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Processo n.º 1031/05
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls 56 foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. A, arguido no processo comum colectivo identificado nos autos, e declarado
contumaz em Maio de 2000 (cfr. fls. 850), interpôs recurso do despacho de fls.
33, de 29 de Março de 2005, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Silves, que,
indeferindo o requerimento de fls. 30, manteve a declaração de contumácia. O
tribunal entendeu que a declaração se devia manter, não obstante a detenção do
arguido no Principado do Mónaco, porque, por razões burocráticas, o mesmo havia
sido posteriormente libertado sem ter sido sujeito a termo de identidade e
residência, ou a outra medida de coacção.
Por remissão para a promoção de fls. 32, o despacho afirmou que “embora o
arguido tenha sido detido, a cessação da contumácia só ocorre quando (...) seja
sujeito a Termo de Identidade e Residência, assim como sejam aplicadas outras
medidas de coacção (...), o que não aconteceu”.
Na motivação do recurso, o arguido invocou, designadamente, a
inconstitucionalidade do artigo 336º, n.º 2, do Código de Processo Penal, por
violação do artigo 36º, n.ºs 1 e 6, da Constituição:
“9. O artigo 336º, n.º 2, do CPP, quando prevê, como na dimensão normativa
concreta que no caso se aplicou, que a cessação de contumácia do arguido não
cesse com a detenção, mas apenas com a prestação do termo de identidade e
residência, no caso em que à detenção se seguiu a libertação do arguido, por
razões alheias ao arguido, mas impostas por exigências legais, sem que tal
medida de coacção lhe fosse aplicável, é materialmente inconstitucional, por
violação do artigo 32º, n.º 1 [garantias de defesa] e n.º 6 [presença e ausência
do arguido] da CRP.
A Lei Fundamental garante [n.º 6 do artigo 32º e n.º 1 do mesmo preceito] ao
arguido o direito de ser dispensado de comparecer em audiência, assegurados que
lhe sejam os direitos de defesa. A dimensão normativa concreta em causa
restringe esta garantia de modo desproporcionado, ao condicioná-la a um acto
processual [sujeição a TIR] numa situação em que a sua ocorrência se ficou a
dever a acto [libertação] a que o arguido não deu causa, antes decorreu de
exigências legais [incumprimento da prestação atempada, no quadro de uma
rogatória, dos elementos necessários à prática do acto rogado, o de
extradição].”
Por acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25 de Outubro de 2005, de fls. 41
, foi negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Na parte que agora releva, afirmou-se no mencionado acórdão:
“Nestes termos e logo da conjugação do disposto nos números 1 e 2 do citado
preceito legal [o artigo 336º do Código de Processo Penal] logo se conclui que
não assiste razão ao recorrente pois não tendo sido prestado termo de identidade
e residência apesar de como refere ter sido detido e restituído à liberdade
noutro país é evidente que tal situação não será só por si suficiente para
declarar nos autos caduca a contumácia. A entender-se de outro modo, que o
legislador não quis como resulta da leitura do próprio preceito legal, a
declaração de contumácia seria ineficaz, destituída de qualquer utilidade.
Aliás, o legislador vem reforçar o entendimento seguido pelo tribunal recorrido
no artigo 337º, n.º 1, do mesmo Código ao determinar que os mandados de detenção
são passados para cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo anterior (ou seja,
para prestar TIR, nomeadamente).
Nestes termos, o Mm.º Juiz a quo fez correcta interpretação e aplicação das
disposições legais referidas ao manter o arguido na situação de contumaz.
Também não se vislumbra a violação de qualquer preceito constitucional, até
porque o arguido em liberdade poderá prestar termo de identidade e residência,
fazendo cessar a situação de contumácia.”
2. Ainda inconformado, A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional,
o que fez nos seguintes termos:
“1. Fundamento do recurso: artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do TC.
2. Norma legal cuja inconstitucionalidade se pretende suscitar: o artigo 336º,
n.º 2, do CPP, quando prevê, como na dimensão normativa concreta que no caso se
aplicou, que a cessação de contumácia do arguido não cesse com a sua detenção,
mas apenas com a prestação do termo de identidade e residência, no caso em que à
detenção se seguiu a libertação do arguido, por razões alheias ao arguido, mas
impostas por exigências legais, sem que tal medida de coacção lhe fosse
aplicável.
3. Normas da Constituição violadas: artigo 32º, n.º 1 [garantias de defesa] da
CRP.”
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do
artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Pretende o recorrente discutir neste Tribunal a questão de saber se a norma
do artigo 336º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de
que a cessação da contumácia do arguido não cessa com a sua detenção, mas apenas
com a prestação do termo de identidade e residência, no caso em que à detenção
se seguiu a libertação do arguido, por razões alheias ao arguido, mas impostas
por exigências legais, sem que tal medida de coacção lhe fosse aplicável, viola
o artigo 32º, n.ºs 1 e 6, da Constituição.
Embora a decisão recorrida não tenha restringido ao termo de identidade e
residência a medida de coacção relevante, considera-se que não há obstáculos ao
conhecimento do recurso.
4. No entendimento do recorrente, a norma em apreciação violaria as citadas
disposições constitucionais na medida em que estas garantem ao arguido “o
direito de ser dispensado de comparecer em audiência, assegurados que lhe sejam
os direitos de defesa”.
Tal acusação de inconstitucionalidade é, todavia, manifestamente infundada.
Com efeito, dos números 1 e 6 do artigo 32º da Constituição não resulta um
direito do arguido “a ser dispensado de comparecer em audiência”, como pretende
o recorrente, mas apenas a necessidade de conciliação da possibilidade de
ausência do arguido nos actos processuais com a garantia dos seus direitos de
defesa, que devem ser assegurados não obstante essa possível ausência.
As garantias de defesa do arguido exigem, em princípio, a presença do arguido
nos actos processuais e não a sua ausência, como parece pretender o recorrente.
Segundo afirma Eduardo de Correia, “a presença física e constante do arguido na
audiência de discussão e julgamento é exigência fundamental do processo
criminal: ela constitui a necessária consequência do chamado princípio do
contraditório” (cfr. “Breves reflexões sobre a necessidade de reforma do Código
de Processo Penal, relativamente a réus presentes, ausentes e contumazes”, in
Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 110º, pp. 99 e seguintes; cfr.,
ainda, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I,
Coimbra, 2005, p. 360, bem como o Acórdão n.º 7/87 deste Tribunal, in Acórdãos
do Tribunal Constitucional, vol. 9, pp. 46 a 49).
Ora o recorrente não invoca a violação de qualquer das suas garantias de defesa,
como se viu; nem se vê por que razão a norma impugnada as atingiria.
5. Estão, portanto, reunidas condições para que se proceda à emissão da decisão
sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por
ser manifestamente infundada a questão de constitucionalidade colocada.
Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida
no que toca à questão de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs.»
2. Inconformado, o recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do
disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da
decisão sumária.
Em seu entender, e em síntese, o recurso não devia ter sido julgado na
decisão reclamada com base na argumentação apresentada perante o Tribunal
recorrido; antes deveria ter sido dada ao recorrente a oportunidade de, nas
alegações a apresentar no recurso de constitucionalidade, expor o raciocínio
jurídico de demonstração da inconstitucionalidade que suscitou.
E concluiu a reclamação nestes termos:
«Em suma: a decisão sumária, ao ter considerado que integrava a questão
decidenda uma questão, que não havia sido como tal configurada pelo recorrente
no seu requerimento de interposição do recurso, onde delimitou o objecto do
recurso de constitucionalidade, antes era um momento argumentativo de uma peça
processual antecedente (suscitada ante as instâncias de recurso) e ao ter desde
logo emitido pronúncia de rejeição mediante réplica directa a esse suposto modo
único de configurar o problema [como se ele tivesse sido assim configurado ou
fosse esse o único modo de o configurar] enferma de violação do artigo 78º-A da
Lei do TC.'
Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de
não ter sido violado o artigo 78º-A da Lei nº 28/82. Relembrando que é
pressuposto do recurso de constitucionalidade «a suscitação, durante o processo
e em termos processualmente adequados, de uma questão de inconstitucionalidade
normativa», e que isso exige que o recorrente cumpra atempadamente «um ónus de
fundamentação minimamente concludente», concluiu que
«Deste modo – e perante este regime particular e específico dos recursos de
fiscalização concreta – não constitui obviamente violação do artigo 78º-A da Lei
do Tribunal Constitucional a circunstância de a apreciação liminar do objecto do
recurso poder – e dever – ser influenciada pelos 'momentos argumentativos'
utilizados pela parte na peça processual em que cumpriu o ónus de suscitação da
questão de constitucionalidade».
3. Na verdade, a reclamação não pode proceder.
O sistema português de fiscalização concreta da constitucionalidade é um
sistema de recurso, ou seja, um sistema em que se impõe ao recorrente o ónus de
colocar ao tribunal recorrido uma questão de constitucionalidade em termos de
ele ser obrigado a julgá-la (n.º 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82), cabendo
depois recurso para o Tribunal Constitucional dessa decisão.
Isto significa que o ónus de suscitar a inconstitucionalidade 'durante o
processo' não se pode considerar cumprido com uma mera acusação não fundamentada
de inconstitucionalidade de uma norma, como se não passasse de um formalismo
desprovido de conteúdo e apenas destinado a abrir caminho ao recurso para o
Tribunal Constitucional.
O ora reclamante, ao colocar ao Tribunal da Relação de Évora a questão da
inconstitucionalidade da norma que definiu, justificou a alegação de
inconstitucionalidade da forma acima transcrita. Foi sobre essa questão que se
debruçou o tribunal recorrido, e da decisão proferida nesses termos é que o
recurso foi interposto.
Não é pois exacto – nem compatível com o sistema do recurso, para a
fiscalização concreta da constitucionalidade – que 'na estrutura processual dos
recursos para o TC' apenas ocorram 'dois momentos fundamentais', o requerimento
de interposição de recurso e as alegações proferidas no Tribunal Constitucional.
4. Não está em causa saber se, no requerimento de interposição de recurso ou,
eventualmente, nas alegações a produzir caso o recurso tenha seguimento, o
recorrente pode ou não acrescentar outro fundamento de inconstitucionalidade, ou
alterar o anteriormente definido; apenas releva, agora, recordar que, prevendo a
Lei nº 28/82 que o recurso de constitucionalidade possa ser liminarmente julgado
por decisão sumária, nomeadamente por se entender que é manifestamente infundado
(artigo 78º-A, n.º 1), o Tribunal Constitucional deve pôr termo ao recurso nesse
momento se, atendendo à fundamentação até aí apresentada pelo recorrente,
alcançar essa convicção de forma segura.
Foi o que ocorreu no presente recurso.
5. No caso presente, o reclamante não aponta na sua reclamação qualquer razão
para que seja revogado o julgamento de manifesta falta de fundamento. Aponta
como razões que poderiam justificar um juízo de inconstitucionalidade e que, em
alegações, poderia desenvolver, as seguintes: «(…) demonstração de que é
elemento essencial ao direito de defesa (i) o direito a ser dispensado a estar
presente em julgamento penal (…) (ii) ou, não vigorando tal direito de ausência
consentida, que ao menos seja tido por essencial à garantia constitucional de
defesa do arguido ele beneficiar de causas tarifadas que façam cessar os
institutos processuais destinados a desincentivar a revelia».
A primeira alternativa está afastada na decisão reclamada.
Quanto à segunda, há que verificar que a divergência entre o recorrente e o
tribunal recorrido não assenta em se entender que são ou não 'tarifadas' as
causas de cessação da situação de contumácia, mas antes na interpretação de uma
das causas previstas no artigo 337º do Código de Processo Penal. Ora saber qual
é a forma mais correcta de interpretar o direito ordinário está fora do âmbito
possível do recurso de constitucionalidade.
6. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de negar
provimento ao recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 14 de Fevereiro de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício