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Processo n.º 546/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Relatório
a. requereu, no Supremo Tribunal de Justiça, nos termos
do artigo 222.º do Código de Processo Penal (CPP), a providência de habeas
corpus, aduzindo, em suma, que, tendo sido detido à ordem do processo n.º 52/01
do Tribunal Judicial da Comarca da Praia da Vitória em 15 de Maio de 2002 e
tendo-lhe sido aplicada, no termo do primeiro interrogatório judicial de arguido
detido, realizado no dia imediato, a medida de coacção de prisão preventiva,
esta ultrapassou o prazo máximo de 3 anos “sem que tenha havido condenação em
primeira instância”, estabelecido no n.º 3 do artigo 215.º do CPP, aplicável
atendendo ao crime em causa (crime de tráfico de estupefacientes) e a natureza
do processo. Mais referiu o recorrente que considera ser irrelevante já ter
sido condenado em 1.ª instância, nestes autos, primeiro por acórdão de 21 de
Março de 2003 do Tribunal Judicial da Comarca da Praia da Vitória, e depois por
acórdão de 15 de Abril de 2004 do mesmo Tribunal, uma vez que os recursos que
interpôs dessas condenações obtiveram provimento, pelos acórdãos do Tribunal da
Relação de Lisboa de, respectivamente, 27 de Novembro de 2003 e 3 de Março de
2005, que anularam os julgamentos e subsequentes decisões condenatórias e
determinaram a realização de novas audiências de julgamento. Desde logo o
requerente sustentou que interpretação diversa – isto é, interpretação que
atribuísse relevância às condenações em 1.ª instância entretanto anuladas –
seria inconstitucional, por violação dos artigos 27.º, 28.º, n.º 4, e 32.º da
Constituição da República Portuguesa (CRP).
Por acórdão de 1 de Junho de 2005, o Supremo Tribunal de
Justiça indeferiu o pedido de habeas corpus formulado pelo ora recorrente, com a
seguinte fundamentação:
“II. Constam dos autos os seguintes elementos que interessam para a
decisão da providência requerida:
– O requerente encontra-se em prisão preventiva desde o dia 16 de
Maio de 2002;
– Foi deduzida acusação contra o requerente e demais arguidos, em 24
de Dezembro de 2002, tendo sido imputado àquele o crime de tráfico de
estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela 1-A, anexa a esse diploma;
– Os arguidos foram julgados e condenados por acórdão datado de 21
de Março de 2003;
– Foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o
qual, por acórdão datado de 27 de Novembro de 2003, determinou a anulação do
julgamento efectuado pelo tribunal colectivo;
– Realizado novo julgamento, os [arguidos] foram condenados por
acórdão datado de 15 de Abril de 2004, pela prática de crimes de tráfico de
estupefacientes, sendo o requerente na pena de 6 anos de prisão;
– Os arguidos A. e B. interpuseram recurso do referido acórdão;
– Por acórdão de 3 de Março de 2005, o Tribunal da Relação de Lisboa
anulou o acórdão condenatório da 1.ª instância e determinou a repetição do
julgamento.
III. O requerente apoia sua petição de habeas corpus no excesso de
prazo legal de 3 anos de prisão preventiva, dado que decorreram mais de [3] anos
sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
Para o caso interessa considerar fundamentalmente o disposto no
artigo 215.º, n.ºs 1, alíneas c) e d), 2, e 3, do Código de Processo Penal e no
artigo 54.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Estabelece o artigo 215.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código de
Processo Penal que a prisão preventiva se extingue quando, desde o seu início,
tiverem decorrido 18 meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância
(alínea c)) e 2 anos sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado
(alínea d)).
Esses prazos são alargados para 3 e 4 anos, respectivamente, quando
o procedimento for por crimes puníveis com prisão de máximo superior a 8 anos e
se revelar de excepcional complexidade – n.º 3, referido ao n.º 2, do referido
artigo 215.º.
E, nos termos do artigo 54.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93, com a
interpretação dada pelo acórdão de fixação de jurisprudência de 11 de Fevereiro
de 2004, quando o procedimento se reporte a um dos crimes referidos no n.º 1
(tráfico de droga e outros), é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 215.º do
Código de Processo Penal, sem necessidade de verificação e declaração judicial
da excepcional complexidade do procedimento.
Haveria assim havido excesso do prazo legal de 3 anos de prisão
preventiva se tivessem decorrido mais de 3 anos sem que houvesse condenação em
1.ª instância.
O que não ocorreu no caso, dado que a prisão preventiva se iniciou
em 16 de Maio de 2002 e o requerente foi condenado em 1.ª instância em 21 de
Março de 2003.
É certo que esse julgamento veio a ser anulado em sede de recurso,
mas daí não resulta uma regressão do processo à fase anterior. Na verdade, se em
21 de Março de 2003 o prazo de prisão preventiva passou a ser de 4 anos, não faz
sentido que mais tarde, por decorrência da anulação do julgamento, se considere
que afinal o prazo era de 3 anos.
Um julgamento anulado não é o mesmo que um julgamento inexistente,
pelo que não se pode ignorar a realização daquele, ao menos para os efeitos do
disposto no artigo 215.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
Tem sido este o entendimento dominante neste Supremo Tribunal em
casos análogos – acórdãos de 16 de Abril de 2004, Proc. n.º 1610/04, de 29 de
Abril de 2004, Proc. n.º 1813/04, e de 9 de Dezembro de 2004, Proc. n.º
4535/04, entre outros.
Estando assim em curso o prazo de prisão preventiva de 4 anos, não
se extinguiu o prazo de prisão preventiva do requerente.
Dado que o fundamento legal da petição de habeas corpus é a situação
prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal –
manter-se a prisão para além dos prazos fixados na lei ou por decisão judicial –
forçoso é concluir que a prisão do requerente não é ilegal.
IV. Pelo exposto, indeferem o pedido de habeas corpus formulado pelo
requerente A..”
É deste acórdão que pelo requerente vem interposto o
presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º
1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver
apreciada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 27.º, n.º 1, 28.º,
n.º 4, 30.º e 32.º, n.º 2, in fine, da CRP, da norma do artigo 215.º, n.º 1,
alínea c), com referência ao n.º 3, do CPP, quando interpretada no sentido de
que o prazo máximo da prisão preventiva passa a ser de 4 anos quando em 1.ª
instância tenha havido condenação, apesar de a mesma ter sido anulada por
decisão do Tribunal da Relação.
No Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou
alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1 – O aqui recorrente foi detido à ordem do processo à margem
referenciado no dia 15 de Maio de 2002.
2 – Em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que teve
lugar no passado dia 16 de Maio de 2002, foi aplicada ao aqui recorrente a mais
grave medida de coacção em direito permitida: prisão preventiva.
3 – O aqui recorrente foi notificado da douta acusação do Ministério
Público e foi submetido a julgamento no Tribunal Judicial da Comarca da Praia da
Vitória.
4 – Por acórdão datado de 21 de Março de 2003 foi o aqui recorrente
condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e
punido nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93,
de 22 de Janeiro, na pena de sete anos de prisão.
5 – Inconformado, o agora recorrente interpôs recurso para o
Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
6 – Por acórdão datado de 27 de Novembro de 2003, a 9.ª Secção
Criminal do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa decidiu anular o julgamento
de que resultou o acórdão recorrido e ordenou a repetição do julgamento.
7 – Conforme acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa
procedeu-se a novo julgamento.
8 – Por acórdão datado de 15 de Abril de 2004 foi o aqui recorrente
condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e
punido nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93,
de 22 de Janeiro, na pena de seis anos de prisão.
9 – Inconformado com o aliás mui douto acórdão, a 26 do mesmo mês e
ano, interpôs recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
10 – Por acórdão datado de 3 de Março do corrente ano, a 9.ª Secção
Criminal do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa decidiu anular o
julgamento de que resultou o acórdão recorrido.
11 – Concedendo provimento ao recurso apresentado pelo recorrente,
A., foi declarada nula a audiência de discussão e julgamento e subsequente
sentença, ordenando-se, em consequência, a repetição da audiência de discussão e
julgamento, com o mesmo colectivo e com observância do princípio do
contraditório.
12 – Passados mais de três anos o aqui recorrente mantém-se preso
preventivamente.
13 – In casu o prazo máximo de duração da prisão preventiva é o
prazo estabelecido no n.º 3 do artigo 215.° do Código de Processo Penal. A
prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido três
anos sem que tenha havido condenação em primeira instância.
14 – Ora, conforme melhor resulta dos autos, não há condenação em
primeira instância.
15 – No caso sub judice não se verifica o circunstancialismo do n.º
4 do artigo 215.° do Código de Processo Penal, nem o circunstancialismo do
artigo 216.° do supra citado diploma legal.
16 – É inconstitucional a norma do artigo 215.°, n.º 1, alínea c),
com referência ao n.º 3 do referido artigo do Código de Processo Penal, quando
interpretada no sentido de que:
– O prazo máximo da prisão preventiva passa a ser de quatro anos,
quando em primeira instância haja condenação, apesar de a mesma ser anulada por
decisão do Tribunal da Relação;
– Apesar de um julgamento ser anulado em sede de recurso, daí não
resulta uma regressão do processo à fase anterior;
– Um julgamento anulado não é o mesmo que um julgamento
inexistente, não se podendo ignorar a sua realização, ao menos para os efeitos
do disposto no n.º 1, alínea c), do artigo 215.° do Código de Processo Penal;
– Apesar de as decisões finais serem anuladas, em recurso, pelo
Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, é de considerar que a respectiva
tramitação processual não recuou ao momento anterior ao julgamento, tudo se
passando como se houvesse condenação em primeira instância, pelo menos para
efeitos de determinação do prazo máximo de prisão preventiva.
17 – A norma constante do artigo 215.°, n.º 1, alínea c), com
referência ao n.º 3 do mesmo artigo, do Código de Processo Penal, assim
interpretada, é inconstitucional, por derrogação do artigo 27.°, n.º 1, 28.°,
n.º 4, 30.º e 32.°, n.º 2, in fine, todos da Constituição da República
Portuguesa.
18 – A referida norma aplicada com a interpretação que lhe foi dada
pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça esbarra claramente com o direito à
liberdade e com a natureza temporária, limitada e definida da prisão
preventiva.
19 – A interpretação e aplicação das normas que podem conduzir a um
aumento da privação de liberdade tem necessariamente que ser cautelosa e
revestir um elevado cuidado, pois em questão estão direitos e garantias
constitucionais.
20 – Interpretação diferente, salvo o respeito devido por melhor e
mais douta opinião, colidiria manifestamente com princípios constitucionalmente
consagrados.
21 – Interpretação e aplicação diversa colocaria em questão o
carácter excepcional da prisão preventiva, colidiria claramente com o artigo
28.° da Constituição da República Portuguesa.
22 – Em face dos elementos colocados à apreciação do Supremo
Tribunal de Justiça em sede de petição de Habeas Corpus, em face do disposto no
artigo 215.° do Código de Processo Penal, em face do disposto no artigo 222.°,
n.º 2, alínea c), do supra citado diploma legal, deveria o Supremo Tribunal de
Justiça deferir a pretensão do aqui recorrente, declarando procedente a petição
de habeas corpus, e consequentemente ter decretado a imediata libertação do
arguido, aqui recorrente.
23 – Se a decisão final é anulada, em recurso, pelo Tribunal da
Relação, deve entender-se que a tramitação processual recuou ao momento anterior
ao julgamento, tudo se passando como se não houvesse qualquer condenação.
24 – Tendo os aliás doutos acórdãos do Tribunal da Primeira
Instância sido anulados pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, não há
condenação em primeira instância, anulado o julgamento, «a tramitação
processual recuou ao momento anterior ao julgamento, não existindo assim
qualquer condenação» – Acórdão datado de 10 de Outubro de 2001, Processo n.º
3333/01-3.ª.
25 – Ninguém pode ser privado da liberdade, a não ser pelo tempo e
nas condições que a lei determinar.
26 – E, in casu, salvo o devido respeito por melhor e mais douta
opinião, o tempo é o previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 215.°, com
referência ao n.º 3 do mesmo artigo do Código de Processo Penal, ou seja, três
anos.
27 – A corrente que sustenta a sua posição na distinção entre acto
processual inexistente e acto processual nulo e fundamenta assim a manutenção
de uma prisão preventiva é, salvo o respeito por melhor e mais douta opinião,
inconstitucional.
28 – Nos termos do n.º 1 do artigo 122.° do Código de Processo
Penal, as nulidades tornam inválido o acto em que se verificam, bem como os que
deles dependerem e aqueles que puderem afectar.
29 – A nulidade afecta necessariamente, em nosso entender, o
andamento do processo.
30 – O acórdão anulado determina que a tramitação processual recuou
ao momento anterior ao julgamento, o que determina, necessariamente, em nosso
entender, a aplicação da alínea c) do supra citado artigo e diploma legal.
31 – Assim, porque inexiste condenação, foi já largamente
ultrapassado o prazo de prisão preventiva legalmente previsto, tendo o arguido,
aqui recorrente, direito a ser indemnizado.
32 – As normas sob recurso, com o sentido interpretativo que lhes
foi conferido, colidem directamente com direitos e princípios
constitucionalmente consagrados:
– Direito à liberdade;
– Natureza excepcional e carácter subsidiário da prisão preventiva;
– Princípio da proporcionalidade;
– Princípio da legalidade.
33 – As normas sob recurso, com o sentido interpretativo que lhes
foi conferido, violam o disposto nos artigos:
– 27.°, n.°s 1 e 3;
– 28.°;
– 30.º, n.º 1;
– 31.°,
todos da Constituição da República Portuguesa.
34 – As normas sob recurso, com o sentido interpretativo que lhes
foi conferido violam, ainda, o disposto nos artigos:
– 215.°, n.ºs 1 e 3;
– 217.°, n.º 1;
– 220.°;
– 122.º, n.ºs 1 e 2,
todos do Código de Processo Penal.
Termos em que,
Nos mais e melhores de Direito que V.as Ex.as mui doutamente
suprirão,
Deve o presente recurso ser declarado procedente e,
consequentemente,
Ser declarada a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo
215.º, n.º 1, alínea c), com referência ao n.º 3 do mesmo artigo, do Código de
Processo Penal, quando interpretada no sentido de que, apesar de as decisões
finais serem anuladas, em recurso, pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa,
é de considerar que a tramitação processual não recuou ao momento anterior ao
julgamento, tudo se passou como se houvesse condenação em primeira instância,
pelo menos, para efeitos de determinação do prazo máximo de prisão preventiva.”
O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional contra-alegou, concluindo:
“1.º – É inconstitucional, por violação do n.º 4 do artigo 28.º da
Constituição, a interpretação normativa do artigo 215.º, n.º 1, alínea c), do
Código de Processo Penal, que considera relevante, para efeitos de
estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a sentença
condenatória proferida em 1.ª instância e subsequentemente anulada na Relação;
2.º – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Cumpre, antes de mais, assinalar que não compete ao
Tribunal Constitucional apreciar a correcção, ao nível da aplicação do direito
ordinário, da interpretação normativa acolhida pelo acórdão recorrido, mas
tão-só controlar a conformidade constitucional dessa interpretação.
Apenas interessará registar que se trata de entendimento
que, embora não pacífico (no sentido de que a anulação, pela Relação, da
condenação em 1.ª instância implica que “a tramitação processual recuou ao
momento anterior ao julgamento, não existindo, assim, qualquer condenação”,
tornando ilegal a prisão preventiva de duração superior à prevista na alínea c)
do n.º 1 do artigo 215.º do CPP”, decidiu o acórdão de 10 de Outubro de 2001,
proc. n.º 3333/01, citado por Manuel Leal-Henriques, Medidas de Segurança e
“Habeas Corpus”, Lisboa, 2002, p. 132; no mesmo sentido, são também citados os
acórdãos de 29 de Maio de 2002, proc. n.º 1090/02, e de 29 de Outubro de 2002,
proc. n.º 3729/02), se pode considerar actualmente dominante na jurisprudência
conhecida do Supremo Tribunal de Justiça. Para além das decisões referidas no
acórdão recorrido (Acórdãos de 16 de Abril de 2004, proc. n.º 1610/04, de 29 de
Abril de 2004, proc. n.º 1813/04, e de 9 de Dezembro de 2004, proc. n.º 4535/04,
o segundo publicado em Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça, ano XIII, 2004, tomo II, p. 176), podem ainda citar-se os
acórdãos de 11 de Julho de 2002, proc. n.º 2778/02, e de 26 de Junho de 2003,
proc. n.º 2543/03 (publicados em Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça, ano X, 2002, tomo III, p. 178, e ano XI, 2003, tomo
II, p. 230, respectivamente), e de 30 de Agosto de 2002, proc. n.º 2943/02, de
20 de Novembro de 2003, proc. n.º 4029/03, e de 22 de Dezembro de 2003, proc.
n.º 4499/03 (estes três últimos com texto integral disponível em
www.dgsi.pt/jstj.nsf).
A fundamentação desta última corrente jurisprudencial,
em que insere o acórdão ora recorrido, foi desenvolvida no citado acórdão de 20
de Novembro de 2003 nos seguintes termos:
“(...) para além de o acto nulo não se confundir com o acto inexistente, pois na
nulidade o acto existe, apesar de não produzir ou poder não produzir os efeitos
para que foi criado, (...) a anulação não faz com que o prazo máximo de prisão
preventiva «encolha» para três anos, por regressão à fase anterior, como se não
tivesse havido condenação em primeira instância.
O requerente sempre já foi condenado e essa condenação foi mantida pela Relação
num primeiro recurso. Até aí – até haver essa condenação – o prazo de três anos
foi respeitado e passou-se para a fase seguinte – a do trânsito em julgado,
passando a vigorar o prazo de 4 anos. É nessa fase que o processo se encontra,
apesar da referida anulação. O que tem é que respeitar-se o prazo máximo de 4
anos até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, contados aqueles 4
anos, obviamente, desde o início da prisão preventiva do requerente.
Mas não pode proceder-se como se não tivesse havido nunca nenhuma condenação. A
interpretação teleológica do artigo 215.º do CPP, nos seus vários números, não
conduz a esse resultado. O que se pretende, obviamente, evitar é que o arguido
esteja preso preventivamente por mais de três anos, sem nunca ter sido condenado
por um tribunal de 1.ª instância. Isso é que é intolerável do ponto de vista
legal. Mas não assim quando já houve condenação, não obstante o julgamento ter
sido anulado.
Assim sendo, o prazo máximo de prisão preventiva, neste caso, continua a ser de
4 (quatro) anos e não de 3 (três) anos, como sustenta o requerente,
encontrando-se justificação e apoio para tal no mesmo n.º 3 do artigo 215.º
citado na petição, mas com referência à alínea d) do n.º 1 e não à alínea c).”
Orientação jurisprudencial que foi reiterada no também
citado acórdão de 22 de Dezembro de 2003, onde se refere:
“Todavia, uma outra corrente, em que se filia, por exemplo, o Acórdão de 30 de
Agosto de 2002, proc. n.º 2493/02-5.ª, sustenta, a partir da distinção entre os
conceitos de acto processual nulo e de acto processual inexistente [enquanto a
inexistência corresponde àqueles casos mais graves «em que, verdadeiramente, se
pode dizer que para o direito não há nada», na nulidade o acto existe. Apenas
não produz ou pode não produzir os efeitos para que foi criado, ante uma falta
ou irregularidade no tocante aos seus elementos internos], que a sentença
anulada nunca se pode ter como apagada do processo. (...)
Pela nossa parte, sufragamos este último entendimento.
Embora uma parte da doutrina entenda que não há diferença entre acto nulo e acto
inexistente, a verdade é que, como ensinou Manuel de Andrade, há diferença entre
os dois conceitos, na justa medida em que, enquanto o acto inexistente não é
susceptível de produzir quaisquer efeitos jurídicos, o acto nulo, embora não
produza os efeitos que lhe são próprios, pode produzir efeitos laterais (Teoria
Geral ..., vol. II, p. 415). Ora, em processo penal, como no processo em geral,
a nulidade não acarreta, por via de regra, a inexistência. Como diz Germano
Marques da Silva, no Curso ..., vol. II, 1993, p. 57, «no direito processual não
tem aplicação o princípio quod nullum est nullum producit effectum, salvo o caso
de actos inexistentes». E assim é que o n.º 1 do artigo 122.º do CPP consigna
que as nulidades tornam inválido o acto em que se verificam, bem como os que
dele dependerem e aqueles que puderem afectar, o n.º 2 manda que sejam
determinados quais os actos que passam a ser considerados inválidos em
consequência da declaração de nulidade e o n.º 3 que sejam aproveitados todos
os actos que ainda puderem ser salvos do efeito da nulidade.
Tendo, por isso, sido proferida condenação pelo Tribunal de Loures,
muito embora ela possa não produzir os efeitos que lhe são próprios por via da
anulação do julgamento que a precedeu, decretada pela Relação de Lisboa, nem por
isso se poderá dizer que inexistiu essa condenação. Tanto existiu que terá sido
invalidada. Ora, a alínea c) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP não se refere a
sentença definitiva (a esse momento processual refere-se a alínea seguinte) nem
se preocupa com as vicissitudes por que eventualmente passe, depois de
proferida pelo tribunal competente. Tem em vista apenas um determinado patamar
do iter processual e esse foi, sem dúvida, alcançado.”
Repete-se que não compete ao Tribunal Constitucional
apreciar a correcção desta interpretação (que se assume como meramente
declarativa) do direito ordinário, mas unicamente da sua conformidade
constitucional.
2.2. Das normas constitucionais invocadas pelo
recorrente no requerimento de interposição de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional e nas alegações aqui apresentadas – artigos 27.º, n.ºs 1
e 3 (direito à liberdade e admissibilidade da sua privação por prisão
preventiva), 28.º, n.º 4 (sujeição da prisão preventiva a prazos legalmente
estabelecidos), 30.º, n.º 1 (proibição de penas com carácter perpétuo ou de
duração ilimitada ou indefinida), 31.º (providência de habeas corpus contra
prisão ilegal) e 32.º, n.º 2, in fine (direito do arguido a ser julgado no mais
curto prazo compatível com as garantias de defesa), da CRP –, a que
especificamente releva como parâmetro de avaliação da conformidade
constitucional da interpretação normativa questionada é a do artigo 28.º, n.º 4,
segundo a qual (na redacção introduzida pela revisão constitucional de 1997): “A
prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei”.
Nas versões anteriores, esse preceito dispunha: “A
prisão preventiva, antes e depois da formação da culpa, está sujeita aos prazos
estabelecidos na lei”. A eliminação, em 1997, da expressão “antes e depois da
formação da culpa” foi explicada pelo propósito de eliminar “conceitos
ultrapassados”, como seria o de “prisão sem culpa formada” (José Magalhães,
Dicionário da Revisão Constitucional, Lisboa, 1999, p. 163) ou como inserida
“na lógica das correcções técnicas” do texto anterior (Luís Marques Guedes, Uma
Constituição Moderna para Portugal, Lisboa, 1997, p. 86). No entanto, a
utilização da aludida expressão na versão originária da Constituição teve o
objectivo de impor a cessação da situação então vigente, em que a legislação
processual penal apenas previa prazos máximos de duração para a prisão sem culpa
formada (artigo 308.º do CPP de 1929), não havendo qualquer limite legalmente
fixado para a prisão preventiva com culpa formada, que duraria (sem prejuízo da
eventualidade da sua revogação por reapreciação judicial dos seus requisitos)
até à decisão final (com a soltura do arguido, se absolutória, ou com passagem a
cumprimento de pena, se condenatória), independentemente da extensão da demora
na prolação dessa decisão. Foi com o Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 de Setembro,
que, através de alteração de redacção do artigo 273.º do CPP, pela primeira vez
se estabeleceram limites máximos de duração da prisão preventiva após a
formação da culpa: em regra, dois anos (aumentado para três anos pelo
Decreto-Lei n.º 402/82, de 23 de Setembro), ou quando a prisão preventiva
igualasse metade da duração máxima da pena correspondente ao crime mais grave
imputado ao arguido, ou, no caso de recurso da duração condenatória, quando
atingisse a duração da pena de prisão fixada na decisão recorrida, sendo
aplicável aquele destes três limites que, no caso concreto, se mostrasse
inferior.
A Constituição impõe, pois, que a duração da prisão
preventiva esteja preestabelecida na lei, sendo inadmissíveis situações de
indeterminação da duração máxima dessa privação de liberdade. Não fixando a
Constituição directamente esses limites, a delegação dessa tarefa no legislador
ordinário não pode ser vista, porém, como uma remissão em branco. Na verdade,
essa norma há-de naturalmente ser lida à luz do precedente n.º 2, que proclama a
natureza excepcional da prisão preventiva, aliás em consonância quer com o seu
carácter de restrição do direito fundamental à liberdade, quer com o princípio
da presunção de inocência do arguido. Daqui decorre que o legislador ordinário,
no cumprimento dessa incumbência, está sujeito a um princípio de razoabilidade,
ínsito no princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), e
próximo do requisito do “prazo razoável” a que alude o n.º 3 do artigo 5.º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 190), em anotação à
redacção originária do preceito, referiam:
“A prisão preventiva não pode deixar de ser temporalmente limitada
(n.º 4) e, de acordo com a sua natureza, estritamente limitada. Antes da
formação da culpa, porque não pode deixar de ser pequeno o tempo em que é
tolerável que se mantenha privado da liberdade quem, sendo embora arguido de um
crime, não está ainda pronunciado ou acusado; depois da formação da culpa,
porque mesmo depois disso se mantém a presunção de inocência, devendo o
julgamento ocorrer dentro do prazo mais curto possível (artigo 32.º, n.º 2), com
libertação do acusado ou início de cumprimento da pena de prisão que haja de
cumprir.
É constitucionalmente duvidoso o alargamento dos prazos com base na
complexidade do processo e características dos crimes («processos
monstruosos»), mas, de qualquer modo, impõe-se aqui a observância estreita do
princípio da proibição do excesso.”
Mais recentemente e reflectindo já a jurisprudência do
Tribunal Constitucional sobre a matéria, Jorge Miranda e Rui Medeiros
(Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 321) assinalam:
“VII – A prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na
lei.
Esta regra exprime, antes de mais, a exigência, derivada da natureza
excepcional da prisão preventiva, de que ela seja temporalmente delimitada (v.
Acórdão n.º 246/99, embora os prazos se contem para cada processo: Acórdãos n.ºs
298/99 e 584/01), o que tem como consequência que não pode haver hiatos
temporais subtraídos à contagem desses prazos, sob pena de estes serem
subvertidos (Acórdão n.º 137/92).
Por outro lado, os prazos de prisão preventiva estão sujeitos ao
princípio geral de proporcionalidade (Acórdãos n.ºs 137/92 e 246/99), muito
embora, tal como sucede em casos semelhantes, não seja fácil precisar as
exigências concretas que daí derivam para a exacta situação da fronteira entre o
constitucionalmente lícito e o constitucionalmente vedado (v., ilustrativo, o
Acórdão n.º 246/99).”
2.3. O Tribunal Constitucional nunca foi directamente
confrontado com a questão de constitucionalidade que constitui objecto do
presente recurso. No entanto, já teve oportunidade de emitir pronúncia sobre
questões relativas à prisão preventiva, de que é possível extrair contributos
úteis parta a decisão do presente caso.
Assim, logo no Acórdão n.º 246/99 (que não julgou
inconstitucional a norma que resulta da conjugação do n.º 3 do artigo 54.º do
Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e do n.º 3 do artigo 215.º do CPP,
segundo a qual, quando o procedimento respeita aos crimes de tráfego de droga,
desvio de precursores, branqueamento de capitais ou de associação criminosa, os
prazos máximos da prisão preventiva são, ope legis, os referidos no n.º 3 do
artigo 215.º do CPP, sem necessidade da qualificação do processo, por despacho
judicial, como de excepcional complexidade, estando em causa nesses autos o
prazo de prisão preventiva até dedução da acusação), o Tribunal Constitucional
salientou a natureza excepcional da prisão preventiva, expressamente consagrado
no n.º 2 do artigo 28.º da CRP desde a revisão de 1997, a que está ligado o seu
carácter subsidiário (mesmo n.º 2) e temporalmente limitado (n.º 4), tendo
entendido que este último carácter (único em causa no recurso) não era violado
pelas normas impugnadas, “porque o alargamento dos prazos não equivale, como é
óbvio, ao seu afastamento, à admissão de prisão preventiva independentemente de
limites temporais ou à fixação de limites tão dilatados que, na prática, o
frustrassem”. Também na perspectiva do respeito pelo princípio da
proporcionalidade, a que deve obedecer o regime legal da prisão preventiva por
constituir uma restrição constitucionalmente admitida do direito à liberdade, o
Tribunal Constitucional emitiu juízo de não inconstitucionalidade, porquanto,
“tendo em conta a natureza dos crimes imputados, os bens jurídicos postos em
perigo e o risco de continuação da actividade criminosa, entre outras
considerações, afigura-se constitucionalmente legítima, porque respeitadora do
princípio da proporcionalidade, a elevação de prazo indicada” (de 8 para 12
meses).
No Acórdão n.º 137/92 teve oportunidade o Tribunal
Constitucional de afirmar ser incompatível com a imposição constitucional da
fixação legal dos prazos da prisão preventiva a interpretação da norma do artigo
273.º, § 2.º, do Código de Processo Penal de 1929, na redacção do Decreto-Lei
n.º 402/82, de 23 de Setembro, que fora feita no acórdão então recorrido, do
Supremo Tribunal de Justiça, de que o prazo de 3 anos “após a formação da culpa”
coincide com o trânsito em julgado do despacho de pronúncia, enquanto o prazo
relativo à fase precedente, fixado no § 2.º do artigo 308.º, que se iniciava com
a notificação ao arguido da acusação ou do pedido de instrução contraditória
pelo Ministério Público, terminava com a prolação do despacho de pronúncia,
pois essa interpretação implicava o surgimento de um “hiato” na contagem dos
prazos de prisão preventiva – abarcando o período entre a prolação do despacho
de pronúncia e o seu trânsito em julgado, de duração imprevisível, dependente
das vicissitudes dos recursos interpostos desse despacho –, que subverteria a
limitação legal do tempo de prisão preventiva imposta pelo artigo 28.º, n.º 4,
da CRP.
Mas – como se decidiu no Acórdão n.º 584/2001 – já não
existe obstáculo constitucional a que um arguido, cuja libertação foi
determinada na sequência da concessão da providência de habeas corpus por
excesso de prisão preventiva verificada num processo, possa continuar detido à
ordem de outro processo penal. É que a Constituição não exige um prazo máximo de
prisão preventiva quando estejam em causa vários processos sem conexão entre si,
mas sim que “a medida de coacção prisão preventiva, quando aplicada em
determinado processo, esteja subordinada aos prazos previstos na lei
ordinária”, acrescentando-se: “E os prazos estabelecidos na lei ordinária,
nomeadamente no artigo 215.º, são-no, não só para as diversas fases processuais
nele consideradas (pelo que, por exemplo, libertado um arguido em virtude de,
numa dessas fases, ter atingido o correspondente limite da prisão, pode o mesmo
voltar a ser preso se se passar a outra fase e se mantiverem as razões para
determinar a sua prisão, desde que se não tenha ainda adquirido o máximo global
referido), como, sobretudo, estão fixados para terem a sua valência
relativamente a cada processo em concreto”.
Finalmente, no Acórdão n.º 13/2004, o Tribunal
Constitucional julgou inconstitucionais, por violação do n.º 4 do artigo 28.º
da CRP, as normas constantes dos artigos 215.º, n.ºs 1 a 3, e 217.º, ambos do
CPP, “numa dimensão interpretativa de acordo com a qual a prolação de despacho
judicial a declarar de especial complexidade o procedimento por um dos crimes
referidos no n.º 2 daquele artigo 215.º, prolação essa efectuada após ter
decorrido o prazo máximo de duração da prisão preventiva prevista nos n.ºs 1 e 2
do mesmo artigo, não explica a extinção daquela medida de coacção”. No caso, em
que já fora excedido o prazo máximo de 30 meses de prisão preventiva sem que
tivesse havido trânsito em julgado da condenação por crime referido no n.º 2 do
artigo 215.º, a atribuição de “efeito retroactivo” à prolação posterior de
despacho a declarar a excepcional complexidade do processo, o que acarretaria
a ampliação daquele prazo máximo para 4 anos e a “convalidação” do excesso
cometido, significava – no juízo do Tribunal – retirar eficácia prática ao
comando constitucional.
2.4. Recordada a jurisprudência relevante do Tribunal
Constitucional sobre a matéria, importa salientar que o legislador processual
penal de 1987 adoptou modelo diverso do até então vigente quanto à fixação dos
limites máximos de prisão preventiva.
Na vigência do Código de Processo Penal de 1929 e suas
diversas modificações, adoptou-se o sistema de fixação de prazos máximos de
prisão preventiva directamente correspondentes a cada fase processual. Esses
prazos eram, na redacção do artigo 308.º dada pelo Decreto-Lei n.º 377/77, de 6
de Setembro, e do artigo 273.º, na redacção do Decreto-Lei n.º 402/82, de 23 de
Setembro: 1.º – desde a captura até à notificação ao arguido da acusação ou do
pedido de instrução contraditória pelo Ministério Público: 40 dias por crimes a
que caiba pena de prisão maior; 90 dias por crimes cuja investigação caiba
exclusivamente à Polícia Judiciária ou que legalmente lhe seja deferida; 2.º –
desde a notificação ao arguido da acusação ou do pedido de instrução
contraditória pelo Ministério Público até ao despacho de pronúncia em 1.ª
instância: 4 meses, se ao crime couber pena a que corresponda processo de
querela; 3.º – após a formação da culpa: 3 anos (ou, se terminarem antes,
quando se igualar metade da duração máxima da pena correspondente ao crime mais
grave imputado ao arguido, ou, no caso de recurso da decisão condenatória,
quando se atingir a duração da pena de prisão fixada na decisão recorrida).
Neste regime, não havia “transferências” de tempos de prisão preventiva: se esta
fosse determinada apenas após a notificação da acusação, aplicava-se o prazo
indicado em 2.º lugar, sendo indiferente que na fase precedente o arguido
tivesse estado em liberdade.
O regime instituído pelo Código de Processo Penal de
1987 é diverso, pois não há contagens separadas de prazos para cada fase. O
prazo conta-se sempre do início da prisão preventiva, mas não pode exceder
certos limites (acumulados) reportados a quatro marcos processuais: 1.º -
dedução da acusação; 2.º – prolação de decisão instrutória quando tenha havido
instrução; 3.º – condenação em 1.ª instância; 4.º – trânsito em julgado da
condenação. A estes quatro marcos aplicam-se três regimes: o normal (6, 10 e 18
meses e 2 anos), o especial atendendo à gravidade dos crimes (8 meses, 1 ano,
2 anos e 30 meses) e o excepcional quando a essa gravidade dos crimes acresce a
excepcional complexidade do procedimento (12 e 16 meses e 3 e 4 anos) – n.ºs 1,
2 e 3 do artigo 215.º do CPP. Como refere Germano Marques da Silva (Curso de
Processo Penal, vol. II, 2.ª edição, Lisboa, 1999, p. 289):
“Não há um prazo de prisão preventiva para cada fase processual, há é um limite
máximo de duração da prisão preventiva até que se atinja determinado momento
processual. Por isso, se o início da prisão preventiva só se verificar já na
fase de instrução ou na de julgamento, os limites máximos até à decisão
instrutória, condenação em 1.ª instância ou decisão transitada continuam a ser
os mesmos. Por idêntica razão, se numa determinada fase se tiver esgotado o
limite do prazo de duração da prisão, o arguido pode voltar a ser preso se se
passar a outra fase e se se mantiverem as razões para determinar a sua prisão,
desde que se não tenha ainda atingido o máximo da correspondente fase.”
Na base desta alteração de sistema terá estado o
propósito de promover o andamento sem delongas do processo, incentivando os
respectivos responsáveis a respeitar os prazos de conclusão de cada fase, sob
risco de insubsistência de uma prisão preventiva tida por essencial para a
prossecução dos objectivos da justiça criminal. Não se ignora a existência de
críticas ao sistema, quer com base em juízos de excesso de alguns dos prazos,
quer pela deficiente correspondência entre os prazos máximos de prisão
preventiva e os prazos normais de conclusão da cada fase processual (cf.
Fernando Gonçalves e Manuel João Alves, A Prisão Preventiva e as Restantes
Medidas de Coacção – A Providência do Habeas Corpus em Virtude de Prisão Ilegal,
Coimbra, 2003, pp. 146-147; Frederico Isasca, “A prisão preventiva e as
restantes medidas de coacção”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano
13, n.º 3, Julho-Setembro 2003, pp. 365-385, e em Maria Fernanda Palma (coord.),
Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coimbra, 2004, pp.
99-118; e Eduardo Maia Costa, “Prisão preventiva: medida cautelar ou pena
antecipada?”, Revista do Ministério Público, ano 24.º, n.º 96, Outubro-Dezembro
2003, pp. 91-106). Como também não se ignora a apresentação na Assembleia da
República, durante a anterior Legislatura, dos Projectos de Lei n.º 424/IX, do
Bloco de Esquerda, e n.º 519/IX, do Partido Socialista, e da Proposta de Lei
n.º 150/IX (Diário da Assembleia da República, II Série-A, IX Legislatura, 2.ª
Sessão Legislativa, n.º 50, de 3 de Abril de 2004, pp. 2214-2219, e 3.ª Sessão
Legislativa, n.º 20, de 3 de Dezembro de 2004, pp. 6-267, e n.º 17, de 20 de
Novembro de 2004, pp. 20-40, respectivamente), com os declarados objectivos de
aperfeiçoar a correspondência entre os limites máximos de prisão preventiva e a
duração normal das fases processuais respectivas e de reduzir a extensão de
alguns prazos, sobretudo os mais elevados.
No entanto, apesar dos ajustamentos pontuais que se
venham a mostrar convenientes, em sede de política legislativa, permanece a
ideia central do novo sistema de fazer coincidir, ao menos tendencialmente, a
duração máxima (acumulada) de prisão preventiva com o atingir do termo das
sucessivas fases processuais. Os 6, 8 e 12 meses de limite máximo de prisão
preventiva até dedução de acusação correspondem aos 6, 8 e 12 meses de duração
do inquérito em correspondentes situações (artigo 276.º, n.º 1, primeira parte,
e n.º 2, alíneas a) e c)). O acréscimo de 4 meses do limite máximo de prisão
preventiva, em todas as situações, até prolação da decisão instrutória, toma em
atenção os prazos máximos de 2 e 3 meses para conclusão da instrução, que só se
inicia com o requerimento para abertura de instrução, a apresentar no prazo de
20 dias a contar da notificação da acusação e a que acresce o prazo de 10 dias
para prolação do despacho de pronúncia (artigos 306.º, n.ºs 1, 2 e 3, 287.º, n.º
1, e 307.º, n.º 3, todos do CPP). É dentro desta lógica que se fixou o
prolongamento da duração máxima da prisão preventiva por mais 8, 12 e 20 meses,
tempo estimado como eventualmente necessário para conclusão do julgamento em 1.ª
instância, e por mais 6, 6 e 12 meses, tempo estimado para conclusão das fases
de recursos até se atingir o trânsito em julgado.
No presente recurso, porém, não está em causa a
apreciação da conformidade constitucional do regime global da prisão preventiva
e da sua duração, mas apenas a da específica interpretação normativa acolhida
no acórdão recorrido.
Ora, neste aspecto, não se vislumbra fundamento para
emissão de juízo de inconstitucionalidade. Trata-se de um prazo fixado na lei,
de acordo com uma interpretação desta, que, independentemente do juízo sobre a
sua correcção, tem na letra da lei suporte suficiente, e não se mostra
incongruente com a aventada justificação do sistema instituído de duração da
prisão preventiva, nem desrazoável, tendo em atenção os factores relevantes de
estar em causa crime de especial gravidade e procedimento de excepcional
complexidade.
Aliás, o recorrente não suscita, em rigor, a questão da
inconstitucionalidade nem do limite de 3 anos de duração máxima de prisão
preventiva até à condenação em primeira instância, nem do limite de 4 anos até
ao trânsito em julgado da condenação, tratando-se de situação prevista no n.º
3 do artigo 215.º do CPP, mas apenas o entendimento de que a anulação daquela
condenação não tem como efeito o regresso ao primeiro limite. Mas esse
entendimento, além de se mostrar juridicamente fundado na distinção entre os
efeitos da nulidade e da inexistência (cf., sobre o tema, João Conde Correia,
Contribuição para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais,
Coimbra, 1999), mostra-se adequado aos objectivos do legislador, pois respeita
a intenção de o processo chegar à fase da condenação em 1.ª instância sem
ultrapassar três anos de prisão preventiva, e não se mostra directamente
violador de qualquer norma ou princípio constitucionais.
A regra de que a nulidade torna inválido o acto em que
se verificar, bem como os que dele dependerem e aquela puder afectar (artigo
122.º, n.º 1, do CPP), se torna insubsistentes os efeitos típicos do acto nulo
e os dele indissociáveis (no caso, a aplicação de uma pena e eventualmente a
fixação de uma indemnização), não determina o total apagamento de uma actividade
processual efectivamente desenvolvida nem dos efeitos ligados a essa realidade.
Nesta perspectiva, assume relevo próprio a efectiva realização de um julgamento,
por um tribunal, em audiência pública, com produção de prova, sujeita ao
princípio do contraditório, que culmina com uma sentença condenatória. A “mera”
realização desta actividade, independentemente das vicissitudes que as fases
posteriores do processo venham a registar, representa uma significativa e
relevante realidade jurídica, constituindo mesmo, em certa perspectiva, o
momento culminante do processo, e traduz também a satisfação de direitos do
arguido, desde logo o direito a “ser julgado no mais curto prazo compatível com
as garantias de defesa”, constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 2,
da CRP. Esta realidade, que representa o atingir de uma fase específica do
processo penal, não “desaparece” totalmente pela eventualidade de o julgamento
vir a ser anulado. Esta anulação, que aliás pode ser total ou meramente parcial,
com reenvio do processo apenas para novo julgamento das questões concretamente
identificadas na decisão de recurso, tal como a confirmação, alteração ou
revogação da decisão recorrida, inserem-se já noutra fase processual, a fase
dos recursos, cujo prazo máximo de prisão preventiva é o fixado na alínea d), e
não na alínea c), do n.º 1 do artigo 215.º do CPP. A solução que admitisse o
“retrocesso” à duração máxima prevista na alínea c) encontraria dificuldades no
caso de anulação parcial, em que podem coincidir, no mesmo processo e
relativamente ao mesmo arguido, decisões já confirmadas pelo tribunal de recurso
e decisões reenviadas para novo julgamento.
Embora a intervenção do Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem se insira numa perspectiva diferente da do Tribunal Constitucional
(esta incidindo sobre a constitucionalidade de normas e aquela sobre o respeito
pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem por parte de práticas judiciárias
concretas, em que as particularidades de cada caso são especialmente
relevantes), não deixam de ser relevantes as considerações tecidas na
jurisprudência daquele Tribunal a propósito do requisito do prazo razoável
mencionado no n.º 3 do artigo 5.º da referida Convenção (cf. o número especial
sobre esse tema da Revue Trimestrielle des Drois de l’Homme, ano 2.º, n.º 5,
Janeiro 1991; e Irineu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, 2.ª edição, Coimbra, 1999, pp. 106-109), e também a essa luz não se
afigura que a interpretação normativa em causa viole o princípio da
razoabilidade, ínsito no princípio da proporcionalidade.
Segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem, o período de tempo a considerar como prisão preventiva
“termina com a decisão, em primeira instância, sobre o mérito da acusação”
(Irineu Cabral Barreto, obra citada, p. 107, com citação de diversa
jurisprudência nesse sentido), o que está associado ao entendimento de que o que
o n.º 3 do artigo 5.º da Convenção garante é que qualquer pessoa presa ou detida
tem direito a ser julgada num prazo razoável. Este julgamento é o julgamento em
1.ª instância; efectuado este, entra-se já na fase dos recursos e aí a regra que
valerá é a do artigo 6.º, n.º 1, sendo sabido que prazo razoável para efeitos
do artigo 5.º, n.º 3, é diferente de prazo razoável para efeitos do artigo 6.º,
n.º 1 (cf. autor e local citados).
Salvo o devido respeito pela opinião adversa, o decidido
pelo Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.ºs 13/2004 e 483/2002, citados nas
alegações do Ministério Público, versa sobre situações diversas: no primeiro, já
atrás referido, estava em causa a aplicação “retroactiva” da decisão de
especial complexidade proferida já depois de esgotado o prazo máximo de prisão
preventiva consentido pelo n.º 2 do artigo 215.º do CPP; no segundo,
entendeu-se que, para efeitos de interrupção da prescrição de procedimento
criminal, “não bastará (...) atender-se à ocorrência de uma mera formalidade
tabeliónica e instrumental desprendida da substancial validade do acto por
intermédio do qual o Estado manifesta a sua vontade de punir”. No presente
caso, está o entendimento de que, atingida, sem excesso de prisão preventiva, a
fase processual de condenação em 1.ª instância, as vicissitudes que em sede de
recurso dessa condenação venham a surgir, já se inserem na fase seguinte, a que
se aplica a alínea d) do n.º 1 do citado artigo 215.º. Quanto à razoabilidade
do prazo considerado aplicável pela decisão recorrida, basta ponderar que se,
por hipótese, o mesmo estivesse explicitamente consagrado na lei (isto é, se o
CPP dissesse explicitamente que o prazo máximo de prisão preventiva para este
tipo de processos e crimes era de 3 anos até à conclusão do julgamento em 1.ª
instância, independentemente de eventuais anulações), ele não se apresentaria
como inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do
artigo 215.º, n.º 1, alínea c), com referência ao n.º 3, do Código de Processo
Penal, na interpretação que considera relevante, para efeitos de
estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a sentença
condenatória proferida em 1.ª instância, mesmo que, em fase de recurso, venha a
ser anulada por decisão do Tribunal da Relação; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Julho de 2005.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto (Vencido nos termos da declaração de voto em anexo)
Maria Fernanda Palma (Vencida nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencido por se me afigurar que a interpretação normativa em análise viola
as disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2, 27.º, n.º 3, e 28.º, n.º 4,
da Constituição. Numa matéria com efeitos tão gravosos como a que está em causa,
entendo que deve observar-se estritamente uma exigência de legalidade das
medidas restritivas da liberdade. Julgo que é também isso que resulta dos artigo
27.º, n.º 3, e 28.º, n.º 4, da Constituição (este ao dispor que a “prisão
preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei”). Ora, para além de ser
muito duvidoso que a equiparação a actos válidos (ainda que sob recurso) de um
julgamento e de uma condenação nulos tenha apoio na lei – não bastando para o
afirmar a invocação da distinção entre inexistência e nulidade –, a suficiência
de tal julgamento e condenação nulos (no presente caso, anulados ambos por duas
vezes), para o prolongamento da prisão preventiva, parece-me abrir a porta a
efeitos desproporcionados, ou, mesmo a manipulações e a resultados arbitrários
afectando a liberdade do arguido. Tendo votado favoravelmente o acórdão n.º
483/2002 (inconstitucionalidade da suficiência da notificação de uma decisão
instrutória inválida para interrupção da prescrição do procedimento criminal),
dificilmente poderia, aliás, deixar de extrair consequência idêntica no presente
caso, em que está em questão um efeito bem mais gravoso (a manutenção, após
julgamento e condenação nulos, de uma prisão preventiva já com três anos).
Paulo Mota Pinto
Declaração de voto
1. No presente processo, o recorrente coloca o problema da eventual violação
dos artigos 27º, nº 1, 28º, nº 4, 30º,nº 1, e 32º, nº 2, in fine, da
Constituição pela interpretação segundo a qual uma condenação em primeira
instância proferida em julgamento anulado é passível de promover o aumento para
quatro anos do prazo de prisão preventiva, nos termos do disposto no artigo
215º, nºs 1, alínea c), e 3, do Código de Processo Penal. O critério normativo
que constituiu ratio decidendi do acórdão impugnado pelo presente recurso de
constitucionalidade corresponde a uma interpretação da alínea c) do nº 1 do
artigo 215º do Código de Processo Penal que inclui na locução “condenação em
primeira instância” uma condenação anulada em sede de recurso ordinário.
Não está agora em causa, de modo directo, a admissibilidade dos prazos máximos
de prisão preventiva estabelecidos por lei ou a razoabilidade de um regime que
faça depender tais prazos da conclusão de determinadas fases processuais –
inquérito, instrução e audiência de julgamento, nos termos das alíneas a), b) e
c), respectivamente, do nº 1 do artigo 215º do Código de Processo Penal. Está
apenas em crise a equiparação entre condenações válidas e inválidas para efeitos
de contagem dos referidos prazos.
2. As normas contidas no nº 1 do artigo 215º do Código de Processo Penal fazem
depender o prazo da prisão preventiva do avolumar de indícios que, não
invertendo a presunção de inocência (artigo 32º, nº 2, da Constituição), a
enfraquecem. Assim se explica a relevância atribuída à acusação e à condenação –
e não simplesmente à conclusão do inquérito ou da audiência de julgamento – nas
alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 215º Código de Processo Penal.
Por conseguinte, não está só em causa o andamento do processo e o estádio
atingido – critério à luz do qual seria na realidade irrelevante a existência de
acusação ou condenação válidas –, mas também a prolação de decisões
desfavoráveis ao arguido que apreciaram os indícios ou as provas contra ele
aduzidos. Do mesmo modo se explica, aliás, que qualquer sentença absolutória
(não transitada em julgado) implique a extinção da prisão preventiva e das
demais medidas de coacção, por força da alínea d) do nº 1 do artigo 214º do
Código de Processo Penal.
3. Conclui-se, pois, que o regime vigente no Código de Processo Penal não
assenta apenas na extensão do iter processual mas ainda – e principalmente – no
modo de desfecho das suas fases. Tem razão, por isso, o presente Acórdão quando
assinala que os prazos não variam (ou seja, o prazo máximo é, por exemplo, de
seis meses até à acusação, abstraindo da altura em que a medida de coacção foi
imposta) mesmo que a prisão preventiva não tenha sido aplicada desde o início do
processo.
Todavia, esse argumento de modo nenhum favorece a tese consagrada no Acórdão.
Ele prova, repete-se, que não é só a morosidade do processo que justifica o
alargamento dos prazos de prisão preventiva mas também, e sobretudo, o avolumar
de indícios ou provas contra o arguido. Ora, nesta perspectiva, não faz sentido
equiparar uma condenação válida a uma condenação inválida.
4. Poder-se-á objectar que a Constituição não impõe prazos “faseados” para a
prisão preventiva, sendo concebível até um prazo máximo invariável, tal como
sucede quanto à detenção (artigo 28º, nº 1, da Constituição). Assim, toda a
discussão sobre a possibilidade de equiparar condenações válidas e inválidas
neste domínio situar-se-ia, por implicação lógica, num plano
infraconstitucional.
Mas esta objecção não procede por duas razões fundamentais. A primeira razão
resulta, desde logo, da extensão dos prazos previstos no Código de Processo
Penal: como se poderiam aceitar prazos de quatro e até de quatro anos e meio
para a prisão preventiva sem ter sido sequer deduzida acusação, ante uma norma
constitucional que prescreve a excepcionalidade desta medida de coacção (artigo
28º, nº 1)? A segunda razão advém da impossibilidade lógica e valorativa de
equiparar condenações válidas e inválidas, em prejuízo do arguido, à luz das
garantias de defesa e da presunção de inocência (artigo 32º, nºs 1 e 2, da
Constituição).
5. Um processo justo e equitativo – o due process de que fala a doutrina
anglo-saxónica – não pode seleccionar efeitos da anulação judicial de um
julgamento e de uma condenação em prejuízo do arguido invalidamente condenado. E
muito menos pode negar os efeitos da anulação em matérias que se “prendam
directamente com os direitos fundamentais” (isto, para usar a linguagem de que o
legislador constitucional se prevalece no nº 4 do artigo 32º), como sucede com a
prisão preventiva e o direito à liberdade.
Por mais respeitáveis que sejam, em abstracto, os desígnios de política criminal
que lhe presidam, uma tal manipulação dos efeitos da anulação reconduz-se sempre
a uma afectação da confiança processual, fazendo recair sobre o arguido as
consequências de vícios do julgamento que são imputáveis aos próprios tribunais.
E essa afectação é incompatível com a ideia de Estado de direito democrático
(artigo 2º da Constituição).
6. Apenas se admite, apesar da genérica eficácia retroactiva que é reconhecida
ao instituto da anulabilidade (artigo 289º, nº 1, do Código Civil), que a
sentença condenatória valha, antes da anulação, como se fosse válida também para
os efeitos do artigo 215º do Código de Processo Penal, diferentemente do que
sucederia no caso de inexistência. Mas jamais se poderá ficcionar, após a
anulação, a subsistência de tal sentença como se fosse válida.
Assim, uma interpretação da alínea c) do nº 1 do artigo 215º do Código de
Processo Penal (e também dos nºs 2, 3, e 4 do mesmo artigo na parte em que
remetem para ela) que inclua na locução “condenação em primeira instância”
condenações já anuladas deve ter-se como materialmente inconstitucional, ao
contrário do que se conclui no presente Acórdão.
7. A posição que subscrevo insere-se, de resto – e até por maioria de razão,
como sublinhou, nas suas contra-alegações, o representante do Ministério Público
no Tribunal Constitucional –, na orientação deste Tribunal quanto à interrupção
do prazo de prescrição do procedimento criminal (cf. Acórdão nº 483/02, de 20 de
Novembro).
Com efeito, nesse aresto (em que se verificaram votos de vencido, incluindo o
meu próprio, mas por razões estranhas à orientação consensual que agora se
evoca), julgou-se inconstitucional a interpretação normativa que conduzira a ter
por interrompido o prazo prescricional com o acto de notificação de um despacho
de pronúncia que depois foi considerado inválido. Ora, no âmbito da prisão
preventiva não está em causa matéria com menor dignidade na perspectiva dos
direitos fundamentais e os efeitos da anulação projectam-se para o futuro, em
vez de se confinarem a um singular momento processual situado no passado, ao
tempo do qual a invalidade não era ainda conhecida (como sucede, precisamente,
com a notificação do despacho de pronúncia).
8. Ante o exposto, votei contra o juízo de não inconstitucionalidade constante
do presente Acórdão por entender que a interpretação do artigo 215º, nºs 1,
alínea c), e 3, do Código de Processo Penal realizada pelo Supremo Tribunal de
Justiça viola as disposições conjugadas dos artigos 32º, nºs 1 e 2, e 2º da
Constituição.
Votei ainda vencida por entender que a referida interpretação normativa
contraria o disposto nos artigos 27º, nºs 1 e 3, alínea b), e 28º, nº 4, da
Constituição. Estas normas, ao remeterem para a lei a regulação da prisão
preventiva, impõem uma observância estrita do princípio da legalidade e
proscrevem interpretações (extensivas) que não correspondem ao sentido normal
das palavras e “roçam” a analogia (artigo 9º, nº 2), para além de ignorarem a
ratio essendi da excepcionalidade desta medida de coacção.
Maria Fernanda Palma