Imprimir acórdão
Processo n.º 189/2005
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Pelo Tribunal do Trabalho do Barreiro intentaram A.,
B., C., D., E., F., G., H., I., J., K., L., M., N., O., P., Q., R., S., T., U.,
W., X., W. (posteriormente falecido, intervindo nos autos, como habilitados, Y.
e Z.), AA., BA., CA., DA., EA., FA., GA., HA., IA., JA., KA., LA., MA., NA.,
AO., PA., QA., RA., SA., TA., UA. e WA., contra XA., S.A., acção, seguindo a
forma de processo comum, solicitando a condenação da ré a pagar-lhes
determinadas importâncias, que discriminaram, que lhes seriam devidas a título
de diuturnidades de antiguidade e de diferença de subsídio de alimentação e, bem
assim, de montantes, cujo quantitativo se apuraria em execução de sentença, que
igualmente lhes seriam devidos a título de remuneração de trabalho em dias de
descanso semanal, obrigatório e complementar, de trabalho suplementar, de
descanso compensatório por trabalho suplementar efectuado em dias de descanso e
de trabalho nocturno, de complemento de subsídio de doença profissional ou
acidente de trabalho, de subsídio de antecipação e prolongamento, de subsídio de
medicamentos, de subsídio de livros escolares e de compensação por mudança de
turno.
Invocaram, para tanto, em síntese, que, tendo a ré tido
a sua génese na QUIMIGAL, E.P., que, por via do Decreto-Lei nº 25/89, de 20 de
Janeiro, foi transformada na QUIMIGAL, S.A., a qual, por sua vez, foi
«desmembrada», dando origem a várias empresas, entre as quais a aludida ré, aos
trabalhadores desta eram de aplicar as regras do Acordo de Empresa QUIMIGAL,
E.P., publicado no nº 7 do Boletim do Trabalho e Emprego, de 22 de Fevereiro de
1986, Acordo esse que, por via de certas cláusulas, lhes conferiria o direito às
importâncias reclamadas e que a ré se recusava a pagar, pretextando que tal
Acordo não era aplicável.
Tendo, por sentença proferida em 23 de Agosto de 2002,
sido entendido ser aplicável à relação laboral entre as partes o Acordo de
Empresa QUIMIGAL, E.P., e, em consequência, julgada procedente a acção e o
pedido reconvencional nela formulado pela ré, sendo relegado para execução de
sentença o apuramento dos quantitativos devidos aos autores, apelaram autores e
a ré para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 15 de Outubro de
2003, negou ambos os recursos.
De novo inconformada pediu a ré revista para o Supremo
Tribunal de Justiça.
Na alegação adrede produzida, para o que ora releva, a
ré formulou as seguintes «conclusões»: -
“........................................................................................................................................................................................................................................................................................
9.) - O art. 6º. nº 2, do Dec. Lei nº 25/89, teve como objectivo
determinar e apontar, de forma inequívoca, que os trabalhadores passavam,
automaticamente, para as novas empresas resultantes da Quimigal, SA, não havendo
lugar a qualquer outra solução alternativa, designadamente, a que consta da
parte final do nº 1 do art. 37º da L.C.T.
10.) - E transitavam sujeitos às regras estabelecidas na legislação
aplicável, o art. 37º da L.C.T. no que respeita aos aspectos individuais e o
art. 9º do Dec. Lei nº 519-C-1/79 no que respeita à regulamentação das relações
colectivas de trabalho;
11.) - Portanto, a douta decisão recorrida, ao decidir pela
sobrevigência do AE/Quimigal, errou na interpretação do nº 2 do art. 6º do Dec.
Lei nº 25/89 e violou o disposto no art. 37º da L.C.T. e art. 9º do Dec. Lei nº
519-C-1/79, este último com a redacção que detinha ao momento da privatização da
Recorrente;
12.) - Sendo o processo de privatização da Quimigal, SA, a via
política encontrada para viabilizar e assegurar a continuidade desta empresa,
através da sua divisão em actividades autónomas e com maior capacidade, seria
contra-natura que se pretendesse sujeitar as novas empresas a um AE/Quimigal
perfeitamente desajustado e que havia sido pensado e negociado para vigorar numa
estrutura empresarial gigantesca e multifacetada;
13.) - Não se pode conceber, perante propósito tão claro e
importante, que o legislador quisesse a sobrevigência do AE/Quimigal pondo em
causa a viabilidade das novas empresas que consubstanciavam a continuidade da
Quimigal, SA;
14.) - E, na verdade, embora não sendo legítimo procurar interpretar
o Dec. Lei nº 25/89 com a al. c) do nº 1 do art. 296º da Constituição da
República Portuguesa e a Lei-Quadro das Privatizações, designadamente o seu art.
19º, porque posteriores, o que é certo é que estas mesmas disposições legais
jamais permitem a conclusão a que chega a decisão recorrida;
15.) - Quer o legislador constitucional, quer o legislador
ordinário, apenas pretendem assegurar a neutralidade do processo de
reprivatização em relação aos trabalhadores envolvidos, em qualquer fase do
processo, mantendo os seus direitos e obrigações, mas não lhes concedendo novos
direitos;
16.) - Nenhuma razão política ou social, nenhum factor legitimador,
permite a conclusão da decisão recorrida de que os trabalhadores das empresas
privatizadas têm mais um direito que todos os restantes trabalhadores – o
direito ao IRCT aplicável no momento da privatização;
17.) - Logo, ao interpretar dessa forma o nº 2 do art. 6º do Dec.
Lei nº 25/89, estaria este ferido de inconstitucionalidade material por violar o
princípio da igualdade e não discriminação consagrado no art. 13º da
Constituição da República;
18.) - Por outro lado, a interpretação do já citado art. 6º. nº 2,
do Dec. Lei nº 25/89 feita no acórdão recorrido, que manteve a decisão de
primeira instância recorrida, acaba por interferir na conformação do direito à
contratação colectiva, originando, ainda um desequilíbrio injustificado no
âmbito do exercício do direito à autonomia colectiva;
19.) Como já se demonstrou o direito à contratação colectiva é um
direito fundamental dos trabalhadores, pelo que qualquer alteração à sua forma
ou ao seu conteúdo é matéria que não é da competência do Governo, sendo certo
que o Dec. Lei nº 25/89 emanou do exercício da competência do Governo e não ao
abrigo de qualquer autorização legislativa da Assembleia da República;
20.) - Logo, a interpretação do art. 6º, nº 2 do Dec. Lei nº 25/89,
que o acórdão recorrido consagra, implicaria a inconstitucionalidade orgânica
desta disposição legal, por violação do disposto nos arts. 57º, nº 3 e 168º nº 1
al. b) da Constituição da República na versão de 1982, hoje artºs. 56º, nº 3 e
165º, nº 1. al. b).
........................................................................................................................................................................................................................................................................................”
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 15 de
Fevereiro de 2005, negou a revista.
Nesse aresto, e quanto à questão de saber se à relação
entre as «partes» era aplicável o Acordo de Empresa da Quimigal, foi retomado o
entendimento perfilhado pelo acórdão uniformizador de jurisprudência nº 1/2000,
de 16 de Dezembro de 1999, publicado na I Série-A do Diário da República de 2 de
Fevereiro de 2000, entendimento esse segundo o qual o artº 6º do Decreto-Lei nº
25/89 veio estabelecer um regime especial para salvaguarda de todos os
trabalhadores envolvidos no processo de privatização da QUIMIGAL, E.P., que se
sobrepõe ao regime geral constante do artº 9º da LRCT aprovada pelo Decreto-Lei
nº 519-C-1/79, de 29 de Dezembro, regime esse que não era aplicável aos casos de
reprivatização de empresas públicas e por via do qual se visou assegurar aos
trabalhadores transferidos para as empresas a criar pela cisão da QUIMIGAL,
S.A., a manutenção de todos os direitos e regalias de que eram titulares na
QUIMIGAL, E.P., independentemente de terem como fonte a lei, o contrato
individual de trabalho ou a convenção colectiva, sendo que a introdução da
alínea c) do nº 1 do artigo 296º da Constituição, ao prescrever que os
trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de
reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem
titulares, visou afirmar a peculiaridade do processo de reprivatização, com o
fim de impedir o retrocesso social desses trabalhadores, resultado que só seria
conseguido se se entendesse que no bloco de direitos e obrigações da
titularidade dos trabalhadores transferidos para as empresas criadas a partir da
QUIMIGAL, S.A., estava integrado o acordo de empresa que vinculava a QUIMIGAL,
E.P., sob pena de ficar defraudado o objectivo daqueles artº 6º e alínea b) do
nº 1 do artigo 289º.
E, enfrentando as questões da invocada ofensa do
princípio da igualdade, e de inconstitucionalidade orgânica, concluiu o acórdão:
–
- quanto ao primeiro vício, que o mesmo se não deparava,
pois que “ao estipular-se a manutenção dos direitos, obrigações e regalias dos
trabalhadores, ... , está-se a tratar de forma igual todos os trabalhadores
transferidos para as empresas criadas a partir da cisão da Quimigal, S.A.,”, não
se podendo “afirmar a existência de uma discriminação desses trabalhadores das
empresas privatizadas em relação aos restantes trabalhadores em geral, pois,
... , nada impede que razões objectivas determinem a diferença de tratamento em
relação àqueles trabalhadores, quando o próprio ordenamento constitucional lhes
salvaguardou – nas empresas objecto de reprivatização – , a manutenção dos
direitos e obrigações de que era, titulares”;
- pelo que tange ao segundo vício, que, identicamente, o
mesmo se não vislumbrava, já que “não se verifica qualquer limitação ao direito
de contratação colectiva, mas sim o que está em causa com a aludida
interpretação do art. 6º do DL n.º 25/89, é a manutenção dos direitos,
obrigações e regalias dos trabalhadores constantes de um acordo de empresa”,
nada impedindo “a substituição desse acordo de empresa por outro instrumento de
regulamentação colectiva; isto é, da interpretação do art. 6º do DL n.º 25/89,
não resulta a manutenção, indefinidamente, dos direitos e obrigações constantes
do AE/Quimigal, antes é imposto um limite a tal vigência, até que o AE seja
substituído por outro instrumento de regulamentação colectiva.
Aliás, não deixa de existir o direito à contratação
colectiva pela circunstância de se impor um limite temporal mínimo de vigência
dessa mesma contratação colectiva – n.º 1, do art. 11.º da LRCT – e a vigência
efectiva até à sua substituição por outro IRCT – n.º 2 do mesmo preceito legal”.
Do acórdão prolatado em 15 de Fevereiro de 2005 veio a
autora interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez por intermédio
de requerimento com o seguinte teor: –
“XA., S. A., recorrente nos autos à margem referenciados, notificada
do douto acórdão proferido vem, pelo presente, interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, com efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos, nos
termos dos artºs. 69 e sgts., da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com as revisões
operadas pelas Leis 88/95, de 1 de Setembro e 13-A/98, de 26 de Fevereiro e ao
abrigo da al. b) do n.º 1 do artº. 70º., por força da interpretação defendida
pela decisão recorrida do artº. 6º. nº. 2 do Decreto-Lei 25/89, de 20 de
Janeiro, a qual, a ser procedente, tornaria esta norma ferida de
inconstitucionalidade material por violação do princípio da não discriminação
consagrado no artº. 13º da Constituição da República Portuguesa e ferida também
de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que incidindo a mesma sobre a
conformação do direito à contratação colectiva não seria da competência do
Governo legislar sobre esta matéria, de acordo com o estabelecido nos artºs. 57,
nº. 3 e 168º, nº. 1, al. b) da C.R.P. na versão de 1982 e que hoje são os artº.
56º, nº. 3 e artº. 165. nº. 1, al. b) (vide Acs. Tribunal Constitucional nºs
517/98 e 634/98).
A questão da constitucionalidade foi suscitada pela Recorrente na
contestação apresentada no Tribunal de Primeira Instância e foi mantida nas
alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e nas alegações do
Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça”.
Pretendendo-se a apreciação, por este Tribunal, da
conformidade constitucional de uma norma alcançada por interpretação de dado
preceito, e já que a dimensão interpretativa não foi indicada no requerimento de
interposição de recurso, foi a impugnante, por despacho proferido em 14 de Março
de 2005 pelo relator, convidada a prestar, de forma precisa, tal indicação,
vindo ela, na sequência, a apresentar «requerimento» com o seguinte teor: –
“XA., SA, Recorrente nos autos à margem referenciados, tendo sido
notificada para indicar, de forma precisa, a dimensão interpretativa que foi
dada pelo Ac. recorrido ao n° 2 do artº 6° do Dec Lei n° 25/89, de 20 de
Janeiro, vem dar cumprimento ao douto despacho nos termos seguintes:
Conforme se refere no requerimento de interposição do recurso, a
interpretação defendida pelo acórdão recorrido em relação ao n° 2 do artº 6° do
Dec. Lei n° 25/89 tornaria esta disposição legal ferida de inconstitucionalidade
material e também orgânica.
MATERIAL, porquanto considera incluído no âmbito dos direitos
salvaguardados ao abrigo do já citado n° 2 do artº 6° do Dec. Lei n° 25/89, o
direito dos trabalhadores da Quimigal a verem continuar a aplicar-se-lhes o
designado ‘AE/Quimigal’ após a desafectação do estabelecimento em que prestavam
serviço para a nova empresa criada a partir da Quimigal, e não considerando,
como deveria ser, que a este tipo de situações se aplica o disposto no artº 9°
do Dec. Lei n° 519.-C1/79, à semelhança do que ocorre em todas as situações da
mesma natureza.
Portanto e sem qualquer justificação aceitável, os trabalhadores da
Quimigal teriam um tratamento de privilégio em relação a todos os restantes
trabalhadores na mesma situação de cessão, total ou parcial do estabelecimento
em que prestavam serviço, para outra empresa já constituída ou a constituir.
Esta situação de privilégio viola o disposto no artº 13° da C.R.P.
(princípio da igualdade e não discriminação).
ORGÂNICA, porquanto ao reconhecer aos trabalhadores da Quimigal tal
direito, o legislador do Dec. Lei n° 25/89 interferiu directamente na
configuração do direito de contratação colectiva, impondo a aplicação de um IRCT
por tempo indeterminado a uma empresa e aos trabalhadores transferidos, quando
essa mesma empresa ou a associação patronal que eventualmente a representasse
não participou nem foi parte na negociação do instrumento em causa.
Por outras palavras, tal interpretação assumida pelo acórdão recorrido
interfere no direito de contratação colectiva e no seu exercício, designadamente
por parte das associações sindicais.
Esta matéria, inserida no âmbito dos direitos, liberdades e garantias,
é em termos de competência legislativa, da reserva relativa da Assembleia da
República (vide artº 57°, n° 3 e artº 168° n° 1, al. b) da C.R.P., versão de
1982 e artº 56° n° 3 e artº 165° n° 1, al[ ]. b) versão actual e ainda os
acórdãos do Tribunal Constitucional nos. 517/98 e 634/98.
Ora o legislador do Dec. Lei n° 25/89 não estava cometido de
autorização legislativa para legislar sobre esta matéria.
Assim, a inconstitucionalidade orgânica é evidente”.
Tendo o relator, em 30 de Março de 2005, lavrado
decisão, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, a não tomar conhecimento
do objecto do recurso, da mesma reclamou a XA..
Este Tribunal, por intermédio do seu Acórdão nº
290/2005, decidiu atender a reclamação e determinar o prosseguimento dos autos.
Consequentemente, foi determinada a produção de
alegações.
2. Rematou a XA. a alegação por si produzida com as
seguintes «conclusões»: –
a) Pelas razões invocadas o art. 6°, n[º]2 do DL 25/89, entendido
como pretende o acórdão do STJ recorrido e o 1/2000, cria uma flagrante
desigualdade de tratamento entre, por um lado, os trabalhadores transferidos da
Quimigal S.A. a partir desta última, face aos demais trabalhadores.
a.1) Desigualdade que não se justifica a qualquer título que seja já que nenhum
processo de reestruturação e reprivatização de uma EP legitima que os
trabalhadores envolvido sejam privilegiados em relação aos restantes
trabalhadores adquirindo como seria o caso a verem apropriado um novo direito,
que seria o da apropriação do AR Quimigal nos seus contratos individuais de
trabalho.
b) Por outro lado, entre as novas entidades criadas, enquanto
empregadores, e os demais empregadores, nova discriminação injustificada
resultará da interpretação acolhida pelo acórdão recorrido, consubstanciada na
sujeição a um IRCT para além do período temporal que a lei consagrara para toda
e qualquer empresa quando se está perante uma situação de transferência de uma
empresa ou estabelecimento a qualquer título.
c) Pelo que tais discriminações são violadoras do princípio da
igualdade consagrado no art. 13° da CRP, ou seja, a interpretação aludida do
art.6° d[o] DL 25/89, implicaria a sua inconstitucionalidade material.
d) A interpretação do art. 6° do DL 25/89 defendida no acórdão
recorrido também consubstancia uma nova confrontação do direito da contratação
colectiva, aliás profundamente incorrecta e desvirtuamento do papel dos
parceiros sociais na contratação colectiva, sendo certo que conforme também já
se demonstrou, que sendo o direito de contratação colectiva um direito
fundamental dos trabalhadores, não tendo o DL 25/89 precedido de autorização
legislativa a interpretação em causa originaria a inconstitucionalidade orgânica
da invocada disposição legal”.
Por seu turno, os recorridos não vieram a produzir
resposta à alegação.
Cumpre decidir.
3. Após ter ocorrido a nacionalização das empresas
Amoníaco Português, S.A.R.L., Nitratos de Portugal, S.A.R.L. e Companhia União
Fabril, S.A.R.L., foram tais empresas, por intermédio do Decreto-Lei nº 530/77,
de 30 de Dezembro, fundidas na empresa pública a que se deu a denominação de
QUIMIGAL – Química de Portugal, E.P..
Em 20 de Julho de 1988 veio a lume a Lei nº 84/88, por
intermédio da qual se possibilitou que as empresas públicas, ainda que
nacionalizadas, fossem, mediante decreto-lei, transformadas em sociedades
anónimas de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos, nos termos da
Constituição e dessa lei (cfr. seu artº 1º e, também, o seu artº 8º).
De harmonia com tal diploma, a possibilitada
transformação não poderia implicar a reprivatização do capital nacionalizado
(com excepção dos casos previstos no nº 2 do artigo 83º da versão da
Constituição emergente da Revisão Constitucional operada pela Lei Constitucional
nº 1/82, de 30 de Setembro), devendo salvaguardar que a maioria absoluta fosse
sempre detida pela parte pública e que a representação da parte pública nos
órgãos sociais fosse sempre maioritária (cfr. nº 1 do artº 2º). E, por outro
lado, determinou-se que a sociedade anónima que viesse a resultar da
transformação continuaria a personalidade jurídica da empresa pública
transformada, mantendo todos os direitos e obrigações legais ou contratuais
deste (cfr. nº 1 do artº 3º).
Na sequência da possibilidade conferida pela referida
Lei nº 84/88, editou o Governo o Decreto-Lei nº 25/89, de 20 de Janeiro, que
procedeu à transformação da QUIMIGAL – Química de Portugal, E.P., numa sociedade
anónima de capitais maioritariamente públicos denominada QUIMIGAL – Química de
Portugal, S.A., a qual, conforme se preceituou no seu artº 2º, sucedeu
automática e globalmente àquela empresa pública, continuando a personalidade
jurídica desta e conservando a universalidade dos direitos e obrigações legais,
estatutárias e contratuais que constituíam o património desta no momento da
transformação.
Por entre outras disposições, consagrou-se no artº 6º
daquele Decreto-Lei nº 25/89: –
Art. 6.º – 1 – Os trabalhadores e pensionistas na QUIMIGAL – Química
de Portugal, E.P., mantêm perante a QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A., todos
os direitos e obrigações que detiverem à data da entrada em vigor do presente
diploma.
2 – Os direitos, obrigações e regalias dos trabalhadores que fiquem
afectos à QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A., serão transferidos para as
empresas a criar a partir desta sociedade, a partir da data em que sejam
constituídas, e conforme a respectiva subordinação.
3 – Os funcionários do Estado, de autarquias locais de institutos
públicos e de empresas públicas ou de sociedades anónimas de capitais públicos
podem ser autorizados a exercer funções na QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A.,
em regime de requisição, conservando todos os direitos e regalias inerentes ao
seu quadro de origem, incluindo antiguidade, reforma e outras regalias.
4 – A situação dos trabalhadores da QUIMIGAL – Química de Portugal,
S.A., que sejam chamados a ocupar cargos nos órgãos da empresa, bem como os que
sejam requisitados para exercer funções em outras empresas ou serviços públicos,
em nada será prejudicada por esse facto, regressando aos seus lugares logo que
terminem o mandato ou o tempo de requisição.
Após a Revisão Constitucional operada pela Lei
Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, ficou prevista na Constituição a
possibilidade de reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de
meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974
(sendo que, antes daquela Revisão Constitucional, se impunha a regra segundo a
qual todas as nacionalizações efectuadas depois de 15 de Abril de 1974 eram
conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras – cfr. artigo 83º da versão
originária da Lei Fundamental e da versão decorrente da Revisão Constitucional
operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro –, admitindo-se,
apenas e a título excepcional, a possibilidade de as pequenas e médias empresas
indirectamente nacionalizadas, fora dos sectores básicos da economia, serem
integradas no sector privado, desde que os trabalhadores não optassem pelo
regime de autogestão ou de cooperativa).
Assim, na sequência da terceira Revisão Constitucional,
o artigo 85.º do Diploma Básico comportou a seguinte redacção: –
ARTIGO 85.º
(Nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974)
1. A reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de
meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 só
poderá efectuar-se nos termos da lei-quadro aprovada por maioria absoluta dos
Deputados em efectividade de funções.
2. As pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas
situadas fora dos sectores básicos da economia poderão ser reprivatizadas nos
termos da lei.
E, do mesmo passo, veio-se a prescrever no nº 3 do
artigo 87º que a lei definiria os sectores básicos nos quais era vedada a
actividade às empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza,
vindo-se, por outro lado, a consagrar no texto constitucional uma disposição
final e transitória – o artigo 296º, que assim passou a rezar: –
ARTIGO 296.º
(Princípios para a reprivatização prevista no n.º 1 do artigo 85.º)
A lei-quadro prevista no n.º 1 do artigo 85.º observará os seguintes
princípios fundamentais:
a) A reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de
produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974
realizar-se-á, em regra e preferencialmente, através de concurso público, oferta
na bolsa de valores ou subscrição pública;
b) As receitas obtidas com as reprivatizações serão utilizadas apenas para
amortização da dívida pública e do sector empresarial do Estado, para o serviço
da dívida pública resultante de nacionalização ou para novas aplicações de
capital no sector produtivo;
c) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo
de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que
forem titulares;
d) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização adquirirão o direito
à subscrição preferencial de uma percentagem do respectivo capital social;
e) Proceder-se-á à avaliação prévia dos meios de produção e outros bens a
reprivatizar, por intermédio de mais de uma entidade independente.
No seguimento da possibilidade aberta pela terceira
Revisão Constitucional, foi editada a Lei nº 11/90 – Lei Quadro das
Privatizações –, que veio a revogar a Lei nº 84/88, salvaguardando, porém, o que
se dispôs no seu artº 27º, que assim comanda: –
Artigo 27.º
Disposição transitória
1 – Os processos de transformação operados nos termos da Lei n.º
84/88, de 20 de Julho, deverão concluir-se ao abrigo dessa legislação, salvo se
o Governo preferir convolá-los em processo de reprivatização ao abrigo da
presente lei, mediante prévia alteração do respectivo diploma de transformação.
2 – Nos processos que não forem convolados nos termos número
anterior poderá ser reduzido para um ano o prazo previsto no n.º 3 do artigo 5.º
da Lei n.º 84/88, de 20 de Julho, devendo ser assegurado o cumprimento dos
requisitos constantes das alíneas c) e d) do n.º 1 e do n.º 5 do artigo 5.º da
mesma lei.
Em 15 de Outubro de 1990, o Governo editou o Decreto-Lei
nº 319/90, cujos objectivos ficaram definidos no respectivo exórdio da seguinte
forma: –
“A futura reprivatização da QUIMIGAL, S.A., não pode deixar de ter
em conta a sua prévia reestruturação empresarial, definida pelo Governo e
concretizada através de empenhamento financeiro nacional com aprovação
comunitária.
A estratégia dessa reestruturação assenta fundamentalmente em dois
vectores: a autonomização jurídica e empresarial de áreas de actividades que
integram a QUIMIGAL, deixando a esta uma função residual de exercício indirecto
de actividades económicas, com as características de sociedade gestora de
participações sociais; alienação de capital social das sociedades resultantes
daquelas autonomizações e, bem assim, de participações em outras sociedades, de
acordo com as opções por áreas de actividade, visando o seu fortalecimento
através de parceiros sociais criteriosamente escolhidos e mantendo um controlo
estratégico sobre as várias empresas incluídas naqueles sectores de actividade.
A prossecução desses objectivos, essenciais à valorização da
empresa, através da sua reestruturação e saneamento económico-financeiro, exige
e justifica que, enquanto decorra esse processo, a alienação das participações
de ambos os tipos, bem como da titularidade ou do direito de exploração de meios
de produção nacionalizados, se faça através de venda directa, assumindo-se
apenas para a QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A., a alienação do capital
social nos termos preferenciais da Lei n.º 11/90, de 5 de Abril, para a qual se
convola o processo de reprivatização da empresa como é facultado pelo artigo
27.º da mesma lei, não sendo despiciendo salientar o facto de o valor daquela
vir necessariamente a reflectir a melhoria económico-financeira resultante
daquelas operações, traduzindo-se, pois, num benefício efectivo, quer para o
Estado, quer para os que venham a adquirir acções da QUIMIGAL aquando da sua
reprivatização.
Na mesma ordem de ideias se justifica que, também transitoriamente,
enquanto decorra o processo de reestruturação empresarial e de reequilíbrio
financeiro da empresa, as receitas das alienações de participação social
revertam integralmente para a QUIMIGAL, sem o que dificilmente seria possível a
consecução daquele objectivo.”
Assim, o Decreto-Lei nº 319/90 veio conferir nova
redacção ao artº 3º do Decreto-Lei nº 25/89, passando o nº 5 a dispor que a
alienação do capital social da QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A., quando o
Estado o julgue oportuno, será regulada nos termos da Lei n.º 11/90, de 5 de
Abril, por decreto-lei específico, e vindo a ser aditados os números 7, 8 e 9,
com a seguinte redacção: –
7 – A alienação de capital social das sociedades resultantes da
autonomização de áreas de actividade da QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A.,
ainda que pela associação ou fusão com terceiros, para as quais tenham sido
transferidos activos produtivos da mesma, bem como a da titularidade ou do
direito de exploração de meios de produção nacionalizados, será feita por venda
directa, precedida de consultas limitadas, competindo ao Conselho de Ministros a
aprovação do caderno de encargos, a escolhe dos adquirentes e a definição das
condições específicas da transacção.
8 – O produto total das alienações de participações sociais,
incluindo as referidas no n.º 7, será integralmente aplicado na amortização da
dívida da QUIMIGAL - Química de Portugal, S.A., e do respectivo equilíbrio
económico-financeiro.
9 – As disposições constantes dos n.ºs t e 8 vigoram apenas até que
a resolução do Conselho de Ministros dê por findo o processo de reestruturação
empresarial e reequilíbrio financeiro da QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A.
3.1. Dos transcritos normativos resulta que,
antecedentemente à privatização da empresa, então denominada QUIMIGAL – Química
de Portugal, E.P. – empresa pública que resultou da fusão de diversas empresas
que, após 25 de Abril de 1974, foram nacionalizadas –, foi ela objecto de
transformação numa sociedade anónima que, por força da Lei nº 84/88, por entre o
mais, haveria de obedecer à circunstância de a maioria do respectivo capital
social ser sempre detido pela parte pública.
Em face da transformação daquela empresa pública em
sociedade anónima de capital maioritariamente público, foram mantidos aos
trabalhadores e pensionistas daquela empresa todos os direitos e obrigações que
detinham à data da entrada em vigor do diploma que a tal transformação procedeu,
manutenção que foi estendida às (futuras e eventuais) criandas empresas que se
constituíssem a partir da sociedade que resultou da transformação.
Estava-se, ainda, numa ocasião temporal em que as
nacionalizações eram, constitucionalmente, tidas como uma conquista irreversível
das classes trabalhadoras, o que implicava a irreversibilidade daquelas.
Com a terceira Revisão Constitucional, proporcionou-se a
oportunidade – nos termos que se viram já – de ser reprivatizada a titularidade
ou o direito de exploração dos meios de produção nacionalizados depois de 25 de
Abril de 1974, de acordo com uma lei-quadro que, também constitucionalmente,
haveria, inter alia, que observar o princípio segundo o qual os trabalhadores
das empresas objecto de reprivatização manteriam, no processo, todos os direitos
e obrigações de que foram titulares (cfr., sobre a questão, os pontos 7 e 8 do
Acórdão do Tribunal Constitucional nº 71/90, publicado na II Série do Diário da
República de 18 de Julho de 1990).
Entretanto, ou seja, antes da vigência da Lei nº 11/90 e
do Decreto-Lei nº 319/90, a QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A., tinha sido
«reestruturada», vindo a ser criadas ou constituídas novas empresas conforme as
áreas de actividade económica de que curava aquela sociedade anónima de capitais
maioritariamente públicos, empresas essas que ainda não desfrutavam do estatuto
de empresas privatizadas (pois que o respectivo capital ficou, originariamente,
a pertencer àquela), entre estas se contando a ora impugnante.
3.3. É neste contexto que o acórdão impugnado sufragou a
interpretação do nº 2 do artº 6º do Decreto-Lei nº 25/89 cuja harmonia com a
Constituição é contestada pela recorrente.
Devendo, desde já e quanto a este ponto, sublinhar-se
que se não contém nos poderes de cognição deste Tribunal a questão de saber se a
interpretação ínsita na decisão recorrida é aquela que se mostra mais consonante
com a hermenêutica de interpretação das leis, não se irá sem dizer que o sentido
interpretativo conferido pelo acórdão agora sub specie não deixa, de qualquer
forma, de ter um mínimo de correspondência com a literalidade do aludido nº 2 do
artº 6º.
Na verdade, é perfeitamente sustentável um entendimento
segundo o qual dos números 1 e 2 daquele artigo resulta a «neutralidade» da
transformação da QUIMIGAL – Química de Portugal, E.P., na QUIMIGAL – Química de
Portugal, S.A., e da criação das empresas a partir desta última relativamente
aos direitos e obrigações, legais ou contratuais, detidos pelos trabalhadores
daquela empresa pública.
Nestes termos, o que incumbe a este Tribunal, é aferir
da compatibilidade ou não compatibilidade com a Lei Fundamental por banda do
sentido normativo acolhido na decisão recorrida.
Se bem se entende a tese da recorrente, como resulta do
relato levado a efeito no presente aresto, a mesma perfilha a óptica segundo a
qual deveria o nº 2 do artº 6º ser entendido no sentido de, mantendo embora os
trabalhadores e pensionistas da QUIMIGAL – Química de Portugal, E.P., ao tempo
da transformação dessa empresa numa sociedade anónima de capitais
maioritariamente públicos, o acervo de direitos e obrigações de que desfrutavam
no período em que aquela empresa era caracterizada como empresa pública, tal
manutenção não haveria de subsistir quando fossem «criadas» ou «constituídas»
novas empresas «a partir» da QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A., e nos
respectivos estabelecimentos fossem «colocados» alguns desses trabalhadores; e
isso sob pena de, sustentando-se entendimento diverso, se postar uma dimensão
interpretativa conflituante com a Constituição em duas vertentes: –
– por um lado, porque, por seu intermédio, se concederia
aos trabalhadores da QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A., uma posição
diversificada relativamente aos demais trabalhadores, quer de empresas públicas,
quer privadas, sem que existisse um fundamento razoável para tanto, desta sorte
se violando o princípio da igualdade postulado pelo artigo 13º, nº 1, do Diploma
Básico, tendo em conta que, quanto aos últimos, em situações de «constituição»
de novas empresas a partir da «empresa mãe», regeria o artº 9º do Decreto-Lei nº
519-C-1/79, de 29 de Dezembro – LRCT;
– por outro, porque, ao reconhecer aos trabalhadores da
QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A., o direito de «continuarem» a ser regidos
pelo Acordo de Empresa elaborado ao tempo da QUIMIGAL – Química de Portugal,
E.P. (e posteriormente «acolhido» pela QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A.)
após a «desafectação» do estabelecimento onde prestavam serviços – por via da
criação de novas empresas tituladas por esta – estar-se-ia a derrogar a
aplicação do regime do mencionado artº 9º do Decreto-Lei nº 519-C1/79 e, desse
modo, a conformar o direito de contratação colectiva, “com um substancial
reforço das associações sindicais outorgantes do AE QUIMIGAL”, pelo que, não
tendo o Decreto-Lei nº 25/89 sido precedido de autorização legislativa,
enfermava o mesmo de inconstitucionalidade orgânica.
3.4. Começando pelo segundo dos alegados vícios de
enfermidade constitucional, entende-se que a resposta a essa questão não pode
deixar de ser negativa.
Efectivamente, as normas dos números 1 e 2 do artº 6º do
Decreto-Lei nº 25/89 limitam-se a salvaguardar a posição jurídica dos
trabalhadores de uma empresa que, por um actos reveladores do jus imperium do
Estado, começou por ser criada «a partir» de outras empresas cuja nacionalização
aquele mesmo jus determinou, empresa essa que veio a ser transformada numa
sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos e «a partir» da qual
iriam ser «criadas» ou «constituídas» novas empresas, salvaguarda essa que
regeria tão só para os momentos da transformação e das eventuais «criação» ou
«constituição», não se podendo, neste particular, olvidar que, nesses momentos,
a maioria do capital, quer da empresa transformada, quer das empresas a «criar»
ou «constituir» pertencia à mesma entidade – o Estado.
Não se vislumbra, assim, que o intuito daqueles
normativos fosse o de impor, designadamente nas empresas a «criar» ou a
«constituir» nas áreas de actividade económica da QUIMIGAL – Química de
Portugal, S.A., a manutenção imutável do ou dos instrumentos de regulação
colectiva que regiam as relações laborais entre essa ou essas empresas e os seus
trabalhadores que «transitaram» para os estabelecimentos dessa ou dessas
empresas. E muito menos se retira que fosse desiderato do legislador ditar a
impossibilidade de virem a ser adoptados novos instrumentos de regulação
colectiva.
Não se pode, por isso, considerar que o nº 2 do artº 6º
do Decreto-Lei nº 25/89 é de perspectivar como um normativo que interfira
directamente no domínio da contratação colectiva; e, nesta senda, a supor-se que
esse domínio poderá ser reconduzido à matéria atinente aos direitos, liberdades
e garantias, que carecesse ele de autorização parlamentar para a sua edição.
3.5. No que ao primeiro vício tange, recorde-se que a
recorrente imposta a questão de a norma inserta no nº 2 do falado artº 6º se
revelar desconforme com o princípio da igualdade precipitado no nº 1 do artigo
13º da Constituição, já que veio a conferir aos trabalhadores que passariam a
laborar nas empresas «criadas» ou «constituídas» a partir da QUIMIGAL – Química
de Portugal, S.A., uma situação jurídica diversa do regime geral que se extrai
do artº 9º do Decreto-Lei nº 517-C/79.
Independentemente do problema de saber se seria possível
equiparar a eventual «criação» ou «constituição» de empresas, por áreas de
actividade económica «a partir» da QUIMIGAL – Química de Portugal, S.A., à
situação contemplada no artº 9º do Decreto-Lei nº 519-C-1/79 (que refere que em
caso de cessão, total ou parcial, de uma empresa ou estabelecimento, a entidade
empregadora cessionária ficará obrigada a observar, até ao termo do respectivo
prazo de vigência, e no mínimo de 12 meses, contados da cessão, o instrumento de
regulamentação colectiva que vincula a entidade empregadora, salvo se tiver sido
substituído por outro), o que não deixa de ser certo é que não são realidades
semelhantes a dos trabalhadores de uma empresa pública (e, bem assim, do
respectivo titular), constituída em resultado da fusão de várias empresas
nacionalizadas – empresa essa que foi transformada numa sociedade anónima de
capitais maioritariamente públicos, havendo, quanto a esta, o intento do Estado
de criar outras empresas resultantes da autonomização das suas áreas de
actividade, cujo capital era detido por ele – e a dos trabalhadores de uma
qualquer outra empresa, que se não formou atendendo ao condicionalismo que ditou
a formação da QUIMIGAL – Química de Portugal, E.P., e na qual se verificou uma
cessão, total ou parcial, de uma nova empresa ou estabelecimento.
A respeito do princípio da igualdade tem este Tribunal
mantido uma firme jurisprudência cuja ilustração, tratamento e resenha, bem como
a indicação de posições doutrinárias se podem extrair do seu relativamente
recente Acórdão nº retirar nº 232/2003, publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 56º volume, 7 a 51.
Desse aresto respigam-se as seguintes asserções: –
“(…)
O Acórdão nº 319/00 (in AcTC, 47º vol., pp. 497ss), apoiando-se no
Acórdão nº 563/96 (in AcTC, 33º vol., pp. 47ss), procedeu a uma síntese da
jurisprudência constitucional relativa ao princípio da igualdade. Assim:
«[O] Tribunal Constitucional teve já a oportunidade de se pronunciar
diversas vezes sobre as exigências do princípio constitucional da igualdade,
que, no fundo, se reconduz à proibição do arbítrio, proibição essa que,
naturalmente, não anula a liberdade de conformação do legislador onde ele a não
infrinja. Assim, por exemplo, no acórdão nº 563/96 (...), publicado em Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 33º, pág. 47 e segs., foram assim descritas:
‘1.1.- O princípio da igualdade do cidadão perante a lei é acolhido
pelo artigo 13º da Constituição da República que, no seu nº 1, dispõe,
genericamente, terem todos os cidadãos a mesma dignidade social, sendo iguais
perante a lei, especificando o nº 2, por sua vez, que ‘ninguém pode ser
privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de
qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de
origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação
económica ou condição social’.
Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema
constitucional global (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125) o
princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles
competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cfr. ob. cit., pág.
129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos
cidadãos e, por outro lado, da ‘atribuição aos preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica
própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer
lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades
públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional
(artigo 18º, nº 1, da Constituição)’ (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional
nº 186/90, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de
1990).
Muito trabalhado, jurisprudencial e doutrinariamente, o princípio
postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e
tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo,
inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual
das situações desiguais) – cfr., entre tantos outros, e além do já citado
acórdão nº 186/90, os acórdãos nºs. 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93,
516/93 e 335/94, publicados no referido jornal oficial, I Série, de 3 de Março
de 1988, e II Série, de 12 de Setembro de 1990, 30 de Julho de 1993, 6 de
Outubro do mesmo ano, e 19 de Janeiro e 30 de Agosto de 1994, respectivamente.
1.2.- O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de
conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de
tratamento, ‘razoável, racional e objectivamente fundadas’, sob pena de, assim
não sucedendo, ’estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do
acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores
constitucionalmente relevantes’, no ponderar do citado acórdão nº 335/94. Ponto
é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a
discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar,
diz-nos J.C. Vieira de Andrade – Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como ‘princípio
negativo de controlo’ ao limite externo de conformação da iniciativa do
legislador – cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por
exemplo, os acórdãos nºs. 157/88, publicado no Diário da República, I Série, de
26 de Julho de 1988, e os já citados nºs.330/93 e 335/94 – sem que lhe retire,
no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais)
grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de
tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e
jurídicas postadas face a um determinado referencial (‘tertium comparationis’).
A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o
arbítrio (cfr., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e
de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o
Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; acórdão nº 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e
redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual
de direito igual (cfr. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do
Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que
pressupõe averiguação e valoração casuísticas da ‘diferença’ de modo a que
recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e
diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.
O nº 2 do artigo 13º da Constituição da República enumera uma série de
factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que
presuntivamente – presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do
princípio da igualdade – mas que são enunciados a título meramente
exemplificativo: cfr., v.g., os acórdãos nºs. 203/86 e 191/88, publicados no
Diário da República, II Série, de 26 de Agosto de 1986, e, I Série, de 6 de
Outubro de 1988, respectivamente, na esteira do parecer nº 1/86, da Comissão
Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol., 1º, pág. 5 e
segs., maxime pág. 11. A intenção discriminatória (...) não opera, porém,
automaticamente, tornando-se necessário integrar a aferição
jurídico-constitucional da diferença nos parâmetros finalístico, de
razoabilidade e de adequação pressupostos pelo princípio da igualdade».
Registe-se ainda que, quer a Comissão, quer o Tribunal Constitucional
admitiram já a hipótese de, em certos casos, se proceder a diferenciações de
tratamento ou, noutra perspectiva, a ‘discriminações positivas’ (sobre a
jurisprudência constitucional nesta matéria, cf., por todos, Luís Nunes de
Almeida e Armindo Ribeiro Mendes, ‘Les discriminations positives – Portugal’,
Annuaire International de Justice Constitutionnelle, vol. XIII, 1997, pp.
223ss).
Assim, no Parecer nº 33/81 (in ParCC, 17º vol., pp. 139ss) a Comissão
Constitucional concluiu pela não inconstitucionalidade de normas de um decreto
regulamentar da Região Autónoma dos Açores que disciplinava a matéria relativa
ao pessoal auxiliar dos estabelecimentos de ensino primário e de educação
pré-escolar nos Açores, dando preferência, no preenchimento dos lugares, a
indivíduos do sexo feminino. O Tribunal Constitucional, por seu turno, não
enjeitou a possibilidade de discriminações positivas em benefício das mulheres
no Acórdão nº 191/88 (in AcTC, 12º vol., pp. 239ss) e também no Acórdão nº
231/94 (in AcTC, 27º vol., pp. 205ss). Noutra ocasião, o Tribunal admitiu um
tratamento mais favorável do sexo feminino em razão do peso exercido pelas
‘tarefas domésticas’ (Acórdãos nºs 609/94 e 713/96, in AcTC, 29º vol., pp.
173ss, e 34º vol., pp. 215ss, respectivamente).
O debate em torno das discriminações positivas pela jurisprudência
constitucional não se cinge, todavia, à questão das desigualdades em razão do
género. A título ilustrativo, pode referir-se que, no Parecer nº 15/81, a
Comissão Constitucional considerou que não violava a Constituição um regulamento
ministerial sobre o preço dos transportes aéreos entre o Continente e as regiões
autónomas que estabelecia uma discriminação de preços favorável aos residentes
nessas regiões (in ParCC, 15º vol., pp. 129ss). Aí se afirmou, designadamente:
‘Sucede (...) que tais discriminações favoráveis ou positivas têm uma razão de
ser evidente, não configurando, por isso, uma violação ao princípio da
igualdade, tal como é postulado na nossa Constituição (artigo 13º): o legislador
considera atendível a circunstância de os cidadãos portugueses residirem
habitualmente nas regiões autónomas, em ilhas afastadas do continente, para
introduzir reduções dos preços de viagens aéreas que, de alguma maneira, minorem
os inconvenientes da insularidade e do desigual desenvolvimento sócio-económico
das próprias regiões autónomas (...).
Há certas situações da vida em que o legislador constitucional considera lícito
criar regimes mais favoráveis para certos grupos humanos, em nome mesmo de uma
tendencial igualdade de oportunidades ou igualdade de tratamento de facto’.
Mais tarde, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela
inconstitucionalidade de uma norma que atribuía uma preferência na admissão à
Marinha, em regime de voluntariado, aos órfãos dos antigos membros desse ramo
das Forças Armadas por entender que não existia um fundamento material razoável
para essa discriminação (Acórdão nº 336/86, in AcTC, 8º vol., pp. 263ss).
Finalmente, no Acórdão nº 1/97 (in AcTC, 36º vol., pp. 7ss), o Tribunal
pronunciou-se pela inconstitucionalidade de uma lei que impunha ao Ministério da
Educação a criação de vagas suplementares no ensino superior público,
ultrapassando o numerus clausus previamente fixado, de forma a permitir o
ingresso de candidatos que, na fase de candidatura de Setembro, tivessem obtido
uma classificação superior à obtida por candidatos admitidos na fase de
candidatura de Julho - o Tribunal entendeu que o fundamento avançado para essa
discriminação positiva (a compensação por anomalias surgidas no decurso de
certos exames da primeira fase) não era adequado, uma vez que o sistema que se
pretendia instituir acabaria por beneficiar estudantes que não haviam realizado
exames na primeira fase e que, por conseguinte, nunca haviam sido lesados pelas
eventuais anomalias que aí tivessem ocorrido.
É particularmente interessante, a este respeito, o Acórdão nº 44/84 (in
AcTC, 3º vol., 1984, pp. 133ss), onde o Tribunal Constitucional decidiu não
declarar a inconstitucionalidade de uma norma de um decreto-lei que estabelecia
como critério de preferência na colocação de clínicos gerais ‘a opção pelo
concelho de residência, verificada através do recenseamento eleitoral’. O
Tribunal lembrou que ‘o princípio da igualdade não deve nem pode ser
interpretado em termos absolutos, impedindo nomeadamente que a lei discipline
diversamente quando diversas são as situações que o seu dispositivo visa
regular’, mas, ao mesmo tempo, que ‘há violação do princípio da igualdade quando
o legislador estabelece distinções discriminatórias. Assim é quando tais
distinções são materialmente infundadas, quando assentam em motivos que não
oferecem carácter objectivo e razoável; isto é, quando o preceito em apreço não
apresenta qualquer fundamento material razoável’. No caso em apreço, o Tribunal
considerou, em síntese, que a utilização da residência como critério de
preferência na colocação de clínicos gerais não se mostrava injustificada,
arbitrária ou irrazoável em face do princípio da igualdade, porquanto ‘uma maior
inserção do médico na zona onde é chamado a exercer funções não é irrelevante
«em termos de garantir uma maior qualidade do serviço a prestar»’. Para o
efeito, o Acórdão nº 44/84 não deixou de recordar o Parecer nº 1/76 da Comissão
Constitucional (in ParCC, 1º vol., pp. 5ss), onde, justamente a propósito de uma
preferência baseada na residência para a recondução ou colocação de professores
em estabelecimentos de ensino na Região Autónoma da Madeira, bem como no acesso
a estágios nesses estabelecimentos, se deixou afirmado:
‘(...) poderá sustentar-se que elevar a critério de preferência a
residência anterior no lugar do posto de trabalho pretendido, mais do que criar
um privilégio pessoal, corresponde a dar relevância a um factor que importa ao
bem do serviço público, por ser de presumir que a qualidade e o rendimento deste
subirão se o funcionário se achar integrado no ambiente social correspondente ao
local onde é chamado a desempenhar a sua função.
Acresce que a residência – relação entre a pessoa e o lugar onde ela centra
a sua vida – não é algo que de uma vez para sempre se defina, não é algo que
adira ao homem como qualidade ou marca dele inseparável (sob este aspecto, é
flagrante o contraste com a origem, ainda mais do que com a nacionalidade).
Por isso mesmo, a preferência que em certas condições tome por base a
residência não é de natureza a criar desigualdades estruturais entre cidadãos,
aí onde existir um mínimo de mobilidade da população’.
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional, numa situação onde estava
justamente em causa uma pretensa desigualdade no recrutamento de professores
(Acórdão nº 412/02, in D.R., II Série, de 16-12-2002), recordou que o princípio
da igualdade abrange fundamentalmente três dimensões ou vertentes: a proibição
do arbítrio, a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação,
significando a primeira, a imposição da igualdade de tratamento para situações
iguais e a interdição de tratamento igual para situações manifestamente
desiguais (tratar igual o que é igual; tratar diferentemente o que é diferente);
a segunda, a ilegitimidade de qualquer diferenciação de tratamento baseada em
critérios subjectivos (v.g., ascendência, sexo, raça, língua, território de
origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação
económica ou condição social); e a última surge como forma de compensar as
desigualdades de oportunidades.
Nesse acórdão, o Tribunal apoiou-se ainda em duas anteriores decisões
suas, começando por citar o que se disse no Acórdão nº 180/99 (in AcTC, 43º vol,
pp. 135ss):
‘(...) O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da
igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da
mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente
diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem‑se, por conseguinte,
diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios
critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações
quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente,
os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss.,
395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, Jorge
Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss.,
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993,
p.125 e ss.]’.
Lembrou, depois, a linha argumentativa do Acórdão nº 409/99 (in AcTC,
vol. 44º, pp 461ss):
‘O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da
República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente
igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na
verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da
discricionariedade legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que
estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam
distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente
não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O
princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa
ideia geral de proibição do arbítrio (cf., quanto ao princípio da igualdade,
entre outros, os Acórdãos nºs 186/90,187/90,188/90,1186/96 e 353/98, publicados
in “Diário da República”, respectivamente, de 12 de Setembro de 1990, 12 de
Fevereiro de 1997, e o último, ainda inédito).’
Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações,
tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito
a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio
(Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.
Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se
poderá avaliar se a mesma possui uma ‘fundamentação razoável’ (vernünftiger
Grund), tal como sustentou o ‘inventor’ do princípio da proibição do arbítrio,
Gerhard Leibholz (cf. F. Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da
igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria
da Glória Ferreira Pinto: ‘[E]stando em causa (...) um determinado tratamento
jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais
situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela 'ratio' do
tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim
a atingir com o referido tratamento jurídico. A 'ratio' do tratamento jurídico
é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério’
(cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido?,
sep. do Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais
adiante, opina a mesma Autora: ‘[O] critério valorativo que permite o juízo de
qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da
igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento jurídico que o
determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a 'ratio' do tratamento jurídico
exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar, e não aquele outro,
para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão
entre o critério adoptado e a 'ratio' do tratamento jurídico. Assim, se se
pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao
princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar
isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram
menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o
critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável
à subsistência familiar numa determinada sociedade’ (ob. cit., pp. 31-32).
Também a jurisprudência constitucional se orienta nesse sentido. Assim,
o Tribunal Constitucional alemão já teve ensejo de afirmar que ‘(...) um
tratamento arbitrário é aquele que (...) não é compreensível por uma apreciação
razoável das ideias dominantes da Lei Fundamental’ (42 BVerfGE 64, 74) e que
‘[A] máxima da igualdade é violada quando para a diferenciação legal ou para o
tratamento legal igual não é possível encontrar um motivo razoável, que surja da
natureza das coisas ou que, de alguma outra forma, seja compreensível em
concreto, isto é, quando a disposição tenha de ser qualificada como arbitrária’
(1 BVerfGE 14, 52; mais recentemente, cf. 12 BVerfGE 341, 348; 20 BVerfGE 31,
33; 30 BVerfGE 409, 413; 44 BVerfGE 70, 90; 51 BVerfGE 1, 23; 60 BVerfGE 101,
108).
Caminhos idênticos foram percorridos pelo Tribunal Constitucional português (a
título meramente exemplificativo, cf. os Acórdãos nºs 44/84, 186/90, 187/90 e
188/90, in AcTC, 3º vol., pp. 133ss, e 16º vol., pp. 383 ss, 395ss e 411ss,
respectivamente). No Acórdão nº 39/88, o Tribunal teve ocasião de dizer: ‘[O]
princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções.
Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento
sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação
razoável, segundo critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes
(...)’ (in AcTC, 11º vol., pp. 233ss). E, curiosamente, também nos Estados
Unidos se alude à necessidade de, no estabelecimento de diferenciações, obedecer
a um cânone de razoabilidade (reasonableness) (cf. J. Tussman e J. tenBroek,
‘The equal protection of the laws’, California Law Review, nº 37, 1949, p. 344,
cit. por Gianluca Antonelli, ‘La giurisprudenza italiana e statunitense sul
principio di solidarietà’, Studi parlamentari e di politica costituzionale, nºs.
125-126, 1999, p. 89; sobre o princípio da razoabilidade na jurisprudência
norte-americana, cf. Giovanni Bognetti, ‘Il principio di ragionevolezza e la
giurisprudenza della Corte Suprema degli Stati Uniti’, in AA.VV., Il principio
di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale. Riferimenti
comparatistici, Milão, 1994, pp. 43ss).
Neste domínio em especial, merece destaque a evolução da jurisprudência
constitucional italiana que, tendo firmado em termos absolutos a ideia da
discricionariedade do legislador (sentenze nºs 28/1957 e 56/1958), veio pouco
depois indagar se uma dada lei se apresentava ‘destituída de qualquer
justificação’ e se a mesma detinha uma ‘razão idónea’ (sentenza nº 46/1959). Na
sentenza nº 15/1960, a Corte disse que era sua jurisprudência constante
considerar que ‘(...) o princípio da igualdade é violado mesmo quando a lei, sem
um motivo razoável, procede a um tratamento diverso de cidadãos que se encontram
em situação idêntica’. A doutrina, de seu lado, não andou longe destas
asserções: já Mortati afirmava, por exemplo, que o legislador tinha ‘a obrigação
de não violar as leis da lógica’ (Istituzioni di diritto pubblico, Pádua, 1958,
p. 715; mais recentemente, cf. a mesma obra, 9ª ed., actualizada, Pádua, 1976,
pp. 1412ss). Mais tarde, Carlo Lavagna teve a percepção clara da necessidade do
recurso a um princípio de razoabilidade - que definiu como ‘la utilizzazione
razionale dei contesti umani nella costruzione di norme sulla base delle
prescrizioni-fonte’ - e enunciou os diversos critérios da sua ponderação: a
correspondência (corrispondenza), o juízo sobre a finalidade (giudizio sulle
finalità), a pertinência (pertinenza), a congruência (congruità) meios/fins, a
coerência (coerenza), a evidência (evidenza) e, enfim, a motivação (motivazione)
(cf. ‘Ragionevolezza e legittimità costituzionale’, in Studi in memoria di Carlo
Esposito, vol. III, Pádua, 1973, pp. 1573ss). De igual modo, Vezio Crisafulli
reconheceu que o Tribunal, ao indagar de eventuais violações do princípio da
igualdade, fá-lo, designadamente, com base numa ‘cláusula geral de
razoabilidade’ (cf. Lezioni di diritto costituzionale, tomo II, 5ª ed., revista
e actualizada, Pádua, 1984, p. 372). Contrariando a tese do ‘racional como
razoável’ (Aulis Aarnio), Gustavo Zagrebelski veio distinguir a ideia de
racionalidade - que, em seu entender, corresponderia à coerência lógica - da
ideia de razoabilidade, estando esta ligada a uma adequação aos valores de
justiça que funciona primacialmente como um vínculo negativo do legislador [cf.
La giustizia costituzionale, 2ª ed., Bolonha, 1988, pp. 147ss; idem, ‘Su tre
aspetti della ragionevolezza’, in AA.VV., Il principio..., cit., pp.179ss, em
esp. pp. 181-184 (onde parece aproximar os conceitos de razoabilidade e
racionalidade)]. E, justamente naquele primeiro sentido - isto é, no sentido de
uma racionalidade coerente -, aludiu o Tribunal Constitucional italiano, na sua
sentenza nº 204/1982, a um ‘cânone geral de coerência’ (generale canone di
coerenza) [cf., sobre a evolução jurisprudencial do Tribunal Constitucional
italiano, A. Agrò, ‘Commento all’art 3 Cost.’, in G. Branca (org.), Commentario
della Costituzione, vol. I, Bolonha e Roma, 1975, pp. 141ss; Paolo Barile, ‘Il
principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale’, in
AA.VV., Il principio..., cit., pp. 21ss; Livio Paladin, ‘Ragionevolezza
(principio di)’, in Enciclopedia del Diritto – Aggiornamento, vol. I, Milão,
1997, em esp. pp. 900ss].
Destaque-se, por outro lado, que também a jurisprudência do Conselho
Constitucional francês fez referência à necessidade de o legislador se nortear
por critères rationnels et objectifs. Particularmente no que respeita ao
princípio da igualdade perante os encargos públicos, o Conselho admitiu a
introdução de discriminações, desde que as mesmas se fundassem em critérios
objectivos e racionais - cf. as decisões 83-164 DC de 29-12-1983, 89-270 DC de
29-12-1989 e 91-298 DC de 24-7-1991, cits. por Louis Favoreu, ‘Conseil
Constitutionnel et ragionevolezza: d’un rapprochement improbable à une
communicabilité possible’, in AA.VV., Il principio..., cit., p. 224.
Interessa assinalar, por fim, que a mais recente jurisprudência do
Bundesverfassungsgericht procura, de certo modo, superar os limites estreitos da
teoria da proibição do arbítrio, aumentando, de certo modo, a ‘densidade do
controlo’ (Kontrolldichte), por meio de uma nova fórmula do seguinte teor:
‘[E]sta norma constitucional (o artigo 3º, nº 1) obriga a tratar de modo igual
todos os homens perante a lei. Consequentemente, este direito fundamental é
sobretudo violado se um grupo de destinatários da norma em comparação com outros
destinatários da norma é tratado de modo diferente, sem que existam entre os
dois grupos diferenças de tal natureza (Art) e de tal peso (Gewicht) que possam
justificar o tratamento desigual’ (cf. F. Alves Correia, ob. cit., p. 425; v.,
ainda, Dian Schefold, ‘Aspetti di ragionevolezza nella giurisprudenza
costituzionale tedesca’, in AA.VV., Il principio..., cit., pp. 121ss).
(…)
(…) Tal proibição não alcança assim as discriminações positivas, em que a
diferenciação de tratamento se deve ter por materialmente fundada ao compensar
desigualdades de oportunidades. Mas deve considerar-se que inclui ainda as
chamadas ‘discriminações indirectas’, em que, e sempre sem que tal se revele
justificável de um ponto de vista objectivo, uma determinada medida,
aparentemente não discriminatória, afecte negativamente em maior medida, na
prática, uma parte individualizável e distinta do universo de destinatários a
que vai dirigida.
(…)”
No contexto da postura que se colhe do que se veio de
extractar, porque se não postam – do modo que, aliás, já acima se deixou focado
– como situações exactamente iguais as dos trabalhadores de uma empresa pública
«criada» a partir de outras empresas privadas que, por intermédio de um
condicionalismo económico, financeiro, político e social muito peculiar, foram
objecto de uma nacionalização – nacionalização essa que, claramente, se foi
projectar no modo de actividade, gestão, administração e, até no domínio de
relações entre os trabalhadores dessas empresas e quem então figurava como
entidade patronal –, e aqueloutra de trabalhadores das empresas cujas entidades
empregadoras não sofreram tais vicissitudes, não pode deixar de considerar-se
que existe uma razão suficientemente idónea (o que o mesmo é dizer, com
fundamento atendível) ou racional para, relativamente aos primeiros, se
salvaguardar a corte de direitos e obrigações que, por instrumento de regulação
colectiva de trabalho, lhes vieram a ser conferidos já no domínio da
nacionalização, mesmo que uma tal salvaguarda se possa visualizar globalmente
como conferente de uma posição jurídica mais favorável relativamente aos
segundos, caracterizando-se, assim, essa salvaguarda como algo representativo de
uma «discriminação positiva».
Poder-se-ia, inclusivamente, sustentar que foi o
reconhecimento da própria não identidade de situações entre os trabalhadores das
empresas resultantes da nacionalização e dos das demais que levou o legislador
constituinte a gizar norma tal como a que se surpreende na alínea c) do artigo
296º da versão da Lei Fundamental advinda da Lei Constitucional nº 1/89 e que
ainda hoje se mantém [cfr. alínea c) do nº 1 do artigo 293º].
4. Pelo que se deixa dito, nega-se provimento ao
recurso, condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de
justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 16 de Novembro de 2005
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Gil Galvão
Artur Maurício