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Processo n.º 414/03
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
nas alíneas b) e g) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na sua actual versão, do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18 de
Dezembro de 2002, posteriormente aclarado pelo Acórdão do mesmo Tribunal, de 18
de Março de 2003, que negou provimento aos recursos interpostos de decisões
interlocutórias proferidas pela 3ª Vara Criminal da Comarca do Porto e do
acórdão do mesmo tribunal que o condenou pela prática de um crime continuado de
abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 30º, n.º 2, 79º e 172º, n.º 1, do
Código Penal de 1995, na pena de três anos e seis meses de prisão, dos quais
declarou perdoado um ano de prisão nos termos do art.º 1º, n.º 1, da Lei n.º
29/99, de 12 de Maio, sob a condição resolutiva da mesma Lei.
2 – Um dos despachos interlocutórios recorridos indeferiu o
requerimento feito pelo arguido, na contestação da acusação, de que fosse
requisitada certidão dos seguintes elementos constantes do processo tutelar n.º
930/97 do Tribunal de Menores do Porto, respeitante à menor ofendida: “i) auto
de denúncia que deu origem ao processo; ii) elementos documentais ou
testemunhais que tenham permitido identificar situações de risco; iii)
conclusões recolhidas no processo; iiii) decisões proferidas sobre o estado da
menor”.
O outro despacho interlocutório recorrido para a Relação foi
proferido pelo tribunal do julgamento em 1ª instância, após a produção de prova
e a prolação das respostas aos quesitos que formulara sobre matéria de facto,
afirmando-se nele, entre o mais que ora não importa notar, o seguinte: “pode-se
entender o que se diz sobre os pontos 3, 7, e 9 dos factos provados, poderá
constituir uma alteração não substancial, cujo regime é o do art.º 358º, do C.
P. Penal. Bem como por outro lado se pode concluir que os factos tidos como
provados integram um crime na forma constinuada. Assim, nos termos do art.º 358º
do C. P. Penal, comunique tal alteração ao arguido”.
3 – O acórdão recorrido, de 18 de Dezembro de 2002, tem o seguinte
teor, na parte útil à compreensão das questões de (in)constitucionalidade:
«A)
Ao contestar a acusação (fls. 227 e segs.), o arguido requereu que fosse
requisitada certidão de elementos do processo tutelar nº 930/97 respeitante à
menor B., requerimento que foi indeferido pelo despacho de fls. 238.
[...]
B)
Em audiência o tribunal colectivo (despacho de fls. 352 e 354) indeferiu o exame
e reconstituição requeridos a fls. 339 (“reconstituição do facto para prova da
impossibilidade do crime ser cometido pela forma dissimulada sugerida pelo
tribunal” e “... o exame da casa de morada do arguido e da máquina de cerzir
para prova da impossibilidade da autoria singular do crime pelo qual o arguido
está acusado”).
[...]
C)
Do acórdão condenatório interpôs também o arguido recurso terminando a sua
motivação com as seguintes conclusões:
[...]
*
Cumpre decidir.
[...)
*
A) Quanto ao recurso interposto do despacho de fls. 238.
Nos termos do art. 340º, n.º 1, do CPP, o tribunal ordena, oficiosamente ou a
requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe
afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Pretendia o arguido no requerimento indeferido que o tribunal a quo requisitasse
ao Trib. de Menores do Porto (e relativamente ao processo nº 930/97 que respeita
à menor B.) certidão do auto de denúncia que deu origem ao processo, elementos
documentais ou testemunhais que tenham permitido identificar situações de risco,
conclusões recolhidas no processo e decisões proferidas sobre o estado da menor.
O despacho de fls. 238 indeferiu a pretensão com base no art. 32º da OTM
porquanto 'a situação dos autos não se enquadra em nenhuma das aí previstas'.
E assim é, efectivamente.
Mas acrescentaríamos nós que a pretensão também deveria ter sido indeferida com
base no disposto pelo art. 340º, n.º 1, do CPP.
É que o processo tutelar tem em vista a protecção dos menores e não a
investigação de factos qualificados pela lei como crime de que hajam sido
vítimas os menores. Daí que, não sendo coincidente o objecto dos processos, os
elementos do processo tutelar não têm de interessar necessariamente ao processo
criminal.
Ora o recorrente parte da pressuposição que aquele processo está correlacionado
com os factos objecto destes autos e que os elementos aí existentes são
necessários à descoberta da verdade nestes autos. Mas toda a averiguação de
factos que interessam à decisão neste processo pode ser aqui feita (no processo
penal), não sendo necessário recorrer-se às averiguações eventualmente
realizadas em processos de outras jurisdições.
Não violou, pois, o despacho recorrido nem o art. 340º, n.º 1, do CPP nem as
disposições constitucionais citadas pelo recorrente.
Notamos que o relatório social sobre a B. (fls. 119 a 123), sendo certo que foi
elaborado para o processo tutelar, também poderia ter sido requisitado pelo juiz
nestes autos: ou seja, a junção de tal relatório a este processo não tinha de se
fazer necessariamente para o tribunal ter conhecimento dos elementos que de tal
relatório constam.
B) Quanto ao recurso do despacho ditado para a acta, a fls. 352 e 354.
No requerimento indeferido pretendia o recorrente que se procedesse à
'reconstituição do facto para prova da impossibilidade do crime ser cometido
pela forma dissimulada sugerida pelo tribunal' e se procedesse ao 'exame da casa
de morada do arguido e da máquina de cerzir para prova da impossibilidade da
autoria singular do crime'.
Ora a casa de morada do arguido está objectivamente descrita sob o nº 15 dos
factos provados.
A vivência nessa casa durante os fins de semana em que a B. aí ficava com os
padrinhos resulta do descrito sob os nºs 16, 22, 23, 24, 25 e 26 dos factos
provados.
Quanto à máquina de cerzir, o que releva para o caso é o ruído produzido pelo
funcionamento da mesma (segundo a menor, o padrinho ficava aflito e sustava a
sua actuação de carácter sexual quando a máquina deixava de funcionar).
Ora a audibilidade de tal ruído pôde ser avaliada pelo tribunal através dos
depoimentos ouvidos, como resulta das transcrições feitas nos autos,
designadamente pelo Mº Pº.
Daí que, quando o recorrente fez o requerimento indeferido, já o tribunal
dispunha dos elementos que lhe permitiam concluir sobre as interrogações que o
recorrente suscitava. Assim, visto o que dispõe o art. 340º , n.º 1, do CPP, o
tribunal não tinha que ordenar a produção das provas indeferidas porquanto não
se mostravam necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Não foi violado, pois, com tal indeferimento, o princípio do contraditório.
Quanto à questão aflorada nas conclusões deste recurso interlocutório sobre a
admissibilidade da alteração de factos nos termos do art. 358º do CPP após o
encerramento da discussão da causa, uma vez que tal questão volta a ser
suscitada no recurso interposto do acórdão, aí nos pronunciaremos sobre a mesma.
Quanto à pretensa violação do princípio da presunção de inocência por se terem
anunciado os factos que o tribunal considerava provados antes da publicação do
acórdão, notamos que o art. 32º, n.º 2, da Constituição estabelece que 'todo o
arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de
condenação'.
Ou seja, não é pelo facto de o tribunal comunicar aos sujeitos processuais os
factos que considera provados antes da publicação do acórdão (independentemente
de essa convicção ser ainda provisória quanto aos factos relativamente aos quais
se considerou ter havido alteração, uma vez que se admitiu o contraditório) que
cessa a presunção de inocência do arguido, tal como não é pelo facto de ser
publicado o acórdão condenatório que a mesma presunção cessa.
C)
Quanto ao recurso interposto do acórdão condenatório.
I - Diz o recorrente que foi condenado por factos praticados em circunstâncias
espacio-temporais totalmente inverosímeis, porquanto se lhe imputa a comissão de
centenas de agressões sexuais praticadas no domicílio indescobertamente por
qualquer dos residentes.
Ora, como se vê da descrição dos factos provados sob o n.º 4, os factos mais
difíceis de dissimular aconteceram por 'várias vezes' e 'uma vez'.
Os factos descritos sob o n.º 5 não precisavam de grandes cuidados de
dissimulação já que podiam ser feitos em pouco tempo e sem deixar vestígios.
Não se verifica, pois, a inverosimilhança pretendida.
II - Pretende o recorrente que o acórdão condenatório é nulo nos termos do art.
379º, n.º 1, b), do CPP porque condenou o arguido por factos diversos dos
descritos na acusação e na pronúncia fora do caso previsto pelo art. 358º, n.º
1, do CPP.
Segundo o recorrente não vale como comunicação de alteração de factos nos termos
do art. 358º, n.º 1, do CPP a efectuada após o encerramento da audiência de
discussão e julgamento e após a deliberação do colectivo quanto à matéria de
facto.
O recorrente defende, pois, que a expressão “no decurso da audiência” usada no
art. 385º, n.º 1, do CPP deve ter uma interpretação restrita, significando que o
tribunal terá de fazer a comunicação da alteração até ao encerramento da
discussão da causa: diz ele que da lei processual resulta uma distinção clara
entre audiência e sentença.
Mas a palavra audiência tem um significado mais lato, abarcando mesmo a
publicação da decisão final.
Cumpre pois fazer uma interpretação teleológica dos arts. 358º e 359º do CPP, já
que a interpretação adequada é a que atende às finalidades tidas em vista pelo
legislador.
Ora, sendo certo que o art. 361º, n.º 2, do CPP estabelece que o presidente
declara encerrada a discussão e só prevê a reabertura nos termos do art. 371º
(reabertura da audiência para a determinação da sanção), julgamos que não poderá
deixar de se proceder do mesmo modo se na fase de deliberação o tribunal
concluir que da produção da prova resultou uma alteração dos factos da acusação
ou da pronúncia.
É, aliás, o procedimento previsto pelo art. 4º do CPP para a integração de
lacunas nos casos em que o próprio diploma contém disposições que podem
aplicar-se por analogia.
Com efeito o processo penal visa atingir a verdade material e a justiça da
decisão. Ora a impossibilidade de reabrir a discussão da causa, designadamente
para assegurar o contraditório, quando a deliberação sobre a matéria de facto
revela que da produção da prova resultou uma alteração dos factos da acusação ou
da pronúncia, obstaria a que a decisão tivesse em conta a verdade material que
resultou da prova produzida.
E não se diga que tal procedimento viola o princípio da vinculação temática -
art. 379º, nº 1, b), do CPP. É que foi o próprio legislador que previu a
alteração de factos nos arts. 358º e 359º do CPP.
III - Quanto à invocada inconstitucionalidade da interpretação e aplicação feita
do art. 358º, n.º 1, do CPP.
Diz o recorrente que o art. 358º, n.º 1, do CPP, tal como foi interpretado e
aplicado, viola os princípios do acusatório e do contraditório consagrados nos
n.ºs 1 e 5 do art. 32º da Constituição.
Ora o n.º 5 do mencionado art. 32º apenas estabelece que o processo penal terá
estrutura acusatória. Julgamos que não pode sustentar-se que a alteração de
factos consentida pelo art. 358º, n.º 1, do CPP desvirtue a estrutura acusatória
do processo penal.
Com efeito a alteração aí prevista refere-se a factos que, modificando embora os
que constam da acusação ou da pronúncia, não acarretam a imputação de um crime
diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Por outro lado a comunicação da alteração após a deliberação sobre a matéria de
facto em nada interfere com a estrutura acusatória do processo penal.
Quanto ao princípio do contraditório ele foi efectivamente assegurado: após a
comunicação da alteração o arguido indicou prova e foram ouvidas as testemunhas
pelo mesmo indicadas (acta de fls. 348 e segs.).
O recorrente diz que não foi assegurado o contraditório porque a deliberação foi
tomada antes de exercido o mesmo.
É evidente que não foi assim: houve realmente uma primeira deliberação quanto à
matéria de facto antes de produzida a prova relativamente aos factos que não
constavam da pronúncia, mas houve nova deliberação depois de produzida a prova
relativamente a esses factos (vide actas de fls. 361 e de fls. 391 ).
[...]
3) Diz o recorrente que não foi dado cabal cumprimento ao disposto pelo art.
374º, n.º 2, do CPP.
Mas a leitura da fundamentação quanto à convicção sobre a matéria de facto
permite conhecer o processo lógico que levou à convicção do tribunal, pelo que,
vistas as finalidades da norma, foi dado suficiente cumprimento ao disposto pela
mesma.
[...]
*
Pelo que precede acorda-se em negar provimento aos recursos confirmando-se os
despachos e o acórdão recorridos.».
4 – Requerido pelo arguido o esclarecimento deste acórdão, o
tribunal a quo decidiu nos seguintes termos:
«Publicado o acórdão de fls. 577 e seguintes, o recorrente A. apresentou o
requerimento de fls. 601 em que pede a aclaração do dito acórdão nos termos
seguintes:
A - Quanto ao recurso interposto do despacho de fls. 238:
Escreve-se no acórdão - parágrafo de fls. 11 a 12 – o seguinte:
'o recorrente parte da pressuposição que aquele processo está correlacionado com
os factos objecto destes autos e que os elementos aí existentes são necessários
à descoberta da verdade nestes autos. Mas toda a averiguação de factos que
interessam à decisão neste processo pode ser aqui feita (no processo penal), não
sendo necessário recorrer-se às averiguações eventualmente realizadas em
processos de outras jurisdições'.
A única pressuposição do pedido - também aceite pelo acórdão - era a de que o
processo tutelar identificado respeita à menor B..
A menor B. foi a principal testemunha de acusação.
A afirmação condicional operada no acórdão segundo a qual toda a investigação
'pode ser feita aqui' não significa que tal investigação tenha sido feita de
facto.
E, da leitura da decisão, como da consulta dos autos, não resulta que o tribunal
tenha querido conhecer os factos a que respeitava tal processo tutelar.
Fica por conhecer, já por consulta do processo tutelar, já por investigação
feita nos autos, quais os factos a que respeitava o identificado processo e se
os mesmos estão ou não correlacionados com os factos investigados nos autos.
Não se percebendo se o tribunal recorrido (queria certamente dizer tribunal de
recurso) quis afirmar com semelhante passagem e decisão que o art. 340º do CPP
não foi violado porque:
1) foi feita toda a investigação que podia ter sido feita?
2) não tinha que ser feita a investigação requerida?
O que precisam de ver esclarecido para entenderem qual o sentido da
interpretação dada ao art. 340º, n.º 1, do CPP pelo Tribunal da Relação.
B - Quanto ao recurso do despacho ditado para a acta a fls. 352 e 354:
Escreve-se no acórdão - parágrafo quarto de fls. 13 o seguinte:
Não é pelo facto do tribunal comunicar aos sujeitos processuais os factos que
considera provados antes da publicação do acórdão (independentemente de essa
convicção ser ainda provisória quanto aos factos relativamente aos quais se
considerou ter havido alteração, uma vez que se admitiu o contraditório) que
cessa a presunção de inocência'.
A passagem do acórdão não vem acompanhada de fundamentação legal que permita ao
arguido sequer compreender qual a legislação aplicada. E menos qual o sentido
com que foi interpretada.
Precisa o arguido de ver esclarecido quais os normativos legais - do CPP ou
outros diplomas - que permitam ao tribunal:
1) formar 'convicção provisória' - o que quer que (seja) - relativamente aos
factos que integram o objecto do processo;
2) interromper a leitura do acórdão para comunicar alteração de factos, após
deliberação.
E precisa ainda de ver esclarecido:
3) qual o sentido e alcance da expressão 'convicção provisória',
identificando-se por referência a artigos da lei processual, qual o momento e o
modo pelo qual se forma essa convicção.
C - Quanto ao recurso do acórdão condenatório:
[...]
Notificado deste requerimento de aclaração, o M.º P.º nada respondeu.
Os Ex.mos Presidente e Adjuntos tiveram vista dos autos.
*
Conhecendo dos pedidos de esclarecimento.
A - Quanto à requisição de elementos do processo tutelar:
Diz o arguido que fica por conhecer a que factos respeitava o identificado
processo tutelar e se os mesmos estão ou não correlacionados com os factos
investigados nestes autos.
Ora, em abstracto, para se conhecerem os factos investigados nestes autos é
irrelevante saber a que factos respeitava um processo de outra jurisdição e se
tais factos estariam correlacionados com os factos destes autos.
E nada se vê nos autos nem o arguido indica qualquer elemento que aponte para a
utilidade, em concreto e relativamente à descoberta da verdade nestes autos, de
se conhecerem os factos investigados naquele processo tutelar.
Pergunta o arguido se foi feita toda a investigação que podia ter sido feita.
Dos autos resulta que foi feita toda a investigação relevante que o M.º P.º e o
arguido requereram.
Pedir peças de um processo sem objectivo conhecido é uma investigação
irrelevante.
O arguido ainda não disse até agora o que de relevante pretendia encontrar nesse
processo tutelar.
Se pretendia ir lá colher elementos respeitantes à personalidade da menor também
podia requerer testes de personalidade ou requerer a audição de testemunhas que
prestassem as informações necessárias.
O que constava do auto que deu causa ao processo tutelar, sem mais, é
irrelevante para a investigação dos factos destes autos, tal como o é
conhecerem-se os elementos documentais ou testemunhais as conclusões quanto às
situações de risco da menor e as decisões aí proferidas.
Concluindo: não tinham de ser investigados os elementos pedidos do processo
tutelar até porque não se vê, nem foi indicado, o que aí se pretendia saber com
utilidade para estes autos.
B - Quanto ao recurso do despacho ditado para a acta a fls. 352 e 354.
Diz o recorrente que o acórdão aclarando não indica a fundamentação legal donde
resulta que a comunicação aos sujeitos processuais dos factos que considera
provados antes da publicação da decisão final não viola a regra da presunção da
inocência do arguido.
Essa fundamentação, porém, foi indicada: o art. 32º, n.º 2, da Constituição
estabelece que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da
sentença de condenação.
Tal preceito constitucional significa que o despacho proferido no inquérito pelo
juiz de instrução considerando um arguido indiciado como autor de determinados
factos e impondo-lhe uma medida coacção não afasta a presunção de inocência
desse arguido; tal como não afasta essa presunção o despacho que pronuncia o
arguido como autor de determinados factos ou a comunicação que, nos termos do
art. 358º, n.º 1, do CPP, é feita ao arguido quando no decurso da audiência se
verifica uma alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. Em
qualquer dessas situações processuais é feito um juízo quanto à prática de
determinados factos pelo arguido: este, porém continua a presumir-se inocente
'ex vi' do citado normativo constitucional.
Diz o recorrente que precisa de ver esclarecido quais os normativos legais que
permitem ao tribunal formar 'convicção provisória'.
Ora o art. 358º, n.º 1, do CPP dispõe que, se no decurso da audiência se
verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na
pronúncia, com relevo para a decisão da causa, o presidente comunica a alteração
ao arguido.
Julgamos que esta norma não pode deixar de significar que o tribunal faz um
juízo sobre a prova já produzida e, concluindo que a prova aponta para factos
que não correspondem exactamente aos descritos na acusação ou na pronúncia,
comunica ao arguido os factos tal como os considera indiciados pelas provas
produzidas.
Esse juízo sobre os factos que resultam da prova produzida não pode ser um juízo
definitivo já que o citado art. 358º, n.º 1, do CPP prevê que ao arguido seja
concedido o tempo necessário para a preparação da defesa. A esse juízo sobre os
factos que terão resultado da prova produzida poderá chamar-se 'convicção
provisória' ou designar-se por outra qualquer expressão que traduza a realidade
tida em vista pelo citado normativo.
Pretende o recorrente saber quais os normativos legais que permitem ao tribunal
interromper a leitura de acórdão para comunicar alteração de factos após
deliberação.
Quando o julgamento é da competência de um tribunal colegial, o juízo sobre os
factos que resultam da prova já produzida é o que for expresso após deliberação
dos juízes ou dos juízes e jurados que constituem o tribunal.
Uma vez que o art. 358º, n.º 1, do CPP prevê que o presidente do tribunal
comunica ao arguido a alteração dos factos que se entende estar verificada
relativamente aos que foram descritos na acusação ou na pronúncia, a verificação
dessa alteração não poderá deixar de resultar de deliberação quando o tribunal
for colegial.
Quanto à forma como o tribunal deve fazer a comunicação da alteração dos factos
prevista pelo n.º 1 do art. 358º do CPP, a lei não a estabelece. Assim o
tribunal poderá utilizar qualquer forma que julgue adequada.
No caso dos autos, através da M.ma Juíza Presidente, o tribunal fez a
comunicação que se mostra na acta de fls. 323 e seguintes.
É irrelevante que a essa comunicação se chame leitura de acórdão ou que se
designe a mesma por qualquer outra expressão. Com efeito, como do próprio texto
de tal comunicação se pode concluir, não se trata da decisão final do processo
mas da comunicação de alteração dos factos da pronúncia prevista pelo art. 358º,
n.º 1, do CPP.
E é do mesmo modo irrelevante que a comunicação da alteração dos factos tenha
sido iniciada pela expressão 'provaram-se os seguintes factos'. Com efeito tal
expressão apenas pode significar que, perante a prova até então produzida, o
tribunal entendeu que tal prova apontava para que se viessem a dar como provados
os factos nessa comunicação descritos (ou seja, para o tribunal, naquele momento
e com aquelas provas, os factos que considerava provados eram os descritos na
comunicação). É que, tendo sido dado prazo para a organização da defesa e
admitida a produção de nova prova, essa prova a produzir poderia ter o efeito de
alterar decisivamente o juízo do tribunal quanto aos factos descritos na
comunicação.
Não houve pois a interrupção da leitura do acórdão final para comunicar a
alteração de factos: houve sim a comunicação a que se refere o art. 358º, n.º 1,
do CPP, utilizando-se uma fórmula idêntica à que costuma ser usada nas decisões
finais.
Como se disse acima, porque o tribunal da causa era um tribunal colegial, a
comunicação a que se refere o art. 358º, n.º 1, do CPP não podia deixar de ser
precedida de deliberação.
Diz o recorrente que precisa de ver esclarecido qual o sentido e alcance da
expressão 'convicção provisória'.
Como já resulta do que acima se expôs, o art. 358º, n.º 1, do CPP, ao prever que
o tribunal comunique ao arguido alteração dos factos descritos na acusação ou na
pronúncia, está a admitir que o tribunal possa fazer um juízo quanto aos factos
antes da decisão final.
É, aliás, o resultado da constatação do facto psicológico de que a convicção
quanto aos factos que se investigam é progressivamente compreensiva, ou seja, é
progressivamente enriquecida pelas provas a que sucessivamente se vai tendo
acesso, por forma que a convicção quanto aos factos que se investigam vai
evoluindo consoante os sucessivos 'apports' probatórios.
Quanto ao momento e ao modo como se forma sucessivamente a convicção
relativamente aos factos averiguados, para os efeitos do art. 358º, n.º 1, do
CPP apenas interessa o momento em que o tribunal conclui que a prova produzida
aponta para uma alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Na prática esse momento surgirá normalmente quando, produzida toda a prova
requerida, ao examinar essa prova o tribunal conclui que a mesma aponta para uma
alteração dos factos descritos na acusação ou pronúncia.
Se tal acontecer depois de encerrada a discussão da causa, esta terá de ser
reaberta para ser produzida a nova prova que venha a ser requerida pelo arguido
(aplicação por analogia dos arts. 361º, n.º 2, e 371º, n.º 1, do CPP 'ex vi' do
art. 4º do mesmo diploma).
C - Quanto ao recurso do acórdão condenatório.
[...]
Nos termos expostos acorda-se em considerar aclaradas as questões postas pelo
recorrente.».
5 – Destes acórdãos o arguido interpôs recurso de
constitucionalidade através do seguinte requerimento:
«Os recorrentes pretendem ver apreciadas as seguintes questões de
inconstitucionalidade:
1ª questão
Do art. 36º, n.º 2, da OTM, quando interpretado e aplicado com o sentido e
alcance a fls. 238, de ser inadmissível a requisição de certidão de processo
tutelar que constitua objecto de prova de factos juridicamente relevantes para a
existência do crime.
Tal norma, com a interpretação e aplicação indicada, viola todas as garantias de
defesa em processo criminal e o princípio do contraditório consagrados no art.
32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República.
A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos, no recurso
interposto a fls. 239, e conhecido pelo Acórdão recorrido.
2ª questão
Do art. 358º, n.º 1, do CPP, quando interpretado e aplicado com o sentido e
alcance dado a fls. 354, proferidos na sequência de proclamação pública de juízo
de culpabilidade.
Tal norma, com a interpretação e aplicação indicada, viola o princípio de
presunção de inocência consagrado no art. 32º, n.º 2, da Constituição da
República.
Tal norma, com a interpretação e aplicação indicada, viola ainda todas as
garantias de defesa (a qual deve entender-se como defesa eficaz) e os princípios
do acusatório, de que decorre a vinculação temática do tribunal ao objecto do
processo tal como fixado na pronuncia, e do contraditório, o qual só pode ser
exercido antes da deliberação, consagrados no art. 32º, n.ºs 1 e 5, da
Constituição da República;
A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos, no recurso
interposto a fls. 393, e no recurso interposto da decisão final condenatória, e
decidido pelo acórdão recorrido.
3ª questão
Do art. 374º, n.º 2, do CPP, com a interpretação com que foi aplicado no acórdão
de 1ª instância e referenciado no acórdão recorrido, que operou a simples
enunciação dos meios de prova, sem qualquer exame crítico.
Tal norma, com a interpretação e aplicação indicada, viola todas as garantias de
defesa em processo criminal e o princípio do contraditório consagrados no art.
32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República.
A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos, no recurso
interposto da decisão condenatória de 1ª instância, fls. , e conhecida no
acórdão recorrido.».
6 – Após apresentação de requerimento complementar de interposição
de recurso, na sequência de convite feito pelo relator, no Tribunal
Constitucional, ao abrigo do n.º 5 do art.º 75º-A da LTC, foi ordenada a
apresentação de alegações.
7 - Efectuadas estas, proferiu o relator parecer sobre a possível
verificação de questões que obstam ao conhecimento do recurso.
Disse-se aí:
«1 - Estudados os autos com vista à elaboração de projecto de
acórdão depois de apresentadas alegações das partes, constata-se ser admissível
a verificação de duas questões prévias que, a existirem, obstarão ao
conhecimento de duas das três questões de constitucionalidade cuja apreciação o
recorrente pretende no presente recurso.
2 – Por isso se elabora o presente parecer e se determina a audição
do recorrente e recorrido, nos termos dos art.ºs 704º, n.º 1, e 726º do Código
de Processo Civil (ex vi do art.º 69º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), para
se pronunciarem sobre ele, pelo prazo de 10 dias.
3 – Quanto à primeira questão.
O recorrente pretende a apreciação de inconstitucionalidade da norma
constante do art.º 36º, n.º 2, da OTM, entendida no sentido de não ser
admissível, por não se enquadrar em qualquer das situações previstas no
preceito, a obtenção e a junção aos autos de processo crime, onde veio a ser
condenado por sentença sujeita a recurso pela prática de um crime continuado de
abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 30º, n.º 2, 79º e 172º, n.º 1, do
Código Penal de 1995, na pena de três anos e seis meses de prisão, de certidão
do auto de denúncia que deu origem ao processo n.º 930/97 do Tribunal de Menores
do Porto, dos elementos documentais e testemunhais que tenham permitido
identificar situações de risco, conclusões recolhidas e decisões proferidas
sobre o estado da menor ofendida, tudo do mesmo processo, por violação do
disposto nos art.ºs 27º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa.
O recorrente viu indeferido, por decisão do tribunal de 1ª
instância, o pedido de certidão com este objecto que havia formulado na sua
contestação da acusação.
Ora, verifica-se que, tendo o recorrente interposto recurso para o
Tribunal da Relação, este Tribunal de 2ª instância manteve o indeferimento do
pedido não só com base no concreto fundamento normativo em que se estribou a
decisão de 1ª instância – e cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver
sindicada – mas também com base em outro fundamento normativo autónomo cuja
constitucionalidade o recorrente não sindica.
Na verdade, o acórdão da Relação decidiu manter o indeferimento
daquele pedido não só com base na aplicação do art.º 36º, n.º 2, da OTM, mas
também com base na aplicação do disposto no art.º 340º, n.º 1, do Código de
Processo Penal (CPP), por considerar que a obtenção da pretendida certidão,
mesmo a ser admitida legalmente, não se afigurava, em concreto, necessária “à
descoberta da verdade material e à boa decisão da causa”.
Perante a adição deste novo fundamento com base no qual o
indeferimento do pedido de certidão sempre teria de manter-se, o recorrente
questionou a Relação no sentido desta esclarecer se considerou “o art.º 340º,
n.º 1, do CPP não violado porque: 1) foi feita toda a investigação que podia ter
sido feita? 2) [ou] não tinha que ser feita a investigação requerida?”
Respondendo ao pedido de esclarecimento, a Relação disse o seguinte:
«Diz o arguido que fica por conhecer a que factos respeitava o
identificado processo tutelar e se os mesmos estão ou não correlacionados com os
factos investigados nestes autos.
Ora, em abstracto, para se conhecerem os factos investigados nestes
autos é irrelevante saber a que factos respeitava um processo de outra
jurisdição e se tais factos estariam correlacionados com os factos destes autos.
E nada se vê nos autos nem o arguido indica qualquer elemento que
aponte para a utilidade, em concreto, e relativamente à descoberta da verdade
nestes autos, de se conhecerem os factos investigados naquele processo tutelar.
Pergunta o arguido se foi feita toda a investigação que poderia ter
sido feita.
Dos autos resulta que foi feita toda a investigação relevante que o
M.º P.º e o arguido requereram.
Pedir peças de um processo sem objectivo conhecido é uma
investigação irrelevante.
O arguido ainda não disse até agora o que de relevante pretendia
encontrar nesse processo tutelar.
Se pretendia ir lá colher elementos respeitantes à personalidade da
menor também podia requerer testes de personalidade ou requerer a audição de
testemunhas que prestassem as informações necessárias.
O que consta do auto que deu causa ao processo tutelar, sem mais, é
irrelevante para a investigação dos factos destes autos, tal como é
conhecerem-se os elementos documentais ou testemunhais, as conclusões quanto às
situações de risco da menor e as decisões aí proferidas.
Concluindo: não tinham de ser investigados os elementos pedidos do
processo tutelar até porque não se vê, nem foi indicado, o que aí se pretendia
saber com utilidade para estes autos”.
Resulta assim evidente que a ratio decidendi do acórdão da Relação é
constituída por dois fundamentos normativos alternativos e autónomos.
Ora, o recorrente apenas sindica constitucionalmente a norma do art.º 36º, n.º
2, da OTM, não questionando a outra norma – o art.º 340º, n.º 1, do CPP.
Deste modo verifica-se que, mesmo que o Tribunal Constitucional
viesse a pronunciar-se no sentido da inconstitucionalidade daquela primeira
norma ou seja, no sentido de que seria inconstitucional a norma do art.º 36º,
n.º 2, da OTM, entendida no sentido de estabelecer a inadmissibilidade de
obtenção de certidão de elementos do processo tutelar para junção a autos de
processo-crime, ainda assim em decisão posterior de reforma do acórdão recorrido
consequente da hipotizada pronúncia do Tribunal Constitucional, o indeferimento
sempre teria de ser mantido com base na aplicação do art.º 340º, n.º 1, do CPP,
e na consideração de que, em concreto, essa obtenção e junção aos autos não se
apresenta[r] como “necessária à descoberta da verdade e da boa decisão da
causa”.
Não podendo sair cumprida a função instrumental do recurso de
constitucionalidade relativamente ao decidido quanto à obtenção e junção aos
autos do processo-crime da referida certidão – requisito esse que constitui um
pressuposto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade -
torna-se inútil o conhecimento da questão de constitucionalidade relativa ao
art.º 36º, n.º 2, da OTM, não havendo assim que tomar conhecimento dela.
4 – Vejamos agora a segunda questão.
O recorrente recorre ainda do acórdão da Relação, ao abrigo do
disposto na alínea g) do n.º 1 do art.º 70º da LTC, dizendo que o “art.º 374º,
n.º 2, do CPP, com a interpretação com que foi aplicado no acórdão de 1ª
instância e referenciado no acórdão recorrido, que operou a simples enunciação
dos meios de prova, sem qualquer exame crítico” constitui uma aplicação dessa
norma com um sentido que foi julgado inconstitucional no acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 680/98, sendo que aquela interpretação viola o disposto nos
art.ºs 205º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP.
Este acórdão do Tribunal Constitucional (publicado nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 41º vol., pp. 539 e ss.) decidiu “julgar
inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de
1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de
facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª
instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do
tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais
previsto no n.º 1 do artigo 205º da Constituição, bem como, quando conjugada com
a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º do mesmo código, por
violação do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32º também da
Constituição”.
Ora, no recurso interposto para o Tribunal da Relação, o recorrente
alegou que “o tribunal (de 1ª instância) se limitou, em sede de fundamentação de
facto, a referenciar demoradamente o depoimento de testemunhas, sem proceder a
qualquer exame crítico da prova produzida”, “efectuando interpretação e
aplicação do disposto no art.º 374º, n.º 2, do CPP desconformes à Constituição
por violação dos específicos deveres de fundamentação e direito de recurso,
consagrados nos art.ºs 205º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da Constituição”.
Apreciando esse fundamento do recurso diz o acórdão recorrido o
seguinte:
«Diz o recorrente que não foi dado cabal cumprimento ao disposto
pelo art.º 374º, n.º 2, do CPP.
Mas a leitura da fundamentação quanto à convicção sobre a matéria de
facto permite conhecer o processo lógico que levou à convicção do tribunal, pelo
que, vistas as finalidades da norma, foi dado suficiente cumprimento ao disposto
pela mesma”.
Decorre, com toda a clareza, deste excerto do discurso do acórdão da
Relação que este não entendeu e não aplicou a norma do art.º 374º, n.º 2, do CPP
no sentido julgado inconstitucional pelo referido acórdão n.º 680/98 na
apreciação que fez do acórdão recorrido de 1ª instância, em conhecimento do
alegado fundamento de recurso.
Embora de forma lacónica, o acórdão recorrido diz permitir o acórdão de 1ª
instância conhecer o processo lógico que levou à formação da sua convicção em
matéria de facto e que tal satisfaz suficientemente as finalidades da norma,
pelo que quer o acórdão de 1ª instância quer o acórdão recorrido assentam no
entendimento dessa norma no sentido de ter de dar a conhecer esse processo
lógico ou racional de formação da convicção do tribunal em matéria de facto.
Temos, portanto, que o acórdão recorrido não aplicou o critério
normativo julgado inconstitucional, pelo que não se verifica o pressuposto do
recurso estabelecido na referida alínea g) do n.º 1 do art.º 70º da LTC,
obstando tal facto ao conhecimento do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade na parte em que este tem por objecto essa norma.
A discordância do recorrente sobre o resultado do concreto juízo
feito pelo acórdão recorrido na subsunção das especificidades do caso ao
critério que seguiu não diz respeito já à norma e à sua conformidade com a Lei
Fundamental que a Relação (e o tribunal de 1ª instância) aplicou mas à correcção
da decisão judicial na aplicação/subsunção concreta desse critério normativo ou
seja, à decisão judicial em si própria, não podendo ser objecto de recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade, dado ele versar apenas sobre
normas jurídicas.».
8 – Ouvidos o recorrente e recorrido sobre as referidas questões
prévias, ambos responderam ao parecer do relator.
O recorrente defendeu, em longo articulado, o conhecimento das duas
questões de inconstitucionalidade, argumentando do seguinte jeito:
«Salvo melhor juízo só aparentemente se verificam tais questões prévias.
Vejamos porque é assim.
B/Da inconstitucionalidade material do art. 36º, n.º 2, da OTM
Em causa a questão de saber se o Tribunal de julgamento podia e devia ordenar a
requisição de uma certidão de um processo tutelar, conforme fundamentos
indicados na contestação e para prova dos factos aí articulados. (auto de
denúncia que deu origem ao processo nº 930/97 do Tribunal de Menores do Porto,
elementos documentais e testemunhais que tenham permitido identificar situações
de risco, conclusões recolhidas e decisões proferidas sobre o estado da menor
ofendida).
Prova recusada com o fundamento expresso na proibição consagrada no normativo
indicado e cuja constitucionalidade se pretende ver sindicada e não com o
fundamento da sua desnecessidade nos termos do art. 340º, n.º 1, do CPP.
Na tese do parecer
'Resulta assim evidente que a ratio decidendi do acórdão da Relação é
constituída por dois fundamentos normativos alternativos e autónomos. Ora, o
recorrente apenas sindica constitucionalmente a norma do art. 36º, n.º 2, da
OTM, não questionando a outra norma - o art. 340º, n.º 1, do CPP'.
Daqui se retirando no parecer que
mesmo que se declarasse a inconstitucionalidade do entendimento dado a tal
norma, ainda assim, o indeferimento sempre teria de ser mantido com base na
aplicação do art. 340º, n.º 1, do CPP, e na consideração de, em concreto, essa
obtenção e junção aos autos não se apresentar como 'necessária à descoberta da
verdade e da boa decisão da causa'.
Não podendo sair cumprida a função instrumental do recurso de
constitucionalidade relativamente ao decidido quanto à obtenção e junção aos
autos do processo-crime da referida certidão - requisito esse que constitui um
pressuposto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade -
torna-se inútil o conhecimento da questão de constitucionalidade relativa ao
art. 36º, n.º 2, da OTM, não havendo assim que tomar conhecimento dela'
É sugestiva mas parece inexactamente colocada a questão prévia suscitada.
O que resultará da indevida equação quer das decisões proferidas, quer do regime
processual penal aplicável em fase de julgamento e de recurso.
Explica-se.
Pressuposto do parecer é que a decisão do Tribunal da Relação aplica quer o
regime do art. 36º, n.º 2, da LTM, quer o art. 340º, n.º 1, do CPP.
Poderia admitir-se o raciocínio se a decisão de 1ª instância - de indeferimento
do meio de prova - se tivesse fundamentado (i) quer na inadmissibilidade legal
do meio de prova (de constitucionalidade sindicada), (ii) quer na desnecessidade
do meio de prova para a descoberta da verdade, nos termos e para os efeitos do
art. 340º, n.º 1, do CPP.
Sucede que a decisão da 1ª instância de indeferir o meio de prova não se funda
no art. 340º do CPP.
Tão só na interpretação e aplicação da norma sindicada.
Por isso não foi objecto do recurso em primeira instância o uso efectuado do
normativo do CPP.
Ora, como é conhecido, os recursos não servem para colocar questões novas.
E não cabem nos poderes das Relações - em processo penal - a apreciação de
questões não colocadas e que não são de conhecimento oficioso.
Saber se o meio de prova requerido na contestação devia ou não ser produzido,
saber se tinha ou não interesse para a descoberta da verdade e para a decisão de
mérito, é matéria da competência do Tribunal de julgamento.
Apenas se o Tribunal de 1ª instância tivesse feito uso dos poderes conferidos
pelo art. 340º, n.º 1, do CPP, para indeferir o meio de prova requisitado,
poderia o arguido sindicar primeiro essa decisão arguindo a nulidade do art.
120º, n.º 2, al. d), do CPP e recorrendo depois da decisão que indeferisse a
arguição daquela nulidade.
Não fazia assim parte do objecto do recurso a bondade da aplicação do art. 340º,
n.º 1, do CPP que o Tribunal de 1ª instância não aplicou, nem desaplicou.
O que vale por dizer que as passagens do acórdão do Tribunal da Relação em que -
por referência ao art. 340º, nº 1, do CPP - se sustenta que o indeferimento do
meio de prova deveria ser mantido com base na aplicação deste normativo não
revestem natureza decisória.
O Tribunal da Relação não aplicou, nem desaplicou o art. 340º, n.º 1, do CPP.
Nem podia.
Como o Tribunal de 1ª instância não o aplicou, nem desaplicou.
Com este enquadramento - que é o da lei do processo penal - a ratio decidendi do
acórdão do Tribunal da Relação do Porto não se apoia em dois fundamentos
normativos alternativos e autónomos.
Mas num só fundamento!...
Constituindo a referência ao art. 340º, n.º 1, do CPP um mero obter dictum, não
decisório e, consequentemente, não impugnável.
Nem em sede de recurso ordinário de processo penal, por força da previsão legal
da inadmissibilidade do recurso dessa decisão da Relação; art. 400º, n.º 1, als.
b), e f), do CPP.
Nem em sede de recurso de constitucionalidade.
Mantendo-se a utilidade no conhecimento do recurso que precede - necessariamente
- a decisão que só o Tribunal de 1ª instância poderia proferir quanto à
utilidade/necessidade do meio de prova.
Sob pena de preclusão do efectivo direito de recurso e das garantias de defesa.
Como invocado.
Sendo irrelevante apreciar se as afirmações produzidas pelo Tribunal da Relação
do Porto, em obiter dictum, insiste-se, se mostram adequadas ou inadequadas,
sempre se dirá que as mesmas são de todo injustificadas.
Não se verifica a primeira questão prévia.
C Da inconstitucionalidade material do art. 374º, n.º 2, do CPP
Em causa saber se as instâncias judiciais - de julgamento e de recurso -
interpretaram e aplicaram o art. 374º, n.º 2, por critérios normativos conformes
ou desconformes à Constituição.
O arguido recorreu, ao abrigo do disposto na alínea g) do nº 1 do art. 70º da
LTC, dizendo que o art. 374º, nº 2, do CPP, com a interpretação com que foi
aplicado no acórdão de 1ª instância e referenciado no acórdão recorrido, que
operou a simples enunciação dos meios de prova, “sem qualquer exame critico”.o
que constitui uma aplicação dessa norma com um sentido que foi julgado
inconstitucional no acórdão do Tribunal Constitucional nº 680/98, sendo que
aquela interpretação viola o disposto nos art.s 205º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da
CRP.
Decidiu o Tribunal Constitucional no referido Acórdão, “julgar inconstitucional
a norma do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, na
interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se
basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância,
não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal,
por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no
n.º 1 do artigo 205º da Constituição, bem como, quando conjugada com a norma das
alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º do mesmo código, por violação do direito
ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32º também da Constituição.”.
Sustenta-se no parecer que
o Tribunal da Relação do Porto não entendeu e não aplicou a norma do art. 374º,
n.º 2, do CPP, no sentido julgado inconstitucional pelo referido acórdão n.°
680/98, na apreciação que fez do acórdão recorrido de 1ª instância, em
conhecimento do alegado fundamento do recurso,
Isto porque,
apesar de ter concordado com a simples enunciação dos meios de prova efectuado
pela 1ª instância;
apesar de ter inconsiderado, que o tribunal de 1ª instância se limitou, em sede
de fundamentação de facto, a referenciar apenas e demoradamente o depoimento de
testemunhas;
e apesar de não ter procedido a qualquer exame crítico da prova produzida, tal
como fez a 1ª instância,
menciona, a própria decisão recorrida do Tribunal da Relação (!...), que o
acórdão da primeira instância satisfaz as exigências de fundamentação!
Quod erat demonstrandum.
Isto é, no entendimento propugnado no parecer, defere-se ao Tribunal da Relação,
a sindicância exclusiva da conformidade constitucional do critério normativo
utilizado na interpretação e aplicação da norma.
Não pode ser.
E não pode por razões evidenciadas no próprio parecer.
Escreve-se a fls. 5, último parágrafo, que 'Embora de forma lacónica, o acórdão
recorrido diz permitir o acórdão de 1ª instância conhecer o processo lógico que
levou à formação da sua convicção em matéria de facto e que tal satisfaz
suficientemente as finalidades da norma, pelo que quer o acórdão de 1ª
instância, quer o acórdão recorrido assentam no entendimento dessa norma no
sentido de ter de dar a conhecer esse processo lógico ou racional de formação da
convicção do tribunal em matéria de facto.”
A questão que se coloca é - exactamente - a de saber se a 'FORMA LACÓNICA', de
fundamentação constitui critério normativo constitucionalmente conforme?
Em causa não está, como se sugere no PARECER, em saber se as decisões judiciais
em si próprias são correctas ou incorrectas...
... mas em saber se o dever de fundamentação das decisões judiciais imposto pela
constituição se cumpre com recurso a critério normativo reconhecidamente
lacónico;
Na perspectiva do Recorrente, num processo penal que se quer garante dos
direitos do Arguido, não é aceitável nem suficiente, que o Acórdão da Relação
tenha de forma lacónica, defendido a suficiência da afirmação do processo lógico
que levou à formação da convicção em matéria de facto efectuado pela 1ª
instância.
E não é aceitável, que em sede de recurso, a Relação, confirme uma decisão para
a qual está vinculada por deveres de clareza e de fundamentação coerente,
omitindo toda uma fundamentação necessária e fundamental para o esclarecimento
de tal decisão.
Só pela via da forma lógica - e não pela via da forma lacónica - se respeitam,
na lógica de defesa dos direitos do Arguido, os princípios fundamentais e
constitucionais consagrados no art. 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da
República.
A confirmação da conformidade normativa da 'forma lacónica' de fundamentação não
satisfaz as exigências constitucionais de fundamentação das decisões judiciais.
Por redundar numa interpretação legitimadora de aplicações puramente formais das
normas processuais destinadas a concretizar as garantias de defesa em processo
penal.
Garantias de defesa que se querem materiais e efectivas...
... e não puramente formais ou discursivas, como decorreria da validação do
critério normativo usado nas decisões recorridas e que deve ser equiparado ao
juízo já declarado inconstitucional.
É a conformidade constitucional do critério lacónico de fundamentação das
decisões judiciais que, em rigor, se pretende ver apreciado e não a correcção da
decisão judicial concretamente proferida.
Sendo que da declaração da desconformidade constitucional do critério lacónico
de fundamentação decorrerá a necessidade de reforma das decisões das instâncias
judiciais recorridas.
Como consequência da definição do critério normativo que devia ter sido
aplicado...
... e não como consequência da apreciação directa da correcção das decisões
judiciais proferidas.
Entende o Recorrente que a questão que concretamente pretende ver apreciada se
identifica totalmente com o sentido e alcance do Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 680/98.
Inverificando-se a segunda questão prévia suscitada no PARECER.».
9 - Por seu lado, o representante do Ministério Público veio dizer
que “admite a verificação das situações aí explanadas que, constituindo questões
prévias relativamente à apreciação do objecto do recurso, obstam ao seu
conhecimento”.
10 – Nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, o recorrente
condensou as razões explanadas no seu longo discurso argumentativo nas seguintes
conclusões:
«i) As instâncias judiciais indeferiram o requerimento de requisição de
certidão de peças do processo que correu termos pelo Tribunal de Menores do
Porto sob o nº 930/97, relativo à menor B., por entender que tal requisição
carecia de fundamento legal à luz do carácter secreto do processo tutelar e do
disposto no artº 36º, n.º 2, da OTM, que aplicaram;
ii) Resulta do disposto nos artigos 36º, n.º 2, e 37º da OTM
que o carácter secreto do processo tutelar não é absoluto, sendo levantável a
reserva para fins judiciais da competência dos tribunais de menores, de família,
cível ou penal (para efeitos de indemnização), de execução das penas e ainda
para fins administrativos da competência de direcções gerais e serviços de
assistência social;
iii) É inconstitucional o artº 36º, n.º 2, da OTM quando
interpretado e aplicado com o sentido e alcance de ser inadmissível a requisição
de certidão de processo tutelar que constitua objecto de prova de factos
juridicamente relevantes para a existência ou não existência do crime, por
violação de todas as garantias de defesa, conforme principio constitucionalmente
consagrado; artºs 27º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da Constituição da República.
iv) Devendo ser declarada a inconstitucionalidade do artº 36º,
n.º 2, da OTM, na interpretação com que foi aplicado.
v) Por via interpretativa e aplicativa foi considerada nas
instâncias que não constitui alteração dos factos (substancial ou não
substancial) a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao
modo de execução do crime que não se encontravam especificadamente enunciados,
descritos ou discriminados no texto da pronúncia e, ainda, que é permitida a
comunicação de alteração dos factos – substancial ou não substancial - posterior
à deliberação e publicitação dos factos provados e respectiva fundamentação de
facto;
vi) Soluções erradamente julgadas conformes às garantias de
defesa em processo penal e aos princípios do acusatório e do contraditório, de
acordo com o que se preceitua no artigo 32º da Constituição da República,
porquanto,
vii) Entende-se que ao conhecer de factos não constantes da
acusação ou da pronúncia, comunicando-os após publicitar a deliberação do
colectivo de juizes o Tribunal recorrido interpretou e aplicou o artº 358º, n.º
1, do CPP, violando,
viii) o princípio do acusatório, que desrespeitou, incomunicando a
alteração no decurso da audiência, insubmetendo-se ao princípio da vinculação
temática do tribunal ao objecto do processo;
ix) o princípio do contraditório, que desrespeitou deliberando
antes da comunicação, e, portanto sem conceder em tempo útil efectiva
oportunidade de exercício do direito de defesa; e, ainda,
x) todas as garantias de defesa, as quais não podem revestir
natureza puramente formal, antes devendo ser concedidas com anterioridade
relativamente ao encerramento da discussão e sempre previamente à deliberação.
xi) o acórdão recorrido operou a indicação dos meios de prova,
por forma puramente descritiva e sem efectuar qualquer apreciação crítica,
interpretando e aplicando o n.º 2 do artigo 374º do CPP, por forma tabelar e com
violação do dever de fundamentação;
xii) Só é conforme à Constituição a interpretação do artº 374º,
n.º 2, do CPP, segundo a qual o dever de fundamentação das decisões judiciais
obriga à explicitação do processo de formação de convicção sob pena de violação
quer do específico dever de fundamentação consagrado no artº 205º, n.º 1, da
CRP, quer do direito de recurso consagrado no art.º 32º, n.º 1, da CRP.
xiii) Como já declarado pelo Tribunal Constitucional.
xiv) Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, e
revogadas as decisões recorridas, que deverão ser reformuladas em conformidade
com os juízos de inconstitucionalidade.».
11 – Contra-alegando concluiu o Ministério Público do seguinte jeito:
«1 - A recusa de junção ao processo crime de elementos constantes de processo
tutelar, com fundamento no disposto no artigo 36º, n.º 2, da Organização Tutelar
de Menores, não impede que no âmbito daquele se produzam todos os meios de prova
que se revelem necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa,
sejam, ou não coincidentes com os eventualmente recolhidos no processo tutelar,
motivo pelo qual tal recusa não se traduz em violação das garantias de defesa
constitucionalmente consagradas.
2 - Procedendo-se a julgamento por tribunal colectivo, só após a deliberação
colegial dos juízes que o compõem sobre os factos resultantes de prova produzida
em audiência, se poderá dar como verificada uma alteração não substancial, a que
se reporta o artigo 358º do Código de Processo Penal.
3 – Tendo-se comunicado ao arguido a alteração, dando-se-lhe oportunidade para
preparar a defesa e produzir prova e podendo esta ter como efeito alterar o
juízo do tribunal quando aos factos descritos na comunicação, não resultam
violadas as garantias de defesa em processo penal, incluindo a estrutura
acusatória do processo e a observância do princípio do contraditório.
4 - Resultando da fundamentação quanto à convicção do tribunal do julgamento
sobre a matéria de facto o conhecimento bastante do processo lógico a ela
conducente, não se verifica qualquer violação de dever de fundamentação das
decisões, nem do direito ao recurso por parte da defesa.
5 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso.».
Tudo visto, cumpre decidir, começando pelas questões prévias.
B – Fundamentação
12 – Das questões prévias
12.1- Questão prévia relativa ao não conhecimento da questão de
inconstitucionalidade da norma constante do art.º 36º, n.º 2, da OTM
Ao contrário do que o recorrente sustenta, é de manter a posição expressa no
parecer do relator, acima transcrita e pelas razões que aí se aduzem.
Refuta o recorrente a bondade da fundamentação aí expendida,
essencialmente, com base em dois argumentos: o primeiro é o de que “não cabe nos
poderes das Relações a apreciação de questões novas e que não são de
conhecimento oficioso”, sendo que teria essa natureza, por constituir “matéria
da competência do Tribunal do julgamento”, “saber se o meio de prova requerido
na contestação devia ou não ser produzido, saber se tinha ou não interesse para
a descoberta da verdade e para a decisão de mérito, pelo que “apenas se o
Tribunal de 1ª instância tivesse feito uso dos poderes conferidos pelo art.º
340º, n.º 1, do CPP para indeferir o meio de prova requisitado, poderia o
arguido sindicar “primeiro essa decisão arguindo a nulidade do art.º 120º, n.º
2, alínea d), do CPP e recorrer depois da decisão que indeferisse a arguição de
nulidade” e, sendo assim, “não fazia [...] parte do recurso a bondade da
aplicação do art.º 340º, n.º 1, do CPP que o Tribunal de 1ª instância não
aplicou nem desaplicou”; o segundo é o de que “a passagem do acórdão em que por
referência ao art.º 340º, n.º 1, do CPP se sustenta que o indeferimento do meio
de prova deveria ser mantido com base na aplicação deste normativo não reveste
natureza decisória” e que “o Tribunal da Relação não o aplicou e desaplicou”,
“constituindo a referência ao art. 340º, n.º 1, do CPP um mero obiter dictum,
não decisório”.
Não cabe, porém, na natureza do recurso de constitucionalidade, por
não sindicar a correcção da decisão jurisdicional recorrida com a amplitude
própria dos recursos ordinários admissíveis nos tribunais de instância, aferir
se a Relação poderia ou não conhecer da questão da aplicação do art.º 340º, n.º
1, do CPP.
No recurso de constitucionalidade apenas se podem sindicar os
fundamentos da decisão recorrida no que tange à constitucionalidade das normas
que tenham constituído a ratio decidendi da decisão.
Não é assim procedente a referida argumentação do recorrente
tendente a demonstrar não poder ser considerada a aplicação que a Relação haja
feito do art.º 340º, n.º 1, do CPP e poder a eventual decisão de
inconstitucionalidade da norma constante do art.º 36º, n.º 2, da OTM implicar a
reforma da decisão de 1ª instância que indeferiu o seu pedido de certidão.
Antes de mais, há que notar que a utilidade do recurso
constitucional, neste caso, se revela antes pela potencialidade de a decisão do
Tribunal Constitucional poder implicar a reforma do acórdão da Relação e não a
reforma da decisão de 1ª instância, pois a desta apenas poderia decorrer do
facto de a decisão de segunda instância se basear num único fundamento que
houvesse sido considerado pelo acórdão da 1ª instância.
O que é verdadeiramente determinante é que tenha havido
efectivamente um fundamento normativo autónomo da decisão ora recorrida e que
esse outro fundamento não tenha sido sindicado no recurso de constitucionalidade
posteriormente interposto, embora com dispensa – questão que, aqui, não há que
decidir – do ónus de prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade com
base no seu eventual carácter “inesperado” ou “insólito”.
Deste modo não tem o Tribunal Constitucional que sindicar se a
Relação poderia apreciar a questão nos termos em que o fez, apurando,
nomeadamente, se a questão não seria a mesma que foi colocada à 1ª instância
apenas divergindo nos seus fundamentos de direito mas em cuja determinação e
aplicação o tribunal de recurso procede oficiosamente de acordo com o princípio
expresso no velho brocardo latino jus novit curia e se, a admitir-se que a sua
resolução eventualmente pudesse implicar a formulação de um hipotético juízo de
facto [como o de plausibilidade dos concretos meios de prova requeridos para
demonstrar os factos cuja existência se pretende asseverar], o não poderia
eventualmente fazer, considerando que ela pode conhecer de facto e de direito,
embora naquele âmbito apenas desde que se verifiquem certas circunstâncias (cf.
art.ºs 428º e 431º do CPP), ou se excedeu os seus poderes de recurso.
Relativamente ao segundo argumento alegado pelo recorrente, importa
acentuar que é bem expressiva a posição do acórdão recorrido no sentido da
aplicação do art.º 340º, n.º 1, do CPP como um segundo fundamento alternativo e
autónomo da confirmação do indeferimento do pedido de certidão feito pelo
recorrente de elementos constantes do processo tutelar respeitante à ofendida no
processo-crime, mostrando-se uma tal intencionalidade normativo-fundamentante
expressada de forma bem incisiva no acórdão (de 18 de Março de 2003) que
apreciou o pedido de aclaração efectuado pelo recorrente no sentido de saber se
o sentido que devia conferir-se à asserção constante do acórdão aclarando de que
toda a investigação “pode ser feita aqui” (no processo-crime) “deveria ser o de
que “foi feita toda a investigação que podia ter sido feita” ou o de que não
tinha que ser feita a investigação requerida”.
Na verdade, por referência à aplicação do art.º 340º, n.º 1, do CPP
o acórdão explicitou que o pedido de certidão de peças processuais do processo
tutelar devia ser, como foi, indeferido, por “nada se ve[r] nos autos nem o
arguido indica[r] qualquer elemento que aponte para a utilidade, em concreto e
relativamente à descoberta da verdade nestes autos, de se conhecerem os factos
investigados naquele processo tutelar” e que “é irrelevante pedir peças de um
processo sem objectivo conhecido”.
E, finalmente, rematou do seguinte jeito, não cabendo ao Tribunal Constitucional
sindicar a correcção em concreto de um tal juízo: “Concluindo: não tinham de ser
investigados os elementos pedidos do processo tutelar até porque não se vê, nem
foi indicado, o que aí se pretendia saber com utilidade para estes autos”.
Não há dúvida, pois, que se está perante um fundamento normativo
autónomo, pelo que restava ao recorrente sindicá-lo constitucionalmente para se
poder manter a utilidade do recurso de constitucionalidade.
Note-se, por fim, que o recorrente não deixou até de antecipar a
aplicação de tal preceito, conquanto relativamente ao indeferimento de parte das
diligências de prova requeridas na sequência da referida comunicação da
alteração não substancial dos factos.
Finalmente, importa dizer ainda que o recorrente não impugna a
constitucionalidade da norma do art.º 36º, n.º 2, da OTM tal qual esta foi
entendida e aplicada pelo acórdão recorrido, mas segundo uma outra expressão
normativa.
Na verdade, o recorrente pretende a apreciação de
inconstitucionalidade da norma constante do art.º 36º, n.º 2, da OTM, “entendida
no sentido de não ser admissível, por não se enquadrar em qualquer das situações
previstas no preceito, a obtenção e a junção aos autos de processo crime, onde
veio a ser condenado por sentença sujeita a recurso pela prática de um crime
continuado de abuso sexual de crianças”.
Todavia, o acórdão recorrido fundamentou-se, ainda, na circunstância
de a requisição não ter utilidade por não ter como objecto a prova de factos
concretamente determinados que o recorrente tivesse alegado em sua defesa, mas
apenas propósitos genéricos de investigação, sendo que o recorrente não impugna
esta diferente compreensão da norma.
12.2 – Questão prévia relativa à constitucionalidade do art.º 374º,
n.º 2, do CPP
Também relativamente a esta questão é de concluir pelo modo e
fundamentos constantes do parecer do relator.
A este propósito, o recorrente, nas suas alegações de recurso e após
defender uma reapreciação da matéria de facto no sentido de não estarem provados
os factos imputados ao arguido, defendeu que a sua “apreciação e modificação
[que] sempre decorreria, também, da constatação de que o tribunal se limitou, em
sede de fundamentação de facto, a referenciar demoradamente o depoimento de
testemunhas, sem proceder a qualquer exame crítico da prova produzida”,
“efectuando interpretação e aplicação do disposto no art.º 374º, n.º 2, do CPP
desconformes à Constituição por violação dos específicos deveres de
fundamentação e direito de recurso, consagrados nos artigos 205º, n.º 1, e 32º,
n.º 1, da Constituição”.
Em tal passo do seu discurso alegatório, o recorrente pretendeu demonstrar, a
partir da afirmação de que o tribunal de 1ª instância não havia “procedido [sem
proceder] a qualquer exame crítico da prova produzida”, que este seguiu, na
elaboração do seu juízo de julgamento da matéria de facto, um entendimento do
dever de fundamentação estabelecido no art.º 374º, n.º 2, do CPP no sentido de
estar dispensado do exame crítico das provas produzidas e como tal ofensivo do
dever consignado no n.º 1 do art.º 205º da Constituição.
O acórdão recorrido concluiu, todavia, que “a leitura da fundamentação quanto à
convicção sobre a matéria de facto permite conhecer o processo lógico que levou
à convicção do tribunal, pelo que, vistas as finalidades da norma, foi dado
suficiente cumprimento ao disposto pela mesma”.
Ora desta asserção resulta claramente que o acórdão recorrido entendeu que, ao
contrário do que o recorrente sustentava, a decisão da 1ª instância por ele
sindicada havia efectuado um exame crítico das provas produzidas nos autos em
termos tais que davam para conhecer o processo lógico que levou à convicção do
tribunal – juízo este que se poderá acompanhar perante o modo como a decisão de
1ª instância se mostra fundamentada - e que um tal resultado cumpria de forma
suficiente a funcionalidade do critério da fundamentação estabelecido no
referido preceito, donde se impõe concluir que não foi aplicado o critério
normativo que o recorrente definiu como objecto do recurso de
constitucionalidade – o de o tribunal do julgamento haver entendido como estando
dispensado, na fundamentação do seu juízo de julgamento da matéria de facto, de
externar a avaliação e ponderação crítica efectuada sobre os meios de prova dos
quais resultou a sua convicção sobre os factos que deu como provados e não
provados.
A circunstância de o tribunal de recurso ter expresso esse juízo de forma
lacónica não quer dizer, ao contrário do que o recorrente defende, que ele
próprio tivesse seguido o critério normativo cuja constitucionalidade pretende
ver sindicada, pois o carácter lacónico do seu discurso fundamentador não
implica que se possa considerar que ele entendeu não estar obrigado a dar a
conhecer de forma suficiente as razões por que decidiu em certo sentido e não
noutro e que tivesse adoptado quanto a si, de forma incongruente, um critério
normativo diferente daquele cuja correcção sindicava, mas tão só que ajuizou que
aquela fundamentação era a suficiente para entender a sua decisão sobre as
questões que, na matéria em causa, lhe haviam sido colocadas, sendo que a
decisão destas não a obrigava, como erradamente parece entender o recorrente,
ter de refazer e deixar expresso todo o processo de avaliação e de ponderação
dos meios de prova levado a cabo pela decisão de 1ª instância cuja correcção
apreciava.
Temos, portanto, de concluir que o acórdão recorrido não aplicou o critério
normativo julgado inconstitucional pelo acórdão identificado pelo recorrente,
pelo que não se verifica o pressuposto do recurso estabelecido na referida
alínea g) do n.º 1 do art.º 70º da LTC.
13 – Do recurso de constitucionalidade relativo à norma constante do art.º 358º
do Código de Processo Penal
O recorrente pretende a apreciação de constitucionalidade da norma contida no
art.º 358º do CPP “quando interpretada no sentido de se não entender como
alteração dos factos (substancial ou não substancial) a consideração, na
sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime que não
se encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados no texto
da pronúncia” e, “quando interpretada como aplicável aos casos de comunicação de
alteração dos factos – substancial ou não substancial – posterior à deliberação
e publicitação dos factos provados e respectiva fundamentação de facto”.
Estão, pois, postas em causa sub specie constitutionis duas dimensões normativas
diferentes do art.º 358º do CPP.
Antes de se avançar, convém anotar que está fora dos poderes cognitivos do
Tribunal Constitucional apreciar a matéria fáctica, bem como a correcção do
juízo da sua subsunção (qualificação jurídica) ao preceito do art.º 358º do CPP.
Não obstante isso, afigura-se conveniente deixar uma explanação do enquadramento
da matéria de facto em que o recorrente se sustenta, de modo a compreender as
dimensões normativas por si definidas e as questões de inconstitucionalidade
colocadas.
Após debate instrutório no qual sustentou a nulidade da acusação por “omissão de
factos concretos praticados pelo arguido, bem como das circunstâncias de tempo,
lugar e modo de execução da sua prática”, o ora recorrente foi pronunciado pela
“autoria singular, [de] um crime de violação por acto análogo, p. e p. pelo
art.º 201º, n.ºs 1 e 2, do C. P. de 1982 e a partir de 1/10/1995 um crime de
abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 172º, n.º 1, do C. P. de 1995”,
como consequência dos seguintes factos cuja prática lhe foi aí imputada:
«[...]
- O arguido é tio e padrinho da menor B..
- Esta, desde pequena, que ia passar vários fins de semana a casa
do arguido e de sua família no Porto.
- Durante estes fins de semana e desde os 8 anos de idade da B.
(ou seja, desde 1992, já que a menor nasceu em 1984) até Junho de 1997, que o
arguido vinha praticando com ela actos de natureza sexual.
- Assim, o arguido, por várias vezes esfregou o pénis na vagina
da menor até ejacular, chegando mesmo uma vez a pedir-lhe que lhe ' chupasse ' o
pénis, o que esta fez.
- Também lhe 'chupava' e 'apalpava' os seios, dava-lhe beijos na
boca e tocava-lhe com os dedos na vagina.
- Submetida a exame médico no IML concluiu-se que a B. não
apresenta sinais típicos de desfloramento mas sim de possível tentativa de
desfloramento não recente – cfr. exame de fls. 46 que aqui se dá por
reproduzido.
A B. foi suportando, em silêncio, ao longo do tempo, todos estes actos receando
contá-los a alguém, designadamente à sua mãe, por vergonha e medo das
consequências.
Para levar a cabo a sua conduta, o arguido, por vezes, aliciava a menor mediante
promessas de a levar a passear ou de oferecer algo.
Toda esta conduta causou perturbação na menor, a qual tem vindo a receber
acompanhamento por pedopsiquiatra.
O arguido agiu livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta não era
permitida por lei».
Após várias sessões de audiência de julgamento nas quais foi produzida a prova
oferecida pela acusação e pela defesa, o tribunal colectivo deliberou no sentido
de considerar provados provisoriamente vários factos, entre eles se contando os
descritos sob os n.ºs 3, 7 e 9º, respectivamente do seguinte teor:
«3. Durante estes fins de semana e desde os 8 anos de idade da B. – idade de que
o arguido tinha conhecimento – (ou seja desde 1992, uma vez que a menor nasceu
em 1984) até Março de 1997, que o arguido vinha praticando com ela actos de
natureza sexual».
«7. Para levar a cabo a sua conduta, o arguido por vezes dizia-lhe que não a
levava a passear se ela não praticasse com ele actos daqueles descritos sob os
pontos 3 a 5».
«9. O arguido praticou os factos referidos sob os pontos 3 a 5, aproveitando-se
da proximidade da B. durante os fins de semana que esta passava em sua casa,
sendo que não tendo sido descoberto da primeira vez se animou com o seu êxito,
motivando-se para as vezes seguintes».
Depois de descrever os factos tidos então como provados e não provados (juízo
esse feito provisoriamente como veio a consignar expressamente em audiência de
julgamento posteriormente realizada antes da produção da prova oferecida pelo
arguido em consequência da comunicação da alteração dos factos), o Tribunal fez
consignar na acta de audiência a seguinte decisão:
«Entende o Tribunal que perante os factos que resultam provados, não se verifica
nenhuma alteração substancial, tal como a mesma é definida na al. f), n.º 1 do
Art. 1º do C.P.Penal.
Ainda assim, pode-se entender o que se diz sobre os pontos 3, 7 e 9 dos factos
provados, poderá constituir uma alteração não substancial, cujo regime é o do
Art. 358º do C.P.Penal.
Bem como por outro lado se pode concluir que os factos tidos como provados
integram um crime na forma continuada.
Assim, e nos termos do Art. 358º do C.P.Penal, comunique-se tal alteração ao
arguido.».
O arguido respondeu imediatamente à comunicação nos seguintes termos:
«Entende o arguido, que tal alteração dos factos nos termos do Art. 358º do
C.P.Penal só pode ter lugar antes de encerrada a produção de prova.
Ainda que relativamente ao facto provado sob o n.º 9, o mesmo configura efectiva
alteração substancial porquanto altera tal facto no circunstancialismo de modo
em que se teria desenvolvido a acção dele, arguido, designadamente por referir
um concreto acto de natureza sexual que circunstanciado no tempo a partir do
qual se teria desenvolvido a conduta subsequente.
Tal circunstancialismo não foi naturalmente equacionável na altura da elaboração
e apresentação da contestação, pelo que sem prejuízo do entendimento
manifestado, requer prazo para a preparação de defesa, salvaguardando desde já a
necessidade de serem produzidos efectivos meios de prova».
De seguida o tribunal reiterou a sua posição “de manter o despacho de
comunicação de eventual alteração não substancial dos factos nos termos em que o
mesmo foi feito já que os factos objecto do referido despacho e como
anteriormente referido, designadamente os constantes do ponto 9, não configuram
uma alteração substancial já que, a existir alguma alteração, a mesma não tem
por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou agravação dos limites
máximos das sanções aplicáveis”, e concedeu o prazo requerido pelo arguido para
a sua defesa, interrompendo a audiência e designando novo dia para a sua
continuação.
Entre as duas datas, o arguido veio, por requerimento junto aos autos, sustentar
ser inadmissível a alteração comunicada, dizendo, entre o mais, que o “Tribunal,
pela consideração dos factos novos indicados, pretende contornar a prova
produzida pela defesa em audiência de julgamento e que evidenciou o absurdo da
acusação, subvertendo o princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado
e que impõe que o acusador e julgador não sejam um único sujeito processual”, e
serem falsos aqueles factos “novos”.
No mesmo requerimento, o arguido indicou prova testemunhal sobre os novos
factos, bem como a “reconstituição do facto para prova da impossibilidade do
crime ser cometido pela forma dissimulada sugerida pelo tribunal”
[consubstanciado no funcionamento de uma máquina de cerzir referido em
julgamento como meio de dissimulação das relações sexuais tidas durante esse
funcionamento com a menor ofendida] e o “exame da casa de morada do arguido e da
máquina de cerzir para prova da impossibilidade da autoria singular do crime
pelo qual o arguido está acusado”.
Na audiência de julgamento já designada, o Tribunal colectivo decidiu admitir
imediatamente a prova testemunhal oferecida pelo arguido e reservar para depois
da produção desta prova a posição a tomar quanto à realização das demais provas
requeridas, tendo vindo, porém, mais tarde (em outras sessões de julgamento), a
indeferi-la.
Produzida a prova testemunhal admitida, e feitas alegações, o Tribunal colectivo
proferiu acórdão em que julgou definitivamente os factos pelo modo constante do
seu probatório, condenando o arguido como autor material de um crime continuado
de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art.º 30º, n.º 2, 79º e 172º, n.º 1,
do Código Penal de 1995. No julgamento da matéria de facto foi mantido o juízo
de facto antes formado de forma provisória relativamente àqueles pontos 3, 7 e
9.
Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto colocando,
entre várias outras, a questão da conformidade constitucional do art.º 358º do
CPP, nas dimensões que teve por aplicadas.
Ao enunciar a primeira dimensão normativa constitucionalmente
impugnada do art.º 358º do CPP a partir da realidade processual explanada, o
recorrente definiu-a como reportando-se a uma “alteração dos factos (substancial
ou não substancial) a consideração, na sentença condenatória, de factos
atinentes ao modo de execução do crime que não se encontravam especificadamente
enunciados, descritos ou discriminados no texto da pronúncia”.
Mas esta enunciação não espelha em termos claros a realidade
processual ocorrida e que foi relevada pelo tribunal.
Na verdade, o que o tribunal a quo entendeu foi que a integração dos factos
descritos na pronúncia por outros factos mais especificados, indiciariamente
constatados em audiência de julgamento - na parte relativa ao contexto temporal
e ambiente físico em que a sua acção ocorreu e ao relevo que, no seu foro
íntimo, teve, para a prática de novos actos, esse contexto e a circunstância de
não ter sido inicialmente descoberto – integravam, quando muito, uma alteração
não substancial da pronúncia, por não terem por efeito a imputação ao arguido de
um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pelo
que o arguido devia ser, como foi, ouvido sobre eles e concedido prazo para a
sua defesa.
Anote-se que os factos constantes dos n.ºs 3 e 7 do “probatório
provisório” levado ao conhecimento do arguido em nada inovam o quadro fáctico
relativo às circunstâncias de lugar, tempo ou modo das acções do arguido que
consta da pronúncia do arguido, constituindo uma mera reprodução desse quadro
fáctico, feito de modo verbalmente diferente.
E o mesmo se diga relativamente à primeira parte do n.º 9 do mesmo probatório,
onde se diz que “o arguido praticou os factos referidos sob os pontos 3 a 5,
aproveitando-se da proximidade da B. durante os fins de semana que esta passava
na sua casa”.
Na verdade, esta asserção não constitui mais do que uma simples descrição do
contexto temporal e do ambiente físico em que a acção do arguido se desencadeou,
contexto esse que não é mais do que uma reafirmação ou ilação explícita do que
sinteticamente se encontra dito na pronúncia, ao dizer-se que “[a menor] desde
pequena, que ia passar vários fins de semana a casa do arguido e de sua família
no Porto”; que “durante esses fins de semana e desde os 8 anos de idade da B.
(ou seja, desde 1992, já que a menor nasceu em 1984) até Junho de 1997, que o
arguido vinha praticando com ela actos de natureza sexual”; que “assim, o
arguido, por várias vezes esfregou o pénis na vagina da menor até ejacular....”;
que “também lhe ‘chupava’ e ‘apalpava’ os seios, dava-lhe beijos na boca e
tocava-lhe com os dedos na vagina”.
E mesmo em relação aos factos afirmados na segunda parte do referido n.º 9 do
probatório – “sendo que não tendo sido descoberto da primeira vez se animou com
o seu êxito, motivando-se para as vezes seguintes” – não poderá dizer-se
estar-se perante a indiciação, em toda a linha, de um facto novo mas
simplesmente perante a concretização indiciária do dolo abrangente de toda a
prática de relações sexuais com a menor, desde os seus 8 anos de idade, que a
pronúncia lhe imputava.
Tal asserção corresponde simplesmente à afirmação da existência de um dolo
continuado na prática continuada das relações sexuais com a menor.
Mas, imputando a pronúncia ao arguido a prática de relações sexuais com a menor
desde 1992 até 1997, de modo consciente e livre e bem sabendo que a sua conduta
era proibida por lei, e tendo o mesmo despacho acabado por considerar que o
arguido apenas cometera, em autoria singular, um crime de abuso sexual de
menores, a existência desse dolo continuado estava já sinteticamente afirmada na
pronúncia.
Deste modo, o “novo” facto constitui, quando muito, uma simples ilação
especificadora do que a narração sintética constante da pronúncia já deixava
entender.
Assim sendo, a primeira dimensão normativa do art.º 358º do CPP que se mostra
assumida no acórdão recorrido, por confirmação do decidido pela 1ª instância, e
cuja constitucionalidade o recorrente impugna, é a interpretação desse preceito
no sentido de entender que constitui alteração não substancial dos factos, que
não tem por efeito a imputação de crime diverso ao arguido nem a agravação dos
limites máximos das sanções aplicáveis, mas que demanda a sua comunicação ao
arguido e a concessão de prazo para a sua defesa, a consideração, em despacho
comunicado ao arguido e na sentença, de factos especificadores de factos
sinteticamente enunciados na pronúncia.
Relativamente à segunda dimensão normativa do mesmo artigo, a questão de
constitucionalidade suscitada pelo recorrente tem por objecto o mesmo preceito,
quando entendido no sentido de ser admissível a comunicação ao arguido da
alteração não substancial dos factos especificadores dos factos sinteticamente
enunciados na pronúncia, após prévia deliberação do colectivo dos juízes sobre a
matéria de facto e na qual esses factos foram descritos como estando indiciados
ou “provisoriamente provados”, concedendo-se prazo para a defesa.
Da constitucionalidade de tais normas se conhecerá, pois.
14.1 – O recorrente sustenta que tais dimensões normativas do art.º 358º do CPP
violam os princípios do acusatório, do contraditório e da plenitude das
garantias de defesa.
Debrucemo-nos sobre a primeira questão suscitada.
O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado repetidas vezes sobre o conteúdo
constitucional de tais princípios, nomeadamente no quadro de apreciação de
questões de (in)constitucionalidade relativas aos art.ºs 358º (alteração não
substancial dos factos descritos na acusação e na pronúncia) e 359º (alteração
substancial), ambos do CPP.
Entre eles conta-se o Acórdão n.º 674/99, publicado no Diário da República II
Série, de 20 de Fevereiro de 2000 (também em BMJ, n.º 492, pp. 62, e Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 45º vol., pp. 559), que o recorrente convoca como caso
pretensamente análogo e onde o Tribunal concluiu pela inconstitucionalidade das
“normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretados no sentido
de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial -
a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de
execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova
juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam,
no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou
discriminados, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios
do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, n.ºs 1 e 5 da
Constituição da República”.
Discreteou-se, então, aí:
«[...]
61. No seu artigo 32º, a Constituição da República Portuguesa estabelece, entre
os direitos, liberdades e garantias pessoais, as Garantias de processo criminal.
Nos termos do preceituado nesse artigo 32º, «o processo criminal assegura todas
as garantias de defesa, incluindo o recurso» (n.º 1), sendo que o mesmo
«processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e
os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do
contraditório» (n.º 5).
A propósito do princípio acusatório, dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira
que ele «é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal» e
«uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial», significando
essencialmente que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por
esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição
e limite do julgamento» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed.
revista, Coimbra Editora, 1993, nota IX ao artigo 32º, pág. 205).
Relativamente ao princípio do contraditório, assinalam os mesmos comentadores
que ele implica o dever «de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da
defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão», bem
como o «direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a
ser afectados pela decisão», e ainda o «direito do arguido de intervir no
processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou
outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo», sendo
certo que «o princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua
posição» (ibidem, nota X ao artigo 32º, pág. 206).
62. Os princípios do acusatório e do contraditório, enquanto princípios
estruturantes do processo penal, movem-se necessariamente no quadro de um
sistema processual que tem também – como vimos – de assegurar todas as garantias
de defesa, ou seja, no quadro de um processo penal justo e equitativo.
Escreveu-se no Acórdão n.º 172/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º
vol., págs. 350), acerca das garantias de defesa do arguido:
O processo penal há-de, assim, configurar-se - como se disse já - em termos de
ser 'um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência,
quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que
impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido'
(cf. acórdão deste Tribunal n.º 61/88, publicado no Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 375, p. 138; cf. também o já citado acórdão n.º 393/89).
[...]
O princípio do contraditório, encarado do ponto de vista do arguido, pretende,
antes de mais, realizar, o seu direito de defesa. 'A máxima audiatur et altera
pars ou ne absens damnetur' é, justamente, no dizer de EDUARDO CORREIA,' a
expressão', nesse sentido, 'do princípio do contraditório' (Revista de
Legislação e Jurisprudência, ano 110º, p. 99).
Dizendo com a Comissão Constitucional, no seu Parecer n.º 18/81, publicado em
Pareceres da Comissão Constitucional, volume 16º, p. 147: o sentido essencial do
princípio do contraditório 'está, de uma forma mais geral, em que nenhuma prova
deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo só interlocutória) deve
aí ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva
possibilidade, ao sujeito processual contra o qual é dirigida, de a discutir, de
a contestar e de a valorar'.
A descoberta da verdade material em processo penal há-de, portanto,
necessariamente compaginar-se com aquelas garantias de defesa do arguido. E
assim se reconhecerá, como corolário do princípio do acusatório, o da vinculação
temática do tribunal e da correlação entre a acusação (e a pronúncia) e a
sentença.
63. Como realça Jorge Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, Coimbra, 1974,
pág. 45), a concepção típica de um «processo acusatório» implica a «estrita
ligação do juiz pela acusação e pela defesa», em sede de determinação do objecto
do processo como em sede de poderes de cognição e dos limites da decisão.
E, mais adiante (id., pág. 145), acerca da vinculação temática do tribunal, como
efeito consubstanciador dos princípios da identidade, da unidade ou
indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, afirma este autor:
Deve pois firmar-se que objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo
este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal [...]
e a extensão do caso julgado.
Como também se pode ler no Acórdão n.º 173/92 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 22º vol., págs. 361):
A questão não pode ser apresentada ao tribunal para julgamento sem que tenha
sido previamente delimitado o seu objecto num documento (a acusação, ou
requerimento acusatório) que indique os factos de que o arguido é acusado e qual
o seu enquadramento jurídico-penal (esta questão está sistematicamente
concatenada com o princípio da legalidade vigente em direito penal substantivo,
do qual decorre a necessidade de fixação prévia de um determinado quadro fáctico
e de uma determinada moldura penal adequada a esse quadro fáctico); por vezes,
exige-se até que um juiz se pronuncie previamente sobre essa acusação (através
da pronúncia) antes de a questão ser apresentada ao tribunal do julgamento. Mas
a acusação não basta, porque é preciso dar também ao arguido a possibilidade de
produzir ele próprio um documento (a contestação) que contrarie o anterior.
Em segundo lugar, o princípio da correlação entre acusação e sentença. Como a
acusação fixa o objecto do processo, o julgamento incide sobre a matéria da
acusação e o tribunal não pode, por sua iniciativa, ou por iniciativa da parte
acusadora, apreciar questões diversas das descritas na acusação, julgar um
arguido por factos que foram atribuídos a outro, nem muito menos julgar pessoas
nela não indicadas. Uma norma legal que o permitisse violaria este princípio
processual penal.
Como assinala António Quirino Duarte Soares (ibidem), do «princípio da acusação
(segundo o qual é esta que define e fixa perante o juiz o objecto do processo)»
decorre logicamente um outro princípio, corolário do primeiro - «tal princípio é
o da identidade do objecto do processo, que representa a ideia de que o objecto
da acusação se deve manter idêntico, o mesmo, desde aquela, até à sentença
final».
Ora, este princípio da identidade do objecto do processo significa, desde logo,
que a correlação entre a acusação e a pronúncia se há-de prolongar numa
necessária correlação entre a pronúncia e a sentença. Quando esta imputar ao
arguido factos absolutamente novos, estranhos ao objecto do processo, tal como
este resulta da pronúncia, ainda aí se estará, pois, perante uma ofensa ao
princípio do acusatório.
64. De resto, o Tribunal Constitucional tem-se por diversas vezes debruçado
sobre esta temática, no âmbito das garantias de defesa do arguido, não apenas
nos já citados Acórdão n.º 172/92, Acórdão n.º 173/92 e Acórdão n 330/97, mas
também no Acórdão n.º 279/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol.,
págs. 389 e segs.), no Acórdão n.º 16/97 (Diário de República II Série, de 28 de
Fevereiro de 1997), no Acórdão n.º 130/98 (Diário da República II Série, de 7 de
Maio de 1998) e no Acórdão n.º 442/99 (inédito), entre outros.
No quadro dessa numerosa jurisprudência, o Tribunal já teve ocasião de apreciar
as normas dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal. Fê-lo sempre,
todavia, e até ao momento, apenas do ponto de vista da conformidade
constitucional da mera alteração da qualificação jurídica dos factos imputados
ao arguido, designadamente no que se refere ao respeito pelo princípio do
contraditório.
Assim, afirmou-se, a este propósito, no já mencionado Acórdão n.º 330/97:
O 'direito a ser ouvido', enquanto direito a dispor de oportunidade processual
efectiva de discutir e tomar posição sobre quaisquer decisões, particularmente
as tomadas contra o arguido, integra as garantias de defesa, no que à respectiva
estratégia respeita, de outro modo se violando o princípio do contraditório.
Compreende-se que assim seja uma vez que, em princípio, a faculdade de alteração
da incriminação constante da acusação, se operada sem ao arguido se dar ensejo
de a conhecer e de organizar a sua defesa em função da mesma, pode-lhe causar
grave prejuízo (neste sentido, para além dos arestos citados, mencionem-se inter
alia, os acórdãos nºs. 402/95, 22/96 e 596/96, publicados no Diário da República
II Série, de 16 de Novembro de 1995, 17 de Maio e 6 de Julho de 1996,
respectivamente).
No presente recurso já não importa, porém, apurar em que medida é
constitucionalmente possível proceder à alteração das qualificações jurídicas,
mas antes em que casos se está perante uma verdadeira alteração de factos e em
que medida é lícito efectuar tais alterações de factos, sem que se mostrem
violados os referidos princípios do acusatório e do contraditório ou as
garantias de defesa do arguido.
65. Uma tal averiguação exige, portanto, no presente recurso, que se venha a dar
resposta a duas questões distintas que, no caso dos autos, se encontram
ocasionalmente associadas:
- por um lado, saber se já deve ser tida como uma efectiva alteração dos factos
tendo em conta o princípio do acusatório e as garantias de defesa do arguido - a
consideração, na sentença condenatória, de factos que, não se encontrando
descritos na pronúncia, se podem contudo extrair de documentos anexos para os
quais aquela mesma pronúncia remetia;
- e, por outro lado, determinar se a consideração, na sentença condenatória, de
um outro modus operandi, distinto do descrito na pronúncia, constitui uma
alteração da base factual a justificar, em aplicação das garantias de defesa do
arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, que lhe seja dada
oportunidade de se pronunciar sobre a mesma.
[...]».
Reafirma-se aqui a fundamentação acabada de transcrever na parte que
respeita à explicitação do sentido jurídico-constitucional dos princípios do
acusatório, do contraditório e da plenitude das garantias de defesa.
Porém, não obstante haver uma réstia de semelhança entre os dois casos, são bem
diversas, ao contrário do que o recorrente pretende fazer crer, as dimensões
normativas do art.º 358º do CPP que nesse aresto e no presente caso são alegadas
como estando em confronto com tais princípios constitucionais.
Será possível ver a semelhança no facto de em ambos os casos a sentença ter
considerado factos que não estavam concretamente especificados ou descritos no
despacho de pronúncia mas que, no primeiro caso, se podiam extrair dos
documentos para os quais esta remetia e, neste caso, se podiam inferir como
normais ilações de facto dos factos sinteticamente descritos.
No entanto, existe uma diferença abissal entre as duas situações, como se denota
do ponto 65 de tal aresto, que não poderá deixar de induzir a uma diferente
conclusão quanto à (in)conformidade constitucional das dimensões normativas
impugnadas.
É que, embora nas duas situações a alteração do factos não importe a imputação
de crime diverso ao arguido nem a agravação dos limites máximos das sanções
aplicáveis, na situação analisada no Acórdão n.º 674/99 havia sido seguido o
entendimento de que essa alteração não tinha de ser comunicada ao arguido e
ser-lhe concedido prazo para a sua defesa; ao invés, no presente caso, o
entendimento normativo seguido foi o de que essa alteração obrigava a que a
mesma fosse comunicada ao arguido, este fosse ouvido sobre ela e que fosse
concedido prazo para a sua defesa.
Ora, numa situação destas em que os factos não conduzem à imputação ao arguido
de um crime diverso nem à agravação dos limites máximos das penas aplicáveis; em
que a imputação de um crime continuado punível nos termos dos art.ºs 30º, n.º 2,
e 79º, do Código Penal se afigura mais favorável que a punição a título de
concurso de crimes do mesmo tipo legal prevista no art.º 77º do mesmo código que
uma diferente compreensão dos factos descritos na pronúncia poderiam em
alternativa sugerir e em que é dada oportunidade ao arguido de se pronunciar
sobre esses factos novos e deles se defender, nomeadamente, contestando-os e
oferecendo prova que, uma vez considerada útil à descoberta da verdade material,
é produzida no tribunal, não se vê como se possa sustentar saírem violados
aqueles princípios constitucionais.
Em situações paralelas à da primeira dimensão normativa cuja constitucionalidade
o recorrente aqui impugna, o Tribunal Constitucional concluiu pela conformidade
constitucional da “norma do art.º 358º do CPP na parte em que confere ao juiz
poderes para, oficiosamente, seleccionar novos factos surgidos na audiência de
julgamento, comunicando a alteração ao arguido e concedendo-lhe o tempo
necessário para a preparação da sua defesa”.
Referimo-nos aos Acórdãos n.ºs 130/98, publicado no Diário da República II
Série, de 7 de Maio de 1998, e n.º 442/99, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt.
Discreteou-se, a propósito, no primeiro aresto, sendo tal argumentação também
assumida no segundo:
«[..] é uma exigência do princípio da plenitude das garantias de defesa do
arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos factos constantes
da acusação; porém, se, durante a audiência, surgirem factos relevantes para a
decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação
dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de
defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados «ex novo»
e, se se vierem a provar, integrá-los no processo, sem violação do preceituado
no artigo 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição.
5. - Aqui chegados, impõe-se deixar desde já bem claro que está fora dos poderes
de cognição deste Tribunal, que se pronuncia sobre normas, apreciar a forma como
a decisão recorrida procedeu à qualificação dos factos para os subsumir na norma
aplicável.
Ponto firme de partida é assim o de que a decisão recorrida, que negou
provimento a recurso ordinário de julgamento proferido na primeira instância,
entendeu que os factos referidos na audiência, e que originaram a aplicação da
norma constante do artigo 358º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou não eram
factos novos ou, a considerarem-se como novos, não implicariam uma alteração
substancial da acusação.
Mas, tendo sido assim, logo se deu aos arguidos a oportunidade processual de
organizarem a sua defesa quanto a esses factos então especificados. Nessa
perspectiva, não se vê como possam ter sido feridos os direitos de defesa e do
contraditório, sendo até lícito deduzir-se que esses mesmos direitos ganharam em
consistência. Com efeito, não tendo havido alteração do objecto do processo e
tendo-se mantido a acusação, os referidos factos poderiam, sem mais, ou seja,
sem os elementos adicionais que o contraditório posterior viesse a revelar,
porventura no sentido de infirmar a sua procedência, contribuir de imediato para
a formação da convicção do julgador. Na decisão recorrida não se encontra,
portanto, uma interpretação inconstitucional da norma questionada [...]».
Esta fundamentação mantém inteira validade relativamente à primeira
dimensão normativa aqui impugnada, pelo que se reitera.
14.2 – Tratemos, agora, da segunda dimensão normativa
constitucionalmente sindicada.
Antes de se avançar convém deixar anotado que não está em causa, no
presente recurso, saber se a interpretação seguida pelo acórdão recorrido
corresponde ao melhor direito, a aferir em face das regras de hermenêutica, mas
sim a de saber se ela é não direito, por violar os referidos parâmetros
constitucionais, entendidos estes segundo o conteúdo que se deixou assumido.
E assim recortada a questão, há que concluir não se verificar a
alegada violação de tais princípios constitucionais.
Na verdade, não se vê que a circunstância de a alteração não
substancial dos factos descritos na pronúncia ser comunicada ao
arguido após deliberação dos juízes que compõem o tribunal colectivo que julga a
causa em 1ª instância, dando-lhe ao mesmo tempo prazo para a sua defesa,
nomeadamente, para os poder contestar e oferecer prova a produzir na mesma
audiência, ofenda os princípios constitucionais do acusatório, do contraditório
e da plenitude das garantias de defesa, quando a deliberação sobre tais factos
novos e sobre todos os demais é assumida pelo tribunal como uma posição
provisória sobre o julgamento da matéria de facto.
Sendo o julgamento da matéria de facto da competência de um órgão
colegial, qualquer posição do tribunal sobre se ocorrem factos novos
susceptíveis de serem tidos como uma alteração não substancial de factos apenas
é possível ser tomada se se efectuar deliberação que constate a existência dos
indícios desses factos e decida ordenar a sua investigação.
A existência de uma tal deliberação surge como necessidade imposta
pela natureza colegial do tribunal que tem de formar a decisão: esta em vez de
corresponder à vontade funcional de uma só pessoa que não precisa para a formar
de conferenciar com outrem, como acontece no juiz singular, é a resultante da
vontade funcional dos vários juízes.
Numa tal perspectiva – e reproduzindo asserções do acórdão recorrido
– “é irrelevante que a essa comunicação se chame leitura de acórdão ou que se
designe a mesma por qualquer outra expressão”.
E continua o mesmo aresto: “É que tendo sido dado prazo para a organização da
defesa e admitida a produção de nova prova, essa prova a produzir poderia ter o
efeito de alterar decisivamente o juízo do tribunal quanto aos factos descritos
na comunicação”, possibilidade esta, de resto, bem explicitada no facto de o
tribunal de 1ª instância haver expressamente consignado que os factos
comunicados foram dados provisoriamente como assentes em face da prova até agora
[então] produzida”.
Também neste ponto vale por inteiro o que se disse nos passos do Acórdão n.º
130/98, que se transcreveram.
O recurso não merece, pois, provimento.
C – Decisão
15 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento das questões de constitucionalidade relativas às
normas constantes do artigo 36º, nº 2, da Organização Tutelar de Menores e do
artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
b) Negar provimento ao recurso na parte restante.
c) Condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 Ucs.
Lisboa, 13 de Julho de 2005
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos