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Processo n.º 21/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo
78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), da decisão sumária lavrada em
28 de Fevereiro de 2004, que teve o seguinte teor:
«1.Notificado do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Novembro de
2004, pelo qual foi indeferido o pedido de aclaração e a arguição de nulidade do
acórdão do mesmo Tribunal de 30 de Setembro de 2004, que negara provimento ao
recurso de revista interposto de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (o
qual, por sua vez, julgara improcedente o recurso do réu da sentença que
decretara o despejo com fundamento em cedência não autorizada do local arrendado
à sociedade B.), veio A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional
mediante requerimento com o seguinte teor:
“Pretende o recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade do segmento da
norma contida no n.º 2 do artigo 490.º do Código de Processo Civil, com a
interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida.
Segundo entendeu o Supremo, tendo o réu alegado na contestação que, ao invés da
posição defendida pela autora na petição, não havia ocorrido a cedência ilícita
da posição contratual, e sim o trespasse gratuito do estabelecimento, que
dispensa a autorização do senhorio, mas não tendo impugnado a alegação vertida
no artigo 34.° da petição, de que a cedência fora efectuada ‘sem autorização da
A.’, é de considerar este facto como admitido por acordo, por falta de
impugnação.
Mas a verdade é que, assim interpretada, a ajuizada norma viola a garantia de
acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legítimos, dado que
esta garantia protege não só a posição da parte activa, mas também a posição da
parte passiva, no caso, a posição do réu/arrendatário/contestante/recorrente.
Salvo o devido respeito, a interpretação perfilhada pelo Tribunal a quo é
incomportável pela norma visada, afrontando e violando os princípios
constitucionais da participação efectiva no desenvolvimento do litígio, da
igualdade e do contraditório, que se reconduz à garantia de acesso aos tribunais
e ao próprio princípio do Estado de direito democrático.
Como já se decidiu, pretende-se evitar a indefesa do réu, por ser inadmissível,
à luz da Constituição, privar ou coarctar o direito de defesa do particular
perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem
respeito (Ac. 278/98, de 10.03.98, Proc. 215/97, em que foi Relator o Dr.
Ribeiro Mendes, cujo sumário pode ser encontrado no site www.dgsi.pt, Acs. do
TC).
Não se desconhecendo que a admissibilidade deste tipo de recurso depende do
facto de a questão de inconstitucionalidade concreta da norma ter sido suscitada
‘durante o processo’ (LTC, art.º 70.º, n.º 2), dir-se-á, sempre com o respeito
devido pela opinião contrária, que a utilização feita no Tribunal recorrido da
citada norma foi insólita e imprevisível, afigurando-se inadequado admitir a
possibilidade de formulação de um juízo de prognose prévia à sua aplicação, em
termos de ser possível antecipar à pronúncia do órgão jurisdicional, no caso, o
Supremo, a questão de inconstitucionalidade (vd. Acs. do Tribunal Constitucional
n.ºs 188/93, 499/97, 642/99, 124/00 e 192/00, entre outros).
Para o recorrente, tratou-se de uma decisão absolutamente inesperada, tanto mais
que sempre foi considerado pela autora e pelos tribunais de Instância que a
prova da falta de autorização competia ao réu, mas que este não a havia
conseguido efectuar. Mas dizer isso, era dizer também que o ajuizado facto não
se encontrava provado.
Daí que só depois de o Tribunal recorrido ter decidido o caso é que o réu pôde
reclamar, no requerimento destinado à aclaração de uma questão, como também ao
suprimento de uma nulidade, como também só agora, no requerimento de
interposição do presente recurso, é que o réu está em termos de poder invocar,
de forma clara e directa, a questão de inconstitucionalidade acabada de enunciar
(vd. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 461/91).
Ninguém pode hoje em dia contar, por afrontar os preceitos constitucionais, com
uma interpretação da sobredita norma adjectiva, no sentido que acabou por
merecer acolhimento no Acórdão recorrido, isto é, no sentido de que o réu tem de
tomar posição sobre todos os pontos de facto alegados pelo autor.
Além disso, não existindo impugnação especificada (que deixou de ser exigida),
só são considerados admitidos por acordo os factos que não estejam em oposição
com a defesa no seu conjunto, não se tornando sequer necessário que a oposição
seja manifesta.
A simples possibilidade de a tese sufragada na contestação ser contrária à
visada alegação da autora, bondaria actualmente para excluir a admissão por
acordo, mesmo que não tivesse sido efectuada a impugnação especificada [Ac. do
STJ de 04.11.99 (Dr. Ribeiro Coelho), in CJ (Acs. do STJ), 1999, t. III, pág. 73
e seguintes].
O recurso é interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
n.° 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 85/89,
de 7 de Setembro, e pela Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro, subindo nos
próprios autos, com efeito suspensivo.”
2. Pode ler-se no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de
Setembro de 2004:
“Vejamos agora o mérito do recurso.
1.
Nos termos do art.º 64.º, n.º 1, al. f), do RAU, o senhorio pode resolver o
contrato de arrendamento se o arrendatário subarrendar ou emprestar, total ou
parcialmente, o prédio arrendado, ou ceder a sua posição contratual, nos casos
em que estes actos são ilícitos, inválidos por falta de forma ou ineficazes em
relação ao senhorio, salvo o disposto no art.º 1049.º do C. C. .
Este preceito está em consonância com a al. f) do art.º 1038.º do C.C., onde se
estabelece a obrigação do locatário de não proporcionar a outrem o gozo total ou
parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica,
sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar.
O fundamento deste art.º 1038.º, al. f), reside no carácter intuitus personae da
locação.
É que não é indiferente, para o locador, a pessoa a quem se proporciona o
arrendamento.
Daí o princípio da intransmissibilidade da posição jurídica do arrendatário e a
obrigação que recai sobre este de não proporcionar a terceiro o uso ou fruição
da coisa locada, salvo permissão da lei ou autorização do locador. A al. f), do
citado art.º 1038.º, deve interpretar-se no sentido de que a enumeração, que
nela se faz, dos actos relativos ao gozo da coisa que ao locatário é vedado
praticar não reveste carácter taxativo (H. Mesquita, R.L.J., 126.º-345, Pinto
Furtado, Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos, 2.ª ed., pág. 505).
Pois bem.
Conforme resulta dos factos provados, apurou-se que o objecto do arrendamento de
que o réu é titular, por força das escrituras de 22-7-71 e de 6-7-90, se
destinou a estabelecimento de ferragens e similares.
Todavia, pela escritura de 22-1-97, o réu constituiu com o filho C. a sociedade
B., com sede no local arrendado ao réu, de que ambos ficaram sócios gerentes.
Em 31-1-97, o réu cessou a sua actividade, em nome individual, e a partir dessa
mesma data a referida sociedade iniciou a sua actividade, no locado, onde
comercializa materiais de construção, ferragens, ferramentas diversas, tintas,
vernizes, material de electricidade e produtos de decoração, onde tem o seu
escritório, atende os seus clientes e os seus fornecedores, onde tem o seus
papéis, livros e registos.
O réu consentiu e promoveu toda esta situação, de tal modo que no local
arrendado, onde exercia o seu comércio como empresário em nome individual,
passou a ter a sua sede uma sociedade, a quem o réu permitiu e proporcionou o
gozo total do locado.
Tal situação configura um comodato.
De qualquer modo, ainda que assim não seja entendido, o acto praticado pelo réu,
de autorização para que uma sociedade tivesse a sua sede no local arrendado e lá
funcionasse, é em tudo equiparável, considerando os efeitos que dele decorrem,
aos que se mencionam no art.º 64.º, n.º 1, al. f), do RAU e 1038.º, f), do C.C.,
que já vimos ter carácter exemplificativo, já que, por via dessa autorização, a
sociedade ficou juridicamente legitimada a utilizar o local arrendado para o
exercício da sua actividade (H. Mesquita, R.L.J., 126.º-345).
Resta saber se esta cedência do arrendado é ilícita, por não ter sido autorizada
pela senhoria .
O Acórdão recorrido julgou provado este requisito, partindo do pressuposto que o
respectivo ónus incumbe ao réu e de que este não logrou fazer a prova da
autorização para essa cedência, por parte da senhoria.
Será assim?
Não obstante o melindre desta questão, pensamos que é à autora que incumbe
provar a falta de autorização para a cedência do arrendador efectuada pelo réu
(Ac. S.T.J. de 20-2-92, Bol. 420.º-524).
Com efeito, essa falta de autorização é a causa em que fundou o pedido de
resolução do contrato de arrendamento e subsequente despejo.
Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do
direito alegado – art.º 342.º, n.º 1, do C.C.
Isto, quer os factos sejam positivos, quer sejam negativos (Alberto dos Reis,
Código Processo Civil Anotado, Vol. III, pág. 228; Antunes Varela, R.L.J.,
116.º-341, e Manual de Processo Civil, 2.ª ed., pág. 455; Pereira Coelho,
R.L.J., 117.º-95; Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, 111, pág. 194).
A pretensão da autora analisa-se no despejo imediato, por falta de autorização
para a cedência do arrendado, pelo que incumbe àquela o ónus da prova dessa
falta de autorização, nos termos da alínea f) do art.º 1038.º do C.C.
Sem a prova dessa falta de autorização, a acção improcederá, o que é sinal de
que se trata de facto constitutivo da pretensão deduzida pela autora.
De resto, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados constitutivos do
direito, nos termos do art.º 342.º, n.º 3, do C.C., o que também aponta, in
casu, no sentido de se considerar a falta de autorização como um facto
constitutivo.
É um caso em que o facto normalmente impeditivo (falta de autorização) vale como
constitutivo, por ser a base do pedido deduzido pela autora, ou seja, por se
tratar de um facto constitutivo da pretensão por ela formulada na petição
inicial.
Solução idêntica tem sido defendida para o caso paralelo da acção destinada a
declarar nulo um contrato por falta de consentimento (Alberto dos Reis, Código
do Processo Civil Anotado, Vol. III, págs. 279 e segs.; Antunes Varela, Manual
de Processo Civil, 2.ª ed., pág. 456/457; Mário de Brito, Código Civil Anotado,
Vol. I, pág. 454; Ac. S.T.J. de 14-1-72, Bol. 213.º-214).
Essa falta de autorização, que foi alegada pela autora no art.º 34 da petição
inicial, não consta do elenco dos factos provados, resultante da factualidade
que foi vertida na peça dos factos assentes e da base instrutória.
Todavia, trata-se de factualidade provada, por não ter sido impugnada pelo réu
na contestação – art.ºs 489.º e 490.º do C.P.C.
Na verdade, no articulado da contestação, o réu limitou-se a invocar que não era
necessária a pretensa autorização da senhoria, por a situação configurar um
trespasse gratuito do estabelecimento, que dispensa tal autorização.
Mas nunca afirmou, quer na contestação, quer mesmo, posteriormente, ao longo do
processo, que a autora tivesse concedido autorização para a invocada cedência do
arrendado.
O Supremo não pode, em regra, alterar a decisão quanto à matéria de facto
proferida pelo tribunal recorrido – art.º 729.º, n.º 2, do C.P.C.
Mas é indiscutível que o Supremo pode servir-se de qualquer facto que, apesar de
não ter sido considerado pela Relação, se deva considerar adquirido, por
provado, desde a 1.ª instância – art.ºs 659.º, n.º 3, 713.º, n.º 2, e 726.º do
C.P.C.
É o caso deste requisito da falta de autorização, cuja prova a autora logrou
fazer, por se tratar de facto que não foi especificadamente impugnado pelo réu e
antes foi aceite por este.
Assim sendo, é lícito a este Supremo considerar esse facto como provado e
servir-se dele, por se encontrar adquirido desde a 1.ª instância (Teixeira de
Sousa, Estudos sobre o novo Código do Processo Civil, pág. 427; Ac. S.T.J. de
15-2-2000, Bol. 494.º-358, entre outros).
A sanção para a infracção desta obrigação é a resolução do contrato de
arrendamento, por violação dos art.ºs 64.º, n.º 1, al. f), do RAU e 1038.º, al.
f), do C.C, já que a autora nunca reconheceu a sociedade beneficiária da
cedência como tal (art.º 1049.º do C.C.).
Invoca o recorrente que, estando em causa uma mera transformação formal (ou
seja, uma diversidade apenas formal, que não substancial, que tem a ver com o
facto de não ser possível impor ao senhorio, sem o seu consentimento, a fruição
do arrendado por pessoa diversa daquela com quem ele contratou), sempre a mesma
seria de escassa importância, não se justificando a resolução do arrendamento, à
luz do art.º 802.º, n.º 2, do C.C., por ser uma daquelas situações em que se
impõe a derrogação do princípio da separação entre o ente colectivo e os sócios,
por aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica das
sociedades.
Mas sem razão.
A sociedade tem personalidade jurídica diferente dos sócios.
Uma pessoa singular e uma sociedade são dois titulares de direitos e obrigações,
perfeitamente distintos, autónomos e independentes.
São diversas e muito relevantes as consequências de o inquilino ser a pessoa
individual do réu, ou ser a sociedade que ele criou com outro sócio.
Basta atentar que, sendo o réu o dono do estabelecimento e o titular do
arrendamento, a respectiva transferência para outrem, sem autorização do
senhorio, só pode operar-se por trespasse ou por sucessão.
No caso de trespasse, há sempre direito de preferência do senhorio – art.º
116.º, n.º 1, do RAU.
Mas se for uma sociedade a dona do estabelecimento, a transmissão das quotas dos
sócios e, consequentemente, a transmissão, de forma mediata, do respectivo
estabelecimento, já não envolve tal direito de preferência.
Acresce que, numa sociedade, podem ocorrer várias alterações, sem a intervenção
do senhorio: aumento de capital; novos sócios; transformação da espécie da
sociedade por fusão, etc..
Por isso, não pode afirmar-se que a sociedade constituída seja puramente
instrumental em relação aos sócios ou que é substancialmente a mesma realidade
dos sócios que a compõem, de tal modo que se justifique a desconsideração da
personalidade jurídica daquela sociedade e a improcedência da resolução do
contrato de arrendamento, com o argumento de que a cedência operada pelo réu,
atendendo ao interesse da autora, tem escassa importância para ela.
Improcedem, pois, as conclusões do recurso, sendo de confirmar a procedência da
acção, com o consequente despejo imediato, embora com fundamentação não
totalmente coincidente com a invocada pela Relação.”
3. O presente recurso foi admitido no tribunal a quo, mas, como dispõe o n.º 3
do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional, essa decisão não vincula este
Tribunal, e, verificando-se que não se pode conhecer do recurso, é caso de
proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do
mesmo diploma.
4. Com efeito, nos termos do respectivo requerimento, o presente recurso foi
interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional. Como é sabido, para se poder tomar conhecimento de um tal
recurso de constitucionalidade torna-se necessário, a mais do esgotamento dos
recursos ordinários e de que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio
decidendi pelo tribunal recorrido, que a inconstitucionalidade desta tenha sido
suscitada durante o processo. Este último requisito deve ser entendido, segundo
a jurisprudência constante deste Tribunal (veja-se, por exemplo, o acórdão n.º
352/94, in Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), “não num
sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada
até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que
essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda
pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz
sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”, por
ser este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal
Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame,
portanto, de uma questão que o tribunal recorrido pudesse e devesse ter
apreciado (ver ainda, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, Diário da República, II
série, de 10 de Janeiro de 1995, e ainda o Acórdão n.º 155/95, in Diário da
República, II série, de 20 de Junho de 1995).
Por outro lado, recorde-se que no direito constitucional português vigente,
apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada
em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
18/96, publicado no Diário da República [DR], II Série, de 15 de Maio de 1996),
com exclusão dos actos de outra natureza, designadamente, das decisões judiciais
em si mesmas. E se a norma que se pretende ver apreciada corresponde apenas a
uma dimensão interpretativa de um ou mais preceitos, exige-se, pelo menos, que
se enuncie ou se deixe clara tal interpretação. Como este Tribunal afirmou, por
exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (DR, II série, de 21 de Junho de 1995), impõe-se
que o recorrente tenha
“(...) indicado (…) o segmento de cada norma, a dimensão normativa de cada
preceito – o sentido ou interpretação, em suma – que [tem] por violador da
Constituição.
De facto, tendo a questão da constitucionalidade de ser suscitada de forma clara
e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, in Diário da República,
2ª Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma
certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa
interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme
com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma que o
tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários
daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em
causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a lei fundamental.”
5. Ora, no presente caso, há duas passagens do requerimento de recurso onde o
recorrente se refere a entendimentos que impugna: segundo o recorrente “entendeu
o Supremo” que, “tendo o réu alegado na contestação que, ao invés da posição
defendida pela autora na petição, não havia ocorrido a cedência ilícita da
posição contratual, e sim o trespasse gratuito do estabelecimento, que dispensa
a autorização do senhorio, mas não tendo impugnado a alegação vertida no artigo
34.° da petição, de que a cedência fora efectuada ‘sem autorização da A.’, é de
considerar este facto como admitido por acordo, por falta de impugnação”; mais à
frente, refere-se ao entendimento ou interpretação “que acabou por merecer
acolhimento no Acórdão recorrido, isto é, no sentido de que o réu tem de tomar
posição sobre todos os pontos de facto alegados pelo autor.”
Ora, consultando o acórdão recorrido logo se vê, porém, que este último
entendimento ou interpretação não foi nele aplicado. Antes o acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça se limitou a extrair uma conclusão sobre a matéria de facto
provada em relação a um ponto concreto – o da existência ou não de autorização
por parte da demandante –, não se pronunciando sobre qualquer dever, ou ónus, de
tomada de posição sobre todos os pontos de facto alegados pelo autor
Por outro lado, é claro que, na parte em que se refere à conclusão a retirar da
circunstância de o réu ter “alegado na contestação que, ao invés da posição
defendida pela autora na petição, não havia ocorrido a cedência ilícita da
posição contratual, e sim o trespasse gratuito do estabelecimento, que dispensa
a autorização do senhorio”, mas não ter “impugnado a alegação vertida no artigo
34.° da petição, de que a cedência fora efectuada ‘sem autorização da A.’”, o
requerimento de recurso não se refere a qualquer norma ou interpretação
normativa, mas sim à conclusão tirada na concreta decisão judicial – o acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça recorrido – sobre a matéria de facto que deve ser
considerada provada. Por não estar em questão qualquer norma ou interpretação
normativa, mas sim a decisão judicial, na parte em que conclui sobre a matéria
de facto provada, tirada pela decisão, não pode essa questão ser objecto do
recurso de constitucionalidade, o qual, como é sabido, incide apenas sobre a
apreciação de constitucionalidade de normas.
Logo por estas razões – ou seja, quanto ao entendimento normativo identificado
no requerimento, pela sua não aplicação pela decisão recorrida, e, quanto à
conclusão tirada sobre a matéria de facto, por não estar em causa uma norma ou
interpretação normativa – não poderia este Tribunal tomar conhecimento do
presente recurso.
6. Ao fundamento invocado no número anterior acresce que o recorrente não
suscitou, durante o processo – isto é, perante o Supremo Tribunal de Justiça –,
a questão da constitucionalidade de quaisquer normas, sendo certo, porém, que a
falta de consentimento por parte da autora constituíra já a ratio decidendi para
o Tribunal da Relação de Lisboa (embora se tivesse bastado com não resultar dos
factos assentes o consentimento da autora, e não tenha invocado a falta de
impugnação deste ponto pelo demandado). A conclusão pela falta de autorização
por parte da senhoria – seja com base na distribuição do ónus da prova, seja com
base nos articulados das partes – não pode, pois, considerar-se objectivamente
surpreendente, imprevisível ou insólita, de tal forma que o recorrente pudesse
considerar-se dispensado de suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça a
inconstitucionalidade do entendimento normativo em que se fundou tal conclusão.
Também por esta razão não pode tomar-se conhecimento do presente recurso.»
2.Diz-se na reclamação apresentada:
«1. Parece evidente que o objecto do presente recurso de constitucionalidade se
reconduz, tão-somente, à apreciação da inconstitucionalidade de um segmento de
uma norma, na interpretação que lhe foi dada pelo Supremo.
Qual é a norma, qual é o segmento da mesma cuja interpretação afronta os
princípios constitucionais indicados no requerimento que abriu a instância de
recurso, e qual foi essa interpretação que, segundo o recorrente, não se amolda
aos reditos princípios?
Antes de se responder a estas questões, importa, brevitatis causa, referir o
seguinte: a questão da inconstitucionalidade deve ter por objecto disposições
legais que tenham de ser aplicadas na causa, não existindo todavia qualquer
restrição quanto ao tipo de normas impugnadas. Segundo GOMES CANOTILHO, podem
ser normas materiais ou processuais, podem incidir sobre o mérito da causa ou
apenas sobre meios probatórios ou pressupostos processuais, podem lesar ou não
direitos fundamentais ou interesses legítimos das partes (Direito Constitucional
e Teoria da Constituição, 7.ª edição, pág. 988).
“O objecto do recurso em sentido substantivo (e não meramente processual) -
prossegue o mesmo eminente Constitucionalista - é, pois, uma norma à qual se
reporta a questão da inconstitucionalidade e não a decisão judicial do tribunal
a quo. Todavia, trata-se sempre de uma norma interpretativamente mediatizada
pela decisão recorrida, porque a norma deve ser apreciada no recurso segundo a
interpretação que lhe foi dada nessa decisão (cfr. Acs. 69/87, 75/87, 388/87,
127/88, 235/91, 141/92)” - CANOTILHO, ob. cit., pág. 997.
Equivale isso a dizer que o Tribunal Constitucional só pode conhecer do recurso
quando a questão respeitante à inconstitucionalidade de uma norma tiver
relevância e for útil para o julgamento da questão principal conforme se decidiu
nos aliás doutos Acórdãos proferidos pelo mesmo Venerando Tribunal, sob os n.ºs
90/84 e 339/87 (G. CANOTILHO, ob. cit., pág. 997).
A norma que deverá ser aplicada ou desaplicada, por motivos de
inconstitucionalidade, deve ter sido aplicada como ratio decidendi e não como um
simples obiter dictum (CANOTILHO, ob. cit., pág. 987).
Não se pode, portanto, suscitar a questão da inconstitucionalidade da decisão,
ou do acto de aplicação do direito, mas das normas que nela tenham sido
concretamente aplicadas. O objecto do recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade é constituído por normas efectivamente aplicadas durante o
processo.
Por outro lado, a questão de inconstitucionalidade tanto pode respeitar a uma
norma, como a uma sua dimensão parcelar, considerada a se, como também a
interpretação ou sentido com que a mesma foi tomada no caso concreto e aplicada
na decisão recorrida (vd., entre muitos outros, os doutos Acs. do TC n.ºs
238/94, 18/96, 338/98, 285/99, 520/99, 558/99, 680/99, 156/00 e 219/00).
Mas o que o Tribunal Constitucional não pode de maneira alguma sindicar é o acto
concreto do julgamento, envolvendo a decisão como resultado da conjugação do
facto e do critério normativo utilizado. Não pode, por outras palavras
eventualmente menos densificadoras, sindicar a subsunção efectuada pelo
aplicador do direito.
2. Ora, como está bem de ver, o recorrente respeitou todos os cânones que a lei
exige em sede de recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Clarificando, dir-se-á que o recorrente não pretendeu impugnar a decisão
prolatada pelo Supremo, no sentido de que, pelo facto de ter cedido a sua
posição contratual a uma sociedade que passou a explorar no local arrendado, o
estabelecimento comercial nele existente, sem autorização do senhorio, o réu
praticou a infracção prevista na alínea f) do n.° 1 do artigo 64.° do RAU, que é
causa de resolução do contrato de arrendamento.
Foi essa a judicativa decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Mas contrariamente
ao referido na decisão sumária, não é contra aquela decisão, por motivos de
inconstitucionalidade, que o réu interpôs o presente recurso de
constitucionalidade.
Diferentemente, aquilo que o recorrente muito claramente pretendeu (como
pretende) suscitar, foi a interpretação de uma norma, no caso, a norma prevista
no n.° 2 do artigo 490.° do Código de Processo Civil, ou mais propriamente, do
troço da disposição onde se proclama que são havidos ou considerados admitidos
por acordo os factos que não forem impugnados “[...] salvo se estiverem em
oposição com a defesa considerada no seu conjunto [...]”.
E foi devido à forma (subitânea e inusitada) como o Supremo interpretou a dita
norma que o mesmo Alto Tribunal proferiu a decisão em causa.
É inegável, por conseguinte, que aquele particular segmento da norma visada
(CPC, art.º 490.º, 2), foi aplicado na decisão proferida pelo Supremo, a título
de ratio decidendi e não de obter dictum.
Mas que interpretação foi essa, afinal? A interpretação aponta no sentido de
que, apesar de o réu se ter limitado a invocar na contestação que não era
necessária a autorização da senhoria, pelo facto de a situação configurar um
trespasse gratuito, ele nunca afirmou que a autora tivesse concedido autorização
para a invocada cedência do arrendado.
Mais referiu o Supremo que, malgrado não possa em regra alterar a decisão quanto
à matéria de facto proferida pela 2.ª instância, podia no entanto servir-se de
qualquer facto que fosse de considerar adquirido, por provado.
E mais adiante: “É o caso deste requisito da falta de autorização, cuja prova a
autora logrou fazer, por se tratar de facto que não foi especificadamente
impugnado pelo réu e antes foi aceite por este”.
Dito de outro modo, podemos dizer que o Supremo sustentou que a não impugnação
do facto vertido no artigo 34.º da petição determinava que ele tinha de ser
considerado admitido por acordo e, logo, provado. Mas a verdade é que o Supremo
não atentou na estoutra questão, absolutamente decisiva, de que o facto em
apreço não poderia ser considerado admitido, se o mesmo estivesse em oposição,
como claramente estava, com a defesa do réu considerada no seu conjunto.
É porque, para o Supremo, o réu não impugnou especificadamente a afirmação
produzida pela autora, no artigo 34.º da petição inicial, ou seja, que a
senhoria não concedera autorização ao réu para que ele pudesse ceder a sua
posição à sociedade em causa. E se o réu não impugnou tal facto, isso seria
suficiente para se considerar admitido o mesmo facto e, logo, adquirido para os
autos.
Mas é claro que tal interpretação afronta determinados ditames de ordem
constitucional, além de que ela não pode ser actualmente aceite, na medida em
que o réu não tem de tomar posição (especificadamente) sobre todos os pontos de
facto alegados pelo autor. Basta-lhe que tais factos (os alegados pelo autor na
acção) estejam em contradição com a defesa no seu conjunto, não se tornando
sequer necessário que a oposição seja manifesta.
Pois bem, se o réu alegou, na contestação, que não existiu qualquer cessão da
posição contratual à sociedade constituída por ele e pelo filho, porquanto o que
houve foi um trespasse que não necessita de ser autorizado pelo senhorio,
mostra-se vítreo que, com tal alegação, o demandado está a contrariar a tese
apresentada pela contraparte. Bastou essa simples tomada de posição, para se
constatar que o réu se opôs frontalmente à tese contrária.
Se houve trespasse, não pode ter havido cessão ilícita, porque não consentida.
Uma coisa exclui necessariamente a outra.
Por conclusão, o objecto do recurso não reside na decisão, mas na referida
interpretação normativa dada pelo Supremo para decidir o caso como decidiu.
Vejamos uma outra questão de não menos importância.
3. Refere-se na aliás douta decisão que não atendeu o recurso que o Supremo não
se pronunciou sobre qualquer dever, ou ónus, de tomada de posição sobre todos os
pontos de facto alegados pelo autor (vd. págs. 8, in fine, e 9, ao cimo).
Objectar-se-á no entanto que o Supremo só pôde decidir como decidiu, porque
interpretou a norma prevista no artigo 490.º, n.º 2, do Código de Processo
Civil, no sentido de que o réu tem de tomar posição especificada sobre todos os
factos alegados pelo autor.
Mas se o réu tomou a posição já conhecida, essa tomada de posição seria mais do
que suficiente para que o facto em questão (falta de consentimento da senhoria
para a cessão) não pudesse ser dado como provado como efectivamente foi.
É justamente essa a interpretação inconstitucional (que não cabe naturalmente
esquadrinhar hic et nunc) do segmento do inciso normativo em causa que foi feita
pelo Supremo em vista da decisão que acabou por tomar.
Não se pode esquecer ainda que, como refere o Professor CANOTILHO, a aplicação
da norma ou a desaplicação por inconstitucionalidade não tem que ser expressa,
podendo ser implícita, como se decidiu nos doutos Acórdãos do TC n.ºs 406/87,
429/89, 119/90 e 354/91- ob. cit., pág. 987.
É verdade e reverdade que quando enunciou a questão da inconstitucionalidade, o
recorrente fê-lo a contrario sensu, referindo que a interpretação acolhida pelo
Supremo havia sido a de que o réu tinha ou tem de tomar posição sobre todos os
pontos de facto alegados pelo autor.
Mas o que é facto é que ao decidir como decidiu é como se o Supremo tivesse
defendido a tese (hodiernamente inaceitável) de que não foi suficiente aquilo
que o réu disse a propósito da cedência ilícita, que segundo ele não se teria
verificado, uma vez que a operação jurídica ocorrida foi o trespasse.
Para o Supremo, o réu devia ter especificadamente impugnado o facto alegado pela
autora no sentido de que a cedência não fora autorizada.
É, pois, contra este particular mas inconstitucional entendimento ou
interpretação de parte da disposição citada, que o recorrente pretende ver
desaplicada no seio da decisão proferida pelo mesmo Órgão Jurisdicional.
Uma nota ainda a propósito do requisito de admissibilidade do recurso previsto
na alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da LTC.
4. Diz-se no concernente a este fundamento de rejeição do recurso que a falta de
consentimento por parte da autora já constituíra a ratio decidendi para o
Tribunal da Relação de Lisboa.
Mas, lá está! O recorrente não pretendeu impugnar qualquer inconstitucionalidade
ao nível da decisão que deu como verificado o facto-fundamento previsto na
alínea f) do n.° 1 do artigo 64.° do RAU.
É claro que é sempre muito difícil a resposta à questão de saber como se deve
traçar a fronteira entre a fiscalização concreta da constitucionalidade
respeitante a normas jurídicas e a decisões judiciais (RUI MEDEIROS, A decisão
de inconstitucionalidade (...), Lisboa 1999, pág. 336 e ss.).
Haverá sempre uma certa imbricação entre uma dada interpretação normativa de um
preceito que foi utilizado como ratio decidendi de uma decisão, com a própria
resolução ou decisão em si mesma. Não pode existir, no limite, uma diálise
substancial entre uma e outra.
Isto traz-nos à memória (pedindo-se desculpa pelo eventual despropósito) a
facécia que se conta a propósito do assassinato do Presidente Lincoln, quando
assistia com a mulher a uma peça de teatro. Assim que o assassino disparou sobre
o Presidente, logo se abeirou da esposa um jornalista inconveniente que se lhe
dirigiu nestes termos: “Madam, quite apart from the murder, did you enjoy the
play?” (“Minha Senhora, assassinato à parte, gostou da peça?”).
Como se dizia, não foi a referida decisão (a decisão que decretou a resolução do
contrato de arrendamento, por cessão ilícita da posição arrendatícia) que o
surpreendeu.
O que o surpreendeu foi o facto de o Supremo, interpretando a norma pelo
indicado modo, ter violado determinados princípios de estalão constitucional de
resto enunciados, tais como, o princípio da participação efectiva no
desenvolvimento da causa, o princípio da igualdade de armas e do contraditório e
ainda o princípio do livre acesso aos tribunais.
Assim decidindo, o Supremo promoveu e acerou, como também se grifou alhures no
requerimento, a indefesa do réu, postergando e subestimando uma das mais
importantes garantias concedidas e asseguradas pelo processo civil.
De notar é que até aí, jamais se havia colocado a questão de se encontrar
provado que a autora havia consentido na cessão. Sempre se admitiu (embora tal
entendimento não se mostrasse materializado em nenhum facto assente ou em nenhum
facto controvertido dado como provado) que a autora não havia dado autorização
para a operação em causa, até porque as instâncias partiram do princípio de que
seria o réu, e não a autora, quem devia ter provado o redito facto.
Pode então concluir-se que só após a decisão tirada no Supremo Tribunal de
Justiça, é que o recorrente pôde arguir a ajuizada questão da
inconstitucionalidade, razão pela qual, foi a mesma suscitada durante o
processo.»
A recorrida respondeu a esta reclamação nos seguintes termos:
«1 - Dispõe a lei que no requerimento de recurso para este Tribunal, ao abrigo
da al. b) do n.° 1 do art.º 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo
do Tribunal Constitucional, deve constar a indicação da norma ou princípio
constitucional ou legal que se considere violado, bem como da peça processual em
que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade.
Este ponto é essencial, pois que o recurso interposto não se limita a uma
discordância de decisão recorrida, mas à sua qualificação como contrária à
Constituição das normas que aplica.
A verdade é que o recorrente nenhuma disposição constitucional entendeu ou
encontrou como violada pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça, nem refere
princípios constitucionais que decorram de invocadas normas constitucionais.
2 - É claramente inoportuna a suscitada questão de inconstitucionalidade.
Ela foi suscitada no último minuto do último acto processual que era possível
produzir no processo, e como emergência.
Todavia, o facto da falta de autorização do senhorio na transmissão do
arrendamento, alegado logo na petição inicial, foi pacificamente aceite em todas
as instâncias, foi pressuposto desde a primeira hora da posição do próprio réu,
aqui recorrente, precisamente porque não impugnado, antes implicitamente aceite
e fora de qualquer controvérsia.
Quer dizer que a aplicação das normas que levaram tal facto a ser tido como
adquirido - usado ou não, o que é outra coisa - vem desde a primeira instância,
sem oposição por deficiência constitucional do aqui recorrente.
3 - Objecto do recurso só pode ser uma norma, tida como inconstitucional, ou a
interpretação que dela se faça contrária à Constituição.
Refere o recorrente que pretende ver reconhecida a inconstitucionalidade do
art.º 490.º, n.º 2, do C.P.C., com a interpretação que lhe foi dada pelo Supremo
Tribunal de Justiça.
Todavia, ainda que alegue o contrário, fundamenta o recurso para este Tribunal
Constitucional não na interpretação daquela norma, mas apenas na discordância da
decisão judicial, que se limitou a utilizar todos os factos que o processo
revela como provados.
Como se decidiu na decisão de que se reclama, “consultando o acórdão recorrido,
logo se vê, porém, que este último entendimento ou interpretação não foi nele
aplicado. Antes o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça se limitou a extrair
uma conclusão sobre a matéria de facto provada em relação a um ponto concreto -
o da existência ou não de autorização por parte da demandante - não se
pronunciando sobre qualquer dever ou ónus de tomada de posição sobre todos os
pontos de facto alegados pelo autor”.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3. Adianta-se desde já que a presente reclamação não abala os fundamentos em que
se baseou a decisão recorrida para se pronunciar no sentido do não conhecimento
do recurso.
Na verdade, no requerimento de recurso de constitucionalidade o recorrente disse
que pretendia ver “apreciada a inconstitucionalidade do segmento da norma
contida no n.º 2 do artigo 490.º do Código de Processo Civil, com a
interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida”. E, quanto a esta
interpretação, cuja constitucionalidade estava em causa, referiu-se no
requerimento “uma interpretação da sobredita norma adjectiva, no sentido que
acabou por merecer acolhimento no Acórdão recorrido, isto é, no sentido de que o
réu tem de tomar posição sobre todos os pontos de facto alegados pelo autor”.
Por outro lado, referindo-se ao caso concreto, disse o recorrente que, segundo
“o Supremo, tendo o réu alegado na contestação que, ao invés da posição
defendida pela autora na petição, não havia ocorrido a cedência ilícita da
posição contratual, e sim o trespasse gratuito do estabelecimento, que dispensa
a autorização do senhorio, mas não tendo impugnado a alegação vertida no artigo
34.° da petição, de que a cedência fora efectuada ‘sem autorização da A.’, é de
considerar este facto como admitido por acordo, por falta de impugnação”.
Ora, como se afirmou na decisão reclamada, o acórdão recorrido não aplicou
qualquer interpretação do preceito referido com o sentido de que o demandado tem
de tomar posição sobre todos os pontos de facto alegados pelo autor, e antes se
limitou, a propósito de um desses pontos de facto, a extrair uma conclusão da
concreta conduta processual de demandante e demandado. O próprio reclamante
reconhece este facto, ao dizer que teria enunciado a questão da
inconstitucionalidade, “a contrario sensu”, mas que “ao decidir como decidiu é
como se o Supremo tivesse defendido a tese (hodiernamente inaceitável) de que
não foi suficiente aquilo que o réu disse a propósito da cedência ilícita”
(itálico aditado). Como também se disse na decisão sumária reclamada, nesta
última parte – isto é, no que se refere à avaliação da “suficiência”, ou não, do
que concretamente o demandado disse nos seus articulados –, a questão de
constitucionalidade não se refere, porém, a qualquer norma ou interpretação
normativa, mas antes “à conclusão tirada na concreta decisão judicial – o
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido – sobre a matéria de facto que
deve ser considerada provada”. Pelo que, por não estar em causa qualquer norma
ou interpretação normativa, mas antes a decisão judicial, na parte em que
concluiu sobre a matéria de facto provada, não podia tal questão ser objecto do
recurso de constitucionalidade, o qual, como é sabido, incide apenas sobre a
apreciação de constitucionalidade de normas.
Acresce que, como também se notou na decisão reclamada, a questão da falta de
autorização da senhoria fora já o fundamento para a decisão proferida no
Tribunal da Relação, e, portanto, o demandado sabia que a conclusão no sentido
da prova desse facto era um elemento essencial para tal decisão. Apesar disso,
ao recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente não suscitou
qualquer questão de constitucionalidade relativa à prova de tal falta de
autorização. Tal suscitação não podia deixar de ser considerada exigível, pois
não só era previsível a conclusão no sentido da prova desse facto (seja por não
resultar dos factos assentes o consentimento da autora, seja pela falta de
impugnação deste ponto pelo demandado), como tal conclusão havia sido já a
perfilhada pelo tribunal então recorrido. E mesmo a forma como o Supremo
Tribunal de Justiça considerou provado o facto da falta de autorização para a
cedência do arrendado não pode ser considerada insólita ou absolutamente
imprevisível, na medida em que se baseia, simplesmente, na circunstância de este
facto ter sido invocado e de não ter sido especificadamente impugnado (coisa
diversa é já saber se tal circunstância é exacta ou não, ou corresponde a uma
correcta interpretação dos articulados – o que não compete a este Tribunal
controlar, limitado, como está, ao controlo da constitucionalidade de normas).
Também por não ter sido suscitada, durante o processo, a questão da
inconstitucionalidade dos entendimentos referidos do artigo 490.º, n.º 2, do
Código de Processo Civil não podia, pois, o Tribunal Constitucional tomar
conhecimento do presente recurso.
E a decisão sumária reclamada deve, portanto, ser confirmada.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e
confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso de
constitucionalidade interposto.
Custas pelo reclamante, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 14 de Abril de 2005
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos