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Processo n.º 642/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. No Tribunal Central de Instrução Criminal, foi decretada a prisão
preventiva de A., ora recorrente, indiciado pela prática de um crime de
associação criminosa e de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e
punido nos termos das disposições conjugadas do artigo 299º do Código Penal, do
artigo 23º, n.º 1, n.º 2, alíneas a), b) e c), n.º 3, alíneas a), e) e f), e n.º
4, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 25 de Janeiro, e dos artigos 89º, 103º, n.º 1,
alíneas a), b) e c), 104º, n.º 1, alíneas d) e e), e n.º 2, da Lei n.º 15/2001,
de 5 de Junho (despacho de 23 de Dezembro de 2004, conforme certidão a fls. 66 e
seguintes dos presentes autos).
Tendo em vista preparar o recurso do despacho que decretou a prisão
preventiva, o arguido requereu cópias das seguintes peças processuais: auto do
seu interrogatório perante o Juiz de Instrução; despacho que decretou a sua
prisão preventiva, meios de prova (ou súmula dos mesmos que permita apreender o
seu sentido e a apresentação da defesa respectiva) em que se funda o despacho
que determinou a sua prisão preventiva (requerimento que consta de fls. 71).
O Procurador da República, no Departamento Central de Investigação e
Acção Penal, pronunciou-se nos seguintes termos (fls. 73):
“[...]
Nos termos do artº 89º nº 2 do CPP, não tendo ainda sido deduzida acusação, como
é o caso, o arguido só pode ter acesso a essas peças através de fotocópias que
ficam avulsas na secretaria.
Assim, defere-se ao requerido determinando-se que fiquem avulsas na secretaria
fotocópias de fls. 1867 a 1870, na parte que se refere ao despacho que
determinou a detenção do arguido, 2339 a 2343 e 2346 a 2352.
[...].”.
A., considerando que “tais elementos são manifestamente
insuficientes para preparar a defesa e o recurso”, apresentou novo requerimento
(fls. 75 e seguinte), do seguinte teor:
“[...]
a) Foi requerida a V. Ex.a que – em ordem a preparar a sua defesa e o recurso do
despacho que decretou a prisão preventiva – lhe fossem facultadas cópias do seu
auto de interrogatório, do despacho que decretou a prisão e dos meios de prova
[em] que se funda tal despacho;
b) O Senhor Procurador da República deferiu apenas que lhe fosse permitido o
acesso ao auto de interrogatório, ao despacho que ordenou a detenção, à promoção
do Ministério Público após aquele interrogatório e ao despacho que decretou a
prisão preventiva, através de fotocópias que ficaram avulsas na secretaria e que
já foram consultadas pelo signatário;
c) Tais elementos são manifestamente insuficientes para preparar a defesa e o
recurso, faltando designadamente – e tendo por referência o auto de
interrogatório e o despacho que decretou a prisão preventiva – o acesso às
declarações prestadas por [...], [...] e [...], bem como dos técnicos de contas
não identificados referidos no despacho que decretou a prisão preventiva;
falta-lhe ainda o acesso ao relatório intercalar 5 que lhe foi parcialmente
exibido durante o interrogatório, bem como as listagens de fls. 1160 a 1162 e
ainda os comprovativos dos depósitos dos alegados lucros na conta do B., para
além dos comprovativos das alegadas vendas fictícias;
d) Deve ser deferido o acesso do arguido a todos esses elementos, nos termos já
consagrados por jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem, assim se fazendo a adequada leitura do art. 141º n.º 4 do
CPP, em consonância com o disposto no art. 28º nº 1 e 32º n.º 1 da CRP;
e) Por outro lado, deve ser facultado ao arguido cópia do despacho que decretou
a prisão preventiva, bem como o seu antecedente interrogatório e promoção do
Ministério Público, já que tais elementos não se podem considerar compreendidos
no âmbito do art. 89º nº 2 do CPP;
f) Assim sendo, requer-se que – com a maior urgência uma vez que está a decorrer
o prazo para o recurso – seja deferido o acesso do arguido aos elementos acima
referidos na alínea c) e que lhe seja facultada cópia das peças supra referidas
na alínea e);
g) Acresce que não é ao Senhor Procurador da República que cabe deferir ou
indeferir o que ora se requer, uma vez que está em causa a obtenção de elementos
necessários à preparação do recurso – e da defesa em geral – de um despacho de
V. Ex.a, pelo que deve ser o juiz de instrução a decidir acerca desta matéria.
[...].”.
O Juiz de Instrução indeferiu o requerido, nos seguintes termos
(fls. 78 e 78 v.º):
“[...]
Ao contrário do entendimento […] exposto pelo arguido A., entendo que os
elementos a que se refere nas alíneas c) e d) têm necessariamente de se
considerar compreendidos no elenco dos que não lhe podem ser facultados, segundo
a interpretação que fazemos do n.º 2 do artigo 89º do CPP.
[...].”.
2. A. interpôs recurso deste despacho, tendo na motivação respectiva
apresentado, para o que agora releva, as seguintes conclusões (fls. 1 e
seguintes destes autos):
“[...]
D) O arguido tem direito a conhecer os elementos de prova (ou uma súmula
relevante dos mesmos) em que se funda o despacho que decreta a sua prisão
preventiva, os quais devem ser facultados (mesmo que apenas para consulta) ao
seu mandatário, a fim de que este possa preparar a sua defesa e interpor os
recursos competentes.
E) Por outro lado, não pode ser posto em causa o direito a que lhe seja
facultada cópia do despacho que decreta essa prisão preventiva, bem como do seu
auto de interrogatório, sendo intolerável que esses elementos só lhe possam ser
facultados para consulta.
F) É o que decorre da aplicação directa do art. 28º n.º 1 da CRP – o arguido tem
o direito de conhecer as razões concretas em que se funda a sua prisão
preventiva –, bem como do art. 32º nº 1 da CRP – o processo assegura todas as
garantias de defesa, incluindo o recurso.
É ainda o que decorre de uma adequada leitura do art. 89º n.º 2 do C.P.P.,
devidamente conjugado com os arts. 61º n.º 1-f) e h) e 141º nº 4 do C.P.P..
G) Como é manifesto, no caso dos autos, os elementos a que se reporta a alínea
c) do requerimento supra referido no nº 4 são indispensáveis para que o arguido
conheça e possa contraditar os elementos de prova em que se funda a sua prisão
preventiva.
H) Assim sendo, o despacho recorrido fez uma errónea aplicação do art. 89º n.º 2
do C.P.P., devidamente conjugado com os arts. 61º n.º 1-f) e h) e 141º n.º 4 do
C.P.P., lidos à luz das garantias consagradas no art. 28º n.º 1 e 32º n.º 1 da
CRP.
I) A interpretação do art. 89º n.º 2 do C.P.P., devidamente conjugado com os
arts. 61º n.º 1-f) e h) e 141º n.º 4 do C.P.P., no sentido de que, sob a
invocação genérica do regime de segredo de justiça previsto naquele art. 89º n.º
2 do C.P.P., pode ser negado ao arguido preso preventivamente – para o efeito de
este apresentar a sua defesa e preparar o recurso dessa prisão – o acesso a
consultar os elementos de prova (ou súmula dos mesmos) em que concretamente se
funda tal prisão preventiva, é inconstitucional por violação do art. 28º n.º 1 e
32º n.º 1 da CRP.
[...].”.
O Ministério Público, no Departamento Central de Investigação e
Acção Penal, apresentou a resposta de fls. 37 e seguintes, em que concluiu:
“[...]
1) O despacho sob censura não violou os preceitos legais invocados pelo
recorrente, dos quais fez justa, adequada e criteriosa aplicação;
2) Dos autos resultam fortes indícios de que o arguido foi autor de factos
susceptíveis de integrarem a prática dos crimes de associação criminosa e de
fraude fiscal qualificada.
3) Esses indícios estão suportados em prova documental, testemunhal e nos
relatórios elaborados pela Administração fiscal que reconstituem os vários
esquemas da fraude carrossel detectada, com o apoio de documentação e
informações enviadas pelas autoridades estrangeiras, no âmbito de Cartas
Rogatórias expedidas, umas já cumpridas e outras em cumprimento;
4) No interrogatório a que foi submetido o recorrente foi confrontado com os
factos que lhe são imputados, tendo-lhe sido dados a conhecer os elementos de
prova (inquirições e relatórios), na parte que se lhe referiam, indiciadores da
sua responsabilidade na prática dos factos em investigação, assim se dando
cumprimento ao comando do n.º 4 do art. 141° do CPP, com a apresentação, em
súmula, dos elementos de prova contra si recolhidos.
5) Não é possível facultar ao arguido o acesso a essas peças processuais por as
mesmas dizerem também respeito a variados indivíduos e empresas também
intervenientes na fraude, cuja disponibilização ao arguido, nesta fase,
comprometeria irremediavelmente a investigação;
6) Não foi negado ao recorrente o direito a consultar as peças processuais
mencionadas no art. 89° n. 2 do CPP, as quais estiveram à sua disposição, para
esse efeito, na secretaria;
7) «A limitação que a lei estabelece quanto ao local do exame – a secretaria e
não o escritório do advogado – não cerceia a defesa, dada a possibilidade de
consulta do processo e de utilização de cópias das peças que interessam à
defesa. Tal limitação apenas releva no aspecto da menor comodidade que nalguns
casos representa para o advogado a impossibilidade de consultar o processo no
escritório, o que não se traduz numa redução do direito de defesa do arguido».
8) A não entrega ao arguido dessas cópias não o impediu de recorrer do despacho
que manteve a prisão preventiva;
9) O art. 89° n.º 2 do CPP é claro no sentido de apenas permitir o acesso
através de consulta na secretaria;
10) Tal interpretação não viola, nem o princípio do contraditório, nem os
direitos de defesa do arguido;
11) «Na fase processual de inquérito impera a regra do segredo de justiça – art.
86º n.º 1 do C. P. Penal, atentos os valores por este protegidos, mormente o
interesse público na boa administração da justiça e no êxito da investigação
criminal;
12) A abertura do acesso irrestrito aos autos na fase de inquérito poderá vir a
ser fatal para a própria investigação, face a todos os malefícios susceptíveis
de virem a acontecer aos indícios probatórios ainda não completamente adquiridos
e garantidos nos autos»;
13) O despacho recorrido não violou qualquer preceito legal, designadamente os
arts. 89° n.º 2, 61° n.º 1 f) e h) e 141° n.º 4, todos do CPP e 28° n.º 1 e 32°
n.º 1 da CRP.
14) Assim, ao invés do que defende o recorrente, o despacho recorrido não violou
qualquer norma legal, pelo que não merece qualquer censura, devendo, pois, ser
mantido.
[...].”.
No Tribunal da Relação de Lisboa, o Ministério Público concluiu
também no sentido do não provimento do recurso, pelas razões invocadas na
resposta apresentada no Departamento Central de Investigação e Acção Penal.
3. Tendo sido entretanto interposto recurso pelo arguido do despacho que
decretou a prisão preventiva, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu negar
provimento a tal recurso e manter a decisão recorrida (acórdão de fls. 97 a 108
destes autos).
4. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu então um primeiro acórdão em
que decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto pelo arguido do
despacho que não lhe facultou, nos termos pretendidos, o acesso aos elementos do
processo.
Na sequência de invocação pelo arguido da nulidade desse primeiro
acórdão, veio a ser tirado novo acórdão, em que a Relação negou provimento a tal
recurso (acórdão de 23 de Junho de 2005, a fls. 120 e seguintes).
Neste segundo acórdão, o Tribunal da Relação de Lisboa começou por
enunciar assim as questões a resolver:
“[...]
Consequentemente, cumpre agora apreciar se a) devia ter sido entregue ao
recorrente cópia do despacho que impôs a medida de coacção de prisão preventiva;
b) acesso a determinados elementos de prova, ou súmula relevante dos mesmos.
[...].”.
Quanto à primeira questão, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa:
“[...]
A primeira conclusão é a de que tendo o Il. Mandatário tido acesso aos elementos
constantes do despacho que determinou a aplicação ao arguido da medida de
coacção de prisão preventiva, conforme expressamente admite, o arguido teve
acesso, através do seu Advogado aos elementos indiciários por nós supra
enunciados, com os detalhes pormenorizados que nos impedimos de transcrever
neste acórdão para evitar a violação do direito ao bom nome dos demais
implicados e a violação do segredo de justiça em relação à matéria em
investigação. Assim sendo, o arguido não esteve impedido de se defender,
conforme pretende, muito menos de exercer o contraditório em sede de recurso, e
de avaliar e contraditar os indícios constantes dos autos.
Redundante seria admitir que apenas quando fosse notificado do despacho tomava
conhecimento da matéria de facto nele enunciada. Embora entendamos que pode/deve
ser facultada ao arguido recorrente cópia do despacho que ordenou a sua prisão
preventiva e dos fundamentos desse despacho, e que essa notificação não
pode/deve ser confundida com a possibilidade de consulta do mesmo despacho e
referidos fundamentos na secretaria sob pena de se violar o direito a um
processo justo e equitativo entendido este como, tanto quanto possível nesta
fase processual, «due and fair», entendemos igualmente que essa omissão ficou
sanada com a consulta do referido despacho pelo Il. Mandatário do arguido
recorrente.
Com efeito, o arguido havia sido notificado pessoalmente do despacho, bem como o
defensor oficioso presente no acto.
Não tendo sido facultada ao arguido a cópia do despacho e tendo, após, o Il.
Mandatário tido acesso, por consulta directa aos fundamentos do mesmo despacho,
entendemos não lhe assistir razão quando insiste que não está habilitado a
defender-se por não ter tido acesso aos fundamentos do mesmo despacho que
determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
Entendemos igualmente que ficou sanada qualquer violação que até aí tivesse
ocorrido do direito de defesa do arguido, designadamente, do seu direito a
exercer o contraditório quanto aos fundamentos do despacho de prisão preventiva.
Nessa medida, ainda que por fundamentos muito diversos dos expendidos no
despacho recorrido, entendemos que este não é de revogar.
[...].”.
Relativamente ao segundo problema enunciado, pronunciou-se assim o
Tribunal da Relação de Lisboa:
“[...]
Quanto à questão da súmula dos meios de prova e do acesso aos meios de prova,
entendemos igualmente que não assiste razão ao arguido e recorrente já que tendo
tido acesso ao despacho que aplicou ao arguido a medida de coacção de prisão
preventiva teve necessariamente acesso à súmula dos meios de prova que
fundamentam, nesta fase processual, os indícios contra ele reunidos.
Muito concretamente, no que à listagem de movimentos bancários efectuados na
conta de [...], no B., não pode o arguido ignorar, após consulta do referido
despacho na Secretaria, conforme o seu Mandatário expressamente admite, que a
mesma listagem indicia depósitos efectuados na conta da pessoa com que o arguido
refere estar casado, pelo que se entende que estando ainda o processo em
investigação essa listagem detalhada lhe não deve ser facultada.
O arguido sabe como foi essa listagem interpretada e, consequentemente, sabe
como deve impugná-la.
Assim, embora em abstracto, no domínio dos princípios que devem reger o processo
penal, assista parcialmente razão ao arguido recorrente, o certo é que uma vez
consultado pelo Il. Mandatário o auto de interrogatório do qual consta uma
súmula dos factos acerca dos quais o arguido foi interrogado, o conjunto das
respostas dadas pelo arguido, e as questões concretas que lhe foram colocadas em
relação à listagem de fls. 1161 e 1162, questões essas que permitem concluir
como é a mesma listagem interpretada pela entidade que dirige o inquérito,
sanada ficou a violação do direito de defesa do recorrente por omissão do dever
de notificação do despacho recorrido e fundamentação respectiva, e ultrapassada
ficou a questão sobre o acesso aos meios de prova (possível, diríamos nós) nesta
fase de inquérito (considerado que foi como constitucional).
Embora com fundamentos diversos dos dele constantes, o despacho recorrido é de
manter.
O recurso improcede, pois.
[...].”.
5. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, para apreciação das questões de
inconstitucionalidade que assim enunciou (requerimento de fls. 132 e seguintes):
“[...]
O acórdão recorrido interpreta o art. 89° n.º 2 do C.P.P., devidamente conjugado
com o art. 121º n.º 1 alínea b) do C.P.P., no sentido de que, muito embora possa
e deva ser facultada ao arguido cópia do despacho que ordenou a sua prisão
preventiva, bem como do seu próprio auto de interrogatório, sob pena de se
violar o direito a um processo justo e equitativo, deve ser considerada sanada
tal omissão se o arguido os pôde consultar através do seu mandatário.
[…]
Por outro lado, o acórdão recorrido interpreta o art. 89° n.º 2 do C.P.P.,
devidamente conjugado com os arts. 61° n.º 1 alíneas f) e h) e 141° n.º 4 do
C.P.P., no sentido de que pode ser negado ao arguido preso preventivamente –
para o efeito de este apresentar a sua defesa e apresentar o recurso dessa
prisão – o acesso a consultar os elementos de prova (ou súmula dos mesmos) em
que concretamente se funda tal prisão preventiva, se do auto do interrogatório
consta uma súmula dos factos acerca dos quais o arguido foi interrogado e se,
das questões concretas colocadas, é possível concluir qual é a interpretação do
Ministério Público acerca de um comportamento do arguido tido como relevante
(porventura até, o mais relevante) para o efeito da sua eventual incriminação,
caso em que se considera satisfeito o direito de defesa do arguido.
[...].”.
Segundo o entendimento do recorrente, tais interpretações normativas
seriam inconstitucionais por violação dos artigos 28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 138 v.º.
6. Nas alegações que produziu perante o Tribunal Constitucional (fls.
143 e seguintes), concluiu assim o recorrente:
“A - A primeira questão tem a ver com a implícita interpretação normativa do
acórdão recorrido – relativa ao art. 89º n.º 2 do C.P.P., devidamente conjugado
com o art. 121º n.º 1-b) do C.P.P. – no sentido de que, muito embora possa e
deva ser facultada ao arguido cópia do despacho que ordenou a sua prisão
preventiva, bem como do seu próprio auto de interrogatório, de forma a assegurar
um processo equitativo, se deve considerar sanada tal omissão se o arguido os
pode consultar através do seu mandatário.
B - A lógica do acórdão recorrido é a seguinte: se a consulta das peças em
apreço foi efectuada, não há razão prática que justifique a invocação de um
prejuízo pelo facto de as cópias não terem sido facultadas.
C - Mas não é assim. É do senso comum compreender que é diferente a recolha de
notas que uma consulta permite e a disponibilidade do texto integral do
documento sobre o qual se trabalha. E este acesso integral é uma mera
decorrência lógica do princípio segundo o qual deve ser dado ao arguido
conhecimento pleno do que lhe é imputado e justifica a sua prisão.
D - Tal interpretação normativa viola, assim, o art. 28º n.º 1 e o art. 32º n.º
1 da C.R.P. – bem como os arts. 5º n.º 2 e 6º n.ºs 1 e 3-a) e b) da C.E.D.H. –,
porque admite, sem justificação razoável, que não se faculte ao arguido cópia de
elementos fundamentais para o exercício da sua defesa, o que põe em causa o
núcleo essencial das garantias que aqueles preceitos legais visam acautelar.
E - A segunda questão tem a ver com a implícita interpretação normativa –
relativa ao art. 89º n.º 2 do C.P.P., devidamente conjugado com os arts. 61º n.º
1 alíneas f) e h) e 141º n.º 4 do C.P.P. – no sentido de que pode ser negado ao
arguido preso preventivamente – para o efeito de este exercer a sua defesa e
apresentar recurso dessa prisão – o acesso a consultar os elementos de prova (ou
súmula dos mesmos) em que concretamente se funda tal prisão preventiva, se do
auto do interrogatório consta uma súmula dos factos acerca dos quais o arguido
foi interrogado e se, das questões concretas colocadas, é possível concluir qual
é a interpretação do Ministério Público acerca dos comportamentos do arguido em
causa para o efeito da sua eventual incriminação, caso em que se considera
satisfeito o direito de defesa do arguido.
F - No fundo, o acórdão recorrido vem sustentar que, se o arguido – no decurso
do 1º interrogatório judicial – se pôde aperceber das questões concretas que lhe
são imputadas pelo M.P., já não lhe assiste o direito a consultar os concretos
elementos de prova em que se funda a indiciação que levou à sua prisão
preventiva, estando satisfeito o direito da defesa.
G - Mas não é assim. Para o exercício do direito de defesa, quando alguém está
preso preventivamente, não basta conhecer os factos concretos que lhe são
imputados, exigindo-se ainda o conhecimento dos concretos elementos de prova que
fundam tais imputações, em que assenta o juízo que levou à sua prisão
preventiva, de forma a poder refutá-los, completá-los ou esclarecê-los, segundo
o melhor critério que a defesa venha a definir.
H - Tal proposição devia ser pacífica na comunidade jurídica portuguesa,
sobretudo depois da jurisprudência do Tribunal Constitucional no caso «Casa Pia»
– cfr. acórdãos n.ºs 580/03 e 594/03.
I - O critério normativo em causa naqueles arestos do T.C. – nos segmentos
relevantes para o efeito – é precisamente o que ora está em discussão: a questão
do acesso pelo arguido aos concretos elementos de prova em que se funda a
indiciação que levou à sua prisão, na ausência da apreciação em concreto da
existência de inconveniente grave nessa comunicação.
J - Aquela interpretação normativa – que acaba por reduzir o direito da defesa
ao conhecimento dos factos imputados, suprimindo-lhe o direito ao conhecimento
dos elementos de prova de tais factos em que se funda a sua prisão – viola,
assim, o art. 28º n.º 1 e o art. 32º n.º 1 da C.R.P. – bem como os arts. 5º n.º
2 e 6º n.ºs 1 e 3-a) e b) da C.E.D.H. –, porque restringe, sem qualquer
justificação razoável, o acesso a elementos imprescindíveis para o exercício do
direito de defesa, o que põe em causa o núcleo essencial das garantias que
aqueles preceitos legais visam acautelar.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, declarando-se a
inconstitucionalidade dos preceitos legais em causa, quando interpretados nos
sentidos implícitos assinalados.”.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional contra-alegou (fls. 158 e seguintes), tendo concluído do seguinte
modo:
“[…]
1º - Não é inconstitucional a interpretação normativa do nº 2 do artigo 89º do
Código de Processo Penal que considera precludida a omissão de entrega ao
arguido de cópia do auto de interrogatório e do despacho que lhe aplicou a
medida de prisão preventiva com fundamento em que o respectivo defensor teve
acesso a tais elementos mediante consulta na secretaria, sem que tal envolvesse
prejuízo substancial ou relevante para o exercício do direito de defesa.
2º - A Relação, no acórdão recorrido, não realizou interpretação normativa
traduzida em denegar, em abstracto, ao arguido o acesso aos elementos
probatórios em que assentou o despacho impositivo da medida de coacção de prisão
preventiva, limitando-se a considerar que, no caso concreto, a súmula de tais
elementos – que lhe foi facultada no decurso do interrogatório – é suficiente
para harmonizar, em concreto, o exercício do direito de defesa com as
necessidades da investigação em curso.
3º - Termos em que deverá improceder o presente recurso.”.
7. Tendo em conta que nas contra-alegações, o Ministério Público
sustenta que no acórdão recorrido não foi efectivamente aplicada a norma
constante do artigo 121º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal – o que
pode constituir questão prévia susceptível de obstar ao conhecimento de parte do
objecto do presente recurso –, foi determinada a notificação do recorrente para
se pronunciar sobre essa questão (despacho de fls. 164).
O recorrente respondeu através do requerimento de fls. 166 e
seguinte (170 e seguinte):
“[…]
a) O acórdão recorrido considerou sanada a violação do direito de defesa –
traduzida no facto de não ter sido facultada ao arguido cópia dos elementos em
causa – pela circunstância de o seu mandatário ter podido consultar tais
elementos na secretaria do Tribunal;
b) Na óptica do Recorrente, ao utilizar tal critério normativo, o Tribunal,
ainda que apenas implicitamente, recorreu ao critério normativo subjacente ao
art. 121° n.º 1-b) do C.P.P., devidamente conjugado com o art. 89° n.º 2 do
mesmo diploma legal;
c) O art. 121° n.º 1-b) considera sanada a nulidade se o participante processual
tiver aceite os efeitos do acto anulável, o que, na óptica do Recorrente, o
Tribunal entendeu implicitamente que também seria aplicável à situação análoga
em que, tendo o Recorrente direito às cópias em apreço, se teria satisfeito com
a consulta das peças processuais em pauta;
d) Não vislumbra o Recorrente que o Tribunal tenha recorrido à solução análoga
que vigora no ordenamento processual em sede de notificações aos sujeitos
processuais – como sustenta o Ministério Público –, já que aqui está em causa a
situação particular do acesso – integral e efectuado de uma forma cómoda e
adequada – a elementos imprescindíveis para o exercício do direito de defesa do
cidadão preso preventivamente;
e) Em qualquer caso, o que releva é o critério normativo aplicado – tenha ou não
sido considerado implicitamente o art. 121° n.º 1-b) do C.P.P. –, como tem
julgado a jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem apreciado a
inconstitucionalidade de critérios normativos distintos daqueles que foram
invocados nos recursos interpostos.
Termos em que não procede a questão prévia suscitada.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
8. Tal como delimitado no respectivo requerimento de interposição, o
presente recurso tem como objecto duas interpretações normativas que o
recorrente considera terem sido perfilhadas no acórdão recorrido quanto ao
artigo 89º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
O artigo 89º, n.º 2, do Código de Processo Penal dispõe como segue:
“Artigo 89º
(Consulta de auto e obtenção de certidão e informação
por sujeitos processuais)
[...]
2. Se, porém, o Ministério Público não houver ainda deduzido acusação, o
arguido, o assistente, [...], só podem ter acesso a auto na parte respeitante a
declarações prestadas e a requerimentos e memoriais por eles apresentados, bem
como a diligências de prova a que pudessem assistir ou a questões incidentais em
que devessem intervir, sem prejuízo do disposto no artigo 86º, n.º 5. Para o
efeito, as partes referidas do auto ficam avulsas na secretaria, por fotocópia,
pelo prazo de três dias, sem prejuízo do andamento do processo. O dever de
guardar segredo de justiça persiste para todos.
[...].”.
Segundo o entendimento do recorrente, a norma do artigo 89º, n.º 2,
do Código de Processo Penal seria inconstitucional, por violação dos artigos
28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, nas seguintes
dimensões interpretativas:
a) quando, em conjugação com o artigo 121º, n.º 1, alínea b), do
Código de Processo Penal, é interpretada “no sentido de que, muito embora possa
e deva ser facultada ao arguido cópia do despacho que ordenou a sua prisão
preventiva, bem como do seu próprio auto de interrogatório, sob pena de se
violar o direito a um processo justo e equitativo, deve ser considerada sanada
tal omissão se o arguido os pôde consultar através do seu mandatário”;
b) quando, em conjugação com os artigos 61°, n.º 1, alíneas f) e h),
e 141°, n.º 4, do Código de Processo Penal, é interpretada “no sentido de que
pode ser negado ao arguido preso preventivamente – para o efeito de este
apresentar a sua defesa e apresentar o recurso dessa prisão – o acesso a
consultar os elementos de prova (ou súmula dos mesmos) em que concretamente se
funda tal prisão preventiva, se do auto do interrogatório consta uma súmula dos
factos acerca dos quais o arguido foi interrogado e se, das questões concretas
colocadas, é possível concluir qual é a interpretação do Ministério Público
acerca de um comportamento do arguido tido como relevante (porventura até, o
mais relevante) para o efeito da sua eventual incriminação, caso em que se
considera satisfeito o direito de defesa do arguido”.
9. Relativamente à primeira questão suscitada pelo recorrente (supra,
8., a)), salienta-se, antes de mais, que o tribunal recorrido não aplicou
efectivamente a norma do artigo 121º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo
Penal, ainda que em conjugação com o artigo 89º, n.º 2, do mesmo Código. Na
verdade, não só o artigo 121º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal não
se encontra referido no texto do acórdão recorrido, como também o tribunal
recorrido não aventou a hipótese de ter sido cometida alguma irregularidade que
pudesse considerar-se sanada nos termos previstos em tal preceito, que se
reporta à “aceitação expressa” – que manifestamente se não verificou – “dos
efeitos do acto anulável”.
Tem assim razão o Ministério Público, quanto a esta questão prévia.
A primeira interpretação normativa questionada no presente recurso –
e efectivamente perfilhada na decisão recorrida – terá, assim, de reportar-se
exclusivamente ao artigo 89º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
10. Quanto a essa primeira interpretação normativa – relacionada com a
questão do acesso à cópia do despacho que ordena a prisão preventiva e do auto
de interrogatório do arguido –, observe-se que o recorrente conclui no sentido
da sua desconformidade constitucional porque, na sua perspectiva, é diferente
recolher notas através da consulta de um documento e dispor do texto integral do
próprio documento.
Sendo óbvia a existência desta diferença, aquilo que se deve,
todavia, perguntar é se essa diferença significou para o ora recorrente, no caso
concreto, uma compressão dos seus direitos de defesa, em suma, um prejuízo.
Não seria, na verdade, constitucionalmente conforme, à luz do disposto nos
artigos 28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da Constituição, admitir que a ofensa do
direito do recorrente ao acesso a certas cópias pudesse considerar-se inócua –
atendendo a que lhe fora facultada a consulta de fotocópias na secretaria –, se,
no caso concreto, subsistisse algum prejuízo a considerar.
Com efeito, dos referidos preceitos constitucionais decorre que não seria de
considerar irrelevante a ofensa que acarretasse algum prejuízo para o arguido.
Sucede, porém, que o tribunal recorrido deu como assente a inexistência de
prejuízos para o arguido. Aliás, o recorrente não invocou no presente recurso a
subsistência de prejuízos.
Não havendo prejuízos a considerar, não se vê em que medida a interpretação
normativa em apreciação violou os mencionados direitos fundamentais do
recorrente, pelo que o recurso improcede, nesta parte.
11. Vejamos agora a segunda interpretação normativa, relacionada com a
questão do acesso aos elementos de prova em que se funda a prisão preventiva
(supra, 8., b)).
Segundo o recorrente, tal interpretação normativa seria
inconstitucional, pois que “para o exercício do direito de defesa, quando alguém
está preso preventivamente, não basta conhecer os factos concretos que lhe são
imputados, exigindo-se ainda o conhecimento dos concretos elementos de prova que
fundam tais imputações, em que assenta o juízo que levou à sua prisão
preventiva, de forma a poder refutá-los, completá-los ou esclarecê-los, segundo
o melhor critério que a defesa venha a definir” (fls. 151).
Em suma, e de acordo com o recorrente, a segunda interpretação
normativa perfilhada pelo tribunal recorrido “reduz o direito da defesa ao
conhecimento dos factos imputados, suprimindo-lhe o direito ao conhecimento dos
elementos de prova de tais factos em que se funda a sua prisão” (fls. 152).
Não procede, porém, também aqui, a argumentação do recorrente.
Com efeito, o tribunal recorrido não considerou que ao ora recorrente apenas
assistia o direito ao conhecimentos dos factos que lhe eram imputados, tendo
entendido diversamente que também lhe assistia o direito ao conhecimento dos
meios de prova aptos a demonstrar tais factos e que esse direito, no caso
concreto, havia sido exercido. E havia sido exercido precisamente aquando do
acesso ao despacho que decretara a prisão preventiva e do acesso ao auto de
interrogatório, pois que, nestes momentos, acedera o arguido à súmula dos meios
de prova.
Ora, não tendo o tribunal recorrido negado ao recorrente o direito
ao conhecimento dos meios de prova aptos a demonstrar os factos por que vinha
indiciado, mas apenas considerado que esse direito fora exercido em certos
momentos processuais, improcede também a alegada violação dos artigos 28º, n.º
1, e 32º, n.º 1, da Constituição pela segunda interpretação normativa que
cumpria apreciar.
III
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional
decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 2 de Novembro de 2005
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício