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Processo n.º 172/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3.ª Secção, do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. (ora recorrido), patrocinado pelo Ministério Público, intentou no Tribunal
do Trabalho de Beja acção emergente de acidente de trabalho com processo
especial contra B. (ora recorrente), peticionando o direito à reparação por
acidente de trabalho que sofreu quando prestava a sua actividade profissional ao
serviço do réu.
2. Por decisão do Tribunal do Trabalho de Beja, de 16 de Outubro de 2003, foi
dado como assente que o acidente se deu quando o autor trabalhava sob as ordens,
direcção e fiscalização do réu auferindo o salário global anual de € 15612, 44,
facto este provado por aplicação do disposto no artigo 108º, n.º 5, do Código de
Processo do Trabalho, por o réu ter faltado por duas vezes, injustificadamente,
à tentativa de conciliação para o qual havia sido regularmente notificado. Em
consequência, foi a acção julgada procedente e o réu condenado a pagar ao autor
a quantia de € 28752,91, a título de ITA, bem como uma pensão anual e vitalícia
de € 5277,00.
3. Inconformado com esta decisão o réu recorreu dela para o Tribunal da Relação
de Évora que, por acórdão de 18 de Maio de 2004, decidiu negar provimento ao
recurso.
4. Novamente inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo, a
concluir a sua alegação, formulado as seguintes conclusões:
“1 - Na presente acção foi considerado assente que o acidente dos autos se deu
quando o autor trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização do réu,
auferindo um salário anual global de 15612,44 euros por o recorrente ter faltado
sem justificação a duas tentativas de conciliação e ser esse o teor das
declarações prestadas pelo recorrido, por aplicação do art.º 108.º, n.º 5 do
Código de Processo do Trabalho.
2 - A norma em causa, ao estabelecer uma presunção de verdade das declarações
prestadas pelo trabalhador no caso de duas faltas injustificadas a tentativas de
conciliação apenas será justa, equitativa e conforme com o art.º 20.º da
Constituição se a entidade patronal tiver sido avisada na convocatória, de forma
clara, expressa e compreensível para quem não for profissional do foro, das
consequências da sua falta injustificada.
3 - O art.º 108.º, n.º 5 do Código de Processo do Trabalho é pois,
inconstitucional por violação do art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República
se interpretado de forma que o seu comando se mantenha efectivo sem que a
entidade patronal tiver sido avisada na convocatória, de forma clara, expressa e
compreensível para quem não for profissional do foro, das consequências da sua
falta injustificada.
4 - Por outro lado, a referida norma, ao estabelecer uma vantagem para uma das
partes em relação à outra, viola o princípio da igualdade, acolhido no art.º
13.º da Constituição da República, sendo essa desigualdade relevante e com
possível influência da definição dos direitos das partes, sendo certo que os
objectivos que pretende alcançar poderão ser atingidos pela adopção de outras
medidas aplicáveis de forma igual a ambas as partes.
5 – Trata-se, pois, de uma norma inconstitucional, por contrariar a Constituição
e os seus princípios.
6 – Não podendo, por isso, ser aplicada pelo Tribunal, por força do disposto no
art. 204º da Constituição da República.
7 – Não se aplicando essa norma, não serão considerados provados os factos
transcritos na conclusão 1ª destas alegações.
8 – O que fará com que o acidente dos autos deixe de poder ser considerado um
acidente de trabalho, improcedendo, em consequência, a acção, sendo o recorrente
absolvido do pedido.
9 – A douta sentença recorrida violou os artigos 13º e 20º, n.º 4 da
Constituição da República, pelo que deverá ser revogada”.
5. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27 de janeiro de 2005, negou
provimento ao recurso, decisão que fundamentou nos seguintes termos:
“A única questão a decidir é a de saber se se verifica a invocada
inconstitucionalidade do artigo. 108.º, n.º 5, do Código de Processo do
Trabalho, com base no qual o tribunal deu como provados os factos que constam da
alínea e) da matéria de facto.
Regulando os termos em que se realiza a tentativa de conciliação na fase
administrativa do processo emergente de acidente de trabalho, o artigo 108° do
Código de Processo do Trabalho, dispõe, nos seus n.ºs 4 e 5, o seguinte:
“4. Não comparecendo a entidade responsável, tomam-se declarações ao sinistrado
ou beneficiário sobre as circunstâncias em que ocorreu o acidente e mais
elementos necessários à determinação do seu direito, designando-se logo data
para nova tentativa de conciliação.
5. Faltando de novo a entidade responsável ou não sendo conhecido o seu
paradeiro, é dispensada a tentativa de conciliação, presumindo-se verdadeiros,
até prova em contrário, os factos declarados nos termos do número anterior se a
ausência for devida a falta injustificada e a entidade responsável residir ou
tiver sede no continente ou na ilha onde se realiza a diligência.”
No caso vertente, o réu faltou à tentativa de conciliação designada a fls. 57
dos autos (sendo irrelevante que tenha sido devolvida a carta de notificação,
visto que tem aplicação no caso o disposto quanto às notificações dos
mandatários judiciais, presumindo-se a notificação feita no terceiro dia
posterior ao do registo - artigos 24°, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho
e 254°, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil), implicando que, por efeito do
disposto no n.º 4 do artigo 108° do Código de Processo do Trabalho, se tomassem
declarações ao sinistrado “sobre as circunstâncias em que ocorreu o acidente e
mais elementos necessários à determinação do seu direito”. Por outro lado, o réu
faltou igualmente, sem qualquer justificação, à segunda tentativa de
conciliação, designada a fls. 66 do processo, com a consequência de se ter como
dispensada a realização da formalidade, com o necessário prosseguimento do
processo através da fase contenciosa (artigo 113°).
O n.º 5 do artigo 108° do Código de Processo do Trabalho estabelece uma
presunção juris tantum, implicando que, na acção, caiba ao réu a prova de que os
factos declarados pelo autor não correspondem à verdade. É este indubitavelmente
o sentido da expressão “presumindo-se verdadeiros, até prova em contrário, os
factos declarados nos termos do número anterior”.
A referida norma opera, pois, uma inversão do ónus da prova, nos precisos termos
do artigo 344°, n.º 1, do Código Civil. Em princípio, é àquele que invoca um
direito que cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado,
pertencendo a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do
direito invocado àquele contra quem a invocação é feita (artigo 342°, n.o 1 e 2,
do Código Civil). As regras gerais relativas ao ónus da prova invertem-se,
porém, quando exista uma presunção legal, isto é, quando a lei considere como
certo um dado facto. Tal significa que quem tem a seu favor a presunção legal,
escusa de provar o facto a que ela conduz, admitindo-se - a menos que a lei o
proíba - que a presunção seja ilidida mediante prova em contrário (artigo 350°
do Código Civil).
No caso em apreço, o recorrente começa por invocar que o artigo 108.º, n.º 5 do
Código de Processo do Trabalho viola o direito a um processo equitativo e é,
como tal, inconstitucional, quando interpretado no sentido de que o seu comando
se mantém efectivo sem que a entidade patronal tenha sido avisada na
convocatória, de forma clara, expressa e compreensível para quem não for
profissional do foro, das consequências da sua falta injustificada à tentativa
de conciliação.
O que resulta, porém, das cotas lavradas a fls. 58 e 66 pelo competente
funcionário judicial, é que a convocatória para as tentativas de conciliação
foram efectuadas com as advertências legais, o que significa que foram feitas
com a indicação das consequências processuais que a falta à diligência, sem
justificação, poderia acarretar. E não tendo sido suscitada a falsidade desses
termos do processo, nada permite concluir que o efeito jurídico imposto pela
norma tenha sido aplicado sem que o interessado estivesse ciente das
consequências que poderiam advir do seu comportamento processual.
Em qualquer caso, o recorrente também alega que a referida norma, ao estabelecer
uma vantagem para uma das partes em relação à outra, viola o princípio da
igualdade, acolhido no art. 13.º da Constituição da República, sendo, também por
esse motivo, passível de declaração de inconstitucionalidade.
O acórdão recorrido já discorreu com suficiente desenvolvimento sobre a dimensão
jurídico-constitucional do princípio da igualdade, não se justificando quaisquer
novas considerações sob esse prisma. O que importa por agora reter é que, como
vimos, a disposição em causa limita-se a estabelecer, em função de um certo
comportamento processual de parte, a inversão do ónus da prova relativamente a
factos constitutivos do direito que o autor se arroga.
As regras do ónus da prova, como muitos outros ónus jurídicos estabelecidos na
lei de processo, destinam-se a distribuir entre as partes um conjunto de
obrigações instrumentais em ordem à realização do direito no âmbito do processo.
Considerar como inconstitucional a norma do artigo 108.º, n.º 5 do Código de
Processo do Trabalho corresponderia a fazer incidir essa inconstitucionalidade
sobre a própria regra de direito civil que estabelece a inversão do ónus da
prova, visto que a disposição do Código de Processo do Trabalho não faz mais do
que dar guarida a um princípio jurídico fundamental em matéria de prova que tem
o seu assento no Código Civil.
Por outro lado, a consideração de que a regra que impõe ao réu, em determinado
condicionalismo, a prova contrária de certos factos, é inconstitucional por
violar o princípio da igualdade da partes, levar-nos-ia igualmente a admitir que
a atribuição do ónus da prova ao autor relativamente aos factos constitutivos do
seu direito é, também ela, inconstitucional, visto que, também nesse caso, a
norma impõe um gravame a uma das partes em beneficio da outra. Parece, portanto,
que não é o simples facto de a lei estabelecer uma repartição do ónus da prova
entre as partes que poderá viciar a norma de inconstitucionalidade.
O princípio da igualdade das partes, como paradigmaticamente resulta do disposto
no artigo 3° A do Código de Processo Civil, exige essencialmente que os sujeitos
processuais se encontrem numa situação de plena igualdade no processo, com os
mesmos poderes, direitos e deveres, e destina-se sobretudo a impedir que o juiz
crie, pela sua própria actividade ou omissão, situações de desigualdade
substancial entre os intervenientes no processo (TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos
sobre o novo processo civil, Lisboa, 1996, pág. 43). Por outro lado, a
consecução da igualdade substancial entre as partes não pode postergar os vários
regimes imperativos definidos na lei, que eventualmente originem desigualdades
ou se bastem com igualdades meramente formais (ibidem).
Ora, a constatação de que um desses regimes imperativos, como é o estabelecido
pelo artigo 108.º, n.º 5 do Código de Processo do Trabalho, corresponde, em si,
a uma violação do princípio da igualdade entre as partes, implica o
reconhecimento prévio de que essa norma não tem um fundamento material legítimo,
representando um agravamento arbitrário de posição processual do réu (GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª
edição revista, Coimbra, pags. 127-129) O que sucede, porém, é que a norma em
questão se limita a agravar a posição do réu, mediante a inversão do ónus da
prova, em resultado de uma evidente e reiterada violação do princípio da
cooperação processual, revelada através da falta injustificada e sucessiva às
diversas tentativas de conciliação que foram designadas, justamente, para obter
um acordo dos interessados sobre a existência do direito de reparação do
acidente e o esclarecimento dos elementos de facto pertinentes.
Não se vê, por isso, qualquer motivo para considerar a norma em causa como
portadora de uma discriminação ilegítima entre as partes.
Acresce que o réu, não só teve oportunidade de comparecer às tentativas de
conciliação e aí expor os seus pontos de vista, como também, na fase contenciosa
do processo, pôde deduzir a sua oposição quanto aos factos alegados na petição
(o que fez no tocante à matéria da alínea e) da decisão de facto, mediante o
articulado no n.º 4 da contestação) e a realizar a prova de que esses factos não
eram verdadeiros.
A regra da inversão do ónus, acolhida no citado artigo 108.º, n.º 5 do Código de
Processo do Trabalho, não determinou, portanto, na prática, uma efectiva
violação do princípio da igualdade das partes, tal como o concebe o artigo 3º A
do Código de Processo Civil, visto que o réu, ora recorrente, teve todas as
oportunidades para demonstrar que os factos declarados pelo autor na tentativa
de conciliação não eram verdadeiros. E não é a circunstância de o réu não ter
logrado fazer essa prova, apesar de ter estado ao seu alcance fazê-la, que
poderá inquinar a norma de inconstitucionalidade.
Resta dizer que o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do
artigo 89°, n.º 3, do Código de Processo de Trabalho de 1981, que, em situação
de algum modo similar, impunha a condenação, no pedido, do réu que, não tendo
feita a prova da inexistência da obrigação, falta à audiência, não justifica a
falta e não se faz representar por mandatário judicial (cfr. acórdãos n.ºs
264/94, de 23 de Março de 1994, Processo n.º 206/92 (1ª), 223/95, de 26 de Abril
de 1995, Processo n.º 712/93 (2ª), e 1193/96, de 20 de Novembro de 1996,
Processo n.º 496/97 (2ª)”.
6. É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade,
através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“[...], não se conformando com o douto acórdão proferido nos presentes autos que
aplicou a norma do art.º 108.º, n.º 5 do Código de Processo do Trabalho cuja
inconstitucionalidade foi suscitada nos presentes autos, pretende dela interpor
recurso para o Tribunal Constitucional, recurso esse restrito à questão da
inconstitucionalidade da aludida norma.
O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do art.º 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, considerando o recorrente que a aplicação da norma do
art.º 108.º, n.º 5 do Código de Processo do Trabalho viola o princípio
constitucional da igualdade, que consta do art.º 13º da Constituição da
República, bem como o princípio do direito dos cidadãos a um processo
equitativo, estabelecido no art.º 20.º, n.º 4 do mesmo diploma.
A questão da inconstitucionalidade da norma em causa foi suscitada nas alegações
do recurso interposto da decisão da primeira instância, proferida após a
anulação do primeiro julgamento efectuado, em cumprimento de douto acórdão
proferido pelo Tribunal da Relação de Évora.
O recurso processa-se nos termos do disposto nos art.ºs 75º e seguintes da Lei
do Tribunal Constitucional, sobre imediatamente, nos próprios autos e tem efeito
meramente devolutivo”.
7. Proferiu, então, o relator do processo o seguinte despacho:
“1. O recurso previsto na alínea b), do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional pressupõe, designadamente, que o recorrente tenha suscitado,
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a inconstitucionalidade da
norma - ou interpretação normativa - que pretende ver apreciada e que, não
obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado - a norma ou interpretação
normativa arguida de inconstitucional -, como ratio decidendi, no julgamento do
caso.
2. No requerimento de interposição do recurso, refere o recorrente pretender ver
apreciada a inconstitucionalidade do artigo 108º, n.º 5, do Código de Processo
do Trabalho, por alegada violação do “princípio constitucional da igualdade, que
consta do art.º 13º da Constituição da República, bem como do princípio do
direito dos cidadãos a um processo equitativo, estabelecido no art.º 20.º, n.º 4
do mesmo diploma”.
Compulsados os autos, verifica-se, porém, que, durante o processo,
designadamente na alegação de recurso que apresentou perante o Supremo Tribunal
de Justiça, o recorrente, ao menos quando imputa ao artigo 108º, n.º 5, do
Código de Processo de Trabalho, a violação do disposto no artigo 20º, n.º 4, da
Constituição, circunscreve essa acusação apenas a uma determinada interpretação
normativa daquele artigo 108º, n.º 5, que identifica. Nas suas próprias
palavras:
“[...] 2 - A norma em causa, ao estabelecer uma presunção de verdade das
declarações prestadas pelo trabalhador no caso de duas faltas injustificadas a
tentativas de conciliação apenas será justa, equitativa e conforme com o art.º
20º da Constituição se a entidade patronal tiver sido avisada na convocatória,
de forma clara, expressa e compreensível para quem não for profissional do foro,
das consequências da sua falta injustificada
3 - O art.º 108.º, n.º 5 do Código de Processo do Trabalho é pois,
inconstitucional por violação do art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República,
se interpretado de forma que o seu comando se mantenha efectivo sem que a
entidade patronal tiver sido avisada na convocatória, de forma clara, expressa e
compreensível para quem não for profissional do foro, das consequências da sua
falta injustificada. [...]”
Em suma: na perspectiva do recorrente o preceito em causa só é inconstitucional,
ao menos por violação do disposto no artigo 20º, n.º 4 da Constituição, se
interpretado em termos de manter o efeito cominatório que nele se prevê –
inversão do ónus da prova – nas hipóteses em que a entidade patronal não tenha
sido avisada na convocatória, de forma clara, expressa e compreensível para quem
não for profissional do foro, das consequências da sua falta injustificada.
3. Ora, a verdade é que, como se verá sumariamente já de seguida, não foi nesta
interpretação normativa que o preceito foi efectivamente aplicado pela decisão
recorrida. Com efeito, nesta não se considerou que o recorrente não fora clara,
expressa e de forma compreensível para quem não for profissional do foro,
avisado das consequências da sua falta injustificada. Pelo contrário, a decisão
recorrida parte do pressuposto, que este Tribunal não pode sindicar, de que a
entidade patronal foi efectivamente avisada, nos termos legais, das
consequências da sua falta, em termos que lhe permitia ficar ciente das mesmas.
Para o demonstrar basta recordar aqui a parte daquela decisão em que a mesma se
pronuncia sobre esta questão:
“[...] No caso em apreço, o recorrente começa por invocar que o artigo 108.º,
n.º 5 do Código de Processo do Trabalho viola o direito a um processo equitativo
e é, como tal, inconstitucional, quando interpretado no sentido de que o seu
comando se mantém efectivo sem que a entidade patronal tenha sido avisada na
convocatória, de forma clara, expressa e compreensível para quem não for
profissional do foro, das consequências da sua falta injustificada à tentativa
de conciliação.
O que resulta, porém, das cotas lavradas a fls. 58 e 66 pelo competente
funcionário judicial, é que a convocatória para as tentativas de conciliação
foram efectuadas com as advertências legais, o que significa que foram feitas
com a indicação das consequências processuais que a falta à diligência, sem
justificação, poderia acarretar . E não tendo sido suscitada a falsidade desses
termos do processo, nada permite concluir que o efeito jurídico imposto pela
norma tenha sido aplicado sem que o interessado estivesse ciente das
consequências que poderiam advir do seu comportamento processual. [...]”
Em face do exposto, evidente se torna que o artigo 108º, n.º 5, do Código de
Processo do Trabalho, não foi efectivamente aplicado pela decisão recorrida na
exacta interpretação normativa que foi desenhada pelo recorrente nos termos
antes descritos, pelo que não pode, nessa interpretação, conhecer-se do objecto
do recurso.
4. Na alegação que apresentou perante o Supremo Tribunal de Justiça o recorrente
coloca ainda a questão da alegada violação do artigo 13º da Constituição. Fá-lo,
na conclusão 4ª, nos seguintes termos: “Por outro lado, a referida norma, ao
estabelecer uma vantagem para uma das partes em relação à outra, viola o
princípio da igualdade, acolhido no art.º 13.º da Constituição da República,
sendo essa desigualdade relevante e com possível influência da definição dos
direitos das partes, sendo certo que os objectivos que pretende alcançar poderão
ser atingidos pela adopção de outras medidas aplicáveis de forma igual a ambas
as partes”. Ora, embora se possa suscitar a dúvida de saber se, quando alude à
“referida norma”, o recorrente se pretende reportar ao artigo 108º, n.º 5, na
interpretação anteriormente identificada – caso em que, pelas razões já
invocadas, estaríamos perante uma impossibilidade de conhecimento do recurso -,
admite-se, contudo, a benefício do recorrente, que, nesta parte, o mesmo
pretende imputar a violação do artigo 13º da Constituição não apenas àquela
interpretação normativa do artigo 108º, n.º 5, do Código de Processo do
Trabalho, mas ao preceito no seu todo – tanto mais que, quando se refere à
alegada violação do princípio da igualdade, o recorrente não faz, ao menos
expressamente, a limitação que faz quando se referiu à violação do disposto no
artigo 20º, n.º 4 da Constituição.
Só nesta hipótese é possível conhecer do recurso, que tem assim o seguinte
objecto: é a norma contida no artigo 108º, n.º 5, do Código de Processo do
Trabalho, inconstitucional, designadamente por violação do artigo 13º da
Constituição, na parte em que estatui que, em caso de dupla falta injustificada
da entidade patronal à tentativa de conciliação que nela se prevê, se presumem
verdadeiros, até prova em contrário, os factos declarados pelo acidentado?”
5. Com esta delimitação, notifique-se para alegações.”
9. Concluiu, então, o recorrente as suas alegações do seguinte modo:
“1 – O art.º 108.º, n.º 5 do Código de Processo do Trabalho faz presumir como
verdadeiras as declarações do A. feitas na fase conciliatória do processo
emergente de acidente de trabalho no caso de a entidade patronal faltar
injustificadamente a duas tentativas de conciliação para que tenha sido
notificada, não sendo o mesmo regime aplicável ao A.
2 – O preceito em causa estabelece, pois, uma vantagem para uma das partes em
relação à outra, vantagem essa que não tem qualquer justificação do ponto de
vista substantivo ou processual.
3 – A norma em causa viola, pois, o princípio da igualdade, acolhido no art.º
13.º da Constituição da República, pois estabelece uma vantagem processual para
uma das partes que não se verifica em relação á outra.
4 – Trata-se, pois, de uma norma inconstitucional, por contrariar a Constituição
da República e os seus princípios.
5 – Impõe-se, pois, que a mesma seja declarada inconstitucional e que, como tal,
a mesma não possa ser aplicada nos presentes autos.
6 - O que levará necessariamente à improcedência da acção, já que sem a
aplicação da mesma norma, não poderão ser considerados provados factos
constitutivos do direito que o autor pretende fazer valer.”
10. Por sua vez, o recorrido veio contra-alegar, concluindo deste modo:
“1. Não viola o direito de acesso à justiça o regime cominatório estabelecido
para o réu que – em processo de acidente de trabalho – falta reiterada e
injustificadamente à tentativa prévia de conciliação, traduzido no
estabelecimento de uma presunção de veracidade da versão fáctica do autor,
susceptível de ser afastada em audiência pelo réu – e tendo como fundamento,
desde logo, o direito constitucional do trabalhador/sinistrado à justa e célere
reparação dos danos emergentes de acidente laboral.
2. Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
II – Fundamentação.
11. Delimitação do objecto do recurso
Por decisão transitada em julgado, está o recurso limitado à apreciação da
inconstitucionalidade da norma contida no artigo 108º, n.º 5, do Código de
Processo do Trabalho, designadamente por violação do artigo 13º da Constituição,
na parte em que estatui que, em caso de dupla falta injustificada da entidade
patronal à tentativa de conciliação que nela se prevê, se presumem verdadeiros,
até prova em contrário, os factos declarados pelo acidentado.
12. Julgamento do objecto do recurso
12.1. O Código de Processo do Trabalho prevê, nos artigos 99º a 150º, um
processo especial destinado à efectivação de direitos resultantes de acidente de
trabalho. Esse processo encontra-se estruturado em duas fases claramente
distintas: uma primeira, a que o Código chama “fase conciliatória”, regulada nos
artigos 99º a 116º, e uma segunda, designada por “fase contenciosa”, regulada
nos artigos 117º a 150º. A “fase conciliatória” do processo é dirigida pelo
Ministério Público e visa, como a própria designação sugere, conseguir um
entendimento entre as partes que dispense a necessidade de resolução contenciosa
do litígio, de modo a assegurar uma mais célere efectivação do direito do
trabalhador acidentado. O momento central dessa “fase conciliatória” é
constituído pela chamada “tentativa de conciliação”, a que se refere
precisamente o preceito - artigo 108º - em que se insere a norma cuja
constitucionalidade vem questionada. Nos termos do seu n.º 1, são chamadas à
“tentativa de conciliação” todas as pessoas e entidades necessárias à
possibilidade de estabelecimento de um acordo (o sinistrado ou os seus
beneficiários legais, as entidades patronais ou seguradoras, conforme o caso).
Para o que agora importa, preceitua o n.º 4 que, não comparecendo a entidade
responsável, se tomam “as declarações do sinistrado ou beneficiário sobre as
circunstâncias em que ocorreu o acidente e mais elementos necessários à
determinação do seu direito, designando-se logo data para nova tentativa de
conciliação”. Finalmente, estatui o n.º 5, na parte ora relevante - preceito
cuja constitucionalidade vem questionada pelo recorrente nos presentes autos -,
que “faltando de novo a entidade patronal [...] é dispensada a tentativa de
conciliação, presumindo-se verdadeiros, até prova em contrário, os factos
declarados no número anterior se a ausência for devida a falta injustificada e a
entidade responsável residir [...] no continente [...]”.
Em suma: em caos de dupla falta, injustificada, da entidade responsável, que
haja sido regularmente chamada à tentativa de conciliação, presume-se, até prova
em contrário, que são verdadeiros os factos declarados pelo sinistrado na
primeira tentativa de conciliação, procedendo-se desta forma a uma inversão do
ónus da prova dos factos em que assenta o direito do autor. É este efeito
cominatório que o recorrente entende que é inconstitucional, por violação do
princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição. Quer porque
semelhante efeito não se aplica em caso de falta do sinistrado ou do seu
beneficiário legal, quer porque conduz a uma distribuição desigual do ónus da
prova.
Vejamos se tem razão.
12.2. O Tribunal Constitucional tem tido frequentemente ocasião de se pronunciar
sobre o sentido e o alcance do princípio constitucional da igualdade. Ainda
recentemente, no Acórdão n.º 232/03 (Diário da República, I Série A, de 17 de
Junho de 2003), tirado em Plenário, em autos de fiscalização preventiva, se
procedeu a uma síntese da abundante jurisprudência constitucional nesta matéria.
Dessa jurisprudência resulta que o princípio da igualdade obriga que se trate
como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for
essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas
apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, as distinções de
tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante.
Assim, como se escreveu no Acórdão n.º 187/01 (Diário da República, II série, de
26 de Junho de 2001), “como princípio de proibição do arbítrio no
estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão
de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou
mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa
justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser
considerado relevante”.
Para decidir da alegada violação do princípio da igualdade é, então, necessário
saber se a distinção, operada pela norma que agora vem questionada, entre as
consequências de uma dupla falta injustificada à tentativa de conciliação por
parte do sinistrado, por um lado, e por parte da entidade responsável, pelo
outro, e a forma como dessa norma resulta repartido o ónus da prova são
arbitrárias ou se, pelo contrário, têm fundamento material bastante.
Antes de responder a esta questão, importa, contudo, sublinhar que, como tem
sido reiteradamente afirmado, na sequência do Parecer da Comissão Constitucional
n.º 458, de 25 de Novembro de 1982, (Apêndice ao Diário da República, de 23 de
Agosto de 1983), “o Tribunal Constitucional ao aferir a compatibilidade de uma
norma legislativa com o princípio da igualdade, não deve pôr em causa a
liberdade de conformação do legislador ou a discricionaridade legislativa. Deve
abster-se de [se substituir] ao legislador, ponderando a situação como se
estivesse no lugar deste e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a
solução «razoável», «justa» e «oportuna». O seu controlo deve ser tão-só de
carácter negativo, consistindo este em saber se a opção do legislador se
apresenta intolerável ou inadmissível de uma perspectiva
jurídico-constitucional, por não se encontrar para ela qualquer fundamento
material”.
Com esta advertência, prossigamos.
12.3. Desde logo parece evidente que existem fundadas razões, ligadas à situação
de fragilidade em que fica o trabalhador acidentado, para dotar o processo
destinado à efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho de
regras específicas destinadas a imprimir ao mesmo um grau de celeridade
acrescida. Com esse objectivo - procura de celeridade na efectivação dos
direitos do trabalhador acidentado - está consagrada pelo legislador a “fase
conciliatória” do processo, a qual, a ter sucesso, garante a rápida efectivação
dos direitos do trabalhador, necessariamente prejudicada pela evolução do
processo para a fase contenciosa.
A prossecução de um tal objectivo - fundado, como se disse - depende,
obviamente, de um mínimo de colaboração de todas as partes envolvidas no
litígio, traduzido, pelo menos, na sua presença na “tentativa de conciliação”. E
é precisamente esse mínimo de colaboração, por parte da entidade responsável,
para a prossecução de um objectivo tido como valioso, que a referida cominação
visa conseguir. Na verdade, como é evidente, a falta sistemática e injustificada
da entidade responsável a essa tentativa de conciliação, para a qual foi
regularmente notificada, inviabiliza, necessariamente, a resolução do litígio
numa fase pré-contenciosa e, dessa forma, prejudica irremediavelmente aquele
legítimo objectivo, que a lei visa garantir, de celeridade na efectivação do
direito do acidentado. O efeito cominatório funda-se, assim, na necessidade de
procurar garantir, através da sua ameaça, um mínimo de colaboração por parte da
entidade responsável, traduzido na sua simples presença na tentativa de
conciliação, num objectivo, tido como válido, de procura de celeridade na
efectivação dos direitos do sinistrado. Acresce que o efeito cominatório
resulta, única e exclusivamente de um injustificado comportamento omissivo da
entidade responsável, à qual foram concedidas suficientes garantias processuais
para o poder evitar. Bastaria cumprir aquele mínimo de colaboração traduzido na
sua presença à tentativa de conciliação. Acresce ainda que, mesmo funcionando a
cominação, nem por isso fica a entidade responsável impossibilitada de fazer
valer os seus direitos, para tal lhe restando a possibilidade de apresentar,
posteriormente, prova em contrário.
Em face do exposto, é de concluir que a distribuição do ónus da prova que
resulta daquele efeito cominatório não é arbitrária ou sem fundamento material
bastante, não procedendo, por isso, a acusação de que é violadora do princípio
da igualdade.
12.4. E também não há violação do princípio da igualdade no facto de se
distinguir entre a situação da entidade responsável, por um lado, e do
sinistrado, por outro, e, consequentemente, em se penalizar mais fortemente a
situação em que é aquela entidade que falta, sem justificação, por duas vezes, à
tentativa de conciliação. É que, como já se demonstrou, a necessidade de uma
acrescida celeridade visa tutelar a situação de tendencial maior fragilidade do
sinistrado e não da entidade responsável, o que se afigura perfeitamente
consonante com as disposições constitucionais em matéria de assistência a
vítimas de acidente de trabalho. Sublinhe-se, aliás, que, à partida, cabe ao
acidentado o ónus de fazer prova dos factos geradores do seu direito contra a
entidade responsável, ónus que sempre se mantém, desde que esta última cumpra os
seus deveres mínimos de colaboração.
12.5. A tudo isto acresce, por último, que, como bem se pondera na decisão
recorrida - e já havia sido sublinhado pelo Tribunal da Relação de Évora - a
fundamentação utilizada pelo Tribunal Constitucional para concluir pela não
inconstitucionalidade do artigo 89º, n.º 3, do Código do Processo de Trabalho de
1981, - na parte em que estabelece que o réu contestante que, tendo sido
devidamente notificado para comparecer, falta à audiência de julgamento em
processo sumário laboral e não justifica logo a falta, nem se faz representar
por mandatário judicial, será condenado no pedido, salvo se tiver provado, por
documento suficiente, que a obrigação não existe (cfr., acórdãos n.ºs 264/94,
223/95 e 1193/96, disponíveis na página Internet do Tribunal em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) -, contribui igualmente para
o juízo de não inconstitucionalidade da norma agora questionada. É que, como
então se ponderou:
“[...] a existência de cominações no processo civil [...] não faz com que o
julgamento (a sentença de condenação que o juiz então profere) deixe de ser
independente e imparcial, nem conduz a que o conflito que opõe as partes fique
por solucionar, nem tão-pouco que a decisão proferida seja desconforme com a
lei”,
“o funcionamento da cominação que se contém na norma aqui em análise [...] é
susceptível de conduzir a que a sentença, no caso, não faça justiça, assente
como é numa verdade formal, que não na verdade material, como é sempre desejável
que aconteça” a verdade é que “é preciso recordar que tal só sucede, porque o
réu, apesar de devidamente notificado para comparecer pessoalmente na audiência
de discussão e julgamento, a ela não comparece, nem justifica a falta, nem se
faz representar por mandatário judicial. Ora, neste quadro de factos, não é
irrazoável que o legislador presuma que o réu confessa, com o seu desinteresse,
o pedido que o autor formula contra si”.
“a cominação não funciona (e, portanto, o réu não é, necessariamente, condenado
no pedido), se tiver juntado aos autos documento formalmente bastante para prova
da inexistência da obrigação. Depois, não é esta a única situação em que a
sentença assenta numa verdade formal: para além do caso de confissão ficta, por
falta de contestação, a que já se aludiu, há ainda as acções julgadas com base
em provas com força probatória legal (presunções legais, documentos, confissão,
designadamente por falta de impugnação especificada pelo réu dos factos
articulados pelo autor na petição). Além disso, a referida cominação não é
produto de uma decisão legislativa arbitrária ou caprichosa”.
Ora, também à luz destas considerações, que são transponíveis para os presentes
autos, se constata que a cominação estatuída no artigo 108º, n.º 5, do Código do
Processo do Trabalho não viola o princípio da igualdade.
13. Assim sendo, há que concluir que a norma questionada não viola os princípios
ou preceitos constitucionais, nomeadamente o seu artigo 13º.
III - Decisão
Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 24 de Maio de 2005
Gil Galvão
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício