitucional da exigência de um duplo grau de jurisdição em matéria
penal que este Tribunal Constitucional vem uniformemente reconhecendo.
Assim sendo, não pode deixar de concluir-se ser caso de aplicação do regime
subsidiário de processo civil, de acordo com o disposto no art.º 4º do Código de
Processo Penal, como foi pressuposto pela decisão reclamada.
Mas independentemente da bondade de uma tal argumentação, sempre esse regime se
impõe, no caso de recursos de constitucionalidade, por força do disposto no
art.º 69º da LTC, que determina que à tramitação dos recursos para o Tribunal
Constitucional são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo
Civil”.
Por outro lado, não se tratando de situação processual coberta pela hipótese
recortada no art.º 417º do CPP, em que o objecto do recurso é uma decisão de
outros tribunais, enquanto aqui se está perante uma decisão de um órgão singular
do próprio tribunal de recurso (o relator), não faz o mínimo sentido, ao
contrário do que sustenta o reclamante, convocar como elemento de interpretação
o paralelismo com o regime de exame preliminar previsto nesse preceito apenas
para aquelas decisões.
Confrontado com o despacho proferido pelo relator no Tribunal da
Relação de Guimarães, de 02/06/2003, que decidiu indeferir o pedido feito pelo
próprio arguido no sentido de que lhe fosse notificado pessoalmente o acórdão
proferido pelo mesmo Tribunal da Relação, em 05/05/2003, no recurso por ele
interposto da sentença proferida, com intervenção do juiz singular, pelo 3º
Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Braga, incumbiria, sempre, pois, ao
recorrente reclamar para a conferência.
De resto, a igual conclusão de não conhecimento do recurso se
chegaria aceitando a linha discursiva do recorrente de ver o despacho recorrido
como sendo um despacho de mero expediente, se bem que aqui com base na falta de
um outro pressuposto do recurso – a falta de impugnação constitucional da norma
que estabelece a irrecorribilidade dos despachos de mero expediente.
Na verdade, a lei (art.º 679º do CPC) estabelece a irrecorribilidade
dos despachos de mero expediente.
Trata-se de uma solução legislativa que encontra a sua razão de ser na própria
natureza do acto em causa.
Limitando-se “o acto de expediente (...) a prover ao regular andamento do
processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes” (n.º 4 do
art.º 156º do Código de Processo Civil), nunca ao mesmo se poderia apodar o
efeito de afrontar interesses de um recorrente e, entre eles, o do seu direito
de defesa em processo penal.
Como quer que seja, sempre haveria ele, dentro de uma tal lógica interpretativa,
de erigir a objecto do recurso constitucional a norma que estabelece a
irrecorribilidade dos despachos de mero expediente, o que não fez.
Assim sendo, a reclamação não merece atendimento.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir
a reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 Ucs.
Lisboa, 27 de Abril de 2005
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos