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Processo n.º 47/05
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. (entretanto falecida e substituída na acção por B. e C. ora reclamantes) propôs, em 14 de Março de 1995, acção ordinária contra D. e mulher E., F. e mulher G., H., I., J., K., L. e mulher M., N., O., P. e mulher Q., pedindo: a) Que se declarasse a nulidade das desanexações e vendas efectuadas por D. e mulher, e de todas as que se seguiram, desde 14.09.83, com o consequente cancelamento das inscrições prediais dos correspondentes registos; b) A condenação dos réus no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um imóvel e a restituição da parte que cada um ilicitamente ocupa, livre de pessoas e bens; c) A condenação dos réus no pagamento de uma indemnização de 7.500.000$00 contos pelos danos patrimoniais e 1.000.000$00 pelos danos morais sofridos.
2. Por decisão da 9ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, de 7 de Novembro de 2001, foi a acção julgada improcedente.
3. Inconformada com esta decisão a Autora recorreu dela para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 9 de Julho de 2003, julgou a acção procedente na parte relativa ao pedidos supra identificados em a) e b).
4. Deste acórdão da Relação recorreram alguns dos Réus para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 16 de Novembro de 2004, e para o que agora importa, concedeu provimento à revista e, em consequência, revogou o acórdão recorrido, tendo, embora com fundamentos diversos dos da sentença proferida em primeira instância, julgado a acção improcedente.
5. Desta decisão foi interposto recurso para este Tribunal, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“[...],não se conformando com o douto Acórdão de que foram notificadas, vêm do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que fazem nos seguintes termos:
1° O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70° da lei n.º 28/82 de 15 de Novembro.
2° Esta alínea b) do art. 70° comporta também os casos anómalos e excepcionais em que o Tribunal Constitucional vem entendendo que, por ao recorrente não ter sido possível suscitar a questão da inconstitucionalidade antes da decisão do STJ e não dispor já de oportunidade processual para o fazer, deverá ser-lhe salvaguardado o direito ao recurso de constitucionalidade.
3° Efectivamente, estamos pois perante a situação a que se refere o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 191/91, in Acs. TC, 19°, pag. 283: “... casos excepcionais em que o interessado não tivera antes oportunidade processual para suscitar a questão, em que pode ser considerado admissível o recurso embora o poder jurisdicional do tribunal recorrido estivesse já esgotado quando a questão da inconstitucionalidade foi suscitada.”
4° O que está em causa no presente recurso é a arguição por parte das recorrentes da inconstitucionalidade que resulta da interpretação efectuada pelo douto Acórdão da matéria de facto considerada provada nos presentes autos.
5° É que considerou o douto Acórdão proferido que a pretensão das AA. na acção cai por base em virtude de não terem sido alegados e provados os factos constitutivos do direito de preferência em causa.
6° Ora, tal não corresponde à verdade, já que tais factos (os factos constitutivos do direito de preferência) foram alegados nos artigos 1 ° a 6° da petição inicial tendo sido considerados provados conforme consta das alíneas A) a D) da Especificação (cfr . Despacho Saneador de fls ...).
7° Assim, o douto Acórdão partiu de um pressuposto errado, acabando por violar os seus poderes de cognição e designadamente o disposto no artigo 729° do C.P.C.
8° Pretende-se pois ver apreciada a interpretação dada pelo douto Acórdão ao disposto no art. 729° do C.P.C, designadamente o seu n.º 2.
9° Acrescente-se que com o fundamento de não terem sido alegados e provados os factos constitutivos do direito de preferência em causa não chegou o douto Acórdão a apreciar a questão suscitada e controvertida no recurso.
10° Entende-se assim que o douto Acórdão viola o princípio da confiança - ínsito do princípio do Estado do Direito Democrático e o princípio da segurança jurídica que é inerente à função judicial, que decorre dos artigos 2°,18° n.o 2 e 20° da C.R.P.
6. Foi, então, proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na parte ora relevante, o seu teor:
“[...]6. Importa, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. art. 76º, n.º 3, da LTC). Na verdade, o recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, visa submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a constitucionalidade de normas jurídicas aplicadas pela decisão recorrida e pressupõe, nomeadamente, que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Ora, no presentes autos, as recorrentes confessam, no requerimento de interposição do recurso, que nunca suscitaram, anteriormente, qualquer questão de constitucionalidade. O problema, porém, é que, como veremos, nem sequer naquele requerimento é suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa. De facto, basta atentar no teor do referido requerimento para se concluir que, em rigor, o que as recorrentes pretendem não é que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade de uma norma jurídica, mas, claramente, da própria decisão recorrida. Para o demonstrar basta recordar o requerimento de interposição do recurso (que supra já transcrevemos integralmente) na parte em que as recorrentes concretizam a questão que pretendem ver submetida à apreciação do Tribunal:
“[...] 4° O que está em causa no presente recurso é a arguição por parte das recorrentes da inconstitucionalidade que resulta da interpretação efectuada pelo douto Acórdão da matéria de facto considerada provada nos presentes autos.
5° É que considerou o douto Acórdão proferido que a pretensão das AA. na acção cai por base em virtude de não terem sido alegados e provados os factos constitutivos do direito de preferência em causa.
6° Ora, tal não corresponde à verdade, já que tais factos (os factos constitutivos do direito de preferência) foram alegados nos artigos 1 ° a 6° da petição inicial tendo sido considerados provados conforme consta das alíneas A) a D) da Especificação (cfr . Despacho Saneador de fls ...).
7° Assim, o douto Acórdão partiu de um pressuposto errado, acabando por violar os seus poderes de cognição e designadamente o disposto no artigo 729° do C.P.C.
8° Pretende-se pois ver apreciada a interpretação dada pelo douto Acórdão ao disposto no art. 729° do C.P.C, designadamente o seu n.º 2.
9° Acrescente-se que com o fundamento de não terem sido alegados e provados os factos constitutivos do direito de preferência em causa não chegou o douto Acórdão a apreciar a questão suscitada e controvertida no recurso.
10° Entende-se assim que o douto Acórdão viola o princípio da confiança - ínsito do principio do Estado do Direito Democrático e o principio da segurança jurídica que é inerente à função judicial, que decorre dos artigos 2°,18° n.º 2 e 20° da C.R.P”. (negrito aditado) Ora, constitui jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, estando em causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82 e assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. Na verdade, ao contrário dos sistemas em que é admitido recurso de amparo, nomeadamente na modalidade de amparo dirigido contra decisões jurisdicionais que, alegadamente, violam directamente a Constituição, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal não se destina ao controlo da decisão judicial recorrida, como tal considerada, como sucede quando a discordância se dirige a esta última, mas, pelo contrário, ao controlo normativo de constitucionalidade da norma aplicada. Em face do exposto, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, torna-se evidente que não pode, no caso dos autos, conhecer-se do objecto do presente recurso, já que não estão presentes os pressupostos da sua admissibilidade.”
7. Desta decisão é interposta a presente reclamação,
“nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. No requerimento de interposição de recurso para este alto Tribunal, as Requerentes alegaram que a alínea b) do n.º 1 do art. 70° da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, “comporta também os casos anómalos e excepcionais em que o Tribunal Constitucional vem entendendo que, por ao recorrente não ter sido possível suscitar a questão da inconstitucionalidade antes da decisão do STJ e não dispor já de oportunidade processual para o fazer, deverá ser-lhe salvaguardado o direito ao recurso de constitucionalidade”.
2. E defenderam que, nos presentes autos, estamos precisamente perante um desses casos anómalos e excepcionais, já que a questão da inconstitucionalidade só se colocou com a decisão do STJ, altura em que as Recorrentes não dispunham já de oportunidade processual para a levantarem, razão pela qual interpuseram o presente recurso, invocando a inconstitucionalidade do art.º 729° do Código de Processo Civil (CPC), na interpretação que dele é feita pelo douto Acórdão do STJ, por contrária aos artigos 2°, 18°, n° 2, e 20° da C.R.P .
3. Ou seja, as Recorrentes arguiram esta inconstitucionalidade na sequência e por causa da decisão do STJ. Até aí não havia essa decisão e, consequentemente, não tiveram as Recorrentes oportunidade processual- e necessidade- de suscitar a questão.
4. Estamos, com o devido respeito, perante a situação a que se refere, por todos, o douto Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 191/91, já citado no requerimento de recurso “... casos excepcionais em que o interessado não tivera antes oportunidade processual para suscitar a questão, em que pode ser considerado admissível o recurso embora o poder jurisdicional do tribunal recorrido estivesse já esgotado quando a questão da inconstitucionalidade foi suscitada.” (in Acórdãos TC, 19°, pág. 283).
5. A douta decisão sumária de que ora se reclama, embora refira esta questão, não toma sobre a mesma qualquer decisão, sendo omissa quanto à decisão desta parte do requerimento de interposição do recurso.
6. Com efeito, entendeu o Venerando Conselheiro Relator que no requerimento de interposição do recurso não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa, pois “o que as recorrentes pretendem não é que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade de uma norma jurídica, mas claramente, da própria decisão recorrida” caso em que “não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal”, razão pela qual decidiu não conhecer do objecto do recurso.
7. Salvo o devido respeito, que é muito, não podem as Recorrentes conformar-se com esta decisão!
8. As Recorrentes não pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade da própria decisão recorrida.
9. Bem sabem as Recorrentes que, encontrando-nos em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, esta incide sobre normas, tal como foram aplicadas ou não aplicadas na decisão de que se recorre.
10. Todavia, as ora Reclamantes ao interporem recurso para este Venerando Tribunal, não tinham, nem têm, intenção de ver apreciada a decisão judicial,
11. Mas sim, de ver apreciados os preceitos legais em conformidade com as directrizes constitucionais que se lhes impunham e impõem.
12. Pretendiam, e pretendem, as ora Reclamantes ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do art.º 729° do C.P.C., em virtude de entenderem que tal norma, na interpretação que lhe foi dada no douto Acórdão do STJ, viola o princípio da confiança ínsito do princípio do Estado de Direito Democrático e o princípio da segurança jurídica inerente à função judicial, que decorrem dos artigos 2°, 18°, n° 2, e 20° da C.R.P .
13. O que é fundamental, pelo menos para as ora Reclamantes, é que a interpretação dada a esta norma, de cuja constitucionalidade se requer a apreciação, lesa direitos-fundamentais e interesses legítimos que se encontram constitucionalmente tutelados! Na verdade,
14. Como se alegou no requerimento de interposição de recurso para este alto Tribunal, considerou o douto Acórdão do STJ que a pretensão das AA. na acção cai por base em virtude de não terem sido alegados e provados os factos constitutivos do direito de preferência em causa nestes autos.
15. Ora, tal não corresponde à verdade já que os factos constitutivos do direito de preferência foram alegados nos artigos 1º a 6° da petição inicial e considerados provados nas alíneas A) a D) da Especificação (cfr. Despacho Saneador de fls. ...).
16. Assim, o douto Acórdão do STJ, ao decidir que não foram alegados e provados os referidos factos, alterou, manifestamente, a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, em clara violação dos seus poderes de cognição e, designadamente, do disposto no artigo 729° do C PC.
17. Pretendem, pois, as ora Reclamantes ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo douto Acórdão do STJ ao disposto no art.º 729° do CPC, designadamente no seu n.º 2.
18. O douto acórdão recorrido interpretou o disposto no art. 729°, n.º 2, do CPC no sentido de lhe ser permitido apreciar os elementos de prova constantes dos autos e, em função disso, alterar a decisão proferida pela 1ª Instância quanto à matéria de facto, considerando como não alegados e provados factos que foram efectivamente alegados e considerados provados na decisão da 1ª Instância. Ora,
19. O STJ pode tirar conclusões dos factos que tenham ficado provados, mas não pode alterá-los em função da sua própria e directa apreciação e valoração dos meios de prova.
20. As conclusões do STJ têm por base os factos já fixados pelo Tribunal recorrido, não se podendo alterar os factos que a prova já fixou, conforme claramente dispõe o artigo 729° do CPC.
21. O STJ ao considerar que a pretensão das AA. cai por base em virtude de não terem sido alegados e provados os factos constitutivos do direito de preferência em causa, negando completamente o que consta das alíneas A) a D) da especificação, alterou a matéria de facto fixada nos autos para se pronunciar pela insuficiência dos factos para apreciar do mérito e tal poder de alteração
é-lhe, indiscutivelmente, vedado.
22. Acrescente-se que, com o fundamento de não terem sido alegados e provados os factos constitutivos do direito de preferência em causa, não chegou o douto Acórdão do STJ a apreciar a questão suscitada e controvertida no recurso.
23. E inegável que ao ser interpretado o artigo a que se vem fazendo referência do CPC nos termos em que o foi, se verificou uma flagrante violação dos já referidos princípio da confiança ínsito do princípio do Estado de Direito Democrático e o princípio da segurança jurídica inerente à função judicial, que decorrem dos artigos 2°, 18°, n° 2, e 20° da C.R.P .
24. Existiram assim princípios constitucionalmente consagrados que foram postergados e cujas consequências importa serem apreciadas.
25. Motivo pelo qual não pode este Venerando Tribunal desvincular-se da apreciação desta questão.
26. Além de que não podem as ora Reclamantes, com todo o respeito, que é muito, deixar de salientar a este Venerando Tribunal que, em sede de apreciação de recurso, não se encontra vinculado aos argumentos aduzidos pelas partes (cfr. art.º 79°-C da Lei n.º 28/82, de 15/11, na redacção dada pela lei n.º 13-A/98 de
26/02).
27. O Venerando Tribunal Constitucional tem uma função interpretativa, criadora e integradora do Direito Constitucional, ou seja, as suas decisões supõem uma hermenêutica que se traduz em actos interpretativos e aplicadores do direito, aos quais subjaz sempre uma actividade criadora por partes dos Venerandos Juízes Conselheiros que o compõem.
28. Pelo que, não se pronunciando sobre as questões que lhe são suscitadas, recusam-se à função que lhes está cometida, o que nos presentes autos implica uma limitação, e até lesão, dos direitos fundamentais das ora Reclamantes.
29. Assim sendo, e face ao exposto, pretendem as ora Reclamantes que este Venerando Tribunal se pronuncie quanto à constitucionalidade do preceito normativo invocado, na interpretação que lhe é dada no douto Acórdão do STJ e que determinou a decisão de que se recorre.
30. Além do mais, consideram ainda as ora Reclamantes que a ser sumariamente rejeitado o presente recurso sem que este Venerando Tribunal tome conhecimento do mesmo e sem que as ora Reclamantes sejam ouvidas e lhes seja dada oportunidade de produzirem as suas motivações, as normas legais e constitucionais que consagram o princípio do contraditório estão a ser flagrantemente violadas.
[...]”
8. Notificados os recorridos, nada disseram.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
III – Fundamentação
9. Na decisão sumária reclamada considerou-se que, independentemente da questão de saber se estavam preenchidos outros pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, invocada pelas recorrentes, no requerimento de interposição do recurso não está formulada, sequer, uma questão de constitucionalidade normativa, pelo que, nos termos constitucionais e legais – nomeadamente nos termos dos artigos 280º da Constituição e 70º da Lei n.º 28/82
-, não é possível conhecer do objecto do recurso.
As recorrentes vêm reclamar desta decisão. Vejamos se têm razão.
9.1. As recorrentes, ora reclamantes, começam por alegar que “não tinham, nem têm, intenção de ver apreciada a decisão judicial”, mas antes que o que pretendem ver apreciada é a inconstitucionalidade “da norma do art.º 729° do C.P.C., em virtude de entenderem que tal norma, na interpretação que lhe foi dada no douto Acórdão do STJ, viola o princípio da confiança ínsito do princípio do Estado de Direito Democrático e o princípio da segurança jurídica inerente à função judicial”. Não é isto, porém, o que resulta do requerimento de interposição do recurso, como detalhadamente se demonstrou na decisão sumária ora reclamada. Ora, delimitando aquele requerimento, como é sabido, o objecto do recurso, qualquer tentativa de modificação desse objecto – substituindo, por exemplo, “acórdão” por “norma do art.º 729° do C.P.C” -, porventura operada na presente reclamação, ainda que viesse a ser conseguida, sempre seria irrelevante.
Assim sendo, como efectivamente é e tanto basta, sempre estará este Tribunal, constitucional e legalmente, conforme se explicitou na decisão reclamada, impossibilitado de conhecer do recurso aqui interposto.
9.2. Acresce, no caso concreto, que, não obstante a repetida afirmação de que o que as reclamantes supostamente pretendiam era a apreciação da inconstitucionalidade de normas, resulta da própria reclamação que, apesar de isso, é, ainda e sempre, a decisão que acaba por estar em causa.
Na verdade, se ponderarmos os números 14 e seguintes da presente reclamação, verificamos que, não obstante o denodado esforço efectuado para, agora e a destempo, imputar a uma norma jurídica a inconstitucionalidade anteriormente imputada à decisão, é sempre esta decisão recorrida que acaba por ser, em última instância, questionada.
De facto, sustentam as reclamantes que “considerou o douto Acórdão do STJ que a pretensão das AA. na acção cai por base em virtude de não terem sido alegados e provados os factos constitutivos do direito de preferência em causa nestes autos. 15. Ora, tal não corresponde à verdade [...] 16. Assim, o douto Acórdão do STJ, ao decidir que não foram alegados e provados os referidos factos, alterou, manifestamente, a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, em clara violação dos seus poderes de cognição e, designadamente, do disposto no artigo 729° do CPC.” Ou seja, as reclamantes consideram que teria sido violada a precisa norma cuja constitucionalidade pretendem agora ver apreciada.
Ora, como se afirmou, nomeadamente, nos Acórdãos n.ºs 489/2004 e 710/2004
(disponíveis na página Internet do Tribunal Constitucional, no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), “se se utiliza uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios constitucionais, tem-se por certo que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao ordenamento jurídico infra-constitucional que se tem por violado com essa decisão, pois que se posta como contraditório sustentar-se que há violação desse ordenamento e
[que] este é desconforme com o Diploma Básico. Efectivamente, se um preceito da lei ordinária é inconstitucional, não deverão os tribunais acatá-lo, pelo que esgrimir com a violação desse preceito, representa uma óptica de acordo com a qual ele se mostra consonante com a Constituição.” Isto é, se se sustenta que determinada postura é, simultaneamente, violadora de preceitos do ordenamento jurídico infra-constitucional e de normas constitucionais só se pode concluir que se está a questionar a própria decisão judicial e não a constitucionalidade dos preceitos ordinários. O que, igualmente, sempre conduziria à solução encontrada na decisão sumária ora reclamada – impossibilidade de conhecimento do recurso interposto.
9.3. E não se argumente, como o fazem as reclamantes, que o Tribunal Constitucional “não se encontra vinculado aos argumentos aduzidos pelas partes
(cfr. art.º 79°-C da Lei n.º 28/82, de 15/11, na redacção dada pela Lei n.º
13-A/98 de 26/02)” – argumento que não tem aqui qualquer cabimento -, pelo que
“não se pronunciando sobre as questões que lhe são suscitadas”, recusaria “a função que lhe[] está cometida, o que nos presentes autos implica uma limitação, e até lesão, dos direitos fundamentais das ora Reclamantes.”
De facto, só por lapso manifesto ou indesculpável desconhecimento se pode olvidar que, num sistema como o de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal, que não prevê o recurso de amparo, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer dos recursos que, preenchendo integralmente os respectivos pressupostos de admissibilidade, visem questionar normas jurídicas aplicadas nas decisões recorridas e não as próprias decisões, ainda que, alegadamente, estas sejam violadoras de normas ou princípios constitucionais.
9.4. Por último, invocam as reclamantes que, “a ser sumariamente rejeitado o presente recurso sem que este Venerando Tribunal tome conhecimento do mesmo e sem que as ora Reclamantes sejam ouvidas e lhes seja dada oportunidade de produzirem as suas motivações, as normas legais e constitucionais que consagram o princípio do contraditório estão a ser flagrantemente violadas”.
É argumento inteiramente descabido. Na verdade, tendo sido proferida decisão sumária - única e exclusivamente face ao requerimento de interposição do recurso das ora reclamantes – e, havendo lugar a reclamação para a conferência - que, aliás, as reclamantes não deixaram de interpor -, não se vislumbra como se pode alegar, sequer, qualquer violação de tal princípio.
10. Assim sendo, pelo exposto e pelas razões já constantes da decisão reclamada, que mantém inteira validade e em nada é infirmada pela presente reclamação, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que as ora reclamantes pretenderam interpor.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelas reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 10 de Março de 2005
Gil Galvão Bravo Serra Artur Maurício