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Processo n.º 443/05
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls.2315 foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. Por acórdão do 4º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de S. João
da Madeira de 12 de Julho de 2000, de fls. 1994 e seguintes, A. foi condenado
pela prática, em co-autoria material e sob a forma consumada, de um crime
continuado de fraude fiscal, previsto e punido pelos artigos 30º, n.º 2, do
Código Penal, e 23º, n.º 1, n.º 2, alíneas a) e c), n.º 3, alíneas a) e e), e
n.º 4, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção introduzida
pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, na pena de um ano e dez meses de
prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de quatro anos.
Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do
Porto, invocando, na respectiva motivação, designadamente, a prescrição do
procedimento criminal. Na resposta do Ministério Público à motivação do recurso
sustentou-se não ocorrer a invocada prescrição, uma vez que, além do mais, o
respectivo prazo “foi também suspenso nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo
119º” do Código Penal de 1982, na versão originária. Segundo afirmou então o
Ministério Público (cfr. fls. 2147),
«o tempo da suspensão com origem naquela circunstância [a notificação do
despacho de pronúncia], de acordo com o n.º 2 do preceito em causa, prolongou-se
por três anos, já que, no caso, era admissível recurso (cf. n.º 2 do art. 310º
do C. P. Penal e Assento n.º 6/2000, do STJ, public. No D. R. I-A, de
07/03/2000), sendo de entender nesse sentido a expressão legal “quando haja
recurso” (Vd. Leal-Henriques / Simas Santos, in “O Código Penal de 1982”, Vol.
I, 1986, pg. 592).»
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação do Porto, foi aí emitido
parecer pelo Procurador-Geral Adjunto, constante de fls. 2183, “aderindo
inteiramente” à posição sustentada na resposta do Ministério Público à motivação
do recurso.
O recorrente pronunciou-se sobre tal parecer, nos termos do disposto no artigo
417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, afirmando então, na parte que agora
releva, o seguinte:
“17. O art. 119º n.º 2 faz depender o prazo de três anos da existência de facto
de um recurso e não da possibilidade de este poder existir,
18. Mais, nos termos do art. 310º n.º 1 do CPP não é admitido recurso do
despacho que pronunciou o arguido.
19. Resulta ainda a pertinente questão de saber se se aplica nesta situação
concomitante a suspensão e prescrição com a notificação do despacho de
pronúncia.
20. Com a devida vénia, a resposta só pode ser uma, NÃO!
21. A jurisprudência dominante defende a limitação dos efeitos bem como o âmbito
da aplicação dos artigos referenciados na resposta do Sr. Magistrado, num claro
respeito pelas garantias e direitos dos arguidos no processo penal no que
concerne à interpretação e aplicação da lei penal.”
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Outubro de 2004,
de fls. 2204 e seguintes, foi negado provimento ao recurso e confirmado o
acórdão recorrido.
Afirmou-se, no mencionado acórdão, o seguinte:
“Em suma: em 15 de Julho de 1999, data da notificação do despacho de
pronúncia ao arguido, para além de ocorrer a interrupção da prescrição, nos
termos do art. 120º, n.º 1, al. c), do CP82, ocorreu igualmente a suspensão do
prazo de prescrição, por força do art. 119º, n.º 1, al. b), do CP82.
De harmonia com o disposto no art. 119º, n.º 2, do CP82, «No caso
previsto na alínea b) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar 2
anos, quando não haja lugar a recurso, ou 3 anos, havendo-o».
Conforme salientam, Leal-Henriques e Simas Santos, citados aliás, pelo
Digno Magistrado do Ministério Público na Resposta à motivação, «a suspensão que
ocorre quando o procedimento está pendente, depois de notificado o despacho de
pronúncia ou equivalente, não pode ultrapassar 3 anos se for admissível recurso
e 2 anos se não for admissível recurso como resulta da expressão «não haja lugar
a recurso» usada no n.º 2».
Ora, no caso sub judice, era admissível recurso do despacho de
pronúncia por força do artigo 310º, n.º 2, do CPP e do Assento n.º 62000, de
19-01-2000 «A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos
constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à
matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e
às demais questões prévias ou incidentais».
Assim sendo, e de harmonia com a ressalva constante do art. 120º, n.º
3, do CP82, «A prescrição terá sempre lugar quando, desde o seu início e
ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição
acrescido de metade», aos sete anos e meio há que acrescentar, três anos – tempo
da suspensão – ; ou, dito de outro modo, entendendo-se que a contagem do novo
prazo posterior à interrupção, só se iniciou em 15JUL02, isto é, decorridos 3
anos, após a data da notificação do despacho de pronúncia – data a partir da
qual se iniciou novo prazo de prescrição após a interrupção – a prescrição do
procedimento criminal só correrá em 20AGO2005.
Neste sentido, não se mostra, pois, prescrito o procedimento criminal,
improcedendo assim, nesta parte, o recurso.”
Notificado do acórdão que acaba de ser parcialmente transcrito, A. veio
requerer a aclaração do mesmo, suscitando então a questão da
inconstitucionalidade do artigo 119º, n.º 2, do Código Penal de 1982, por
violação do artigo 20º, n.º 4, da Constituição.
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Fevereiro de 2005, de fls.
2294 e seguintes, foi indeferido o pedido de aclaração.
2. Ainda inconformado, veio A. interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, “ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do art. 70º, da Lei
nº 28/82 de 15 de Novembro”, pretendendo a apreciação do
“Artigo 119º, n.º 2, do CP82, na interpretação – ofensiva dos
princípios constitucionais da decisão em tempo razoável e mediante processo
equitativo, do poder punitivo do Estado baseado em critérios objectivos e
protecção dos arguidos contra abusos processuais, consagrados no disposto no
artigo 20º, n.º 4, da CRP – adoptada pelo Tribunal recorrido, segundo a qual a
suspensão que ocorre quando o procedimento está pendente, depois de notificado
do despacho de pronúncia ou equivalente, não pode ultrapassar 3 anos se for
admissível recurso e 2 anos se não for admissível recurso como resulta da
expressão «não haja lugar a recurso».
O recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade que pretende
ver apreciada na aclaração que apresentou relativa ao Acórdão que decidiu o seu
recurso.
Não o fez antes, por não ter tido oportunidade processual para isso.
Isto é, o efeito surpresa, a interpretação inconstitucional da norma em
referência, só surge exactamente no acórdão cuja aclaração se requereu e não era
previsível nem é razoável exigir-se do recorrente que a tivesse antecipado.
Até esse momento, a questão pura e simplesmente não existia nem era
previsível.”
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3
do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Não pode, todavia, o Tribunal conhecer do presente recurso, por não ter sido
suscitada “durante o processo” (al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82) a
questão de constitucionalidade da norma impugnada.
Com efeito, é pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta
de normas interposto ao abrigo do disposto nesta alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei n.º 28/82, como é o caso, que a inconstitucionalidade haja sido
“suscitada durante o processo”, ou seja, colocada “de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este
estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72º da Lei n.º 28/82).
Ora o recorrente apenas alegou a inconstitucionalidade quando pediu a aclaração
do acórdão recorrido; mas o requerimento de aclaração da decisão recorrida não
é, em princípio – e não é, seguramente, neste caso –, o momento idóneo para que
o recorrente coloque perante o tribunal recorrido a questão da
inconstitucionalidade.
Com efeito, “a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui,
obviamente, um erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem
torna esta obscura ou ambígua”, de forma a permitir ao tribunal a quo dela
conhecer, “por aplicação do disposto no nº 1 do artigo 666º do Código de
Processo Civil” (Acórdão nº 62/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5,
pág. 497).
É certo que, como o Tribunal tem repetidamente afirmado, o recorrente
pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o
processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto
processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em
momento subsequente (cfr., a título de exemplo, o cit. acórdão n.º 62/85 e os
acórdãos n.º 90/85 e n.º 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 5, pág. 663 e no Diário da República, II Série, de
28 de Maio de 1994). Todavia, não é esse, manifestamente, o caso dos autos.
Com efeito, a interpretação da norma do artigo 119º, n.º 2, do Código
Penal de 1982, no sentido de haver lugar a recurso no caso dos autos e, nessa
medida, ser de três anos o prazo de suspensão da prescrição, foi sustentada na
resposta do Ministério Público à motivação do recurso interposto pelo recorrente
da decisão da 1ª instância, à qual aderiu o Procurador-Geral Adjunto, no seu
parecer de fls. 2183.
O recorrente pronunciou-se sobre tal parecer, nos termos do disposto no artigo
417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sem colocar a questão de
inconstitucionalidade; como se disse já, apenas veio a invocar no pedido de
aclaração, isto é, num momento em que o tribunal recorrido não estava já
obrigado a conhecer de tal questão. Deste modo, e contrariamente ao que afirma o
recorrente no seu requerimento de interposição de recurso, a questão por ele
suscitada existia e era previsível em momento prévio ao da prolação do acórdão
recorrido.
4. Estão, portanto, reunidas as condições para que se proceda à emissão
da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs.»
2. Inconformado, o recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do disposto
no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão
sumária, sustentando que esta “não fez a melhor aplicação da jurisprudência do
TC sobre a matéria”, por não lhe ser exigível prever que o Tribunal da Relação
tomasse uma decisão em contradição com a “jurisprudência anteriormente seguida
pelos tribunais superiores”, perfilhando “uma interpretação que seja abertamente
contrária à letra e ao espírito da lei”. Cita em seu apoio o acórdão n.º 318/90
deste Tribunal.
Assim, “ainda que formalmente o Recorrente tivesse tido a oportunidade de
suscitar a questão antes da decisão final, funcionalmente não lhe era exigível
que o fizesse, pois era manifestamente improvável que o Tribunal da Relação do
Porto, clamorosamente, violasse a letra e o espírito do art. 119º n.º 2 do
CPP82.”
A terminar, o reclamante observa que disse, “na resposta ao parecer do
Ministério Público, está este a substituir-se ao legislador com tal construção,
aumentando os prazos de prescrição taxativamente fixados no nosso ordenamento
jurídico. Tal construção jurídica abstracta, é um expediente dilatório que mais
não visa, neste caso, tornar útil um julgamento inócuo. Em clara violação
constitucional das garantias do arguido, o que implicitamente corresponde a
suscitar a questão de constitucionalidade.”
Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido
da manifesta improcedência da reclamação, por ser “evidente que o reclamante
dispôs de plena oportunidade processual para ter suscitado – antes da prolação
da decisão recorrida – a questão de constitucionalidade a que reportou o
recurso, nomeadamente na resposta ao parecer exarado no processo pelo
representante do Ministério Público, como bem refere a decisão reclamada”.
3. Com efeito, a reclamação é improcedente, pela razão que justificou a
decisão reclamada.
Não é o facto de o recorrente ficar subjectivamente surpreendido com o sentido
com que determinado preceito legal foi interpretado, por esperar uma outra
solução, que o dispensa de cumprir a exigência legal de suscitar a
inconstitucionalidade de forma adequada – ou seja, perante o tribunal a
proferiu a decisão recorrida, e de forma a que ele tenha de a julgar.
A razão pela qual o Tribunal Constitucional tem dispensado este ónus em casos
excepcionais ou anómalos, como se refere na decisão reclamada, é a de considerar
não exigível antecipar um sentido objectivamente inesperado, sobre o qual o
recorrente não teve a oportunidade de se pronunciar antes de proferida a decisão
recorrida.
Ora basta ler o parecer do Ministério Público atrás referido e a
resposta que o ora reclamante então apresentou para verificar que foi colocada e
debatida a solução interpretativa que veio a prevalecer, embora apenas no plano
do direito ordinário.
O reclamante diz ainda que se deve entender implicitamente colocada a
questão da inconstitucionalidade. Ainda que se admitisse possível tal via, a
verdade é que não se pode retirar da passagem que aponta, ou de qualquer outra,
a intenção de questionar a constitucionalidade da norma cuja apreciação
pretendia no recurso.
Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de
não conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 14 de Julho de 2005
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício