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Processo n.º 1034/2004
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
(Conselheira Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O arguido A., tendo sido acusado pelo Ministério Público
da prática de factos que integrariam a autoria material de um crime de abuso de
confiança, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30.º e 205.º,
n.ºs 1 e 4, alínea b), por referência à alínea b) do artigo 202.º, todos do
Código Penal (fls. 151 a 153), veio requerer a abertura de instrução, nos termos
do artigo 287.º, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), requerendo, além
do mais, a inquirição de duas testemunhas (fls. 181 a 190).
Por despacho da Juíza do Tribunal de Instrução Criminal
de Lisboa, de 15 de Julho de 2002, foi declarada aberta a instrução e designado
dia para inquirição das aludidas testemunhas (fls. 216), não tendo esta última
parte do despacho sido notificada aos mandatários da assistente e do arguido
(cf. cota de fls. 217). Procedeu-se à inquirição das testemunhas apenas com a
presença da Juíza de Instrução, do funcionário e de cada uma das testemunhas
(cfr. fls. 225 a 228 e 235 e 236).
No decurso do debate instrutório o mandatário do arguido
arguiu a nulidade processual derivada da sua falta de notificação para a
inquirição das testemunhas ouvidas em sede de instrução (fls. 245), arguição que
foi desatendida na decisão instrutória, de 13 de Maio de 2003, que acabou por
pronunciar o arguido pelo crime por que vinha acusado (fls. 249 a 257).
O desatendimento da arguição de nulidade assentou na
consideração de que o regime processual penal resultante do Código de Processo
Penal de 1987 (CPP), quer antes quer após a revisão operada pela Lei n.º 59/98,
de 25 de Agosto, não prevê a notificação dos mandatários das partes para a
inquirição das testemunhas em sede de instrução, como já sustentava, face à
redacção originária, Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III,
1994, pág. 160), como foi intenção explicitamente assumida pelo legislador de
1998 (cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, donde consta que
com o proposto aditamento do n.º 2 do artigo 298.º se visou “clarifica[r] a
regra vigente de que, na fase de instrução, apenas o debate instrutório tem
natureza contraditória”) e como constitui entendimento generalizado da
jurisprudência. Mais acrescentou que nunca o pretenso vício processual, a
existir, poderia ser qualificado como nulidade, face ao princípio da legalidade
relativo às nulidades (artigo 118.º, n.º 1, do CPP: “A violação ou a
inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade
do acto quando esta for expressamente cominada na lei”), pelo que “quanto muito
teria sido cometida uma mera irregularidade verdadeiramente inócua” (artigos
118.º, n.º 2, e 123.º do CPP), dado que “a presença, ou não presença, do
mandatário de uma das partes no processo em nada influi na realização e no
decorrer da mesma, sendo certo que, podendo ter acesso ao processo, pode
consultar as declarações prestadas e apresentar ou solicitar os
esclarecimentos que entenda”.
Contra esta decisão foi interposto recurso pelo arguido
(fls. 264 a 280), que foi admitido para subir com o eventual recurso da decisão
que pusesse termo à causa (despacho de fls. 284). Esse recurso veio a subir com
o interposto contra o acórdão de 2 de Abril de 2004, do Tribunal Colectivo da
4.ª Vara Criminal de Lisboa, que condenou o arguido, pelo crime por que vinha
pronunciado, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, cuja execução foi suspensa
por 2 anos, e na indemnização de 20 441 105$00 (e 101 959,80) à assistente (fls.
532 a 559).
A ambos os recursos foi negado provimento pelo acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13 de Outubro de 2004 (fls. 643 a 667),
que, no que concerne ao “recurso interlocutório”, manifestou inteira
concordância com o despacho recorrido e doutrina e jurisprudência nele citadas,
reiterando que “como a produção da prova na instrução não está sujeita a
contraditório, o advogado do arguido não tem de ser convocado para a inquirição
de testemunhas”. Segundo esse aresto, “só o debate instrutório está sujeito ao
contraditório e, então, aí sim, a presença do arguido e do seu defensor é
obrigatória”, como se extrai do n.º 1 do artigo 289.º do CPP. E prossegue:
“ainda que a alínea a) do artigo 61.º do CPP estabeleça que o arguido, bem como
(artigo 63.º do CPP) o seu defensor gozam do direito de estar presente aos
actos processuais que directamente lhe disserem respeito, é entendimento
pacífico, cremos, que essa presença só é obrigatória quando se visa actuar o
princípio do contraditório; não havendo a possibilidade de contraditar, não se
justifica a sua presença”. Donde deriva a inexistência de “qualquer violação
dos direitos de defesa do arguido e das normas processuais ou constitucionais
que o protegem”, acrescentando: “E se o n.º 3 do artigo 32.º da CRP dispõe que o
arguido tem o direito a ser assistido pelo defensor em todos os actos do
processo essa garantia refere-se à participação processual do arguido, pelo que
só faz sentido quando o arguido deva participar no acto”. Com estes
fundamentos, conclui o Tribunal da Relação de Lisboa que “o defensor não tinha
(...) de ser convocado para aquele acto processual na fase instrutória”.
Contra este acórdão, na parte assinalada, interpôs o
arguido recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º
1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver
apreciada a inconstitucionalidade, por violação das garantias de defesa do
arguido e do princípio do contraditório, garantidos pelo artigo 32.º, n.ºs 1 e
5, da Constituição da República Portuguesa (CRP), das normas dos artigos 289.º,
n.ºs 1 e 2, e 297.º, n.º 3, do CPP.
Neste Tribunal, o recorrente apresentou alegações, no
termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“I – O presente recurso, fundamentado na alínea b) do n.° 1 do
artigo 70.º, bem assim dos artigos 71.º, n.° l, 72.º, n.° 1, alínea b), 75.º e
75.º-A, todos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, sobe da decisão tomada em
sede de tribunal recorrido quanto à alegada questão da inconstitucionalidade
dos n.ºs 1 e 2 do artigo 289.º do Código de Processo Penal e do n.° 3 do artigo
297.º do mesmo diploma, nos termos da qual aquele entendeu inexistir qualquer
violação da Lei Fundamental, rejeitando, assim, a oportuna e invocada nulidade
da não notificação e intervenção do arguido, na pessoa do seu mandatário, na
diligência probatória (inquirição de testemunhas) em fase de instrução
contraditória.
II – O arguido, oportunamente notificado nos termos e para os
efeitos do disposto no artigo 287.º do CPP, veio requerer a abertura de
instrução e consequente inquirição de testemunhas que foram ouvidas sem que o
mandatário do arguido estivesse presente à sua inquirição, pois para tanto não
foi sequer notificado, facto de que tomou conhecimento em sede de debate
instrutório, o que motivou que só então viesse a arguir tal nulidade.
III – A Constituição Portuguesa consagra no n.° 1 do seu artigo 32.º
que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa» e entre essas
garantias de defesa surge a instrução contraditória, cujo objectivo último se
identifica com a contradição da tese da acusação.
IV – Deduzida acusação e por respeito ao «princípio do
contraditório», o legislador regulamentou a sua concretização, conferindo ao
arguido o direito a requerer a abertura de instrução e, desse modo,
permitindo-lhe colocar-se num mesmo plano de igualdade do Ministério Público, ou
seja, facultando-lhe o direito de procurar impugnar as provas carreadas aos
autos na fase imediatamente anterior.
V – O exercício do contraditório não pode limitar-se à participação
do arguido e/ou do seu mandatário no debate instrutório, que mais não é do que a
conclusão de um processo de recolha de contraprovas e sua consequente análise.
VI – Assim como ao Ministério Público foi dado o direito de
acompanhar, investigar, apurar os factos, também ao mandatário do arguido não
pode ser negado similar direito, pelo que, podendo o arguido, através do Sr.
Juiz, requerer que se averigue, se apure, menos se compreende que aquele ou o
seu mandatário seja excluído do direito de acompanhar as diligências por si
requeridas.
VII – Por isso, defendemos que o principio do contraditório e o
cabal assegurar dos direitos de defesa do arguido exigem que o seu mandatário
seja convocado e, desse modo, possa acompanhar as diligências de instrução,
mormente as por si requeridas, dando assim corpo aos preceitos constitucionais
constantes dos n.ºs 1 e 5, segunda parte, do artigo 32.º da CRP.
VIII – A recusa em permitir que os mandatários dos arguidos assistam
aos autos de instrução é uma limitação dos direitos destes e uma violação das
normas, colocando-os numa posição de desigualdade face às prerrogativas
atribuídas ao Ministério Público, tanto mais que se «ao Ministério Público
compete representar o Estado ...» (artigo 221.º, n.° 1, da CRP), ao mandatário
do arguido compete representar este último.
IX – O facto de o artigo 297.º, n.° 3, do CPP impor a notificação do
arguido e, desse modo, do seu mandatário apenas para o debate instrutório
traduz uma pálida afloração de respeito pelo principio do contraditório, mas,
sendo aquele apenas um dos «actos instrutórios», não podia o legislador deixar
de impor a notificação do arguido e seu defensor para todos os demais actos da
instrução contraditória.
X – Não tendo consagrado tal, há que concluir que o exercício do
princípio do contraditório está em causa e, desse modo, também em crise as
garantias de defesa que ao arguido deverão ser asseguradas.
XI – O Tribunal a quo interpretou de forma limitativa o exercício do
princípio do contraditório, reduzindo-o à sua mais simples expressão, ou seja,
de que apenas está obrigado a notificar as partes e, assim, o mandatário do
arguido e este mesmo para o debate instrutório, face ao disposto no artigo
297.º, n.° 3, do CPP, sem ter em conta o princípio geral contido no artigo 32.º,
n.° 1, da CRP e normativo contido nos artigos 61.º, n.° 1, alíneas a) e f), e
63.º do CPP.
XII – Ora, o Tribunal a quo deveria ter entendido essa norma
constante do citado artigo 297.º, n.° 3, como não impeditiva de notificar o
mandatário do arguido para participar das diligências instrutórias por si
requeridas, como lhe impõe o artigo 32.º, n.°s 1 e 5, da CRP e o disposto no
artigo 61.º, n.° 1, alíneas a) e f), e no artigo 63.º, ambos do CPP.
XIII – Impondo a lei que o arguido ou o seu mandatário estejam
presentes nos actos processuais que lhe digam respeito, nos quais se integram
as diligências de produção de prova em sede de instrução, e não tendo o Tribunal
a quo cumprido tal imposição, estamos perante uma violação da lei processual,
conduzindo a uma nulidade insanável, face ao disposto no artigo 119.º, alínea
c), do CPP, o que conduz às consequências previstas no artigo 122.º deste
diploma.
XIV – Assim, consideramos que as normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo
289.º e n.° 3 do artigo 297.º, ambos do CPP, estão feridas de
inconstitucionalidade material em clara violação do disposto nos n.ºs 1 e 5 do
artigo 32.º da CRP, o que impedia a sua aplicação pelos tribunais face ao
disposto no artigo 207.º da CRP.
XV – Fazê-lo, como sucedeu, imporá sempre como consequência a
revogação do despacho que considerou inexistir qualquer nulidade, bem assim de
todos os actos processuais posteriores.
XVI – Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, em nossa modesta
opinião, violou as garantias de defesa constitucionalmente asseguradas aos
arguidos, previstas no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, bem como o viola o
princípio do contraditório assumido em toda a sua dimensão, nomeadamente o
disposto nos artigos 61.º, n.º 1, alíneas a) e f), e 63.º do CPP, aplicando
norma cuja inconstitucionalidade foi invocada e, sendo inconstitucional, lhe
estava vedado fazer, pelo que violou a decisão recorrida o disposto no artigo
207.º da CRP.”
O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional contra-alegou, concluindo:
“1 – Não é inconstitucional a interpretação normativa que dispensa a
participação do arguido e seu defensor nos actos de inquirição de testemunhas,
a realizar pelo juiz na fase de instrução e antes de ocorrer o debate
instrutório, sendo facultado ao arguido plena oportunidade para aceder ao
conteúdo integral das declarações prestadas, podendo questioná-las e requerer
a produção de quaisquer provas indiciárias complementares que se revelem
necessárias e pertinentes aos fins da fase de instrução.
2 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Não tendo logrado vencimento a solução propugnada em
memorando apresentado pela primitiva Relatora, procedeu-se a redistribuição do
processo.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Como se referiu no despacho judicial confirmado
pelo acórdão ora recorrido, o entendimento de que a lei não prevê a
participação das partes ou seus mandatários nos actos de inquirição judicial de
testemunhas na fase de instrução, para além de corresponder ao expresso
propósito enunciado na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII
(Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 3.ª Sessão Legislativa, II
Série-A, n.º 27, de 29 de Janeiro de 1990, pág. 481 e seguintes), que originou a
Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que aditou o n.º 2 do artigo 289.º do CPP), foi
o adoptado pela jurisprudência penal (cf., entre outros, os acórdãos do Tribunal
da Relação de Lisboa, de 17 de Fevereiro de 2000, proc. n.º 2199; e do Tribunal
da Relação do Porto, de 28 de Março de 2001, proc. n.º 1344/00 (Colectânea de
Jurisprudência, ano XXVI, 2001, tomo II, pág. 218), de 28 de Novembro de 2001,
proc. n.º 141 048, e de 27 de Outubro de 2004, proc. n.º 41 817) e pela
doutrina.
No que a esta última concerne, Germano Marques da Silva
(Curso de Processo Penal, Lisboa, III vol., 2.ª ed., 2000, págs. 158-159)
sustenta:
“Os actos de instrução não estão sujeitos ao princípio do
contraditório. Na fase da instrução apenas o debate instrutório é contraditório.
Já era esse o nosso entendimento antes das alterações introduzidas
pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, mas agora a lei é expressa. Dispõe, como
efeito, o artigo 289.º, n.º 2, que, para além do debate instrutório, o
Ministério Público, o arguido, o defensor do arguido, o assistente e o seu
advogado apenas podem participar nos casos em que tenham o direito de intervir,
nos termos expressamente previstos neste Código.
Quais são esses actos expressamente previstos no Código? O
interrogatório do arguido, em que pode fazer-se assistir do seu defensor
(artigo 61.º, n.º 1, alínea e)) e os actos para memória futura (artigo 294.º).
Os actos de instrução são, pois, praticados de modo unilateral, em
forma inquisitória, pelo juiz ou pelos órgãos de polícia criminal por
incumbência do juiz, sem que o arguido, o Ministério Público ou o assistente
tenham intervenção activa na sua prática, salvo quando se tratar de actos em
que a lei expressamente admita a sua presença.
Entendemos que fora dos casos expressamente previstos na lei, nem o
Ministério Público, nem o arguido e seu defensor, nem o assistente e seu
advogado têm o direito de participar nos actos de instrução, mas consideramos
também que nada impede que o juiz considere útil para a eficácia da instrução
autorizar a sua participação, pois o juiz pratica os actos de instrução que
entender e do modo que entender necessário à realização das finalidades da
instrução, desde que respeitadas as formalidades legais.”
Manifestando a sua adesão à solução consagrada, refere
Jorge de Figueiredo Dias (“Os princípios estruturantes do processo e a revisão
de 1998 do Código de Processo Penal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
ano 8, fasc. 2.º, Abril-Junho 1998, págs. 199-213, em especial pág. 211), “a
opção de revisão de não atribuir carácter contraditório aos actos de instrução,
mantendo, diversamente do que sucedia com o projecto da Comissão (artigo 293.º,
p. ex.), a opção correcta do Código no sentido de só o debate instrutório e não
os actos instrutórios deverem estar sujeitos ao princípio do contraditório”.
Como assinala José Mouraz Lopes (Garantias Judiciárias
no Processo Penal – Do Juiz e da Instrução, Coimbra, 2000, págs. 80-81), a
comissão de reforma do processo penal chegara a propor, numa primeira versão do
projecto de revisão, a consagração da natureza contraditória da instrução, mas
“a reforma acabou por não ir tão longe, apenas consagrando como contraditório o
debate instrutório, como já era, e permitindo agora ao Ministério Público, ao
arguido, ao defensor, ao assistente e ao seu advogado a participação nos actos
em que tenham direito de intervir, «nos termos expressamente previstos neste
Código» – artigo 289.º, n.º 2”. Em suma: a instrução assume “apenas a natureza
contraditória quando do debate instrutório” e “as diligências de prova
efectuadas pelo juiz de instrução serão por isso sempre efectuadas apenas na sua
presença, à excepção daqueles actos em que expressamente qualquer dos
intervenientes processuais – Ministério Público, arguido, defensor, assistente
ou seu advogado – tenha que estar presente”.
2.2. A questão da conformidade constitucional da solução
legislativa que não prevê a participação do arguido e seu defensor (nem do
Ministério Público, nem do assistente, nem do advogado deste) nos actos de
inquirição de testemunhas a realizar pelo juiz na fase de instrução e, por isso,
também não prevê a notificação aos mesmos do despacho que designa a data para
essa inquirição, já foi apreciada por este Tribunal, embora em contextos legais
e factuais diversos.
Foi apreciada, em primeiro lugar, no Acórdão n.º
372/2000 (Diário da República, II Série, n.º 262, de 13 de Novembro de 2000,
pág. 18 407; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 499, pág. 74; e Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 47.º vol., pág. 701), a propósito das normas do artigo
61.º, n.º 1, alíneas a) e f), do CPP (“1. O arguido goza, em especial, em
qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, dos direitos de: a)
Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito;
(...) f) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo
as diligências que se lhe afigurarem necessárias; (...).”), “quando
interpretadas em termos de considerar que não conferem ao arguido e ao seu
defensor o direito de estar presente e intervir nos actos de inquirição de
testemunhas por si arroladas, a realizar na fase de instrução, que hajam sido
delegados pelo juiz nos órgãos de polícia criminal”. Embora reportada a
preceitos legais diversos dos agora invocados e incidindo num caso em que a
inquirição das testemunhas havia sido delegada pelo juiz de instrução num órgão
de polícia criminal (a GNR) – possibilidade que veio a ser expressamente
afastada pela nova redacção dada ao artigo 290.º, n.º 2, do CPP pela Lei n.º
59/98 –, a questão de inconstitucionalidade é substancialmente idêntica à ora
em apreço. Nesse Acórdão, o Tribunal Constitucional – após recordar o
entendimento da jurisprudência constitucional, que remonta ao Parecer n.º 18/81
da Comissão Constitucional e foi reiterada, entre outros, pelos Acórdãos n.ºs
434/87 e 172/92 do Tribunal Constitucional, de que o conteúdo essencial do
princípio do contraditório consiste “em que nenhuma prova deve ser aceite na
audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz,
sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito
processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a
valorar”, e de que a extensão processual desse princípio abarca a audiência de
julgamento e “os actos instrutórios que a lei determinar” –, fundou o seu juízo
de não inconstitucionalidade da dimensão normativa questionada na seguinte
argumentação:
“A Constituição remete assim para a lei ordinária a tarefa de concretização dos
actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do contraditório.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão n.º 434/87 (já citado): «Na
determinação dos actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio
do contraditório goza, assim, o legislador de grande liberdade. Ele só não pode
esquecer que o arguido tem de ser sempre respeitado na sua dignidade de pessoa,
o que implica ser tratado como sujeito do processo, e não como simples objecto
da decisão judicial. Ou seja, tem sempre de ter presente que o processo criminal
há-de ser a due process of law, a fair process, onde o arguido tenha efectiva
possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o
Ministério Público. É que, como adverte Eduardo Correia, in Revista de
Legislação e de Jurisprudência, ano 114.º, p. 365, o princípio do contraditório
se traduz «ao menos, num direito à defesa, num direito a ser ouvido».
8.2. Pois bem, em face do que antecede, a pergunta relevante é então
a de saber se a interpretação normativa que a decisão recorrida fez das alíneas
a) e f) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal – considerando não
ser obrigatória a presença do arguido e do seu defensor nos actos de inquirição
de testemunhas por si arroladas, a realizar na fase de instrução, que hajam sido
delegados pelo juiz nos órgãos de polícia criminal – obsta ou não a que o
processo criminal se mantenha como um due process of law, a fair process (para
utilizarmos as palavras do Acórdão n.º 434/87), onde o arguido tenha efectiva
possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o
Ministério Público, num momento prévio a qualquer decisão que o possa afectar.
Cremos, efectivamente, que não.
Sublinhe-se, neste momento, que ao Tribunal Constitucional não
compete decidir se estamos ou não em face de uma boa solução legislativa
(solução que, aliás, já foi em parte alterada, uma vez que o artigo 290.º, n.º 2
do Código de Processo Penal proíbe hoje expressamente ao juiz de instrução a
delegação nos órgãos de polícia criminal dos actos de inquirição de
testemunhas), mas, apenas, decidir se essa solução legislativa está ou não de
acordo com a Constituição e, no caso concreto, se se situa ou não ainda dentro
dos limites impostos pelo contraditório.
O núcleo essencial do princípio do contraditório, tal como vem sendo
definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, não será, in casu,
afectado, na medida em que ao arguido e ao seu defensor seja garantido o
direito de, num momento prévio à decisão instrutória, se pronunciar e
contraditar os depoimentos em causa.
É o que acontece. Na situação que agora é objecto dos autos, tal
direito (ao contraditório), encontra-se efectivamente garantido no seu núcleo
essencial, sendo apenas – como, bem, nota o Ministério Público – diferido o
momento do seu exercício.
Efectivamente, o respeito pelo contraditório é aqui garantido não
apenas pelo facto de o arguido e o seu defensor puderem ter acesso integral aos
depoimentos prestados, que são obrigatoriamente reduzidos a escrito, mas,
fundamentalmente, pelo facto de, nos termos do artigo 302.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal, o defensor do arguido poder, no início do debate instrutório,
contraditar o teor das declarações anteriormente prestadas pelas testemunhas
ouvidas pela GNR, podendo inclusivamente requerer a produção de prova
indiciária suplementar (incluindo mesmo, se necessário, uma nova inquirição
daquelas testemunhas) que considere pertinente.”
Não se ignora que foram apostos a esse Acórdão dois
votos de vencido, que entenderam violar a norma impugnada o direito de defesa do
arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP (e não – ou não
fundamentalmente – o princípio do contraditório). A violação do direito de
defesa derivaria, de acordo com esses votos de vencido, da circunstância de o
contraditório a posteriori ser “exercido relativamente a depoimentos cuja
emissão e redução a escrito não pode, irremediavelmente, ser verificada pelo
arguido e pelo seu defensor, o que restringe de forma inaceitável os seus
direitos de defesa”, pois “fica definitivamente fora do seu alcance verificar a
formulação das perguntas, acompanhar a forma como as testemunhas lhes respondem
e conhecer da correspondência entre os depoimentos prestados e o relato escrito
que lhes é, depois, apresentado”, sendo certo que “a possibilidade de, no debate
instrutório, poder contrariar o conteúdo desses depoimentos ou a fidedignidade
da sua reprodução escrita fica, senão impedida, pelo menos, seriamente
afectada; no fundo, a inquirição de testemunhas, durante a instrução, nos
termos permitidos pela norma impugnada, equivale à repetição do inquérito, assim
sendo desrespeitadas as garantias de defesa do arguido”.
Mas os riscos detectados nesses votos de vencido não
podem deixar de se considerar consideravelmente atenuados quando – como passou
a ter de acontecer após a reforma de 1998 e como efectivamente aconteceu nestes
autos – a inquirição de testemunhas na fase de instrução tem de ser feita
pessoalmente pelo juiz de instrução, não podendo ser delegada em órgãos de
polícia criminal (designadamente em elementos da GNR, como aconteceu no caso
então em apreço). Tendo agora a inquirição de testemunhas de ser feita
pessoalmente pelo juiz de instrução, que assegura maiores garantias de
competência técnica e de isenção quer quanto à adequação e pertinência das
perguntas formuladas, quer quanto à fidedignidade da transcrição das respostas,
não se pode hoje dizer que ela equivale à repetição do inquérito, com restrição
inaceitável dos direitos de defesa do arguido.
No segundo caso em que o Tribunal Constitucional se
pronunciou sobre a questão – Acórdão n.º 59/2001 (Diário da República, II Série,
n.º 87, de 12 de Abril de 2001, pág. 6563; e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 49.º vol., pág. 203) – estava em causa a constitucionalidade da
norma do artigo 289.º, n.º 2, do CPP (na redacção da Lei n.º 59/98, que
prescreve: “2. Fora do caso previsto no número anterior [o caso do debate
instrutório], o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu
advogado apenas podem participar nos actos em que tenham o direito de intervir,
nos termos expressamente previstos neste Código”), “na interpretação segundo a
qual as diligências de instrução prévias ao debate instrutório, nomeadamente os
depoimentos das testemunhas, são realizadas sem a notificação e presença do
mandatário do assistente”. Apesar de então estar em causa a notificação e
presença do mandatário do assistente, e no presente caso estar em causa a
notificação e presença do mandatário do arguido, algumas das considerações
tecidas para fundamentar o juízo de não inconstitucionalidade emitido por esse
Acórdão n.º 59/2001 são aproveitáveis para a situação ora em análise. Com
efeito, nesses aresto, após se reproduzir grande parte da fundamentação do
Acórdão n.º 372/2000, consignou-se:
“E, acolhendo os argumentos expendidos naquele acórdão, também agora se entende
que, na determinação dos actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao
princípio do contraditório, goza o legislador de grande liberdade (tal como,
aliás, decorre do próprio teor literal do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da
República Portuguesa, na parte em que determina que estão subordinados ao
princípio do contraditório os actos instrutórios que a lei determinar) e que o
respeito pelo contraditório é garantido não apenas pelo facto de o mandatário do
assistente poder ter acesso integral aos depoimentos prestados, que são
obrigatoriamente reduzidos a escrito, mas, fundamentalmente, pelo facto de, nos
termos do artigo 302.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, esse mandatário
poder, no início do debate instrutório, contraditar o teor das declarações
anteriormente prestadas pelas testemunhas ouvidas durante a fase da instrução,
podendo requerer a produção de prova indiciária suplementar (incluindo mesmo,
se necessário, uma nova inquirição daquelas testemunhas) que considere
pertinente.
Assim, nenhuma censura merece a interpretação normativa ora em
causa, à luz do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição.”
2.3. O juízo de não inconstitucionalidade da norma que
só prevê a participação do Ministério Público, do arguido, do defensor, do
assistente e do advogado deste no debate instrutório e nos actos em que tenham o
direito de intervir formulado nos anteriores acórdãos do Tribunal Constitucional
é de reiterar no presente caso, em que está em causa o segmento daquela norma
que não prevê a intervenção do arguido (e do seu defensor) no acto de
inquirição de testemunhas por ele apresentadas.
A questão vem colocada, nas alegações do recorrente, em
primeira linha, com base em pretensas violações dos n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º da
CRP, ou seja, de violação das garantias de defesa e de princípio do
contraditório. Nesta perspectiva, valem aqui, essencialmente, os argumentos
desenvolvidos nos citados Acórdãos n.ºs 372/2000 e 59/2001, sendo novamente de
salientar que, diversamente do que sucedeu no caso sobre que versou o Acórdão
n.º 372/2000, no presente caso a inquirição das testemunhas foi feita
pessoalmente pelo juiz de instrução, e não por órgão de polícia criminal,
através de delegação daquele cuja possibilidade foi eliminada pela revisão
processual penal de 1998. A aferição do respeito das garantias de defesa que o
processo criminal está constitucionalmente vinculado a assegurar deve ser feita
encarando globalmente o sistema processual penal e é nesta perspectiva que se
reputam relevantes as considerações, nesses acórdãos tecidas, quanto à
possibilidade de, no debate instrutório, o arguido e o seu defensor se
pronunciarem sobre a valia, credibilidade e relevância das declarações prestadas
no decurso da instrução, e requererem mesmo a reinquirição das pessoas ouvidas,
assegurando-se, assim, a faculdade de o arguido influenciar, num momento
adequado, a decisão de o sujeitar, ou não, a julgamento. No que especificamente
concerne ao princípio do contraditório, a Constituição confere ao legislador
ordinário uma ampla liberdade na determinação de quais os actos instrutórios
que entenda subordinar a esse princípio, determinação essa que só seria de
considerar constitucionalmente censurável se se limitasse a um número tão
reduzido e pouco significativo de actos instrutórios que equivalesse a um
esvaziamento ou intolerável cerceamento do comando constitucional. Não é esse o
juízo que se formula quanto ao regime da instrução criminal actualmente vigente,
sendo certo que não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre se a
solução legal ora questionada é, ou não, a preferível ou a mais correcta em
termos de direito ordinário.
Neste contexto, saliente-se que, não sendo legalmente
consentida a intervenção (intervenção activa, com interferência, directa ou
indirecta, na inquirição – entenda-se) dos participantes processuais elencados
no n.º 2 do artigo 289.º do CPP, nenhum efeito útil teria a notificação aos
mesmos da data da realização da diligência.
2.4. Por outro lado, é manifestamente improcedente a
alusão feita a eventual desigualdade de tratamento entre o Ministério Público e
o arguido, já que as normas impugnadas (n.ºs 1 e 2 do artigo 289.º e n.º 3 do
artigo 297.º do CPP) tratam da mesma forma “o Ministério Público, o arguido, o
defensor, o assistente e o seu advogado” e, no presente caso, também o
Ministério Público não esteve presente nas inquirições das testemunhas
efectuadas pelo juiz de instrução.
2.5. Porém, cumpre ainda encarar a questão sob outra
perspectiva, que centra a inconstitucionalidade não tanto no alegado
desrespeito do princípio do contraditório directamente reportado ao acto de
inquirição de testemunhas pelo juiz de instrução, mas na eventual relevância da
prova assim obtida na determinação da decisão final, atenta a possibilidade de
leitura desses depoimentos em sede de audiência de julgamento. Tal é a tese
sustentada por Joaquim Malafaia (“O acusatório e o contraditório nas declarações
prestadas nos actos de instrução e nas declarações para memória futura”, Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, ano 14, n.º 4, Outubro-Dezembro 2004, págs.
509-539), sintetizada nas seguintes conclusões:
“1 – O processo penal português é um processo de estrutura
acusatória, que existe ao longo de todo o processo, o que implica a
possibilidade de os sujeitos processuais poderem definir as questões que possam
ser submetidas a juízo, fornecer critérios de resolução desses problemas,
traduzindo-se, também, numa separação entre a entidade que investiga, que não
julga, e a entidade que julga, que não investiga.
2 – O princípio do contraditório, no nosso processo penal,
traduz-se na faculdade que cada sujeito processual tem de discutir questões de
facto e de direito, de oferecer as suas provas e de controlar as provas
oferecidas pelos outros que o possam afectar.
3 – Apesar de o princípio do contraditório vigorar de forma
limitada nas fases de inquérito e instrução, em todos os actos que possam
influir na decisão final de condenação e absolvição, tomada por via de regra na
audiência de discussão e julgamento, este princípio não pode sofrer quaisquer
limitações e por isso vigora plenamente.
4 – A produção de prova para formar a convicção do julgador tem de
ser realizada na audiência de discussão e julgamento segundo os princípios de um
processo de estrutura acusatória: os princípios de imediação, da oralidade e da
contraditoriedade na produção dessa prova. Contudo, esta regra tem excepções,
nomeadamente, as estatuídas no artigo 355.º, n.º 2, do CPP, que permite a
leitura em audiência de provas que apesar de não serem aí produzidas podem ser
lidas e valoradas livremente.
5 – Entre as provas que podem ser lidas e por isso valoradas em
audiência de discussão e julgamento, sem que aí tenham sido produzidas, além
das declarações para memória futura, encontram-se as declarações prestadas em
sede de instrução, desde que na data da audiência a testemunha não se recorde
dos factos ou na parte necessária para avivar a memória, e, ou, quando houver
contradições entre o anterior depoimento e o prestado em audiência,
contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas de
outro modo.
6 – Por a leitura das declarações prestadas em instrução poder
influir na decisão final a tomar no processo, as mesmas têm de ser obtidas com o
exercício do contraditório por todos os sujeitos processuais. O exercício do
contraditório dessas declarações não pode ser feito no debate instrutório, pela
simples e elementar razão que se em audiência de julgamento podem ser lidas as
declarações antes de serem contraditadas, existe uma prova que sem
contraditório pode influenciar e ajudar o tribunal a formar a sua convicção sem
que o contraditório tenha sido cumprido. Por isso, a interpretação que o artigo
289.º, n.º 2, permite que sejam tomadas declarações das testemunhas em
instrução sem o contraditório é inconstitucional por violação da estrutura
acusatória do processo penal e do princípio do contraditório, consagrados no
artigo 32.º, n.º 5, da CRP.”
Entende-se, mesmo perante esta nova perspectiva de
suscitação do problema, que não se justifica a alteração da posição do Tribunal
no sentido da não inconstitucionalidade da norma questionada.
Na verdade – para além de sempre se poder questionar se,
a existir alguma inconstitucionalidade, ela não seria com maior propriedade
imputada às normas que permitem a leitura, no decurso da audiência de
julgamento, de declarações prestadas durante a instrução e não na norma que não
prevê a participação do arguido e seu defensor nesse acto de inquirição –, a
regulação processual penal é clara no sentido de que, quando se pretende que “o
depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”, como
ocorre com as “declarações para memória futura”, sejam elas colhidas na fase
de inquérito (artigo 271.º do CPP) ou na fase da instrução (artigo 294.º do
CPP), aí funciona plenamente o princípio do contraditório, sendo comunicados
“ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e
das partes civis (...) o dia, a hora e o local da prestação do depoimento, para
que possam estar presentes se o desejarem” (n.º 2 do artigo 271.º, para que
remete o artigo 294.º do CPP). A contrario, as declarações prestadas na
instrução sem sujeição a estes requisitos de contraditório, não podem, enquanto
tais, ser tomadas em conta no julgamento.
É certo que, para além das referidas “declarações para
memória futura” e de consenso de todos os intervenientes processuais quanto à
leitura de declarações (n.º 2 do artigo 356.º do CPP), o n.º 3 deste preceito
consente “a leitura de declarações anteriormente prestadas perante o juiz”: (i)
“na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência
que já não recorda certos factos”; ou (ii) “quando houver, entre elas e as
feitas em audiência, contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser
esclarecidas de outro modo”. Porém, nestas situações – e recorde-se que “é
proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou
instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a
depor” (n.º 6 do citado artigo 356.º) –, a leitura em causa, como refere José
Damião da Cunha (“O regime processual de leitura de declarações na audiência de
julgamento (arts. 356.º e 357.º do CPP)”, Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, ano 7, fasc. 3.º, Julho-Setembro 1997, págs. 403-443, em especial
págs. 417-418), “não permite uma utilização directa das declarações
anteriormente prestadas”. Concluindo-se, assim, que “as anteriores declarações
não são objecto de prova e, neste sentido, não são provas verdadeiramente
produzidas na audiência de julgamento”, nenhuma ofensa à Constituição se comete
ao possibilitar que o acto de prestação de declarações seja feito apenas perante
o juiz de instrução.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída dos
artigos 289.º, n.ºs 1 e 2, e 297.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na
redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, enquanto não prevê a
participação do arguido e seu defensor (nem do Ministério Público, do
assistente e do seu advogado) nos actos de inquirição judicial de testemunhas na
fase de instrução e, por isso, também não prevê a notificação aos mesmos do
despacho que designa a data para essa inquirição; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Junho de 2004
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma (Vencida, nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Tem voto de conformidade do Ex.mo Senhor Conselheiro Benjamim Silva Rodrigues,
que não assina por não estar presente – Mário Torres.
Declaração de voto
Tendo sido a primitiva Relatora, votei vencida o presente Acórdão pelas razões
que passo a expor.
A questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente consiste numa
alegada violação das garantias de defesa e do princípio do contraditório,
consagrados, respectivamente, nos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição. Está
em crise, neste processo, a dimensão normativa emanada dos artigos 289º, nºs 1 e
2, e 297º, nº 3, do Código de Processo Penal, nos termos da qual são dispensadas
a notificação e a intervenção do arguido, através do seu defensor, na diligência
probatória de inquirição de testemunha, requerida pelo próprio arguido na fase
de instrução.
No cerne do problema suscitado está a natureza da fase instrutória, ante o
mencionado princípio constitucional. E, quanto a isso, perfilam-se duas
concepções inconciliáveis: a que admite que a instrução adopte uma metodologia
de tipo inquisitório, sem a presença do arguido ou do seu defensor e sem
qualquer possibilidade de intervenção por parte deste (exceptuando o debate
instrutório, por força dos artigos 298º, 301º, nº 2, e 302º, nºs 2 e 4, do
Código de Processo Penal); e a que reconhece que naquela fase processual
facultativa, que pode ser requerida pelo arguido, para além do assistente, ao
abrigo do artigo 287º, nº 1, do Código de Processo Penal, vale uma metodologia
cooperativa para comprovar judicialmente a acusação (finalidade assumida, aliás,
pelo artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Este dilema não é superado, como parece pretender o Acórdão, por o acto de
instrução em causa (a diligência probatória de inquirição de testemunha) ser da
competência de um juiz e não poder ser delegado nos órgãos de polícia criminal,
nos termos do artigo 290º, nº 2, do Código de Processo Penal, como sucedia nos
casos versados em anteriores arestos deste Tribunal. Na verdade, tal argumento
prova demais, pois levaria ao absurdo de o contraditório ser dispensado mesmo em
audiência de julgamento, por o juiz singular ou o colectivo de juízes que
presidem a essa fase processual serem rigorosamente independentes em função da
natureza do poder que exercem e do estatuto que lhes é conferido (artigos 203º e
216º, nºs 1 e 2, da Constituição). Por outro lado, o mesmo argumento pressuporia
a inaceitável tese de que os órgãos de polícia criminal não teriam condições
para serem imparciais.
O único aspecto positivo que resulta, ainda assim, de tal perspectiva, é o
reconhecimento de que as garantias processuais se constroem a partir de
condições objectivas de isenção, que concorrem por dever de ofício na função
jurisdicional. Na verdade, são as próprias funções atribuídas aos tribunais pelo
legislador constitucional, incluindo a defesa de direitos e da legalidade
democrática, que favorecem tal conclusão (cf. artigo 202º, nº 2, da
Constituição).
Mas essa lógica de sedimentar garantias de defesa em condições de actuação dos
sujeitos processuais há-de implicar, na instrução, que o juiz siga uma via
contraditória que integre a cooperação do arguido e dos restantes sujeitos
processuais. Por outras palavras, se a confirmação da acusação pelo juiz de
instrução não assentar numa via discursiva, que crie a possibilidade de
contradição pelos sujeitos processuais (sobretudo pelo arguido, que beneficia
das garantias de defesa e esteve numa posição de manifesta “inferioridade” na
fase do inquérito), então o processo de fundamentação do despacho de pronúncia
não será suficientemente “garantístico”. Não se aplicará ao processo penal uma
ética do discurso. A instrução tornar-se-á um segundo inquérito, redundante e
dilatório, oferecendo como especialidades voluptuárias a intervenção de um novo
sujeito processual e o afloramento moderado do contraditório no debate
instrutório.
Ora, esta concepção do processo penal parece-me insatisfatória, tendo em conta
que na instrução se joga o direito do arguido de não ser submetido a julgamento
quando não se confirmarem os indícios suficientes que a acusação invoca. Esse
direito parte do reconhecimento de que o arguido inocente possui um interesse
juridicamente relevante em não ser julgado: para além do irrecusável efeito
estigmatizante da audiência, subordinada a uma regra geral de publicidade
(artigo 321º do Código de Processo Penal), a continuação do processo permite a
aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e a realização de
diligências probatórias, umas e outras privativas ou restritivas de direitos
fundamentais.
Nesse sentido, a referida perspectiva sobre a instrução em sentido estrito viola
o artigo 32º, nº 5, da Constituição, quando prescreve que “a audiência de
julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar” estão subordinados ao
princípio do contraditório. Com efeito, tal remissão não implica arbítrio ou
pura discricionariedade do legislador, mas pressupõe um critério constitucional
de exigência mínima de contraditório, que se deduz através de argumentos
sistemáticos e teleológicos.
Assim, de acordo com critérios de analogia substancial com a audiência de
julgamento, estão sujeitos ao contraditório: meios de prova que possam ser
utilizados em audiência, como as declarações para memória futura (artigos 271º,
294º e 320º do Código de Processo Penal); medidas de coacção e de garantia
patrimonial que envolvam a privação ou a restrição de direitos fundamentais, a
começar pela prisão preventiva; e actos de que dependa decisivamente o exercício
das garantias de defesa (cf., desde logo, a parte final do nº1 do artigo 28º da
Constituição).
Neste contexto, um acto instrutório como aquele a que respeita o presente
processo (inquirição de testemunha) está também sujeito ao contraditório: em
primeiro lugar, porque a instrução (não apenas o debate instrutório) permite
exercer o direito de não ser julgado; em segundo lugar, porque é permitida, em
certas circunstâncias, a leitura das declarações prestadas pela testemunha
durante a instrução na audiência – cf. artigo 356º, nºs 3, alínea b), e 4, do
Código de Processo Penal.
Para além de considerar que o presente Acórdão não modifica no essencial, ao
contrário do que sugere, a orientação anterior deste Tribunal, creio que o
entendimento agora sufragado não supera a questão da violação do contraditório
na audiência. Questão que resulta, precisamente, da possibilidade de leitura das
declarações da testemunha no decurso da audiência.
Ponderando as observações de Joaquim Malafaia (“O acusatório e o contraditório
nas declarações prestadas nos actos de instrução e nas declarações para memória
futura”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 14, nº 4, Outubro-Dezembro
2004, pp. 509-539), o Acórdão defende que a dimensão normativa impugnada é
distinta da que subjaz à “relevância da prova assim obtida na determinação da
decisão final atenta a possibilidade de leitura desses depoimentos em sede de
audiência de julgamento”. No entanto, esta distinção é artificial, pois não se
pode cindir a norma que autoriza a diligência probatória de inquirição de
testemunha sem a presença e a intervenção do arguido, através do se defensor, da
relevância atribuída ao meio de prova dela resultante.
Não há, verdadeiramente, duas normas, apesar de estar em causa a eventual
aplicação da mesma norma em distintos momentos processuais.
A norma em causa é sempre a que autoriza a inquirição de testemunha na instrução
sem exercício do contraditório, com todas as possibilidades de utilização desse
meio de prova legalmente admitidas. É esta concepção unitária, funcional e
orientada teleologicamente que o próprio Código de Processo Penal acolhe em
matéria de prova (cf. artigo 124º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Por outro lado, a tese segundo a qual a utilização das declarações prestadas
pela testemunha na instrução sem sujeição ao contraditório só seria viável na
instrução, mas já não no julgamento, é inconsistente. Na realidade, a razão pela
qual, no julgamento, o contraditório impede que tais declarações sejam tomadas
em conta, impõe que elas também não fundamentem, no termo da instrução, uma
pronúncia que nega a pretensão do arguido de não ser sujeito a julgamento –
pretensão essa, repete-se, que se fundamenta num verdadeiro direito do arguido
inocente de não ser julgado.
É minha convicção profunda que nenhuma verdade se define prescindindo de um
discurso cooperativo. Esta afirmação é válida para o processo penal, impondo a
estrutura acusatória e o princípio do contraditório. Aí reside, sem dúvida, uma
das pedras angulares do Estado de direito democrático. As limitações ao
contraditório previstas em sede de inquérito aceitam-se em nome do princípio da
investigação (e da consequente exigência de segredo de justiça), mas não podem
constituir a regra numa fase processual de carácter facultativo, cuja finalidade
precípua é comprovar judicialmente a acusação (ou o arquivamento do inquérito).
Por todas estas razões, não posso, em consciência, subscrever o presente
Acórdão.
Maria Fernanda Palma