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Processo n.º 1056/04
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. intentou contra os herdeiros de B. (C., D. e E. e respectivos
cônjuges), no Tribunal Judicial de Penacova, uma acção em que pediu que fosse
judicialmente reconhecida como filha do falecido B..
A autora, então com 38 anos de idade, intentou a acção cerca de 2 meses após
a morte do pretenso pai e invocou, além do mais, que este sempre a tratara como
filha e era como tal reconhecida pela generalidade dos seus conterrâneos.
O tribunal de 1ª instância julgou verificada a excepção da caducidade do
direito de propor a acção de investigação de paternidade. Tendo a autora
interposto recurso, o Tribunal da Relação de Coimbra concedeu-lhe provimento e
julgou o pedido procedente, por acórdão de 19 de Outubro de 2004 (acórdão
recorrido).
2. Além do mais, o acórdão recorrido ponderou o seguinte:
“Procurando subsumir os destacados factos ao quadro normativo anteriormente
transcrito, fica desde logo afastada a possibilidade de ser dada como verificada
a previsão dos números 2. e 5. do art.º 1817° do CC.
No que diz respeito ao n.º 2, note-se que a paternidade não está mencionada no
registo do nascimento da apelante; no que se refere ao n.º 5, ele aplica-se às
situações em que o (a) investigante falece antes do pretenso pai (mãe). Restam
os números 1., 3. e 4.
Se, para além de se saber, que a acção não se funda em escrito no qual B. tenha
declarado inequivocamente a paternidade, se, por mera hipótese, se considerar
face aos factos apurados, que está por demonstrar que a investigante fosse
tratada como filha pelo B., parece que a conclusão a extrair será a de que o
prazo para a proposição da acção não é o estabelecido no n.º 3, também não será
o fixado no n.º 4, e se mostra excedido o prazo do n.º 1.
Poderá, porém, a redacção do art.º 1817° do CC ser considerada tão simples e
linear, que dispense esforço interpretativo?
Afigura-se-nos que a resposta àquela interrogação terá de ser negativa. Com
efeito, se o art.º 1817° se tivesse ficado pelo seu n.º 1, dir-se-ia que o
preceito se limitava, numa formulação de inequívoca leitura e claro pensamento
legislativo, a estabelecer um prazo para a proposição da acção de investigação
de paternidade.
Contudo, porque nos n.ºs 3, 4 e 5 estão consagrados diferentes prazos, importa
fazer uma interpretação que integre e articule todos eles, incluindo o n.º 1.
Sem descurar a interpretação em face da Constituição.
[…]
Na posse dos conceitos enunciados, retomemos a questão da interpretação do art.º
1817º do CC.
Como já se adiantou, da consagração de diferentes prazos, retira-se que o
legislador propôs-se tratar de forma desigual o que, por ele, terá sido visto
como desigual.
É, à procura da desigualdade de situações justificativa de desigualdade de
soluções, que se irá proceder a uma análise dos números 1,3, 4 e 5 do preceito
em questão.
Assim:
Há um elemento nos números 4. e 5. que se destaca: a morte. Do pretenso pai, na
previsão do n.º 4; do investigante, na previsão do n.º 5.
Terá sido a morte, e só ela, enquanto factor de irremediável separação ou marco
a requerer solução definitiva de questões pendentes em benefício da estabilidade
e da segurança duma multiplicidade de relações, o elemento decisivo a motivar o
legislador a consagrar prazos que se diferenciam do enunciado no n.º 1?
Afigura-se-nos que não.
Com efeito, a morte não tem qualquer relevância para o n.º 1 do,
recorrentemente, citado art.º 1817°.
Configure-se a seguinte hipótese: o investigante A, nasceu a 1.2.82; o pretenso
pai faleceu a 1.2.83.
Resultando do n.º 1, que a acção de investigação de paternidade pode ser
proposta até 1.2.2002, altura em que se concluem os dois anos posteriores à
maioridade do investigante A, importa retirar que, não obstante a morte do
pretenso pai tenha ocorrido há 19 anos, nem a morte, nem o tão longo tempo
decorrido, desviaram o legislador de fazer prevalecer o direito do investigante
A, a ver reconhecida a paternidade. Porque já pode, por si, fazer valer esse
direito, é certo. Mas, eventualmente, com reflexos na estabilidade e segurança
de uma multiplicidade de relações.
E se a morte, ou melhor dizendo, a vida, teve relevância no denominado Código de
Seabra que, ao tratar da investigação da paternidade ilegítima, prescrevia no
art.º l33° que «As acções de investigação de paternidade ou de maternidade só
podem ser intentadas em vida dos pretensos pais, salvo as seguintes excepções:
1.º Se os pais falecerem durante a menoridade dos filhos; porque, nesse caso,
têm estes o direito de intentar a acção, ainda depois da morte dos pais,
contanto que o façam antes que expirem os primeiros quatro anos da sua
emancipação ou maioridade; 2.º Se o filho obtiver, de novo, documento escrito e
assinado pelos pais, em que estes revelem a sua paternidade; porque nesse caso
pode propor a acção a todo o tempo em que haja alcançado o sobredito documento;
isto sem prejuízo das regras gerais acerca da prescrição dos bens», é porque, à
época, a perícia médico-legal ainda não tinha conhecido o avanço científico que,
já em 1991, motivaria o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 26.6.91 BMJ:
408, 586, a considerar que os exames científicos «tendem à prova directa» da
paternidade.
Mas se a morte nos números 4. e 5., não constituiu razão decisiva para o
estabelecimento de prazos diferenciados, (caso contrário ela também tinha sido
considerada no n.º 1), o que terá, então, determinado o legislador a optar pela
diferenciação? Conterão, os números 4. e 5., quaisquer outros elementos, que
tornem justificável o que, à partida, parece injustificável ?
Relembre-se o que dispõe o n.º 4: «Se o investigante for tratado como filho pela
pretensa mãe, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção
pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquela; tendo cessado
voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro do
prazo de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado.
Na previsão da l.ª parte do n.º 4, o investigante que já tenha atingido a
maioridade há mais de dois anos, só pode propor a acção de investigação no ano
que se segue ao falecimento do pretenso pai, se por este tiver sido tratado como
filho. Com as devidas adaptações, as mesmas considerações podem ser tecidas em
torno do n.º 5.
O tratamento como filho pelo pretenso pai, terá sido eleito, segundo parece
resultar dos números 4. e 5., elemento decisivo de diferenciação. Isto é, o
legislador conferiu determinante relevância à postura do pretenso pai.
Que opção terá sido, então, aquela que, em termos matemáticos, corresponde a ½
de presunção de paternidade e na relação filho/pai ou, como provavelmente diria
o legislador, na relação pai/filho, só pondera a postura do pai?
Não tendo havido, qualquer preocupação de salvaguardar a possibilidade de
tratamento como pai pelo investigante, afigura-se-nos que, nesta matéria, as
alterações operadas em 1966, e até posteriores, não se protegeram de algumas
influências antigas, menos ajustadas. Veja-se, a propósito, o art.º 130° do
Código Civil de 1867 que dispunha assim: «É proibida a acção de investigação de
paternidade ilegítima, excepto nos seguintes casos: 1.º Existindo escrito do
pai, em que expressamente declare a sua paternidade; 2° Achando‑se o filho em
posse de estado, nos termos do art.º 115°»”
Parece evidente que a influência do referido art.º 130° chegou aos nossos dias.
É que se, anteriormente, o levantamento da proibição da acção de investigação de
paternidade, estava dependente da postura do pretenso pai, hoje são os prazos de
proposição da acção que dele dependem – números 4. e 5. do vastamente citado
art.º 1817°. E, também, o n.º 3., que prescreve «Se a acção se fundar em escrito
no qual a pretensa mãe declare inequivocamente a maternidade, pode ser intentada
nos seis meses posteriores à data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido
o conteúdo do escrito».
Se nos concentrarmos no n.º 3, verificamos que, estando na posse do que pode ser
considerado um princípio de prova – o tal escrito – o legislador permite que o
investigante proponha a acção de investigação em vida do pretenso pai, após o
falecimento do pretenso pai, após a emancipação do próprio investigante, após a
maioridade do próprio investigante, mesmo após o decurso de dois anos após a
emancipação ou a maioridade. Desde que intente a acção nos seis meses
posteriores à data em que conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito.
Um documento particular, que pode ser impugnado ou arguido de falso, é
sacralizado como princípio de prova, ao ponto de ser razão de existência de um
prazo específico, sem que outros meios de prova mereçam idêntico tratamento.
Atente-se na hipótese anteriormente configurada:
Para ver reconhecido o seu direito, o investigante A, pode socorrer-se de
variado tipo de provas: documental, testemunhal. E pode beneficiar de presunções
judiciais. Até pode acontecer, como se verificou com a autora, que o exame
pericial conclua por um índice de paternidade IP = 35568 e uma probabilidade de
paternidade W = 99,997 % segundo a escala de Hummel (...). Não dispondo, porém,
do «tal escrito», o investigante A não se vê contemplado na previsão do n.º 3 do
art.º 1817°.
Importa, no entanto, admitir como possível, que não tenham sido razões de
direito probatório a orientar a opção legislativa.
Admita-se, pois, que tenham sido razões de natureza sensível. Admita-se que o
legislador tenha olhado o tal escrito, e tenha visto no tratamento como filho
pelo pretenso pai, formas de exteriorização de afectos. Admita-se, também que,
por isso mesmo, tenha consagrado a possibilidade de a acção ser proposta depois
da morte do pretenso pai, de molde a preservar o que terá entendido ser de
preservar: laços, relações, equilíbrios.
Se assim tiver sido, há uma motivação para que as acções possam ser propostas
após a morte do pretenso pai, mas não há uma justificação para a diferenciação
dos prazos estabelecidos, designadamente, nos números 1., 3. e 5. do art.º 1817°
do CC. É que, a necessidade de proteger laços, relações e equilíbrios, ainda que
precários, é razão forte e suficiente para que o (a) filho (a) não proponha
acção contra seu pai em vida deste.
Vejamos se há justificação para que esta e outras acções iguais a esta, se vejam
afastadas da solução prevista no n.º 4: proposição da acção após o falecimento
do pretenso pai.
Isto é, analisemos se, ao limitar a aplicação do n.º 4, aos investigantes
tratados como filhos pelo pretenso pai, o legislador não dispõe de um fundamento
sério e de um sentido legítimo e estabelece diferenciação jurídica sem um
fundamento razoável.
[…]
Regressando à questão dos prazos, afigura-se-nos que o legislador tratou como
diferente o que não tinha de ser tratado como diferente.
Como já anteriormente se referiu, e se crê ter demonstrado, não foi a morte que
determinou o legislador a criar prazos diferenciados.
Se foram razões de direito probatório, nada justifica que a autora se veja
afastada da aplicação do n.º 4 do sempre referido art.º 1817.º do CC. Com
efeito, o exame pericial realizado, concluiu por um índice de paternidade IP =
35568 e uma probabilidade de paternidade W = 99,997%
Se foram razões de estabilidade e segurança das relações ou considerações de
natureza sensível, também aos investigantes que não foram tratados como filhos
pelos pretensos pais há que garantir estabilidade e segurança.
Se bem que datado no tempo, numa obra de imprescindível leitura, Sociologia da
Família, Chiara Saraceno diz, a propósito da Constituição Italiana, que ela:
“define em dois artigos repletos de implicações mesmo contraditórias, o quadro
de referência normativo em que deveria inspirar-se a legislação relativa à
família. NO art.º 29º diz-se que «A república reconhece os direitos da família
natural baseada no casamento. O casamento é ordenado na igualdade moral e
jurídica dos cônjuges, com os limites estabelecidos pela lei e garantia da
unidade familiar». O art.º 30º diz «è dever dos pais manterem, instruírem e
educarem os filhos, ainda que nascidos fora do casamento…A lei assegura aos
filhos nascidos fora do casamento toda a tutela jurídica e social compatível com
os direitos da família legítima. A lei dita as normas e os limites para a
procura da paternidade».
A família surge assim simultaneamente como uma sociedade natural e uma sociedade
institucional regulada, tanto pelo que diz respeito à legitimidade, como elo que
concerne às relações entre os cônjuges e às relações de geração. É uma sociedade
de iguais, mas em que a igualdade pode ser reduzida a favor da unidade…”.
A dado passo, Chiara faz a seguinte constatação: «Vivem hoje em Itália muitas
pessoas e grupos de casais que viram a sua vicissitude conjugal e familiar
regulamentada segundo diferentes normas no decurso da sua vida…».
Que a família é uma sociedade institucional regulada, ninguém ignora. Mas, o que
é por demais evidente, deve ser destacado para não passar despercebido.
Que a família é (deve ser) uma sociedade de iguais, ninguém ignora. Mas que o
legislador possa preterir a igualdade em favor da unidade ou de qualquer outro
valor que considere superior é que tem de ser justificado.
Com efeito, a igualdade perante a lei garante a igualdade jurídica, quer numa
perspectiva de igualdade jurídico-formal, quer no sentido de uma igualdade
jurídico-material. O princípio da igualdade vincula, assim, em duas vertentes:
obriga o legislador a regular de forma igual o que é essencialmente igual;
obriga aqueles que aplicam a lei a proceder da mesma forma.
O princípio da igualdade contém uma directiva dirigida ao legislador: tratar por
igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente
desigual. Deste modo se proíbe o arbítrio legislativo.
Não encontrámos na diferenciação de prazos efectuada pelo legislador apoio
material - constitucional para a diferenciação. Mas encontrámos fundamentos para
que o investigante possa propor a acção de investigação de paternidade após o
falecimento do pretenso pai.
Desta forma decide-se declarar inconstitucional o n.º 4 do art.º 1817º do CC,
por violação do princípio da igualdade, e na medida em que restringe a sua
aplicação às situações em que o investigante é tratado como filho pelo pretenso
pai.
***
Não obstante, sempre se dirá, que os factos evidenciam que B. estava convicto de
que a autora era sua filha. E reputava-a como tal, junto dos mais próximos. E
tratava-a como tal.
No já referido Acórdão do TRG é citada a seguinte passagem do AC. do STJ de
6.5.97, BMJ: 467º, pág. 588: «o tratamento do filho havido fora do casamento
revela-se, em regra, por actos menos ostensivos ou transparentes e de carácter
menos continuado do que os demonstrativos do tratamento como filho nascido
dentro do casamento».
Perfilha-se inteiramente o entendimento expresso no citado Acórdão do STJ.
Não existindo dúvidas de que B. reputava a autora de sua filha, afigura‑se‑nos
também que, de forma subtil, a tratava como tal.
Conforme se pondera no referido Acórdão da Relação de Guimarães «a reputação
está presa por um sinal de cariz interno, a que está ligada uma certa intimidade
e…este dado psíquico, sendo suficientemente forte, provoca o tratamento assim
concebido».
Dúvidas não havendo que a autora é filha de B. e afastada a caducidade, acordam
os juízes da secção cível em revogar a decisão recorrida, julgando agora
procedente o pedido formulado pela autora.”
3. Deste acórdão interpuseram recurso:
- Para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público, ao abrigo dos artigos
70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro, na parte em que recusou a aplicação da norma do n.º 4 do artigo
1817.º do Código Civil, quando interpretada no sentido de restringir a sua
aplicabilidade às situações em que o investigante é tratado como filho pelo
pretenso pai;
- Para o Supremo Tribunal de Justiça, os réus E. e marido.
O relator do processo na Relação (que tinha ficado vencido no acórdão
recorrido), admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, embora
manifestando dúvidas sobre o interesse processual no seu conhecimento antes de
esgotado o recurso ordinário, e relegou para momento ulterior a apreciação do
requerimento de interposição do recurso de revista.
4. As partes foram notificadas para alegar e convidadas a pronunciar-se sobre
a questão da utilidade do recurso versada no despacho de admissão do recurso.
O Ministério Público alegou e conclui nos termos seguintes:
“1 – Existe interesse processual na apreciação do recurso de constitucionalidade
quando a verdadeira “ratio decidendi” da decisão recorrida assenta
primacialmente em razões ou argumentos de índole jurídico-constitucional , não
estando claramente sedimentado nos autos o preenchimento de determinado conceito
normativo – a “posse de estado” – e sendo, deste modo, provisória a decisão das
instâncias sobre tal matéria, a valorar definitivamente no âmbito da revista já
interposta para o Supremo Tribunal de Justiça.
2 – A norma constante do artigo 1817º, nº 4, do Código Civil, aplicável por
força do disposto no artigo 1873º do mesmo Código, ao distinguir – para o efeito
da fixação de um prazo de caducidade da acção de reconhecimento da paternidade
– os casos em que existe ou não existe posse de estado – permitido que, neste
caso, o pretenso filho só proponha a acção em prazo ulterior à morte do pretenso
pai, não constitui discriminação arbitrária, não violando, consequentemente, o
princípio da igualdade.
3 – Porém, tal norma, interpretada em termos de não consentir a existência de
uma “cláusula geral de salvaguarda”, permitindo a propositura da acção por quem
– não beneficiando embora de todos os requisitos da “posse de estado” – alegou e
provou factos que podem plausivelmente integrar obstáculos “social” à
propositura da acção em vida do pretenso pai, viola os artigos 26º, n.º 1, 36.º,
n.º 1 e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
4 – Termos em que deverá confirmar-se, embora por diferente fundamento, o juízo
de inconstitucionalidade constante do acórdão recorrido.”
A autora A., invocando a doutrina do acórdão n.º 486/04, sustenta que deve
confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante do acórdão recorrido,
por violação dos artigos 13.º, 25.º, 26.º, n.ºs 1 e 3, 36.º, n.º 4 e 67.º n.ºs 1
e 2 alínea d) in fine, da Constituição. Argumenta que, se é inconstitucional a
norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, por maioria de razão o será a
do n.º 4 do mesmo artigo 1817.º. E acrescenta que, além do mais, a inexistência
de uma cláusula de salvaguarda que permita a propositura da acção para além dos
prazos normais por quem não reúna todos os requisitos da posse de estado, desde
que demonstre factos que tornem a propositura tardia da acção justificável ou
desculpável é inconstitucional por sacrificar de modo desproporcional os
princípios constitucionais do direito à identidade pessoal, do direito à
família.
A ré E. alegou e conclui do seguinte modo:
“1) As RR aderem à argumentação ou fundamentação, quer do douto e muito bem
fundamentado voto de vencido constante do acórdão da Relação de Coimbra que
desaplicou, por inconstitucional, o n.º 4 do art.º 1817º do CC, quer dos doutos
e laboriosos acórdãos deste Tribunal – Acs. 99/88 DR de 22/8, 451/89 DR de
21/09, 413/89 DR de 15 Set, 370/91 de 25/09, 311/95, 500/99, 506/99, 465/2003,
DR 10/02/2004.
2) Os prazos previstos no art.º 1817º do CC, e por maioria de razão o do n.º 4,
(que constitui um alargamento do prazo do n.º 1) não são inconstitucionais, não
só porque não restringem desproporcional e inadequadamente nenhum dos direitos
da investigante, não violam o princípio da igualdade (material) e não violam,
por não a incluírem, nenhuma cláusula de salvaguarda.
3) O circunstancialismo descrito nos autos não justifica ou desculpabiliza a
intempestividade da acção.
4) De onde resulta, além do mais, que a A. Conhecia a identidade do progenitor,
mas nunca houve da parte deste tratamento como filha ou posse de estado; que a
acção foi intentada depois de morto o investigado, aos 38/39 anos de idade da
A., e depois de conhecida a herança por ele deixada.”
5. A primeira questão que cumpre apreciar é a de saber se, face aos termos da
decisão recorrida, deve conhecer-se do objecto do recurso.
Com efeito, se é certo que o acórdão recorrido emitiu um juízo expresso de
desconformidade com o artigo 13.º da Constituição quanto ao n.º 4 do artigo
1817.º do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 1873.º do mesmo Código, na
medida em que restringe a sua aplicação às situações em que o investigante é
tratado como filho pelo pretenso pai e, nessa base, parece ter-lhe recusado
aplicação – embora com uma expressão formalmente excessiva relativamente à
competência de apreciação incidental que lhe outorga o artigo 204.º da
Constituição: “decide-se declarar inconstitucional o n.º 4 do artigo 1817.º do
CC…” –, já é menos seguro o papel que tal pronúncia desempenha na ratio
decidendi do afastamento da caducidade da acção de investigação de paternidade.
Dificuldade de interpretação que, aliás, começou por afligir o relator do
processo (vencido no acórdão) logo no despacho de admissão do recurso para o
Tribunal Constitucional.
Como se referiu, a acção foi proposta quando a autora tinha 38 anos de idade,
mas cerca de 2 meses após a morte do pretenso pai, com invocação de que este a
tratava como filha, visando acobertar a tempestividade da propositura da acção
na previsão do n.º 4 do artigo 1817.º ex vi do artigo 1873.º do Código Civil que
dispõe:
“[…]
4. Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, sem que tenha
cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano
posterior à data da morte daquela; tendo cessado voluntariamente o tratamento
como filho, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contra da data
em que o tratamento tiver cessado.
[…].”
A sentença de 1ª instância, depois de ponderar que, se o investigante
pretende beneficiar de um prazo especial, mais longo do que o prazo geral
previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, é seu o ónus da prova dessa
situação especial impeditiva do funcionamento da regra geral, concluiu que, “na
falta de actos de tratamento pai-filho, nas circunstâncias temporais do n.º 4 do
artigo 1817.º do CC, que a autora não logrou conseguir provar, caducou o seu
direito de accionar”. Consequentemente, julgou verificada a excepção de
caducidade e o pedido improcedente. O acórdão recorrido, confrontado no domínio
da caducidade do direito de investigar a paternidade, com questões probatórias
ou de qualificação dos factos e com questões de constitucionalidade de normas de
direito ordinário ou da sua interpretação conforme à Constituição, discorreu
sobre os prazos de propositura da acção de investigação da paternidade e
concluiu pela inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 1817.º do Código
Civil. Mas, é interessante assinalá-lo, não na vertente em que estabelece um
prazo ou pelo seu modo de contagem ou pela sua duração, mas na medida em que
dele apenas beneficia quem for tratado como filho pelo pretenso pai.
Porém, não se ficou por aí. Acrescentou, destacando esse excerto das 13
páginas que dedicou à questão da constitucionalidade, o seguinte fundamento
jurídico:
“Não obstante, sempre se dirá, que os factos evidenciam que B. estava convicto
de que a autora era sua filha. E reputava-a como tal, junto dos mais próximos. E
tratava-a como tal.
No já referido Acórdão do TRG é citada a seguinte passagem do AC. do STJ de
6.5.97, BMJ: 467º, pág. 588: «o tratamento do filho havido fora do casamento
revela-se, em regra, por actos menos ostensivos ou transparentes e de carácter
menos continuado do que os demonstrativos do tratamento como filho nascido
dentro do casamento».
Perfilha-se inteiramente o entendimento expresso no citado Acórdão do STJ.
Não existindo dúvidas de que B. reputava a autora de sua filha, afigura‑se‑nos
também que, de forma subtil, a tratava como tal.
Conforme se pondera no referido Acórdão da Relação de Guimarães «a reputação
está presa por um sinal de cariz interno, a que está ligada uma certa intimidade
e…este dado psíquico, sendo suficientemente forte, provoca o tratamento assim
concebido».
Atendendo ao que estava em discussão, tem de considerar-se este como
constituindo um fundamento autónomo para que a acção tenha sido julgada
tempestiva. Mais, tendo presente a realidade factual que o acórdão considera
provada, esse é logicamente o fundamento primacial da improcedência da excepção
de caducidade.
Com efeito, apesar de o acórdão recorrido apresentar essas razões depois e
com muito menos desenvolvimento do que aquele que dedica à questão da
inconstitucionalidade, há na passagem transcrita suficientes elementos para
entender que o acórdão recorrido considerou que os factos provados integram o
conceito de “tratamento como filho” para efeitos do n.º 4 do artigo 1817.º do
Código Civil. A referência a que esse tratamento ocorria “de forma subtil” é
feita para significar que apesar dessa “subtileza” o tratamento não está
descaracterizado, procurando o acórdão demonstrar o acerto de tal entendimento
com os antecedentes jurisprudenciais que cita em seu abonoo. Aliás, quando
começa por enfrentar a questão dos prazos de caducidade da acção de
investigação, o acórdão recorrido fá-lo num plano hipotético: “se, por mera
hipótese, se considerar face aos factos apurados, que está por demonstrar que a
investigante fosse tratada como filha pelo B. ...” (fls. 344). É sob esta
reserva que deve ler-se o que seguidamente se desenvolve e culmina na conclusão
de inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil, na
interpretação de que apenas se aplica às situações em que se prove o tratamento
do investigante como filho pelo pretenso pai.
Em conclusão, o acórdão recorrido deve ser interpretado com uma tónica
inversa daquela que lhe atribuem as alegações do Ministério Público: a acção foi
tempestivamente interposta, face ao disposto no n.º 4 do artigo 1817.º do Código
Civil, cuja hipótese normativa (tratamento como filho pelo pretenso pai) se
considera provada; ainda que assim não fosse, sempre a acção teria sido
tempestivamente proposta porque a restrição da faculdade de propor a acção no
prazo de um ano após a morte do pretenso pai às situações em que se prove o
tratamento seria inconstitucional.
6. Posto isto, verificada a existência de fundamentos alternativos
autónomos, isto é, de pluralidade de fundamentos, um dos quais estranho ao
objecto do recurso e por si só suficiente para assegurar o sentido da decisão
recorrida ainda que não viesse a ser revogada na parte respeitante à questão da
inconstitucionalidade, coloca-se a questão de saber se o Tribunal deve conhecer
do objecto do recurso.
É dominante na jurisprudência do Tribunal o entendimento de que, face à
função instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade,
comportando a decisão recorrida pluralidade de fundamentos, não há que conhecer
dos recursos de constitucionalidade em que apenas se questione um desses
fundamentos. É certo que tais situações surgem, na grande maioria dos casos, em
recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos
quais, por força da regra da prévia exaustão dos recursos ordinários, a decisão
recorrida para o Tribunal Constitucional coincide com a decisão definitiva da
causa, e, por isso, nessas hipóteses, o eventual provimento do recurso de
constitucionalidade surge como insusceptível de afectar simultaneamente o
sentido da decisão judicial recorrida e o desfecho da causa. Mas também assim
se tem decidido em recursos interpostos, como o presente, ao abrigo da alínea a)
do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (Cf. a jurisprudência citada por Victor Calvete,
“Interesse e Relevância da Questão de Constitucionalidade e Utilidade do Recurso
de Constitucionalidade - Quatro Faces de uma mesma Moeda”, Estudos em Homenagem
ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, 404).
A esta luz, mesmo que se considere que, tal como a fundamentação do acórdão
se desenvolve, o juízo de inconstitucionalidade não constitui um mero obiter
dictum, o presente recurso não teria utilidade, uma vez que, admitida a
revogação do acórdão nessa parte, sempre improcederia a excepção de caducidade
pelo fundamento alternativo. Ocorre até a singularidade de – na construção
jurídica que fez vencimento e que não cumpre ao Tribunal apreciar no plano do
direito ordinário – a norma que, pelo preenchimento da respectiva hipótese,
conduz à improcedência da excepção ser a mesma cujo afastamento por
inconstitucionalidade permite que igualmente se julgue não verificada a
caducidade.
Há, porém, que ponderar o argumento do Ministério Público de que, não estando
definitivamente assente a improcedência da caducidade com o fundamento no
preenchimento do conceito de “posse de estado” – rectius, do “tratamento como
filho”, a que se refere o n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil, não competindo
aqui dizer se há coincidência entre esta previsão e v. gr a da alínea a) do n.º
1 do artigo 1871.º do mesmo Código – que será, naturalmente, discutido no
recurso de revista já interposto pelos réus, o conhecimento do recurso
obrigatório conserva o interesse de deixar definitivamente arrumada a questão da
constitucionalidade das normas impositivas do prazo de caducidade ao
investigante. Reconhece-se que este entendimento encontra eco em alguma
jurisprudência do Tribunal, mais recentemente no acórdão n.º 256/2004 (Diário da
República, II série, de 12 de Novembro de 2004), em que se considerou que, pelo
menos em casos em que exista recurso ordinário já interposto, a utilidade do
conhecimento do recurso se determina em função da decisão última da causa e não
no plano da decisão recorrida.
Não se excluiu a existência de situações em que tenha utilidade o conhecimento
do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC de decisões com fundamento alternativo, v. g. quando o
sujeito processual disponha de opções processuais que lhe permitam atingir o
resultado final sem necessidade de impugnar a decisão quanto ao fundamento
deixado incólume, ou quando, devendo o processo prosseguir, o incidente de
constitucionalidade se reporte a uma questão que condicione o desfecho da causa
e cuja discussão fique precludida. Mas não estamos perante uma situação deste
género. No caso, se não for impugnado ou se vier a ser confirmado o julgamento
do tribunal a quo quanto à ocorrência dos pressupostos da norma do n.º 4 do
artigo 1817.º do Código Civil mantém-se a decisão quanto à não caducidade da
acção. E bem pode acontecer que o Supremo Tribunal de Justiça não reedite o
juízo de inconstitucionalidade, mantendo a decisão apenas com base na
verificação da previsão da norma em causa, ou que conceda provimento ao recurso.
Em qualquer destas hipóteses, a actividade decisória do Tribunal Constitucional
no presente recurso teria sido desprovida de utilidade.
7. Decisão
Pelo exposto, acordam em não conhecer do objecto do presente recurso.
Sem custas.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício