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Processo n.º 75/2002
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam no Tribunal Constitucional
1. A. instaurou no Tribunal de Trabalho de Lisboa acção
emergente de contrato de trabalho, com processo sumário, contra B. e C. na qual,
em síntese, sustenta que, estando contratada como empregada doméstica, fora
despedida sem justa causa pela segunda ré, pelo que tem direito a uma
indemnização e a determinadas quantias relativas a vencimentos e subsídios, em
cujo pagamento pede a condenação dos réus por força do regime previsto no
Decreto-Lei n.º 235/92 de 24 de Outubro.
Na contestação, os réus suscitaram a inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo
29º do Decreto-Lei nº 235/92 de 24 de Outubro, 'na parte em que exige que o
despedimento seja feito por escrito” e do n.º 1 do artigo 31º do mesmo diploma,
em ambos os casos por falta de autorização legislativa para que o regime
anterior (o constante do Decreto-Lei n.º 508/80 de 21 de Outubro) fosse alterado
pelo Decreto-Lei n.º 235/92 de 24 de Outubro, aprovado ao abrigo da Lei n.º
12/92 de 16 de Julho, assim violando o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo
168º da Constituição (correspondente ao actual artigo 165º).
A acção foi julgada procedente, sendo a ré condenada no pagamento da quantia de
495.000$00, acrescida dos juros legalmente devidos. O réu foi absolvido do
pedido, por ter sido julgada procedente, quanto que ele, a excepção de
prescrição invocada na contestação. No que agora releva, a sentença
pronunciou-se nos seguintes termos:
«[...] Estamos perante um contrato de serviço doméstico que vigorou entre
Setembro de 1993 e 28 de Maio de 1998, data em que foi rescindido pela 2ª Ré.
O contrato de serviço doméstico foi regulado, pela primeira vez, através do DL
nº 508/80, de 21 de Outubro.
À data da cessação do contrato dos autos vigorava, porém, o DL nº 235/92, de 24
de Outubro que veio substituir aquele diploma.
São, portanto, as normas deste último DL que há que aplicar ao caso presente.
Dispõe o artº 27º do diploma em causa, DL nº 235/92, do qual serão todas as
normas adiante citadas sem indicação de origem, que o contrato pode cessar por
rescisão de qualquer das partes ocorrendo justa causa.
Ora, da matéria de facto apurada não há factos que sustentem a ocorrência de
justa causa e, de resto, a Autora foi despedida sem que tivesse sido observado o
formalismo do artº 29º.
Assim, a existência de comportamentos da Autora consubstanciadores de justa
causa, como sustentaram os RR, não pode ser acolhida.
Assim, o despedimento da Autora só pode ser considerado ilícito, o que lhe
confere o direito à indemnização a que alude o artº 31º calculada com base em um
ano por cada mês completo de serviço ou fracção, ou seja, o correspondente a 5
vezes 60.000$00 = 300.000$00.
É que a rescisão com justa causa tem de obedecer ao artº 29º e a parte que
invocar a justa causa tem de invocar, por escrito, os fundamentos e
circunstâncias que a fundamentam. [...]».
2. Inconformados, os réus apelaram para a Relação de Lisboa
que, todavia, decidiu não conhecer da apelação por o valor da causa não exceder
a alçada da 1ª Instância. A ré recorreu, então, para o Tribunal Constitucional,
ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15
de Novembro. Pretende a apreciação da questão da inconstitucionalidade das
normas do n.º 3 do artigo 29º 'na parte em que exige que o despedimento seja
feito por escrito”, e do nº 1 do artigo 31º «na interpretação que sustenta que a
indemnização a pagar ao trabalhador do serviço doméstico despedido – se não
houver acordo de reintegração – surge não só sempre que o despedimento seja
julgado insubsistente, por inexistência de justa causa, mas quando o seja por
qualquer outra razão, nomeadamente por vício formal», ambos do Decreto-Lei n.º
235/92 de 24 de Outubro.
Em seu entender, tais normas violam os artigos 168º – actual 165º – n.º 1 alínea
b) e 53º e 59º e 17º, todos da Constituição, «por excederem o âmbito da
autorização legislativa constante da Lei n.º 12/92 de 16 de Julho».
Admitido o recurso e notificadas para o efeito, as partes apresentaram
alegações, que a recorrente concluiu da seguinte forma:
«1. A matéria do despedimento de trabalhadores do serviço doméstico, incluindo
as regras sobre a forma da declaração rescisória do contrato por iniciativa do
empregador doméstico e a matéria das consequências do despedimento ilícito, é
objecto de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República, nos termos dos artigos 168º, nº 1, al. b), 53º, e 59º e 17º, todos da
Constituição.
2. A lei de autorização legislativa ao abrigo da qual foi aprovado o Decreto-Lei
nº 235/92, de 24 de Outubro – Lei nº 12/92, de 16 de Julho é omissa quanto à
possibilidade de ser introduzida uma exigência de forma escrita para o
despedimento, forma essa que o regime legal até aí vigente e que este
decreto-lei veio modificar, não contemplava.
3. A norma do nº 3 do art. 29º do Decreto-Lei nº 235/92, de 24 de Outubro, na
parte em que exige forma escrita para o despedimento, ou seja, para a declaração
rescisória do contrato de serviço doméstico por iniciativa do empregador
doméstico, é por isso organicamente inconstitucional.
4. A norma do nº 1 do art. 31º do citado Decreto-Lei nº 235/92, de 24 de
Outubro, na interpretação que sustenta que a indemnização a pagar a trabalhador
do serviço doméstico despedido — se não houver acordo de reintegração — surge,
não só sempre que o despedimento seja julgado insubsistente, por inexistência de
justa causa, mas também quando o seja por qualquer outra razão, nomeadamente por
vício formal, colide igualmente com a Constituição.
5. Na verdade, a alínea s) do art. 2º da Lei nº 12/92, que contém a pertinente
autorização quanto a esta matéria, apenas contemplava o direito a indemnização
nos casos de despedimento pela entidade empregadora com alegação insubsistente
de justa causa, o que é mais limitado do que o que passou a dizer-se na norma
sob apreciação: despedimento decidido com alegação de justa causa e que venha a
ser declarado insubsistente.
6. As normas em causa, nos indicados segmentos e interpretações, e tal como
foram aplicados pela sentença da 1ª instância, violam os artigos 168º (actual
165º), n.º 1, al. b) e 53º, e 59º e 17º, todos da Constituição, pois excedem o
âmbito da autorização legislativa constante da Lei nº 12/92, de 16 de Julho.
Termos em que devem ser as mesmas normas, nos apontados segmentos e
interpretação, ser julgadas inconstitucionais, fazendo-se assim
JUSTIÇA!»
Quanto ao Ministério Público, formulou as seguintes conclusões:
«1 - É manifestamente infundada a questão de constitucionalidade, reportada à
norma constante do artigo 31º nº 1, do Decreto-Lei nº 235/92 – por pretensa
ultrapassagem da respectiva lei de autorização legislativa – num caso em que,
por a sentença ter expressamente considerado “insubsistente” ou improcedente a
matéria em que se fundava a invocação de uma justa causa do despedimento
(matéria alegada, mas não provada, pela ré contestante) é inquestionável que se
mostra inteiramente respeitado o limite constante da alínea s) do artigo 2º da
Lei nº 12/92.
2 - A norma constante do artigo 29º, nº 3, do Decreto-Lei n.º 235/92, ao exigir
que a explicitação dos factos em que se funda a invocação pela entidade patronal
da justa causa da rescisão do contrato de serviço doméstico seja feita por
escrito, com vista a garantir mais adequadamente o direito à segurança no
emprego, não afecta – dada a sua natureza estritamente secundária ou
procedimental – os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, não se
situando consequentemente no âmbito da reserva de competência legislativa da
Assembleia da República.
3 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.»
Tendo entretanto cessado funções no Tribunal Constitucional o relator do
processo, foi o mesmo posteriormente redistribuído.
3. Os preceitos que contêm as normas impugnadas constam do
aludido Decreto-Lei n.º 235/92 de 24 de Outubro, diploma que estabeleceu o
regime jurídico das relações de trabalho emergentes do contrato de serviço
doméstico, editado no uso da autorização concedida pela Lei n.º 12/92 de 16 de
Julho nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição.
Têm a seguinte redacção:
Artigo 29.º
Rescisão com justa causa
1 - Constitui justa causa de rescisão qualquer facto ou circunstância que
impossibilite a manutenção, atenta a natureza especial da relação em causa, do
contrato de serviço doméstico.
2 - Ocorrendo justa causa, qualquer das partes pode pôr imediatamente termo ao
contrato.
3 - No momento da rescisão do contrato devem ser referidos pela parte que o
rescinde, expressa e inequivocamente, por escrito, os factos e circunstâncias
que a fundamentem.
4 - A existência de justa causa será apreciada tendo sempre em atenção o
carácter das relações entre as partes, nomeadamente a natureza dos laços de
convivência do trabalhador com o agregado familiar a que presta serviço.
Artigo 31.º
Indemnização por despedimento com alegação insubsistente de justa causa
1 - O despedimento decidido com alegação de justa causa e que venha a ser
judicialmente declarado insubsistente, não havendo acordo quanto à reintegração
do trabalhador, confere a este o direito a uma indemnização correspondente à
retribuição de um mês por cada ano completo de serviço ou fracção, decorrido até
à data em que tenha sido proferido o despedimento, nos casos de contrato sem
termo ou com termo incerto, e às retribuições vincendas, nos casos de contrato
com termo certo.
2 - Quando se prove dolo do empregador, o valor da indemnização prevista no
número anterior será agravado até ao dobro.
4. A recorrente sustenta a inconstitucionalidade da norma do
n.º 3 do artigo 29º por via do seguinte raciocínio:
A Lei nº 12/92 de 16 de Julho – lei de autorização legislativa ao abrigo da qual
foi aprovado o Decreto-Lei n.º 235/92 de 24 de Outubro – é omissa quanto à
possibilidade de ser introduzida uma exigência de forma escrita para o
despedimento, forma essa que o regime legal anterior não contemplava; em
consequência, a norma do n.º 3 do artigo 29º do Decreto-Lei n.º 235/92 de 24 de
Outubro, na parte em que exige forma escrita para o despedimento, é
organicamente inconstitucional.
Importa começar por delimitar, nesta parte, o âmbito do recurso.
Os argumentos que a este propósito constam na alegação da recorrente decorrem de
uma pretensa exigência de forma escrita para a 'declaração rescisória do
contrato de serviço doméstico'. Todavia, rigorosamente, a sentença não aplicou o
n.º 3 do artigo 29º do Decreto-Lei n.º 235/92 de 24 de Outubro no sentido de
exigir a forma escrita para o despedimento. O que a sentença dá por assente, é
que a autora fora 'despedida sem que tivesse sido observado o formalismo do
artigo 29º' do Decreto-Lei n.º 235/92 de 24 de Outubro, abstendo-se, assim, de
dar qualquer especial interpretação ao aludido preceito legal, do qual não
decorre necessariamente a exigência da forma escrita para o despedimento. O que
dele se retira é que, no momento em que ocorre o despedimento com justa causa,
deve ser entregue à outra parte documento escrito onde constem as razões que
fundamentam a justa causa; o despedimento continua a ser eficaz seja qual for a
forma pela qual se materializar.
É, assim, de circunscrever o objecto do recurso à aludida norma, aceitando que
nesta parte apenas está em causa a rescisão com invocação de justa causa pelo
empregador, tendo em conta a interpretação operada pelo Tribunal recorrido.
Acontece que a exigência de forma escrita quanto à qualificação da causa de
rescisão do contrato situa-se nitidamente fora da reserva de competência
legislativa da Assembleia da República.
Na verdade, ainda que possa entender-se que o contrato de serviço doméstico toca
em matéria relativa a direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, isso
não significa que toda a regulamentação deste tema se deva considerar incluída
na dita reserva legislativa; nomeadamente, a obrigatoriedade de esclarecer, por
escrito, os motivos que levam o empregador a achar que há justa causa de
rescisão do contrato não viola os requisitos exigidos pelo n.º 2 do artigo 165º
da Constituição para as leis de autorização: respeita o objecto (alínea o) do
artigo 2º da Lei n.º 12/92) e o sentido da autorização (corpo do artigo 2º),
desde logo porque protege o trabalhador, facilitando-lhe uma eventual impugnação
do despedimento; e também respeita a extensão da lei de autorização, porque não
regula substancialmente a rescisão do contrato, mas apenas aspectos de forma ou
de prova de fundamentos previstos na lei de autorização como servindo de motivo
de rescisão pelo empregador (isto é, os factos que consubstanciam a justa causa
alegada por ele).
5. Também a acusação de inconstitucionalidade da norma do n.º 1
do artigo 31º “na interpretação que sustenta que a indemnização a pagar ao
trabalhador do serviço doméstico despedido – se não houver acordo de
reintegração – surge não só sempre que o despedimento seja julgado
insubsistente, por inexistência de justa causa, mas quando o seja por qualquer
outra razão, nomeadamente por vício formal” reside na alegação de que versa
sobre matéria compreendida na reserva (relativa) de competência legislativa da
Assembleia da República, tendo sido tratada por decreto-lei sem a necessária
autorização.
Mas também não é exacto que este preceito tenha sido interpretado pela sentença
recorrida rigorosamente no sentido acusado pela recorrente de ser
inconstitucional. A sentença julgou a acção procedente e condenou a ora
recorrente no pagamento de uma indemnização calculada ao abrigo do n.º 1 do
artigo 31º do Decreto-Lei n.º 235/92 porque concluiu não poder tratar o
despedimento como rescisão, pelo empregador, com justa causa, sem, no entanto,
distinguir entre “inexistência de justa causa” e “qualquer outra razão,
nomeadamente por vício formal”.
Ora, assim interpretada, a norma tem plena autorização legal que decorre da
alínea s) da Lei n.º 12/92 já citada, que visa outorgar ao trabalhador do
serviço doméstico o direito à indemnização sempre que se mostre infundada ou
insubsistente a justa causa invocada como base para o despedimento. Isto é: cabe
na regra definida na lei de autorização quanto à 'atribuição ao trabalhador, não
havendo acordo quanto à reintegração, do direito a uma indemnização, nos casos
de despedimento pela entidade empregadora com alegação insubsistente de justa
causa.'
Tem, por isso, razão o Ministério Público quando denuncia, na sua alegação, a
'artificialidade' da tese sustentada pela recorrente ao procurar descortinar uma
distinção constitucionalmente relevante entre as situações em que é explicitada
pelo empregador uma justa causa depois julgada insubsistente, e os casos em que
a inexistência de documento escrito, devida a culpa do empregador, torna
inviável um juízo de mérito sobre a ocorrência dessa justa causa. Característica
que se acentua se se tiver em linha de conta que a sentença recorrida deu também
por assente não terem sido provados factos que permitissem qualificar o
despedimento da autora com justa causa.
É, assim, improcedente a alegação da recorrente.
6. Nestes termos, o Tribunal decide julgar improcedente o
presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 2 de Maio de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos