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Processo n.º 89/05
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls.1608 foi proferida a seguinte decisão sumária:
«1. Por sentença do Tribunal Judicial de Ansião de 27 de Abril de
2004, foram condenados A. e B., na pena de 35 meses de prisão cada, C., na pena
de 16 meses de prisão, e D., na pena de 380 dias de multa à taxa diária de € 30,
todos pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma
continuada, previsto e punido pelo artigo 105º, n.ºs 1, 2 e 4, do Regime
Jurídico das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/01, de 5 de Junho.
As penas de prisão foram suspensas na sua execução pelo período de 5 anos, sob
condição de ser pago ao Estado, no mesmo prazo, o montante global do imposto não
entregue, acrescido dos devidos juros de mora.
Inconformados, os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal da
Relação de Coimbra, Tribunal que, por acórdão de 5 de Janeiro de 2005, negou
provimento ao recurso e manteve a sentença recorrida, procedendo ainda “à
correcção da sentença, para que conste da decisão que o total de € 1.265.804,61
é o valor do montante dos impostos não entregues ao Estado”.
Na parte que agora releva, afirmou-se no acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra o seguinte:
“Determina a sentença a suspensão da pena por cinco anos com a
condição de pagar também no prazo de 5 anos o montante do imposto de que se
apropriou, com os juros sobre esse montante.
Entendem os recorrentes que, estando o montante a ser apurado em
liquidação de sentença, a sentença recorrida ou condicionava a obrigação do
pagamento ao sucesso da demanda (na indicada acção cível) contra o Banco E., ou
então na prática sujeita a suspensão da execução da pena a condição que
antecipadamente sabe ser impossível e, por isso, ilegal (cfr. 58 da motivação do
recurso).
Entende que a manter-se a suspensão desta forma configura-se uma
verdadeira prisão por dívidas, constitucionalmente incomportável.
Seguindo, muito de perto, as decisões do Tribunal Constitucional,
dir-se-á:
(...)
O Tribunal Constitucional (como se refere no Acórdão n.º 256/03, in
Diário da República, II Série, n.º 150, de 2 de Julho de 2003, pág. 9872), não
julgou inconstitucionais as normas do n.º 7 do artigo 11º do RJIFNA e do artigo
14º do RJIT [(no sentido da não inconstitucionalidade desta última norma também
viria a decidir o Acórdão n.º 335/03, que, nesse ponto, reproduz a fundamentação
do Acórdão n.º 256/03]; comparando essa norma com o (posterior) artigo 14º do
RJIT, verifica-se que ambos condicionam a suspensão da execução da pena de
prisão ao pagamento das quantias em dívida: não sendo pagas tais quantias, o
primeiro preceito remetia (em parte) para o regime do Código Penal relativo ao
não cumprimento culposo das condições da suspensão; já o segundo preceito – que
englobou tal regime do Código Penal – é mais dúbio, porque não faz referência à
necessidade de culpa do condenado.
O Tribunal Constitucional considera (acórdãos citados) que deve
entender-se que a já referida aplicação subsidiária do Código Penal, prevista no
artigo 3º, alínea a), do RJIT (cfr. os artigos 55º e 56º do referido Código),
bem como a circunstância de só o incumprimento culposo conduzir a um prognóstico
desfavorável relativamente ao comportamento do delinquente implicam a conclusão
de que o artigo 14º, n.º 2, do RJIT, quando se refere à falta de pagamento das
quantias, tem em vista a falta de pagamento culposa
(...)
No presente recurso, segundo os recorrentes, esta imposição (contida
no artigo 11º, n.º 7, citado), na medida em que se baseia num facto impossível
de realizar, por depender de liquidação futura, viola o disposto nos artigos 1º
e 8º da Constituição da República Portuguesa e 11º do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos.
(...)
Porém, não se trata aqui da impossibilidade de cumprimento como
única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração de que, em
certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite realizar de
forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela – suspensão da
execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado, traduzida no
pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização devida.
A questão é a de saber se o condicionamento da suspensão pelo
pagamento da indemnização não configuraria, quando aquele pagamento não viesse a
ser feito, uma (inconstitucional) prisão por dívidas; ora, e na linha do
Tribunal Constitucional mesmo que se considerasse desproporcionada a imposição
da obrigação do pagamento da totalidade da quantia em dívida como condição de
suspensão da execução da pena, o certo é que o motivo primário do cumprimento da
pena de prisão não radicaria na falta de pagamento de tal quantia, mas na
prática de um facto punível.
(...)
O objectivo de interesse público que preside ao dever de pagamento
dos impostos justifica um tratamento diferenciado face a outros deveres de
carácter patrimonial e, como tal, uma concepção da suspensão da execução da pena
como medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente (...).
Por isso concluiu o Tribunal Constitucional que «as normas em apreço
não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando apenas encaradas na
perspectiva da automática correspondência entre o montante da quantia em dívida
e o montante a pagar como condição de suspensão da execução da pena, atendendo à
justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais. Assume o interesse em
arrecadar impostos; não se está a criar um novo dever que passa a onerar o
condenado: o dever de pagamento ou de reposição.
Não se trata de o juiz necessariamente elaborar um prognóstico
quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, no momento do decretamento
da suspensão da execução da pena; o que acontece é que verificadas as condições
gerais de suspensão da execução da pena nas quais não se inclui a possibilidade
de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida), é decretada a
suspensão.
Anote-se que o não cumprimento não culposo da obrigação não
determina a revogação da execução da pena; quer no regime do Código Penal para o
qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, bem como do artigo 14º, n.º 2, do
RJIT, a revogação é sempre uma possibilidade; e, para além disso, a revogação
não dispensa a culpa do condenado.
Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa,
adequação e proporcionalidade as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA
e no artigo 14º do RJIT».
Do mesmo modo, não colide com a lei fundamental, nem com os Pactos
Internacionais citados na motivação, a suspensão da pena como foi decretado.”
2. Ainda inconformados, A., B. e C. vieram recorrer para o Tribunal
Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
n.º 28/82, invocando que
“em sede de alegações de recurso, suscitaram os Arguidos a desconformidade com a
CRP da interpretação que pelo Tribunal Judicial da Comarca de Ansião havia sido
feita das normas constantes do artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA e do artigo 14º do
RJIT.
Alegaram, então, os ora Recorrentes que a interpretação que pelo Tribunal de
Ansião foi feita das sobreditas disposições legais – resultando numa verdadeira
prisão por dívidas – violava directamente o artigo 1º da CRP e, de forma
remissiva, mas também de aplicação directa, por força do artigo 8º da Lei
Fundamental, o artigo 11º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
(aprovado pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho).
Sucede que, por Acórdão datado de 5 de Janeiro de 2005, o Tribunal da Relação de
Coimbra veio confirmar a sentença proferida em 1ª instância, interpretando as
normas constantes do artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA e do artigo 14º do RJIT no
mesmo sentido que lhes havia sido conferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de
Ansião.”
3. O Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso, desde logo por não
ter sido oportunamente suscitada qualquer inconstitucionalidade de qualquer
norma “constante(...) do artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA e do artigo 14º do RJIT.”
Com efeito, é pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta
da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do
nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso, que a inconstitucionalidade
haja sido “suscitada durante o processo” (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º),
ou seja, colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”
(nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82).
Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só
pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade ”durante o
processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto
processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em
momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com
os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II,
de 28 de Maio de 1994). Não é, manifestamente, o caso dos autos.
Ora da leitura das alegações apresentadas no recurso de apelação não resulta
senão a acusação de inconstitucionalidade da sentença da primeira instância,
sentença que, segundo os recorrentes, “da forma como está feita, (...) viola os
artigos 51º e 129º do Código Penal, configurando também uma prisão por dívidas,
constitucionalmente vedada”.
4. Sempre se acrescentam, todavia, duas notas.
Em primeiro lugar, para recordar que, relativamente à invocada questão da
violação do artigo 11º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos por
parte das normas impugnadas, e independentemente de qualquer consideração sobre
o seu fundamento, não poderia o Tribunal Constitucional apreciá-la, em qualquer
caso, no âmbito do presente recurso. Com efeito, após a alteração da Lei nº
28/82, operada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, a competência do Tribunal
Constitucional na fiscalização concreta da compatibilidade de normas de direito
ordinário português com uma convenção internacional circunscreve-se, nos termos
da alínea i) do nº 1 do artigo 70º daquela Lei, aos casos de decisões 'que
recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na
sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em
desconformidade com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional'. No
actual panorama jurídico-constitucional, o Tribunal Constitucional não tem
poderes para, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, como é o caso, fiscalizar uma eventual inconstitucionalidade indirecta
(por violação do artigo 8º da Constituição) de uma norma de direito ordinário,
com fundamento na contrariedade ao direito convencional. Neste sentido se
pronunciaram, entre outros, os acórdãos nº 354/97 (Diário da República, II
Série, de 8 de Junho de 1997 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º, pág.
931 e segs.), nº 122/98 (Diário da República, II Série, de 29 de Abril de 1998),
624/98 e 650/98 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Para além disso, conforme com ampla fundamentação se demonstra no Acórdão n.º
663/98 (Diário da República, II Série, de 15 de Janeiro de 1999), sobre a
questão próxima da configuração do crime de emissão de cheque sem provisão como
um caso de prisão por dívidas, o princípio da proibição da prisão por dívidas
deve considerar-se como princípio consignado na Constituição (e na verdade como
princípio presente ao longo de toda a tradição constitucional portuguesa), pelo
que sempre seria desnecessário averiguar da violação de norma idêntica
eventualmente contida no direito internacional geral e das questões de violação
indirecta da Constituição a que aludem os recorrentes.
Em segundo lugar, sempre seria de reiterar a jurisprudência existente no sentido
de não serem inconstitucionais as normas dos artigos 11º, n.º 7, do RJIFNA e 14º
do RJIT, definida no acórdão n.º 256/03 e reafirmada nos acórdãos n.ºs 335/03 e
n.º 376/03 (o primeiro publicado no Diário da República, II série, de 2 de Julho
de 2003 e os restantes disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
4. Estão, portanto, reunidas condições para que se proceda à emissão
da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs. por
cada um.»
2. Inconformados, os recorrentes reclamaram para a conferência, ao
abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a
revogação da decisão sumária, por estarem preenchidos os requisitos de
admissibilidade do recurso.
Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no
sentido de que a reclamação carece manifestamente de fundamento, não só por não
ter sido oportunamente suscitada a inconstitucionalidade, como por ser
manifestamente improcedente, como se diz na parte final da decisão reclamada.
3. Sustentam os ora reclamantes que suscitaram oportunamente (nas
referidas alegações) a questão de constitucionalidade que pretendem ver
apreciada, referida à interpretação que a decisão então recorrida fez dos
preceitos legais relevantes, o que é susceptível de integrar o objecto de um
recurso de constitucionalidade.
Têm razão os reclamantes quando fazem a última afirmação; mas basta
ler as alegações a que se referem para verificar que, como se observa na decisão
reclamada, não foi o que então fizeram.
Sustentam ainda que, de qualquer modo, a questão de
constitucionalidade foi apreciada pelo tribunal a quo.
Seja como for, é condição de admissibilidade do recurso que a questão tenha sido
suscitada oportunamente e pelo recorrente (cfr. al. b) do n.º1 do artigo 70º e
n.º 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82).
Finalmente, e apelando ao acórdão n.º 233/94 deste Tribunal,
sustentam os reclamantes que é possível pretender que, no recurso em causa, o
Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade das próprias decisões de
que se recorre. Mas não é assim.
Com efeito, o recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade de normas destina-se a que este Tribunal aprecie a
conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que
foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido
suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b) do nº 1 do
artigo 70º da Lei nº 28/82), e não das próprias decisões que as apliquem. Assim
resulta da Constituição e da lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo
Tribunal (cfr. a título de exemplo, os acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96,
publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro
de 1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996).
Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não
conhecimento do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 29 de Março de 2005
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício