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Processo n.º 242/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. A., melhor identificado nos autos, interpôs recurso para o
Tribunal da Relação de Coimbra do acórdão do Colectivo do Tribunal Judicial da
Comarca de Águeda, de 29 de Março de 2004, que o condenou, como autor material e
em concurso real, pela prática de:
- 1 crime de condução ilegal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, da
Lei n.º 2/98, na pena de 6 meses de prisão;
- 6 crimes de uso de documento de identificação alheio, previsto e punido no
artigo 261.º do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão cada um;
- 12 crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º,
n.º1, alínea a), e 3, do Código Penal, na pena de 15 meses por cada crime de
falsificação de “BI” e “NIF”, e de 12 meses de prisão por cada um dos demais
crimes;
- 13 crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º,
n.º1, alínea a), do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão por cada um; e
- 1 crime de burla agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos
artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal, na pena
de 6 anos de prisão.
Operando o respectivo cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de
12 anos de prisão.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 29 de Setembro de 2004, decidiu
julgar parcialmente provido o recurso, absolvendo o arguido dos crimes de uso de
documento de identificação alheio, previsto e punido pelo artigo 261º do Código
Penal e, reformulando o cúmulo jurídico, condenou-o na pena de 11 anos e 6 meses
de prisão.
Inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando
na respectiva motivação, além do mais, a inconstitucionalidade da interpretação
do alcance da definição legal do conceito de documento de identidade do artigo
255º, alínea a), do Código Penal, e sustentando a recusa de aplicação da
jurisprudência uniformizada dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, porque
a dimensão interpretativa dos artigos 256º e 217º, nela vazada, viola o artigo
29º, n.º 5, da nossa Lei Fundamental.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 3 de Março de 2005, concedeu
parcial provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido no que respeita à
pena unitária, reduzindo-a para 10 anos de prisão.
2. É deste último acórdão que o arguido interpõe o presente recurso, com
fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, no qual pretende que sejam julgadas inconstitucionais, na
interpretação que lhes conferiu o Supremo Tribunal de Justiça:
a) A norma do artigo 255.º, alínea a), do Código Penal (conceito legal de
documento) por violação dos artigos 2.º, 29.º, n.º 1, 202.º, n.º 1, 203.º e
204.º, todos da Constituição;
b) A norma dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1 do Código Penal
(concurso efectivo entre os crimes de burla e falsificação de documentos), por
violação dos artigos 2.º, 29.º, n.º 5, 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º, todos da
Constituição da República Portuguesa.
3. Admitido o recurso no tribunal a quo foram os autos remetidos ao Tribunal
Constitucional, tendo o relator determinado a notificação das partes para
alegações.
O recorrente apresentou alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
[ ... ]
III – Pretende-se que seja declarada inconstitucional a interpretação levada a
cabo pelo Supremo Tribunal de Justiça da norma do art.º 255.º do Código Penal:
«Documento: a declaração corporizada em escrito, original ou mera reprodução
mecânica, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo
de pessoas, que permita reconhecer o emitente, podendo a mesma não ser idónea em
abstracto para provar facto juridicamente relevante, desde que alguém lhe possa
erroneamente atribuir esse valor probatório em concreto».
IV – In casu está provado que: «(...) o arguido, na posse dos B.I e N.I.F. de
terceiros, colava a sua fotografia nas fotocópias dos BI daqueles, e alterava
alguns dados constantes no verso do documento, designadamente, data de
nascimento, estado civil, mediante a colagem nestes locais de cópias dos dados
constantes no seu B.I. verdadeiro ou outros fotocopiando de seguida os
documentos assim forjados de forma a obter cópias dos mesmos (...)».
V – Por força da instrução n.º 48/96 do Banco de Portugal as operações de
abertura de conta efectuadas pelo arguido, munido apenas de cópias de fotocópias
do B.I. só deveriam ter sido efectuadas após exibição do B.I. original.
VI – Os funcionários bancários, que sabiam estarem perante fotocópias a preto e
branco, desrespeitaram a norma que estabelecia qual o documento idóneo para
fazer prova da identidade do cliente.
VII – Não se pode equiparar idoneidade para provar um facto juridicamente
relevante (adequação em abstracto do documento aferido ex ante) com o sucesso
empírico obtido pelo arguido (êxito em concreto verificado a posteriori).
VIII – A mera fotocópia, não autenticada, não é uma segunda via do original que
esteve na sua origem, nem um BI provisório (únicos documentos aptos a
substituir, nos termos previstos na Lei n.º 33/99 de 18 de Maio, um BI original)
não tendo por isso o valor probatório deste.
IX – Consequentemente, uma fotocópia do B.I. ou do N.I.F. não é um meio idóneo
para provar a identidade do portador da mesma, nenhuma autoridade ou entidade
deverá aceitar a mesma como prova nesse sentido e se, porventura, o fizer comete
um erro que não tem a virtude de tornar legítimo esse “documento” como meio
idóneo para prova da identidade.
X – Pelo que uma fotocópia adulterada dessa fotocópia não pode, nem deve, ser
qualificada como falsificação de documento, porque foi obtida através da
reprodução mecânica de um não documento (suporte material não apto a provar
factos juridicamente relevantes).
XI – Pelo que deve a referida interpretação, em função de tudo aquilo que já foi
referido, ser considerada inconstitucional (por desrespeito do art.29.º, n.º 1
da CRP) por violar o princípio da tipicidade e da legalidade criminal, dado
estarem excluídas do referido preceito as fotocópias.
XII – Caso assim não se entenda, então a norma do art.º 255.º, alínea a)do CP
deverá ser julgada inconstitucional (ao abrigo do mesmo artigo da nossa Lei
Fundamental)por possuir um teor incriminatório extremamente vago, quando
conjugado com o crime de falsificação, que não permite a delimitação exacta das
situações abrangidas.
XIII – Com efeito, a interpretação supra referida do art.º 255.º, al. a), do
Código Penal, deve ser declarada inconstitucional, por violação das seguintes
disposições, todas da Constituição da República Portuguesa:
- art. 2.º, uma vez que ofende o sub-princípio da confiança inerente ao
princípio do Estado de Direito Democrático;
- art. 29.º, n.º 1, porquanto o tribunal recorrido acabou por fazer uma
aplicação analógica, não assumida, do preceito em causa;
- art. 202º, n.º 1, na medida em que, assim, se impede a administração da
justiça, a qual é um dever;
- art. 203º, pois excepciona a sujeição do tribunal à lei vigente; e ainda
- art., 204º, já que aplica normas inconstitucionais.
XIV – Pretende-se ainda que seja apreciada a conformidade constitucional da
interpretação conjugada das normas dos artigos 30º, n.º 1, 217.º, n.º 1 e 256.º,
n.º 1, al. a) do Código Penal. Devendo julgar-se inconstitucional (por violação
do estatuído no art.º 29.º, n.º 5 da CRP) a dupla valoração e punição que
resulta do concurso efectivo entre os crimes de burla e falsificação de
documentos.
XV – O Acórdão recorrido interpretou e aplicou as normas conjugadas dos art.ºs.
30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1 e 256.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, com o seguinte
sentido e alcance:
«Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo,
por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar
outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo
patrimonial é punido em concurso efectivo pelos crimes de burla e falsificação
de documentos desde que esta tenha sido o artifício concretamente utilizado».
XVI – O argumento da disparidade dos bens jurídicos tutelados pelos crimes em
concurso é irrelevante uma vez que a homogeneidade do bem jurídico está longe de
ser conditio sine qua non do concurso aparente de infracções, existindo
múltiplos exemplos nesse sentido.
XVII – A questão não está, no que ao caso concreto importa, na similitude ou
diferença dos bens jurídicos protegidos. O problema reside, antes, em saber se
uma determinada conduta, melhor, um “pedaço de vida” que integra uma determinada
conduta criminalmente relevante, está ou não contida em outro comportamento
típico mais abrangente.
XVIII – Sucede que um mesmo “pedaço da vida” acaba por ser duplamente valorado,
censurado e punido quando se condena alguém pela prática, em concurso efectivo,
de um crime de falsificação de documento e por um outro de burla. Uns factos (a
falsificação do documento) se traduzem num crime-meio que visa, sem qualquer
autonomia, a obtenção de um crime-fim (a burla) do qual a falsificação é
completamente instrumental e dependente.
XIX – A supra referida interpretação conjugada dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º,
n.º 1 e 256.º, n.º 1, al. a) do Código Penal deve ser declarada
inconstitucional, por violação das seguintes disposições, todas da Constituição
da República Portuguesa:
- art. 2º, uma vez que ofende o sub-princípio da confiança inerente ao princípio
do Estado de Direito Democrático;
- art. 29.º, n.º 5, porquanto o tribunal recorrido acabou por valorar e punir
criminalmente duas vezes o mesmo facto através da convocação de normas penais
diferentes, numa clara violação do princípio ne bis in idem;
- art. 202.º, n.º 1, na medida em que, assim, se impede a administração da
justiça, a qual é um dever;
- art. 203.º, pois excepciona a sujeição do tribunal à lei vigente; e ainda
- art. 204.º, já que aplica normas inconstitucionais.
XX – Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade, das normas dos
arts. 255º, al. a), 30º, n.º 1; 217.º, n.º 1 e 256.º, n.º 1, al. a) do Código
Penal, quando objecto das interpretações supra referidas levadas a cabo no
aresto recorrido, com a consequente projecção dos respectivos efeitos a nível do
Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de modo a que o recurso
interposto pelo arguido seja apreciado novamente por aquele Tribunal Superior,
que deverá acatar o juízo de inconstitucionalidade expresso reformulando, em
conformidade, o cúmulo jurídico. Se assim se fizer, será feita Justiça.
O Ministério Público contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
1º - Não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, sindicável pelo
Tribunal Constitucional, a que se traduz em aferir se certa interpretação
judicial do conceito penal de “documento” extravasa ou não o âmbito da definição
legal, de modo a traduzir a realização de uma aplicação analógica não assumida
do preceito em causa, violadora dos princípios da tipicidade e da legalidade,
constantes do n.º 1 do artigo 29.º da CRP.
2º - A definição do conceito penal de “documento” é suficientemente densificada
e precisa, não possibilitando qualquer “teor incriminatório extremamente vago”,
susceptível de afrontar os princípios da legalidade, da segurança e da confiança
jurídica.
3º - Não viola o princípio constitucional da proibição do “duplo julgamento”
pelo “mesmo crime” a interpretação normativa que – baseando-se essencialmente na
diversidade e autonomia dos bens jurídicos tutelados pelos crimes de
falsificação de documento e de burla (matéria insindicável por este Tribunal,
por exclusivamente ligada à interpretação e aplicação do direito ordinário, da
competência dos Tribunais Judiciais) considera ocorrer concurso real – e não
aparente – entre tais crimes.
4º - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Notificado para se pronunciar sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério
Público o recorrente pugna pelo conhecimento do recurso em toda a extensão
contida nas alegações.
Cumpre decidir.
II
4. De acordo com o requerimento de interposição e as respectivas alegações, são
as seguintes as questões de constitucionalidade que o recorrente pretende ver
apreciadas:
a) A norma do artigo 255.º, alínea a), do Código Penal, na interpretação dada na
decisão recorrida, no sentido de que constitui documento a declaração
corporizada em escrito, original ou mera reprodução mecânica, inteligível para a
generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que permita
reconhecer o emitente, podendo a mesma não ser idónea em abstracto para provar
facto juridicamente relevante, desde que alguém lhe possa erroneamente atribuir
esse valor probatório em concreto, por violação dos artigos 2.º, 29.º, n.º 1,
202.º, n.º 1, 203.º e 204.º, todos da Constituição, e
b) A interpretação conjugada das normas dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e
256.º, n.º 1 do Código Penal, feita no mesmo aresto no sentido em que permite a
punição em concurso efectivo pelos crimes de burla e falsificação de documentos
desde que esta tenha sido o artifício concretamente utilizado, por violação dos
artigos 2.º, 29.º, n.º 5, 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º, todos da Constituição.
5. Relativamente ao crime de falsificação de documentos e à questão da
constitucionalidade da norma da alínea a) do artigo 255.º do Código Penal, é do
seguinte teor a decisão recorrida:
“(...)
A. Alega o recorrente que a simples fotocópia não autenticada não constitui meio
idóneo para fazer prova da identidade do seu portador. Por conseguinte, o
arguido deve ser absolvido de todos os crimes de falsificação de documentos que
envolveram o uso do B.I. (dado que nunca adulterou um B.I. original ou tentou
apresentar um outro documento como se de B.I. original se tratasse).
Acontece que o arguido, de acordo com a matéria de facto provada, ao forjar e
utilizar do modo descrito os documentos em referência, ainda que por cópia ou
fotocópia com colagem de fotografias ou montagem de dados sobrepostos e abusando
das assinaturas de terceiros, fazendo-se passar por estes, tinha plena
consciência de que, em tudo deturpava a verdade dos factos que esses mesmos
documentos tinham por fim certificar, pondo em causa a credibilidade pública dos
mesmos, sendo que agiu consciente e livremente e sabia que a sua conduta era
proibida e punida por lei.
A montante desta questão, assinale-se que a problemática das instruções do Banco
de Portugal relativamente às aberturas de conta (exibição do original do BI para
tal efeito), enquanto e se não cumpridas pelo funcionários bancários, são
estranhas ao caso sub juditio, antes envolvendo as respectivas relações
internas, inter-partes, eventualmente envolventes de responsabilidade
disciplinar ou mesmo criminal.
In casu, estamos perante a utilização da fotocópia como o meio técnico que nos
permite a falsificação. O documento, em vez de ser falsificado através de
impressão de um novo documento, é fotocopiado criando-se um documento distinto
do original. Ou seja, a alteração do conteúdo de um documento, quer esta
alteração se tenha verificado porque o agente imprimiu um novo documento (com
conteúdo distinto do documento original), ou porque o agente o fotocopiou, é
irrelevante para efeitos penais - na verdade, em todos os casos trata-se de uma
falsificação material do documento. Na verdade, a utilização da fotocópia é a
utilização do documento falsificado e neste sentido deve ser subsumível ao
crime de falsificação de documentos; sendo, no entanto, necessário que a
fotocópia tenha sido produzida a partir do original e que tenha a aparência do
original. Daí estarmos em presença de um “documento” precisamente para este
efeito, o da al. a), do artigo 255º do CP – o crime de falsificação de
documento.
Como refere o acórdão recorrido:
«Começaremos por dizer que não nos podemos esquecer que a fotocópia de bilhete
de identidade, antes de ser documento de identificação é documento integrando-se
na definição da alínea a) do art.º 255.º do CP.
Além disso é decisiva a determinação exacta de cada um dos conceitos definidos
no art.º 255.º do CP, já que constituem elementos normativos do tipo de ilícito
objectivo. Tal significa que o agente tem que sobre eles possuir um mínimo de
conhecimento para que a sua actuação integra o tipo subjectivo de ilícito.
No caso o arguido sabia que a fotocópia do BI era e foi suficiente para atingir
os seus intentos.
Como defende Helena Moniz, obra citada, pág. 667, documento para efeitos de
direito penal, não é o material que corporiza a declaração, mas a própria
declaração, independentemente do material em que está corporizada.
O que interessa é que se trate de um documento que integre uma declaração idónea
a provar um facto juridicamente relevante».
Constituindo a falsificação de documento (artigo 256.º do CP) uma falsificação
da declaração incorporada no documento, no caso dos autos perfila-se a
denominada falsificação material, consistente em alteração, modificação total ou
parcial do documento. Neste caso o agente apenas pode falsificar o documento
imitando ou alterando algo que está feito segundo uma certa forma; quer imitando
quer alterando o agente tem sempre uma certa preocupação: dar a aparência de que
o documento é genuíno e autêntico.
Apontando para a ideia de que o bem jurídico do crime de falsificação de
documentos é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no
que respeita à prova documental, face à extensa e pormenorizada matéria de facto
provada, conclui-se que, na verdade, o recorrente cometeu os crimes de
falsificação de documentos, previstos e puníveis no artigo 256.º, n.ºs 1, al. a)
e 3, do CP, por que foi condenado.
B. A inconstitucionalidade (por desrespeito do artigo 29.º, n.º 1, da CRP) da
interpretação do conceito de documento (artigo 255.º do CP), dada pelo Tribunal
a quo, por violar o princípio da tipicidade e da legalidade criminal.
Estabelece o artigo 29.º, n.º 1, da CRP que:
Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que
declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos
pressupostos não estejam fixados em lei anterior.
Face ao decidido no item anterior, considerando as fotocópias utilizadas pelo
recorrente como «documento», logo, integrado na definição legal proposta no
artigo 255.º do CP, inexiste qualquer violação, seja do princípio da tipicidade,
seja do princípio da legalidade, bem como inequivocamente afastado se revela
qualquer recurso à analogia.”
6. Importa reter que a decisão recorrida considerou estar provado que o arguido,
na posse dos B.I. e N.I.F. de terceiros, colava a sua fotografia nas fotocópias
dos B.I. daqueles e alterava alguns dados constantes do verso do documento,
designadamente, data de nascimento, estado civil, mediante a colagem nestes
locais de cópias dos dados constantes do seu B.I. verdadeiro ou outros,
fotocopiando de seguida os documentos assim forjados de forma a obter cópias dos
mesmos, ou seja, através de montagens de fotocópias dos referidos documentos
forjava novos B.I. ou N.I.F. apondo outra fotografia, alterando o respectivo
número ou quando necessário datas de nascimento, estado civil, entre outras,
documentos que exibiu em diversas circunstâncias, utilizando essas identidades
falsas, abusando ainda de assinaturas de terceiros.
Neste contexto fáctico, entendeu-se que se estava perante a utilização da
fotocópia como meio técnico que permite a falsificação e que a utilização da
fotocópia é a utilização do documento falsificado, desde que produzida a partir
do original e que tenha a aparência do original. Daí ter-se concluído estarmos
em presença de um documento para os efeitos da alínea a) do artigo 255.º do
Código Penal.
Diferente entendimento tem o recorrente que considera que a mera fotocópia, não
autenticada, não é uma segunda via do original que esteve na sua origem, nem um
B.I. provisório, não tendo por isso o valor probatório deste, e,
consequentemente, uma fotocópia do B.I. ou do N.I.F. não é um meio idóneo para
provar a identidade do portador da mesma, nenhuma autoridade ou entidade deverá
aceitar a mesma como prova nesse sentido e se, porventura, o fizer comete um
erro que não tem a virtude de tornar legítimo esse “documento” como meio idóneo
para prova da identidade.
Assim, conclui que uma fotocópia adulterada dessa fotocópia não pode, nem deve,
ser qualificada como falsificação de documento, porque foi obtida através da
reprodução mecânica de um não documento (suporte material não apto a provar
factos juridicamente relevantes) e, por isso, deve a referida interpretação, em
função de tudo aquilo que já foi referido, ser considerada inconstitucional (por
desrespeito do artigo 29.º, n.º 1 da CRP) por violar o princípio da tipicidade e
da legalidade criminal, dado estarem excluídas do referido preceito as
fotocópias.
Assim, a questão colocada traduz-se em saber se conceito de
documento acolhido no aresto recorrido extravasa, ou não, o âmbito da
delimitação daquele conceito consagrado na norma do artigo 255.º do Código de
Processo Penal. Dito de outro modo, se esse alcance da norma foi determinado com
violação do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.
7. Ora, relativamente a esta problemática, suscitou o Ministério
Público a questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso, considerando
que não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, sindicável pelo
Tribunal Constitucional, a que se traduz em aferir se certa interpretação
judicial do conceito penal de “documento” extravasa ou não o âmbito da definição
legal, de modo a traduzir a realização de uma aplicação analógica, não assumida,
do preceito em causa, violadora dos princípios da tipicidade e da legalidade,
constantes do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.
Responde o recorrente afirmando que fez um pedido de declaração de
inconstitucionalidade em termos abstractos e generalizantes dirigido à norma
geral em crise e não à decisão qua tale, sendo que o apelo que na motivação e
conclusões do recurso fez ao teor da decisão recorrida se deveu ao facto de nos
encontrarmos no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, “pelo
que o apelo à interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo na concreta
decisão recorrida não só é francamente aconselhável (a título de exemplo que
facilita a compreensão e consequências da concreta inconstitucionalidade
suscitada), mas é absolutamente necessário (a título de pressuposto de qualquer
recurso)”.
Como é sabido, o Tribunal Constitucional, confrontado com a questão de saber se
constitui uma questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de
integrar o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, a realização
de uma interpretação alegadamente extensiva ou analógica de normas vigentes em
áreas que, como o direito penal, estão submetidas ao princípio da legalidade,
nem sempre lhe deu a mesma resposta. Uma apreciação mais desenvolvida da
evolução da jurisprudência do Tribunal sobre esta questão foi feita pelo Acórdão
n.º 674/99 (Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000) e mais
recentemente retomada no acórdão n.º 494/03, (publicado no Diário da República,
II Série, de 27 de Novembro de 2003), cujos termos é desnecessário repetir.
De modo decisivo, embora a propósito da sindicabilidade de interpretações
normativas alegadamente violadoras do princípio da legalidade tributária, a
mesma questão foi submetida ao Plenário do Tribunal que, embora por maioria,
apenas atribuiu natureza de questão de constitucionalidade normativa,
compreendida nos poderes de cognição do Tribunal em fiscalização concreta, às
hipóteses em que seja questionado o resultado alcançado, com autonomia
relativamente ao processo interpretativo seguido, considerando que já está fora
deles o que consista em saber se o tribunal a quo respeitou, na determinação do
conteúdo da norma, as limitações constitucionalmente impostas pelo princípio da
legalidade (acórdão n.º 196/03, publicado no Diário da República, II série, de
16 de Outubro de 2003).
Não se vislumbrando razões para rever este entendimento, apenas resta concluir
pelo não conhecimento do recurso no que respeita à questão da violação do
princípio da tipicidade.
Aliás, mesmo para quem entenda que já será possível ao Tribunal Constitucional
sindicar, na perspectiva do referido princípio da legalidade ou tipicidade, o
critério ou processo interpretativo seguido pela decisão impugnada para obtenção
da norma aplicada, desde que ela própria se expresse em tais moldes que dispense
o Tribunal Constitucional de fixar substitutivamente o sentido das palavras e
conceitos utilizados na fattispecie, porque aí já não haverá o risco de
esvaziamento da competência dos “tribunais da causa” no que concerne à
interpretação do direito infra-constitucional neste domínio normativo (cf.
Carlos Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta de
constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal
Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, n.º 3, pp. 11-15), no caso
presente continuaria a não poder conhecer-se do recurso nesta parte.
Com efeito, não se vislumbra na decisão recorrida a enunciação de um critério
interpretativo, de índole generalizante, explicitamente adoptado pelo Tribunal
recorrido e destacável do caso concreto como inovatório ou criativo em relação à
definição legal em causa.
8. Para a hipótese de fracasso da alegada violação do n.º 1 do artigo 29.º da
Constituição, o recorrente o recorrente sustenta que a norma do artigo 255.º,
alínea a) do Código Penal deverá ser julgada inconstitucional por possuir um
teor incriminatório extremamente vago, quando conjugado com o crime de
falsificação, por tal forma que não permite a delimitação exacta das situações
abrangidas (Conclusões XII e XIII das alegações). Pretende que a questão da
constitucionalidade da alínea a) do artigo 255.º do Código Penal seja apreciada
sob o filtro do artigo 2.º da Constituição (princípio da precisão ou
determinabilidade dos actos normativos), neste domínio legislativo
particularmente exigente. Na verdade, os artigos 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º da
Constituição, também invocados, contendo princípios gerais respeitantes aos
tribunais, são manifestamente estranhos ao caso, uma vez que não está em
apreciação nenhuma norma sobre cujo conteúdo ou procedimento de formação tais
princípios possam incidir. Ser um ou outro o conceito de documento para efeitos
penais, não tem qualquer relação com a competência dos tribunais para
administrar a justiça ou com a sua independência ou sujeição à lei, nem lhes
retira o poder ou os dispensa do dever funcional de apreciação difusa da
constitucionalidade.
Sucede que, com esta extensão, se operaria uma modificação no objecto inicial do
recurso de constitucionalidade, tal como o recorrente o indicou no requerimento
de interposição. Efectivamente, neste requerimento, o recorrente definiu o
objecto do recurso indicando, como era seu ónus, como norma sujeita a apreciação
a da alínea a) do artigo 225.º do Código Penal, na particular interpretação que
lhe foi conferida pelo acórdão recorrido. O que, aliás, é perfeitamente
explicável se o que se pretende censurar ao Supremo Tribunal de Justiça é ter-se
desviado, em infracção ao princípio da tipicidade, do conteúdo de documento
contido no preceito. Agora, a questão sujeita teria de ser necessariamente
outra. O que está em causa é, já não a validade constitucional da norma a que o
acórdão recorrido chegou e mediante a qual concluiu que, para este efeito, as
manipulações do recorrente incidiram sobre um documento, mas a idoneidade da nua
definição contida no preceito que, pela sua vaguidade ou imprecisão, não seria
idónea para cumprir a exigência de segurança jurídica que em matéria de normas
incriminadoras penais se expressa pelo princípio da tipicidade. Trata-se de uma
questão de constitucionalidade totalmente diversa, que não incide sobre o mesmo
“conteúdo normativo” e que o recorrente apresenta inovatoriamente nas alegações.
Ora, isto não consiste em fazer apreciar a mesma questão de constitucionalidade
sob um outro parâmetro, mas numa modificação do objecto do recurso, em termos
que não são permitidos pelas disposições conjugadas dos artigos 69.º, n.º 1 e
75.º-A, n.º 1 da LTC e do artigo 684.º do Código de Processo Civil, pelo que
também destas conclusões do recurso se não conhece
9. Quanto à questão do concurso real de infracções entre o crime de burla e de
falsificação de documentos entendeu o acórdão recorrido o seguinte:
“(...)
D: O concurso entre os crimes de burla e de falsificação. [destaque nosso]
Na tese do recurso, suposta a unicidade de resolução criminosa, afigura-se
inequívoco que o “crime-meio” (falsificação) está contido no “crime-fim
(burla)”.
Por outro lado, a diversidade de bens jurídicos tutelados por estas
incriminações não afasta a consunção.
Assim, o recorrente deveria ter sido condenado pela prática de um único crime de
burla na forma continuada, artigos 217.º e 30.º do CP, que consumiria, por
existir uma relação de concurso aparente, os vários crimes, todos eles
instrumentais, de falsificação de documento.
Vindo a acrescentar que os acórdãos uniformizadores de jurisprudência não
constituem jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, já que tal
entendimento viola os princípios constitucionais de independência dos
magistrados judiciais e o princípio da separação de poderes, impondo-se, assim,
a recusa da aplicação da referida jurisprudência uniformizada nos termos do
artigo 204.º da CRP, porque a dimensão interpretativa dos artigos 256.º e 217.º
do CP, nela vazada, viola o artigo 29.º, n.º 5 da mesma CRP.
O acórdão este Supremo Tribunal n.º 8/2000, de 04-05-2000, in DR, I-A, n.º 119,
de 23-05-2000, fixou jurisprudência no sentido de que «No caso de a conduta do
agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1,
alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto
pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou
efectivo de crimes.»
E fê-lo com base no argumento “ne bis in idem”, que foi o “cavalo de batalha” da
jurisprudência que ficou vencida e que durante anos andou a ser esgrimida até ao
aparecimento do primeiro Acórdão uniformizador.
Recorde-se que já por acórdão de 19 de Fevereiro de 1992, publicado no Diário da
República, 1-A, de 9 de Abril de 1992, o Supremo Tribunal de Justiça fixara
jurisprudência no sentido de que, «no caso de a conduta do agente preencher as
previsões de falsificação e de burla do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e do
artigo 313.º, n.º 1, respectivamente, do Código penal, verifica-se concurso real
ou efectivo de crimes».
E em 04-05-2000, o Supremo Tribunal, ao uniformizar a jurisprudência,
reportou-se novamente à questão do “ne bis idem” nestes termos:
“Parece não suscitar dúvidas de que continuam a ser diferentes os bens jurídicos
tutelados pelos artigos 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1, do Código Penal de 1995.
Como se escreveu já no Acórdão deste Supremo de 16 de Junho de 1999, processo
n.º 577/99:
«Ora, nem no Código Penal de 1982 nem no de 1995 existe qualquer disposição que
ressalve o concurso da burla com a falsificação (enquanto meio de realização
daquela) do regime geral estatuído no artigo 30.º: “o número de crimes
determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo
número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do
agente.”
Logo, sendo distintos os bens jurídicos tutelados pelos tipos legais de crime de
burla (o património) e de falsificação de documento (que não será tanto a fé
pública dos documentos [...] mas, antes, “a verdade intrínseca do documento
enquanto tal” (cf. F. Dias e Costa Andrade, “O legislador de 1982 optou pela
descriminalização do crime patrimonial de simulação”, Colectânea de
Jurisprudência, ano VIII, III, 23) ou “a verdade da prova documental enquanto
meio que consente a formulação de um juízo exacto, relativamente a factos que
possam apresentar relevância jurídica” (cf. Malinverni, Enciclopedia del
Diritto, vol. XIII, pp. 632-633) e não se verificando, entre eles, qualquer
relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção nem se configurando
nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível [...]
deve continuar a concluir-se que a conduta do agente que falsifica um documento
e o uso, astuciosamente, para enganar ou induzir em erro o burlado integra
(suposta, naturalmente, a verificação de todos os elementos essenciais de cada
um dos tipos), efectivamente, em concurso real, um crime de falsificação de
documento e um crime de burla.»
Isto posto, diga-se que o argumento essencial que o recorrente utiliza não é
novo, pois já foi largamente ponderado pelo Supremo Tribunal de Justiça em dois
acórdãos uniformizadores com a mesma orientação, o último dos quais é demasiado
recente para ser necessária qualquer reformulação.
Deste modo, há que confirmar a qualificação jurídica dos factos provados por
consentânea com a jurisprudência uniformizadora deste Supremo Tribunal.”
Ou seja, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a jurisprudência fixada pelo
acórdão de uniformização n.º 8/2000 (publicado no Diário da República, I
Série-A, de 23 de Maio de 2000), no sentido de que “no caso de a conduta do
agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1,
alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto
pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou
efectivo de crimes” (Acórdão este que, aliás, já secundara a doutrina que havia
sido fixada, perante a versão anterior do Código, pelo acórdão de uniformização
de jurisprudência de 19 de Fevereiro de 1992, publicado no Diário da República,
I Série-A, de 9/4/92).
Este entendimento do Supremo radica no facto de serem distintos os bens
jurídicos tutelados pelos tipos legais de crime de burla (o património) e de
falsificação de documento (a “fé pública” ou a verdade da prova nele contida)
e de não se verificar qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou
consunção, nem se configurar nenhum dos crimes em relação ao outro como facto
posterior não punível. Por isso concluiu-se no aresto recorrido que “a conduta
do agente que falsifica um documento e o usa, astuciosamente, para enganar ou
induzir em erro o burlado integra, em concurso real, um crime de falsificação de
documento e um crime de burla”.
Diferente é a perspectiva do recorrente, que entende que uma tal interpretação
normativa, que abrange as normas dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º,
n.º 1, alínea a), do Código Penal, ao punir em concurso efectivo por crime de
burla e falsificação de documentos, quando a falsificação tenha sido o artifício
concretamente utilizado, está a punir o agente duas vezes pelo mesmo facto,
sendo, por isso inconstitucional, por violação dos artigos 2.º, 29.º, n.º 5,
202.º, n.º 1, 203.º e 204.º, da Constituição.
10. Importa, desde já, referir que não integra o âmbito do presente recurso a
questão de saber se as condutas do arguido são ou não subsumíveis a cada um dos
tipos legais de burla e falsificação de documentos e quais os elementos em que
se analisa cada um desses tipos legais, nem o modo como devem ser interpretadas
e aplicadas as normas infra-constitucionais respeitantes à teoria do concurso
(de crimes e de normas penais), mas apenas se, ao atribuir a tal bloco normativo
um sentido que leva a punir tais condutas em concurso efectivo, são violados os
princípios constitucionais invocados pelo recorrente. Por outro lado, desde já
se adianta que, dos preceitos constitucionais a esse propósito indicados pelo
recorrente como violados, só apresenta viabilidade a consideração dos artigos
2.º e 29.º, n.º 5 da Constituição, sendo também aqui irrelevante a referência
aos artigos 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º do texto constitucional, por
manifestamente estranhos ao domínio legislativo em análise.
11. Nos termos do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa
“[n]inguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”,
dando-se, assim, dignidade constitucional expressa ao clássico princípio non bis
in idem ( ou ne bis in idem, na expressão mais universalmente utilizada).
Numa primeira concretização, a doutrina penalística costuma assinalar que o
princípio tem uma vertente substantiva e outra processual. Sempre de um modo
geral, designadamente sem entrar na consideração da pluralidade de ramos do
direito sancionatório, pode dizer-se que, do ponto de vista substantivo, o
princípio proíbe a plural imposição de consequências jurídicas sancionatórias
sobre a mesma infracção; do ponto de vista processual, o non bis in idem
determina a impossibilidade de reiterar, contra o mesmo sujeito, um novo
julgamento (ou processo) por uma infracção penal sobre a qual se tenha firmado
decisão de absolvição ou condenação.
O “ne bis in idem” processual – a proibição de sujeição a julgamento pelo “mesmo
crime” em processos sucessivos – encontra o seu fundamento próximo na tutela da
segurança ou da paz jurídica, inerente ao princípio do Estado de Direito que não
permite, mesmo com eventual sacrifício da justiça material, que o indivíduo, já
condenado ou absolvido, possa viver permanentemente sob a espada de Damocles de
uma nova perseguição penal e de uma eventual imposição de pena.
Outro há-de ser o fundamento para a vertente estritamente material do princípio,
porque aí, sendo a dupla penalização simultânea, não é a afronta à paz jurídica
que está em causa. O fundamento da proibição da plúrima punição pelo “mesmo
crime” no âmbito do mesmo processo só pode encontrar-se em conjugação com os
princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas e das medidas de
segurança, isto é, pela ideia de que, sendo as sanções penais aquelas que, em
geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais devem ser evitadas,
na existência e na medida, sempre que não se demonstre a sua necessidade, e que
a “dupla penalização” materializa, só por si, a desnecessidade ou a desproporção
(Sobre o acolhimento constitucional do princípio da necessidade das penas, pode
ver-se a jurisprudência elencada no ponto 8.1 do já referido acórdão n.º
494/2003).
Ora, aos diferentes fins de protecção correspondem diferentes pressupostos e
consequências jurídicas, designadamente quanto ao que deve entender-se por
“mesmo crime” para cada uma das duas vertentes do princípio (Cf. Ramón Garcia
Albero, “Non Bis in Idem Material” y Concurso de Leyes Penales, p. 24 e ss).
Sucede que o caso dos autos não coloca um problema de violação do princípio
constitucional da proibição do “duplo julgamento” na vertente processual, pois o
que está em causa é a alegada violação do princípio por “dupla penalização” do
arguido, no âmbito do mesmo processo e por um só acto de julgamento, aspecto
cuja cobertura pelo enunciado do princípio no n.º 5 do artigo 29.º da
Constituição não é isento de dúvidas.
Para J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 194), depois de afirmarem que, como
princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental),
o non bis in idem obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito
processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência
de vários julgamentos do mesmo sujeito pelo mesmo crime, e que na clarificação
do sentido do que deve entender-se por “prática do mesmo crime” tem de
recorrer-se aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais
desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais, o n.º 5 do artigo 29.º
da Constituição “proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla
penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar
tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela
prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela
prática do mesmo crime”. O mesmo entendimento parece ser o de Teresa Pizarro
Beleza, Direito Penal, edição da A.A.F.D.L., 1980, 1º volume, p. 698, quando, a
propósito da teoria o concurso de normas e da sua articulação com o ne bis in
idem, reconhecendo que aquilo que o texto do n.º 5 do artigo 29.º da
Constituição dá é a versão adjectiva do princípio, afirma que isso “parece
implicar também a força constitucional do significado substantivo do princípio,
até na medida em que este é um dos fundamentos da importância do seu alcance
adjectivo ou processual. Daí que a questão do chamado concurso de normas também
possa ser vista como uma exigência deste princípio, e assim estudada”.
De qualquer modo, o Tribunal Constitucional não tem recusado
perspectivar pelo ângulo da violação do princípio “ne bis in idem” situações,
como a presente, de punição em concurso efectivo de ilícitos criminais, pelo
mesmo acto de julgamento, no âmbito do mesmo processo. Mas sempre concluiu que
não era violado o referido princípio, assentando, precisamente, a sua
argumentação na circunstância de os bens jurídicos tutelados serem distintos nos
crimes em presença, como sucedeu nos acórdãos. n.ºs 102/99 (publicado no Diário
da República, II Série, de 1 de Abril de 1999) e 566/2004 (este inédito, mas
disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), em que
estavam em causa situações de concurso real entre os crimes de tráfico de
estupefacientes e de associação criminosa, previstos nos artigos 21.º, n.º 1, e
28.º, da Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, no primeiro caso, e de tráfico de
estupefacientes e de outro crime, previstos nos artigos 21.º e 23.º daquela lei,
no segundo.
Como se escreveu naqueles arestos:
«Verdadeiramente, pois, o que importa é saber se se está perante a “prática do
mesmo crime” ou perante um concurso efectivo de infracções, quer este concurso
seja real, quer seja ideal (Sobre todos estes conceitos, cf. EDUARDO CORREIA,
Unidade e Pluralidade de Infracções, Coimbra).
É que, sendo o concurso de crimes efectivo, e não meramente aparente, a dupla
penalização não viola o princípio constitucional do ne bis in idem. E isto,
porque as sanções, que cada uma das normas penais que se encontram em concurso
prevê, se destinam, cada uma delas, a punir a violação de um bem jurídico
diferente; ou, então, porque o bem jurídico, que a mesma conduta viola por mais
do que uma vez, é um bem jurídico eminentemente pessoal. Em ambos os casos, não
se está em presença do mesmo crime, embora se esteja em presença do mesmo facto
ou da mesma acção delituosa, o que vale por dizer de uma mesma conduta
naturalística.
Para decidir se existe um único crime ou um concurso efectivo de crimes, há que
recorrer - recordam aqueles autores (ob. e loc. cit.) - “aos conceitos
jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito
e processo penais”».
Entretanto, dentro da mesma vertente material do princípio, o
Tribunal Constitucional veio a entender que o princípio consagrado no n.º 5 do
artigo 29.º da Constituição podia ser aplicado, por analogia, a hipóteses de
concurso de crimes e contra-ordenações “quando os bens jurídicos tutelados pelas
respectivas normas sejam idênticos”, pelo acórdão n.º 244/99 (publicado no
Diário da República, II Série, de 12 de Julho de 1999), em que estava em causa a
norma do artigo 14.º do RJIFNA, “no sentido de consentir que a mesma
factualidade comporte simultaneamente uma punição a título de crime e a título
de contra-ordenação”.
Também neste aresto - em que o concurso de infracções se estabelecia
entre ilícitos de diferentes ramos punitivos -, depois de salientar que não
basta invocar a punição plural de um facto ou acção unitários para se ter como
demonstrada uma violação do nº 5 do artigo 29º da Constituição, se afirma que o
apuramento de tal violação pressupõe que as normas em causa sancionem - de modo
duplo ou múltiplo - substancialmente a mesma infracção. A contrariedade ao
princípio 'ne bis in idem' depende assim da identidade do bem jurídico tutelado
pelas normas sancionadoras concorrentes, ou do desvalor pressuposto por cada uma
delas.
12. Ora, os fundamentos constantes destes arestos são inteiramente
transponíveis para o caso dos autos, pois o acórdão recorrido, como acima se
salientou, também assentou a sua argumentação na circunstância de os bens
jurídicos tutelados serem diferentes nos crimes em presença, nessa base
afastando a tese do concurso aparente e afirmando a existência de concurso
efectivo entre a burla e a falsificação de documentos, que foi instrumental para
induzir a vítima em erro.
Nem, em bom rigor, o recorrente questiona tal pressuposto. O que
sustenta é que tal argumento seria irrelevante, porque o que interessa é
determinar se um mesmo “pedaço de vida” que “integra uma determinada conduta
criminalmente relevante está ou não contida em outro comportamento típico mais
abrangente”.
Ora, não cabe ao Tribunal dizer qual é a melhor interpretação do
direito ordinário quanto aos elementos integradores de cada tipo, por forma a
concluir que se verifica uma situação de concurso aparente e não de concurso
efectivo. Não estando em causa a vertente processual do princípio, que poderia
exigir outro critério ou indagações complementares para determinação do que é “o
mesmo crime” (designadamente, com recurso aos institutos relativos ao objecto do
processo), nada impede que o legislador configure o sistema sancionatório penal
quanto ao concurso de infracções em matéria criminal segundo um critério de
índole normativa e não naturalística, de modo que ao “mesmo pedaço da vida”
corresponda a punição por tantos crimes quantos os tipos legais que preenche,
desde que ordenados à protecção de distintos bens jurídicos, como é seguramente
o caso dos que prevêem a burla e a falsificação de documentos. Não ficando a
protecção de lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos merecedores de tutela
penal esgotada ou consumida por um dos tipos que a conduta do agente preenche,
não viola o princípio da necessidade das penas e, consequentemente, o ne bis in
idem material, a punição em concurso efectivo (concurso ideal heterogéneo),
mediante esse critério teleológico, do crime-meio e do crime-fim, porque cada
uma das punições sanciona uma típica negação de valores pelo agente.
Deste modo, importa concluir que as normas dos artigos 30.º, n.º1, 217.º, n.º 1,
e 256.º, n.º 1 do Código Penal, na interpretação que delas faz o acórdão
recorrido, no sentido em que permite a punição em concurso efectivo pelos crimes
de burla e falsificação de documentos, assente na distinção dos bens jurídicos
tutelados pelos respectivos tipos legais, não ofende a Constituição,
nomeadamente os artigos 2.º e 29.º, n.º 5, da Lei Fundamental.
13. Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso de
constitucionalidade, na parte que dele se conhece.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de
conta.
Lisboa, 8 de Junho de 2005
Vítor Gomes
Gil Galvão
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com a indicação de que votei o não
conhecimento da norma da al. a) do artº 255º do Código Penal na interpretação
que o recorrente atribui ao acórdão recorrido porque não foi com esse sentido
que o preceito foi aplicado).
Artur Maurício