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Processo n.º 473/2005
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A. recorreu para o Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol da
decisão da Comissão Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional que
lhe aplicou a sanção de suspensão de três jogos e multa de € 3500.
A 24 de Fevereiro de 2005 foi julgado o recurso, tendo a sanção aplicada sido
reduzida para 2 jogos de suspensão e € 1500 de multa.
Apenas para o que agora releva, o Conselho de Justiça desatendeu a arguição de
nulidade do despacho que, invocando o disposto na al. e) do artigo 9º do
Regimento do Conselho de Justiça, cuja inconstitucionalidade foi suscitada,
fixara em 5 dias o prazo para a Comissão Disciplinar “contestar, querendo, as
alegações de recurso oportunamente apresentadas” pelo recorrente, nestes termos:
“Citada para contestar, nos termos do artº 9º, al. e) do Regimento do Conselho
de Justiça, veio a Comissão Disciplinar da Liga arguir a nulidade do despacho
com fundamento em violação dos princípios da igualdade, acesso ao direito e
justiça.
Importa decidir previamente esta questão.
Decorre do artº 18º da C.R.P. que as restrições aos direitos fundamentais devem
resultar da Lei (em sentido amplo) e respeitar os requisitos da
- necessidade do meio para efectivação de um direito tutelado ou defesa do bem
jurídico em causa;
- adequação que seja restrição apropriada à obtenção do resultado lícito que se
visa;
- proporcionalidade entre o ‘sacrifício’ e o fim visado.
Ora, a tutela do direito em causa, na sua defesa inclusive com possibilidade de
recurso, preservando o efeito útil da impugnação, dadas as condicionantes do
calendário desportivo profissional, torna compreensível e constitucionalmente
adequado o disposto no artº 17º, n.º 1 do Regimento do Conselho de Justiça.
Ademais, nem pode a recorrida invocar sacrifício que é incomportável com a
apresentação da sua resposta (e não defesa como refere), visto que, naturalmente
conhecedora do conteúdo do processo, fácil lhe seria responder no prazo que lhe
foi fixado.
Nestes termos é evidente a conclusão de que inexiste a arguida nulidade já que
este Conselho se limitou a dar aplicação a normativo, que não enferma de
inconstitucionalidade, existente no seu Regimento”.
2. Veio então a Comissão Disciplinar recorrer para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do “artigo
9º, al. e) do Regimento do Conselho de Justiça, na medida em que foi
interpretado e aplicado no sentido de permitir a fixação a uma das partes (a
aqui recorrente) de um prazo mais curto do que o regimentalmente previsto para o
exercício de direitos processuais (no caso, contestação de recurso), e
limitativo do direito à tutela jurisdicional.”
Conforme sustenta, tal norma violaria o princípio da igualdade, “designadamente
na dimensão de ‘igualdade de armas’ e de posição dos sujeitos processuais”, e o
princípio do acesso à justiça e tutela jurisdicional efectiva (artigos 13º e 20º
da Constituição, respectivamente).
O recurso não foi, porém, admitido. O Conselho de Justiça entendeu que decorre
do n.º 2 do artigo da Lei nº 28/82 que só é admissível recurso para o Tribunal
Constitucional “se a decisão recorrida não admitir recurso ordinário ou por já
haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam”, razão pela qual “não há
recurso para o Tribunal Constitucional”; que “o recurso só é admissível
relativamente a decisões dos tribunais – n.º 1 do referido artº 70º”; e que,
“nos termos do disposto no artº 47º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 30/2004 de 21/07, não
são susceptíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva
as decisões e deliberações emergentes da aplicação dos regulamentos”.
3. Inconformada, a Comissão Disciplinar veio reclamar para o Tribunal
Constitucional, nos termos do n.º 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
Em síntese, a reclamante, fazendo apelo à circunstância de ter sido atribuído à
Federação Portuguesa de Futebol o estatuto de utilidade pública desportiva, o
que implica que tenha “poderes regulamentares, disciplinares e outros de
natureza pública – artigo 22º, n.º 1, da Lei n.º 30/2004, de 21 de Julho”, e à
organização interna das federações desportivas, que “devem contemplar, inter
allia, um Conselho Jurisdicional”, começou por sustentar que o Conselho de
Justiça “é um órgão de natureza jurisdicional, disciplinar e consultiva”,
cabendo-lhe proferir decisões que “se inscrevem na função jurisdicional”.
No caso, a decisão do recurso interposto da decisão da Comissão Disciplinar, em
seu entendimento, é “um acto materialmente jurisdicional próprio de um
tribunal”, é “uma verdadeira decisão para o efeito do disposto no art. 280º, n.º
1, da CRP e art. 70º, n.º 1, da LTC”, dele cabendo, pois, recurso de
constitucionalidade.
Para além disso, “as normas regulamentares e regimentais editadas pela F.P.F são
normas públicas, e, dessa, sorte, passíveis de um juízo de
(in)constitucionalidade”.
E observou ainda que é justamente porque “no caso de encontram esgotados os
meios de impugnação (...) que é admissível recurso para o Tribunal
Constitucional”, a cujo controlo o “ordenamento desportivo” não pode estar
imune.
Finalmente, afirmou que “ainda quando se entendesse caber recurso ordinário
daquela decisão – o que se não aceita – sempre seria admissível recurso,
restrito à questão da constitucionalidade, directamente para o Tribunal
Constitucional”. Desde logo, porque as partes têm essa opção e, para além disso,
porque o n.º 4 do artigo 70º da Lei nº 28/82 incluiu, na sua redacção actual, no
“conceito de esgotamento ou exaustão dos recursos ordinários (...) as hipóteses
de renúncia, decurso do prazo sem efectiva interposição e impossibilidade de
prosseguimento por razões de ordem processual (...)”.
4. Foram notificados para responderes à reclamação, querendo, o recorrido e o
Ministério Público.
O recorrido ofereceu o merecimento dos autos.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação,
por duas razões.
Em primeiro lugar, por “não se mostrarem esgotados, à data da interposição do
recurso de constitucionalidade, os recursos ordinários possíveis”, uma vez que é
aplicável, no caso, o disposto no artigo 46º da Lei n.º 30/2004, que consagra a
regra da impugnabilidade, nos termos gerais de direito, das decisões e
deliberações definitivas das entidades que integram o associativismo desportivo.
Em segundo lugar, por não se poder configurar o Conselho de Justiça, para o
efeito de recorribilidade das suas decisões para o Tribunal Constitucional, como
um tribunal, nem sequer arbitral. Com efeito, “o mecanismo da ‘arbitragem de
conflitos desportivos’ é configurado pelo artigo 49º da citada Lei em termos
perfeitamente autonomizados e diferenciados nada tendo a ver com os ‘meios
jurisdicionais federativos’ (cfr. n.º 3 do citado art. 49º), pressupondo tal
‘arbitragem’ precisamente o ‘prévio esgotamento dos meios jurisdicionais
federativos’ ”.
5. Cumpre decidir.
Antes de mais, cabe recordar que o Tribunal Constitucional se pronunciou já
sobre a questão fundamental que está agora em causa, nos seus acórdãos n.ºs
472/98 e 488/98 (Diário da República, II série, respectivamente, de 23 de
Novembro de 1999 e 10 de Dezembro de 1998). Tratava-se, em ambos os casos, de
reclamações de decisões de não admissão de recurso de constitucionalidade,
proferidas pelo Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol no âmbito
de processos disciplinares, e de decisões sobre normas processuais –sobre a
mesma norma processual, aliás. Entendeu-se, também em ambos os casos, não se
estar perante questões de natureza “meramente desportiva”, mas não ser
admissível o recurso por não terem sido esgotados os meios de recurso previstos
na lei, aplicando os n.ºs 1e 2 do artigo 25º da Lei de Bases do Sistema
Desportivo, a Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro, então em vigor (correspondentes
aos artigos 46º e 47º da lei actual, a Lei n.º 30/2004, de 21 de Julho).
Também se entendeu nos dois acórdãos que esta conclusão tornava desnecessário
determinar se o Conselho de Justiça deveria ou não ser havido como um tribunal,
para o efeito de caber recurso das suas decisões para o Tribunal Constitucional.
6. Ora, no caso, a norma cuja apreciação a recorrente pretende faz parte do
Regimento do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol, cuja cópia
foi junta aos autos pela reclamante, tendo o seguinte texto:
Artigo 9º
(Presidente)
Compete ao Presidente do Conselho de Justiça:
(...)
e) Adoptar as medidas que repute convenientes, designadamente reduzindo os
prazos regimentais, sempre que tal se mostre necessário à celeridade na
resolução dos assuntos submetidos ao Conselho.
A ora reclamante pretende que o Tribunal Constitucional julgue o recurso que
interpôs destinado a apreciar a interpretação com que o Conselho de Justiça
aplicou este preceito, já atrás exposto.
7. Pode dar-se como assente que, no presente recurso, está em causa uma norma
susceptível de ser objecto de um recurso de constitucionalidade.
Com efeito, consta de um regulamento que foi aprovado por uma federação
desportiva, que, não obstante ser de natureza privada, exerce poderes públicos,
por lhe ter sido concedido o estatuto de utilidade pública desportiva (Despacho
n.º 56/95, de 1 de Setembro de 1995), e que versa sobre matéria incluída no
âmbito desses poderes de natureza pública, os “poderes regulamentares [e]
disciplinares” (n.º 2 do artigo 22º da Lei de Bases do Desporto, a Lei n.º
30/2004, de 21 de Julho, e artigo 8º do Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de Abril
(cfr., por exemplo, os acórdãos n.ºs 172/93, Diário da República, II série, de
18 de Junho de 1993 ou 730/95, Diário da República, II série, de 6 de Fevereiro
de 1996).
Também não merece dúvida – embora a decisão recorrida seja em sentido diverso –
que, tendo em conta a matéria que regula, não se trata de uma norma que verse
sobre uma questão “estritamente desportiva”, nos termos em que o n.º 2 do artigo
47º da Lei n.º 30/2004 define tais questões (cfr. os citados acórdãos n.ºs
473/98 e 488/98). Também está aqui em jogo uma norma de natureza estritamente
processual, relativa ao prazo para responder ao recurso interposto.
Isto significa que não se aplica o n.º 1 do mesmo artigo 47º, que considera
irrecorríveis “fora das instâncias competentes na ordem desportiva” as “decisões
e deliberações sobre questões estritamente desportivas”.
Finalmente, também é certo que é aplicável à decisão do Conselho de Justiça o
que hoje se dispõe no artigo 46º da Lei n.º 30/2004, ou seja, a regra de que “as
decisões e deliberações definitivas das entidades que integram o associativismo
desportivo são imugnáveis, nos termos gerais de direito”.
Daqui se retira que a decisão do Conselho de Justiça, proferida em recurso
interposto da decisão da Comissão Disciplinar, como se sabe, é, pois,
“impugnáve[l], nos termos gerais de direito”.
8. Sustenta a reclamante que este preceito não impede a interposição de recurso
directo para o Tribunal Constitucional.
A verdade, todavia, é que da conjugação entre o artigo 46º acabado de citar e os
n.ºs 1 e 2, quer do artigo 280º da Constituição, quer do artigo 70º da Lei nº
28/82, decorre resposta diferente.
Desde logo, porque se deve entender que o Conselho de Justiça não é, para os
efeitos previstos nos referidos artigos 280º da Constituição e 70º da Lei nº
28/82, um “tribunal”, pois não figura entre as categorias de tribunais admitidas
pelo artigo 209º da Constituição. Nomeadamente, e em particular, não pode, como
observa o Ministério Público, ser considerado um tribunal arbitral, quer porque
não tem as características próprias de um tribunal dessa natureza, quer porque o
sistema de arbitragem que consta da Lei n.º 30/2004 manifestamente o não
abrange.
Improcede, assim, a presente reclamação, já que a reclamante, não recorrendo
para os tribunais competentes, não obteve uma decisão susceptível de recurso
perante o Tribunal Constitucional.
9. Sustenta todavia a reclamante que este n.º 2, que impõe que a decisão de que
se recorre para o Tribunal Constitucional não seja susceptível de recurso
ordinário, “por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que
no caso cabiam (....)”, se deve considerar satisfeito, contrariamente ao que
entendeu o Conselho de Justiça, porque o n.º 4 do mesmo artigo considera
relevante, para o efeito de se terem por “esgotados todos os recursos
ordinários”, a renúncia ao recurso.
Independentemente de saber se haveria outras objecções a que se pudesse
considerar relevante uma renúncia tácita verificada nas circunstâncias do caso
presente, é manifesto que não é assim.
O objectivo com que o n.º 2 do artigo 70º da Lei nº 28/82 exige a prévia
exaustão dos meios de recurso é, como o Tribunal Constitucional repetidamente
observou, o de obter a última palavra da ordem judicial competente para julgar a
causa sobre a questão que lhe é submetida por via de recurso. Quando a Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro, veio aditar o n.º 4 a este artigo, assim resolvendo
divergências suscitadas no seio do Tribunal Constitucional, apenas quis
esclarecer que não era necessário percorrer todos os degraus da hierarquia
correspondente; não tendo sido interposto o recurso que era admissível,
nomeadamente por renúncia do interessado, continua a existir uma decisão que
corresponde a essa última palavra da ordem dos tribunais competentes.
É claro que esta situação não é, sequer, comparável com o caso dos autos; nem
sequer se alcança facilmente como lhe aplicar a exigência de não ser admissível
recurso ordinário, tendo em conta que o artigo 46º da Lei n.º 30/2004 prevê que
se passe de uma decisão tomada no âmbito do sistema de justiça desportivo para
os tribunais estaduais.
9. Nestes termos, indefere-se a reclamação.
Lisboa, 14 de Julho de 2005
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício