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Processo n.º 891/04
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A. e outros e B. e outros recorrem, ao abrigo da alínea b) do n.
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão proferido em 29 de
Junho de 2004 no Supremo Tribunal de Justiça que confirmou, nos termos dos
artigos 713º n.º 5 e 726º do Código de Processo Civil, o acórdão da Relação do
Porto de 3 de Julho de 2003 que, em suma e na parte que aqui interessa reter,
graduou em 2º lugar os créditos dos trabalhadores recorrentes.
Sustentam a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Acórdão recorrido
ao art. 751º do C. Civil (na redacção aplicável ao caso) conjugado com os
artigos 12° n.º 1 alínea b) da Lei 17/86 de 14 de Junho e 4º da Lei n.º 96/2001
de 20 de Agosto, na interpretação segundo a qual na graduação de créditos, a
hipoteca prevalece sobre o privilégio imobiliário geral que assiste aos créditos
dos trabalhadores, sendo de excluir do artigo 751º do C. Civil os privilégios
imobiliários gerais, ou seja, por considerar que naquela norma apenas se
subsumem os privilégios imobiliários especiais (e já não o privilégio
imobiliário geral de que gozam os trabalhadores ao abrigo do artigo 12°, n° 1,
al. b) da Lei 17/86, de 14 de Junho), por violação, nomeadamente, do princípio
da confiança ínsito no Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2° CRP
(nomeadamente da confiança que os trabalhadores depositaram na Lei 17/86 e na
prevalência do privilégio creditório que ali lhes era concedido ), bem como por
violar e esvaziar de qualquer sentido útil – em casos como o dos autos – o
direito à retribuição do trabalho, que o Tribunal Constitucional já
expressamente considerou como um direito análogo aos direitos, liberdades e
garantias.
2. Os recorrentes apresentaram as suas alegações, concluindo a A.
I - A questão decidendi nestes autos consiste na vexata quaestio de saber se os
créditos emergentes de um contrato de trabalho prevalecem (ou não) sobre
créditos garantidos por hipoteca.
II - Em causa está o balanceamento e o encontro do ponto de equilíbrio no
conflito que se verifica entre dois direitos e princípios
jurídico-constitucionalmente consagrados: o direito à retribuição do trabalho
(que – é pacificamente aceite – se trata de um direito constitucionalmente
consagrado, incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, essencial
à dignificação e realização da pessoa humana, onde de resto, assenta a ideia de
Estado de Direito Democrático e que este alto Tribunal já expressamente
considerou um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias
(cfr. Ac. n° 379/91 in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 20, pp. 111
ss.) - e o princípio da protecção da confiança, da certeza e da segurança
jurídicas (que derivam nomeadamente para um qualquer credor da constituição de
uma hipoteca e das indicações registrais), ínsito num Estado de Direito
Democrático.
IV - Que aquele primeiro direito merece uma especial tutela é por todos aceite,
o que bem se compreende, uma vez que os trabalhadores são essenciais em qualquer
estrutura ou organização produtiva, sendo eles que, muitas vezes com abnegado
esforço e sacrifício, asseguram o normal funcionamento da empresa.
V - De resto, foi esta constatação que levou o legislador a consagrar uma
especial tutela para os créditos dos trabalhadores, estabelecendo no artigo 12°
da Lei n° 17/86, um privilégio geral imobiliário para os créditos laborais.
VI - Sendo aqui que reside, de facto, a questão que hoje divide a
jurisprudência, uma vez que, nos termos do artigo 751° CC – na sua redacção
originária – os privilégios imobiliários prevalecem sobre a hipoteca, ainda que
esta tenha sido constituída em data anterior.
VII - Solução que, segundo alguns, poria em causa, de 'forma intolerável' a
segurança e certeza jurídicas que resultariam para o credor da constituição de
uma garantia real como a hipoteca, violando-se, com isso, o princípio da
confiança ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático.
VIII - Não é, no entanto, assim, uma vez que se é verdade que a situação sub
judice tem semelhanças com a situação que foi decidida por este Tribunal em dois
acórdãos recentes (Acórdãos 362/2002 e 363/2002, in DR, I Série, de 16/10/2002)
– onde se considerou inconstitucionais as normas que consagravam privilégios
creditórios gerais imobiliários a favor do Fisco e da Segurança Social, na
interpretação segundo a qual tais privilégios preferiam à hipoteca anteriormente
registada – é igualmente verdade que a mesma tem também dissemelhanças (como
doutamente se assinala no Acórdão deste Tribunal, Ac. n° 498/2003, Processo
317/2002, in DR, II Série, de 03/01/2004) que impõem uma solução diferente para
o caso dos autos relativamente à que foi dada naqueles dois outros arestos.
IX - Desde logo, ao contrário do que sucede com o Fisco e a Segurança Social –
que nenhuma relação têm com os imóveis do devedor – os trabalhadores têm já uma
ligação, por vezes de décadas, com os imóveis onde prestam o seu trabalho.
X - Pelo que, como se reconhece no dito Acórdão, 'parece poder concluir-se que,
no caso, não é tão intensamente atingido o princípio da confiança, especialmente
prosseguido pelo registo predial'.
XI - Até porque, como também se salienta no dito aresto, nos casos julgados
pelos Acs. TC nºs 362/2002 e 363/2002, estavam em causa dívidas fiscais e à
segurança social, o que implica, por força do princípio da confidencialidade
tributária, a impossibilidade de os particulares previamente saberem se as
entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à segurança
social.
XII - Diferentemente, no que concerne aos créditos dos trabalhadores, trata-se
de circunstâncias que são perfeitamente avaliáveis e cognoscíveis por parte
credores e que devem ser por eles devidamente ponderadas.
XIII - Pelo que não se pode dizer que os credores hipotecários são apanhados
desprevenidos pelo privilégio creditório dos trabalhadores (não há, in casu,
'ónus ocultos'), e que, portanto, com esse privilégio fica abalada – de forma
intolerável! – a confiança que depositaram na garantia real que foi constituída
a seu favor.
XIV - Acresce que os trabalhadores não têm ao seu dispor os mesmos meios de que
dispõe o Fisco e a Segurança Social para conseguir cobrar os seus créditos.
XV - Sendo que muitas vezes, sobretudo no caso de falência/insolvência do
empregador, a concessão daquele privilégio imobiliário geral é o único meio de
assegurar e permitir a cobrança dos créditos laborais.
XVI - De resto, outra solução que não a de atender ao privilégio imobiliário
relativamente aos créditos laborais constituiria um intolerável beneficio
concedido aos chamados credores fortes relativamente aos créditos dos
trabalhadores (credores fracos) que, muitas vezes, deram o melhor da sua vida,
ao longo de muitos anos de trabalho, em prol de uma empresa que ajudaram a
construir e a engrandecer e que, depois, a final, não lhes retribuiria
minimamente o esforço despendido (já que, como se reconhece no Ac. TC 498/2003,
muitas vezes a única garantia dos credores reduz-se ao património imobiliário da
empresa).
XVII - Ou seja, ponderados os dois direitos jurídico-constitucionalmente
tutelados, e feita uma análise do ponto de vista de um critério de
proporcionalidade, tem inexoravelmente que se concluir - como se concluiu no Ac.
TC 498/2003 - que o privilégio geral imobiliário concedido aos créditos laborais
é conforme à Constituição,
XVIII - Uma vez que, como se lê no referido aresto, 'parece manifesto que a
limitação à confiança resultante do registo é um meio adequado e necessário à
salvaguarda do direito dos trabalhadores à retribuição; na verdade, será,
eventualmente, o único e derradeiro meio, numa situação de falência da entidade
empregadora, de assegurar a efectivação de um direito fundamental dos
trabalhadores que visa a «sobrevivência condigna»'.
XIX - Ou seja, é uma questão da mais elementar Justiça, e uma solução que se
impõe em qualquer Estado de Direito Democrático, que os créditos dos
trabalhadores sejam alvo de uma especial tutela e garantia ainda que, porventura
– e atento um critério de proporcionalidade –, tal tutela possa contender e
afectar outros direitos jurídico-constitucionalmente consagrados.
XX - Acontece que esta tutela devida aos créditos laborais não se alcança apenas
com a consideração de que o privilégio geral imobiliário consagrado no artigo
12° da Lei n° 17/86 é conforme à Constituição (como ficou decidido no Ac. TC
498/2003).
XXI - Com efeito, e apesar da jurisprudência dos Tribunais comuns se encontrar
dividida, tem vindo a ser defendido em alguns arestos – como sucedeu no caso ora
submetido a juízo – que a questão decidendi não passa pelo juízo de
(in)constitucionalidade do referido artigo 12° da Lei n° 17/86,
XXII - Mas por considerar que o regime do artigo 751º CC – na sua redacção
originária – apenas abrange privilégios imobiliários especiais e já não
privilégios imobiliários gerais (nomeadamente o consagrado no artigo 12° da Lei
n° 17/86, que foi criado em momento posterior à publicação do Código Civil e
que, por isso, este diploma, no referido normativo, não teve em vista e em
consideração).
XXIII - Só que, a ser assim, a tutela concedida ao direito à retribuição do
trabalho ficaria (ficará !) totalmente esvaziada de qualquer sentido útil
(ficando, na prática, desprovida da tutela jurídico-constitucional que lhe é
devida, o fundamental direito dos trabalhadores à retribuição que visa garantir
uma existência condigna) !!!!
XXIV - Pois, como é repetidamente afirmado, a possibilidade de executar o
património imobiliário do empregador é 'o único e derradeiro meio' de assegurar
a efectivação do direito à retribuição do trabalho constitucionalmente
consagrado.
XXV - É por isso necessário dar um último passo no sentido do fecho da abóbada
na protecção – constitucionalmente imposta – ao direito à retribuição do
trabalho,
XXVI - E que passa por considerar que a interpretação do artigo 751º CC – na sua
redacção original – com o sentido de que ele não abrange o privilégio
imobiliário geral concedido aos créditos laborais pelo artigo 12° da Lei n°
17/86 é inconstitucional, por violação dos artigos 1º, 2° e 59º, 1, al. a) da
Constituição da República Portuguesa.
XXVII - Solução que, de resto, já foi, de alguma forma, afirmada, por este alto
Tribunal, no Ac. n° 498/2003, Processo 317/2002, in DR, II Série, de 03/01/2004.
XXVIII - Pois que, só deste modo, considerando que os créditos laborais gozam de
um privilégio imobiliário geral (que prevalece sobre qualquer hipoteca,
voluntária ou legal) é possível assegurar – no quadro legislativo vigente e
aplicável à situação sub judice – a garantia e tutela constitucional devida ao
direito à retribuição do trabalho.
Nestes termos,
Por todo o exposto, e pelo mais que V. Exas. doutamente suprirão,
deverá considerar-se inconstitucional o artigo 751° CC na interpretação segundo
a qual esta norma não abrange o privilégio imobiliário geral concedido aos
créditos laborais pelo artigo 12° da Lei n° 17/86, por violação dos artigos 1°,
2° e 59°, 1, al. a) da Constituição da República Portuguesa.
Por seu turno, os recorrentes B. e outros concluíram:
a) Os privilégios creditórios consagrados no art. 12º da lei 17/86 de 14 de
junho e no artigo 4° da Lei 96/2001 não originam quaisquer ónus escondidos ou
ocultos;
b) Não fica, pois, afectada de maneira alguma a confiança e segurança do
comércio jurídico;
c) De facto, na constituição de hipoteca voluntária, domina o principio da
autonomia da vontade das partes, podendo estas trocar toda a informação,
documentos, balanços e declarações que reputem suficientes para acautelar os
seus interesses;
d) Não vigora, pois, entre as partes contratantes o principio da
confidencialidade tributária;
e) Todas estas informações podem ser renovadas com a periodicidade que o credor
hipotecário entenda conveniente, face a realidade concreta existente, podendo
sempre socorrer-se dos mecanismos, legalmente previstos, designadamente dos
artigos 701º e 725ºdo C.C., para acautelar o seu crédito;
f) Não podem quaisquer que sejam os agentes económicos exigir que o ordenamento
jurídico elimine a margem de risco que naturalmente decorre de qualquer
actividade comercial, industrial, ou financeira;
g) Assim, com a prevalência dos privilégios créditos laborais sobre a hipoteca
não é ofendido qualquer princípio constitucional, nomeadamente, o da protecção
da confiança;
h) Aliás, essa prevalência é imposta pelo regime do art. 751º do C.C. já que o
objecto das garantias aqui previstas, os imóveis, é o mesmo objecto dos
privilégios imobiliários gerais;
i) Só com a prioridade dos privilégios creditórios face à hipoteca, decorrente
da aplicação aqueles privilégios do regime do art. 751º do C.C se evitará que o
disposto nos art. 12º, n°. 3 al. e) da Lei 17/86 e 4°. n°. 4 al. b) da Lei
96/2001 seja letra morta nos casos em que houver que graduar simultaneamente
créditos laborais, créditos hipotecários e créditos previstos no art. 748º do
C.C.;
j) A entender-se o contrario, então ao privilegiar a hipoteca em detrimento dos
privilégios referidos, estaria a ofender-se agora sim, o princípio da dignidade
humana;
k) Tal princípio previsto no art. 1°. da Constituição da República Portuguesa é
a pedra angular, fundamento e fim do próprio estado;
l) A dignidade da pessoa humana está antes de tudo, nada tendo sentido
nomeadamente a consagração de quaisquer direitos se não houver um sujeito que os
possa usufruir com dignidade;
m) A dignidade da pessoa humana pressupõe autonomia vital e daí as diversas
emanações constitucionais, nomeadamente o direito à retribuição do trabalho de
forma a garantir uma existência digna (art. 59º n°. 1 al. a)) e o direito à
segurança no emprego (art. 53º);
n) E visando o salário a possibilidade de subsistência e independência da pessoa
humana, na sua dimensão de trabalhador, as garantias que aquele reportam devem
prevalecer sobre quaisquer outro tipo de garantias ou tutelas;
o) O acórdão sub judice ao decidir como decidiu fez prevalecer o 'ter' sobre o
'ser', os direitos de natureza económica sobre o princípio absoluto da dignidade
da pessoa humana;
p) Assim, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, art. 1°., e
os art. 59, 1 a) , e 53 todos da Constituição, impõem uma interpretação oposta à
dada pelo tribunal a quo, fazendo prevalecer os privilégios imobiliários que
assistem aos créditos dos recorrentes sobre a hipoteca;
q) Ao decidir como decidiu o tribunal a quo fez uma interpretação
inconstitucional dos artigos 12º, n°. 1 al. b) da Lei 17/86 de 14 de junho e
artigo 4º da Lei 96/2001 de 20 de Agosto quando conjugados com o artigo 751º do
C.C. por violação dos imperativos constitucionais da dignidade da pessoa humana
previsto no art. 1°. da CRP e nos artigos 59º n°.1 a) e artigo 53º também da
C.R.P.
Termos em que e com o douto suprimento de v. Ex.as., deve ser procedente o
presente recurso, julgando-se nos moldes acima referidos como inconstitucional a
interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça às normas também acima
referidas, decidindo-se em consequência que o privilégio imobiliário dos
créditos laborais dos recorrentes deve prevalecer sobre a hipoteca, graduando-se
em conformidade.
Não houve contra-alegação.
3. O acórdão da Relação do Porto confirmado pelo acórdão recorrido
diz o seguinte:
'No Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso, nos autos de reclamação de
créditos que correm por apenso ao processo n.º 715/1999, em que foi declarada a
falência de Kebir-Indústria de Confecções, SA, com sede na Rua do Progresso,
Lantemil, Trofa, foi proferida sentença que procedeu à verificação e graduação
dos créditos reclamados, datada de 29 de Janeiro de 2002, rectificada por
decisão de 15 de Maio do mesmo ano, em que, em relação aos bens imóveis da
falida, se graduaram os créditos reconhecidos pela seguinte forma:
- Pelo produto dos bens imóveis da falida, prédios descritos sob os
n.º 269, 1062 e 498 da Conservatória de Registo Predial de Santo Tirso:
Em primeiro lugar, o BNU até ao limite constante do registo;
Em segundo lugar, o BPI só relativamente ao prédio descrito sob o n.º 1062 até
ao limite do registo;
Em terceiro lugar, os créditos acima elencados como sendo dos trabalhadores;
Em quarto lugar, os demais créditos.
- Pelo produto da venda dos demais imóveis:
Em primeiro lugar, os créditos acima elencados como sendo dos trabalhadores;
Em segundo lugar, os demais créditos.
[...]
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
I- Do recurso do IGFSS:
Chama a atenção, e com razão, o Recorrente para o facto de ter registado a seu
favor, em data anterior à de declaração de falência da 'Kebir', hipotecas legais
sobre os prédios descritos sob os n.º 00927/250990, 0075/190485 e 00787/160689
da CRP de Santo Tirso, para garantia cada uma delas do pagamento das
contribuições para a Segurança Social dos meses de Fevereiro, Julho a Dezembro
de 1997, Janeiro a Abril e Julho a Dezembro de 1998 e Janeiro a Abril de 1999,
no valor total de 682.588,70 euros, mais juros vencidos até Dezembro de 1999, no
valor de 142 751,61 euros, no valor total de 825.340,31 euros (conforme
certidões juntas aos autos de apreensão de bens).
Sustentando, e segundo nos parece, bem, que os créditos por si reclamados
deveriam ter sido graduados em primeiro lugar, quanto aos referidos imóveis.
Antes dos créditos 'elencados como sendo dos trabalhadores'.
Gozando de privilégio imobiliário geral os créditos dos trabalhadores emergentes
de contrato de trabalho, nos termos do art. 12, n.º 1 ai. b) da Lei n.º 17/86,
de 14 de Junho, admitia-se a sua prevalência sobre os créditos garantidos por
hipoteca, ainda que o registo desta fosse anterior, por aplicação do disposto no
art. 751 do C. Civil, apesar de este preceito ter tão só em vista os privilégios
imobiliários especiais (no início da vigência do Código não eram conhecidos os
privilégios imobiliários gerais).
A questão, controvertida na jurisprudência, parece vir a ficar resolvida com a
nova redacção dada pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março, ao citado art. 751º do CC
(com início de vigência em 15 de Setembro de 2003 - art. 23 do citado DL).
Conforme defendem Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, in Garantias de
Cumprimento, 4.ª ed., p. 212, trata-se de uma norma interpretativa, nos termos
da qual, a oponibilidade constante do preceito em apreço só vale em relação aos
privilégios imobiliários especiais, estando, pois, excluídos desta previsão os
privilégios imobiliários gerais criados em legislação avulsa.
Devem, assim, os créditos reclamados pelo IGFSS ser graduados - quanto aos bens
imóveis da falida descritos sob os n.º 00927, 00075 e 00787 da CRP de Santo
Tirso - em primeiro lugar, antes dos indicados créditos laborais.
II- Dos restantes recursos:
Dada a posição que tomamos sobre a questão do concurso dos privilégios
imobiliários gerais e a hipoteca, logo se vê que a decisão sobre os demais
recursos de apelação interpostos só pode ser a da sua improcedência.
Nem se diga, como fazem os Recorrentes, que a prevalência da hipoteca sobre os
créditos dos trabalhadores que gozem de privilégio imobiliário geral poria em
crise o princípio da protecção da confiança.
Pelo contrário.
Como se lê no Ac. do TC n.º 160/00, de 22.3.2000, o princípio da protecção da
confiança, ínsito no Estado de Direito Democrático (cfr. art. 2º da
Constituição), exige um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas
expectativas que lhe são juridicamente criadas, censurando as afectações
inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas.
E interrogando-se sobre que segurança jurídica, constitucionalmente relevante,
terá o cidadão perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia
real (hipoteca) por si registada, pondera-se no mesmo acórdão que 'o registo
predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de
segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam
dificultar a constituição e a circulação de direitos com eficácia real sobre
imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas que, em certa perspectiva,
possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário'.
No caso dos autos, não estando os créditos dos trabalhadores sujeitos a registo,
os credores hipotecários defrontar-se-iam, a seguir-se a tese dos Recorrentes,
com a existência de um crédito privilegiado que 'frusta a fiabilidade que o
registo naturalmente merece', implicando uma 'lesão desproporcionada do comércio
jurídico'.
Prevalecendo, assim, os créditos hipotecários do BNU e do BPI aos créditos
laborais dos Recorrentes, deve manter-se a sentença recorrida, que graduou
aqueles antes destes.
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em:
- Na procedência da apelação do Instituto de Gestão Financeira da Segurança
Social, graduar, em primeiro lugar, os créditos reclamados por este Instituto,
quanto aos imóveis da falida descritos sob os n.º 00927, 00075 e 00787 da
Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso, passando a ficar, quanto aos
mesmos imóveis, em segundo lugar, os aludidos créditos dos trabalhadores e em
terceiro lugar, os demais créditos.
- Na improcedência dos restantes recursos, confirmar a sentença recorrida, na
parte impugnada.
[...].'
4. Importa, antes de mais, circunscrever o âmbito do presente
recurso.
O presente recurso é impulsionado por dois grupos de recorrentes; no
requerimento de fls. 309 o grupo de recorrentes encabeçado por A. invoca, como
fundamento do seu recurso, para além da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
do Tribunal Constitucional, também a alínea i) do mesmo preceito; por seu lado,
o segundo grupo – os recorrentes B. e outros – invoca, como fundamento do
recurso, também para além da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, a alínea f) do mesmo preceito.
Depois de – uns e outros – terem sido convidados a esclarecer os fundamentos dos
recursos interpostos ao abrigo das alíneas f) e i) do n.º 1 do artigo 70º da
LTC, foi proferido despacho a rejeitar tais recursos, nos seguintes termos:
Quanto ao requerimento de fls. 309, o recurso é unicamente o previsto na b) do
n. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Não cabe, efectivamente, o
recurso previsto na alínea i) do mesmo preceito, pois não ocorre nenhuma das
situações de conflito entre norma constante de acto legislativo com convenção
internacional que autorizaria este meio processual. Aliás, os recorrentes
revelam, na resposta ao convite de esclarecimento formulado pelo Tribunal, que a
interposição do recurso ao abrigo da alínea i) se deveu a um erro de
interpretação da norma habilitante.
Quanto ao requerimento de fls. 318, o recurso é igualmente o previsto na alínea
b) do n. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, dado que se
constata, pelo teor da resposta dos recorrentes, que a menção à alínea f) do
mesmo preceito se deveu a lapso.
Este despacho não foi impugnado, pelo que o recurso, em ambos os casos, se
restringe ao previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
Nas conclusões da sua alegação o primeiro grupo de recorrentes pede, a final:
'deverá considerar-se inconstitucional o artigo 751º do Código Civil, na
interpretação segundo a qual esta norma não abrange o privilégio imobiliário
geral concedido aos créditos laborais pelo artigo 12º da Lei n.º 17/86, por
violação dos artigos 1º, 2º, e 59º n.º 1 alínea a) da Constituição. O segundo
grupo pede que se julgue inconstitucional a interpretação normativa retirada dos
artigos 12º n.º 1 alínea b) da Lei 17/86 de 14 de Junho e artigo 4º da Lei
96/2001 de 20 de Agosto, quando conjugados com o artigo 751º do Código Civil,
por violação dos imperativos constitucionais da dignidade da pessoa humana
previstos nos artigos 1° e 59º n.º 1 a) e 53º, todos da Constituição.
Ora, o recurso previsto na aludida alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC
incide obrigatoriamente sobre normas aplicadas como ratio decidendi na decisão
recorrida, apesar da acusação de inconstitucionalidade. Na decisão recorrida não
foi aplicada a norma que consta do artigo 4º da Lei 96/2001 de 20 de Agosto,
preceito que veio privilegiar os créditos emergentes de contrato de trabalho ou
da sua violação não abrangidos pela Lei n.º 17/86 de 14 de Junho, pois incluiu
os créditos em causa na previsão desta Lei n.º 17/86.
Por isso, a aludida norma, enquanto incluída no referido artigo 4º da Lei n.º
96/2001 de 20 de Agosto, não pode constituir objecto do presente recurso.
O âmbito do recurso reconduz-se, assim, à questão de saber se a norma do artigo
751° do Código Civil na interpretação segundo a qual esta norma não abrange o
privilégio imobiliário geral concedido aos créditos laborais pelo artigo 12° da
Lei n° 17/86, é inconstitucional, por violação dos artigos 1°, 2° e 59° n.º 1
alínea a) da Constituição. O Tribunal recorrido considerou, com efeito, que os
créditos dos recorrentes, emergentes de contrato individual de trabalho, não
prevalecem, nos termos previstos no artigo 751º do Código Civil, sobre a
hipoteca anteriormente registada a favor da Segurança Social.
5. Como dá conta o Acórdão n.º 498/03 (DR, II Série, de 3 de Janeiro
de 2004) citado pelos recorrentes, o Tribunal Constitucional já foi solicitado a
pronunciar-se, por diversas vezes, sobre questão idêntica, isto é, sobre a
questão da constitucionalidade de normas que, tal como aquela que agora está em
causa, ligam privilégios imobiliários gerais a determinados créditos,
considerando valer para tais privilégios a prevalência fixada no artigo 751º do
Código Civil. Tal questão tem sido analisada à luz do princípio da confiança
(artigo 2º da Constituição), quando, tal como agora, concorre com uma hipoteca,
anteriormente registada, que onera um imóvel abrangido pelo privilégio.
Assim, nos Acórdãos 362/2002 e 363/2002 (DR, I Série-A, de 16 de Outubro de
2002), o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, por violação do artigo 2º da Constituição, da norma que, no
Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares confere privilégio
imobiliário geral à Fazenda Pública, com preferência sobre a hipoteca, nos
termos do artigo 751º do Código Civil e “das normas constantes do artigo 11º do
Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 512/76,
de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral
nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º
do Código Civil”.
Ao fundamentar o juízo de inconstitucionalidade, o Tribunal notou que, em tais
casos, a lei garante com um privilégio imobiliário geral, não sujeito a registo,
onerando todos os imóveis do património do devedor, um crédito 'desprovido de
qualquer conexão' com aqueles imóveis e com eles não relacionado. Reconheceu-se,
em suma, que nesses casos o privilégio preferia sobre direitos reais de
garantia, da titularidade de terceiros, aos quais não era acessível o
conhecimento da existência do crédito, em virtude de estar protegido pelo
segredo fiscal, e do correspondente ónus, devido à inexistência de registo.
6. Porém, no já referido Acórdão n. 498/2003, o Tribunal recusou
julgar inconstitucional precisamente a norma constante da alínea b) do n.º 1 do
artigo 12º da Lei n.º 17/86 de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o
privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato
individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código
Civil.
Nesse caso, o Tribunal reconheceu ser constitucionalmente lícito ao legislador
orientar-se por uma outra solução, atendendo às circunstâncias concretas: não
só não podia afirmar-se inexistir uma “qualquer conexão” entre os créditos
laborais reclamados e os imóveis onerados, visto que em causa estavam
privilégios incidentes sobre os bens imóveis da empresa ao serviço da qual se
encontram os trabalhadores beneficiários – ligação que atenuaria o carácter
oculto e imprevisível dos créditos laborais para o credor com garantia real
registada –, mas também por não haver segredo impeditivo do conhecimento da
existência dos aludidos créditos; por outro lado, os trabalhadores não têm à sua
disposição os meios alternativos de que, quer a Fazenda Pública, quer a
Segurança Social dispõem para cobrar os seus créditos, para além de, no caso de
falência do empregador, o único meio seguro de garantir a cobrança do crédito
laboral poderia consistir na prevalência da garantia creditória que os protege,
em homenagem à sua natureza de direito constitucionalmente incluído entre os
direitos fundamentais dos trabalhadores, conforme o artigo 59º n.º 1 alínea a)
da Constituição. A restrição do princípio da confiança operada pela norma então
impugnada seria um meio adequado e necessário à salvaguarda do direito dos
trabalhadores à retribuição, pelo que não havia contra tal solução obstáculo
constitucional.
7. Só que destas considerações – suficientes para aceitar a
conformidade constitucional de uma solução legislativa que admita que os
créditos laborais preferem ao crédito que é garantido por hipoteca anteriormente
registada –, não decorre a obrigação constitucional de a lei ordinária conferir
obrigatoriamente aos créditos laborais uma prevalência sobre crédito garantido
por uma hipoteca anteriormente registada.
O princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático,
consagrado no artigo 2º da Constituição da República postula um mínimo de
certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente
criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente
onerosas, com as quais não se poderia razoavelmente contar.
E a verdade é que, conforme se decidiu no já referido Acórdão n.º 363/2002,
tirado em plenário sem votos discordantes, 'o registo predial tem uma finalidade
prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos
particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e
circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas
relações jurídicas – que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do
comércio jurídico imobiliário”.
Ora, a norma impugnada respeita o princípio da confiança, constitucionalmente
consagrado.
8. Sustentam os recorrentes que a norma ofende o princípio da
dignidade humana, o direito à retribuição do trabalho e o direito à segurança no
emprego, previstos respectivamente no artigo 1º, artigo 59º n.º 1 alínea a) e
no artigo 53º da Constituição.
Na verdade, o artigo 1º da Constituição, para além de tudo o mais, pretende
garantir a dignidade da pessoa humana, como valor eminente de cada pessoa,
respeitando o direito à vida, à integridade pessoal, à identidade, à capacidade
civil, à cidadania, às liberdades cívicas, e concretiza-se num leque muito
variado de opções, em que sobressai, para o que agora releva, o estabelecimento,
pelo legislador ordinário, de garantias mínimas de subsistência e de condições
materiais de vida.
Estes valores desenvolvem-se em múltiplas outras normas da Constituição,
designadamente, como alegam os recorrentes, no artigo 59º, no qual se afirmam os
direitos fundamentais dos trabalhadores. A alínea a) do n.º 1 deste artigo 59º
consagra o direito fundamental a uma justa remuneração, que permita uma
existência condigna, e a mecanismos que garantam a tutela daquela retribuição. A
referida alínea a) protege, portanto, essencialmente o direito à retribuição
segundo a quantidade, a natureza e a qualidade do trabalho prestado, impondo que
a remuneração do trabalho obedeça a princípios de justiça.
O artigo 53º da Constituição tem outro âmbito: estabelece a garantia da
segurança no emprego, com proibição de despedimentos sem justa causa, e uma
proibição de princípio ao trabalho precário, ou a termo, à redução do período
normal de trabalho, à suspensão do contrato de trabalho, ou à modificação
substancial da relação de emprego.
Acontece, no entanto, que a protecção do direito à retribuição não é absoluta.
É certo que o legislador está vinculado, pelo n.º 3 do artigo 59º da
Constituição, a criar um regime de protecção especial dos salários dos
trabalhadores. Mas esta protecção não conduz necessariamente a uma solução
legislativa que consagre um privilégio creditório absoluto para garantia destes
créditos.
Na verdade, a referida incumbência constitucional confere ao legislador
suficiente liberdade para optar, num leque de soluções possíveis, por aquelas
que repute mais eficazes, habilitando-o a adoptar outros mecanismos de protecção
salarial, como, por exemplo, o sistema de garantia salarial, instituído pelo
Decreto-Lei n.º 50/85 de 27 de Fevereiro, e revisto pelo Decreto-Lei 219/99 de
15 de Junho – entre outras, precisamente com a finalidade de o articular com o
Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência –,
regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 139/2001 de 24 de Abril, hoje previsto no
artigo 380º do Código do Trabalho e na Lei n.º 35/2004 de 29 de Julho, que
regulamenta este Código; ou quando proíbe a penhora em dois terços do salário
do executado (artigo 824º n.º 1 do Código de Processo Civil, na versão
aplicável).
Todavia, o legislador ordinário dispõe, ainda assim, de uma ampla margem de
liberdade de conformação nesta matéria como aconteceu, por exemplo, quando criou
um regime de prescrição de créditos laborais (artigo 38º da Lei Geral do
Trabalho, hoje artigo 381º do Código do Trabalho), impensável num regime de
protecção absoluta do direito à retribuição, apesar de beneficiar os
trabalhadores face ao regime geral de prescrição de créditos.
Em suma, não é constitucionalmente proibido que a lei ordinária confira
prevalência ao crédito garantido por uma hipoteca anteriormente registada sobre
os créditos laborais. Nesta conformidade, deve entender-se que o princípio da
confiança, assim defendido pela norma impugnada, não encontra obstáculo
constitucional.
9. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento
ao recurso, mantendo a decisão recorrida quanto à questão de
inconstitucionalidade suscitada.
Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do benefício de que gozam, fixando a taxa
de justiça em 20 UC.
Lisboa, 8 de Maio de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos