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Processo n.º 695/03
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. Na Relação de Coimbra foi proferido acórdão em 26 de Junho de 2003 que,
na parte que agora interessa considerar, assim decidiu:
'[...]
Retêm-se, como ocorrências de facto relevantes para a sua abordagem, que se
operou a fusão, por incorporação, do ‘A., S.A.’ no ‘A., SGPS, S.A’, por
escritura pública lavrada no dia 19 de Dezembro de 2002, no Cartório Notarial do
Porto, com registo da referida fusão, por inscrição, em 20.12.2002, da
Conservatória do Registo Comercial do Porto, através da apresentação n.º
3/20021220 - cfr. docs. a fls. 279 e seguintes - com a consequente transmissão
do património da sociedade incorporada (A., S.A.) para a sociedade incorporante
(A., SGPS).
Como se tem dito em diversas intervenções, nomeadamente na apreciação de vários
recursos interpostos pela ora Requerente, é pacífico e inquestionável que se
consagra no art. 30° /3 da C.R.P. o princípio da intransmissibilidade das penas,
decorrendo da lei a aplicação subsidiária às contra-ordenações laborais do
regime geral das contra-ordenações e a este, na parte substantiva, do regime do
Cód. Penal.
Porém, quer esse proclamado princípio, quer a morte do agente, que, nos termos
do Cód. Penal (arts. 127º e 128°) é causa de extinção do procedimento criminal e
da pena, não poderiam conduzir, in casu, à pretendida conclusão da
Recorrente/requerente.
Ressalvado o respeito devido por entendimento diverso, que se conhece,
relembramos que o referido Comando Constitucional se refere exclusivamente às
penas (‘A responsabilidade penal e insusceptível de transmissão’), como tal se
entendendo as sanções aplicadas em processo criminal.
Por outra banda, em termos sistemáticos, enquadra-se no Título II, que dispõe
sobre ‘Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais’...
A razão deste consagrado princípio da intransmissibilidade das penas no domínio
do Direito Criminal afigura-se-nos intuitiva: toda a censura penal tem como
suporte axiológico-normativo referencial a culpa concreta do agente,
reportando-se necessariamente ao homem, à pessoa física, enquanto ser dotado de
razão e liberdade.
(Aplicável, sem excepção, no direito criminal, às pessoas singulares, o mesmo
cede claramente, no que concerne ao regime sancionatório das contra-ordenações,
do que pode encontrar-se exemplo acabado, v.g., no domínio das contra-ordenações
tributárias, cujos processos de execução por não pagamento de coimas prosseguem
não apenas contra o devedor originário mas também contra os seus sucessores -
cfr. arts. 148°, n.º1, b), 153°/1 e 155°/1, todos do Cód. P. Tributário).
Daí que, como dimana do art. 11° do Cód. Penal, apenas as pessoas singulares
sejam, por princípio, passíveis de responsabilidade criminal.
Às excepcionadas circunstâncias em que o legislador prevê a punição criminal de
pessoas colectivas correspondem naturalmente penas pecuniárias e, em casos
contados, medidas de segurança...
...E ainda assim, como suporte teleológico/pragmático para tal necessidade
político-criminal de sancionamento, lançando mão de uma ‘ficção de culpa’ ou,
como ensina Figueiredo Dias, de um pensamento filosófico analógico, que
considere as pessoas colectivas capazes de acção e de culpa jurídico-criminais -
apud Maia Gonçalves, Cód. Penal Português, 1990/89.
Em síntese, diremos que as previstas excepções ao princípio da
personalização/individualização da responsabilidade criminal encontrarão
fundamento em ponderosas razões de índole político-criminal, com o aceitável
objectivo de perseguir um certo tipo de infracção/delinquência que, de outro
modo, se frustraria ou passaria simplesmente impune...
A morte, como causa extintiva da responsabilidade criminal, não pode ser outra
coisa que não a morte biológica, o fim do ciclo da vida dos seres humanos.
E porque o fundamento para a punição das pessoas colectivas é diverso, como
acima explicitado, a mesma lógica justificará a extinção da sua
responsabi1idade!
Ela terá de decorrer expressamente de determinação normativa.
A solução que demandamos para o caso consta aliás da Lei, concretamente do
Código das Sociedades Comerciais - arts. 97º , n.ºs 1 e 4, 112°, a), 141° e
146°.
Duas ou mais sociedades podem fundir-se mediante a sua reunião numa só,
realizando-se a fusão mediante a transferência global do património de uma ou
mais sociedades para a outra e a atribuição aos sócios daquelas de partes,
acções ou quotas desta, através da constituição de uma nova sociedade, para a
qual se transferem globalmente os patrimónios das sociedades fundidas.
Com a inscrição da fusão do Registo Comercial extinguem-se as sociedades
incorporadas…transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade
incorporante.
Cremos pois ser irrefutável que, praticada uma infracção pela sociedade
incorporada, a responsabilidade passa a ser da sociedade incorporante, como se
por si tivesse sido cometida, transmitindo-se-lhe, por força da lei, como
obrigação daquela.
Com a prevista possibilidade de fusão de sociedades, o legislador não quis
seguramente - como aconteceria no caso, se outro fosse o entendimento -
viabilizar a impunidade e permitir actuações mais ou menos desviantes
relativamente às injunções normativas, tanto mais que aqui, diversamente do
âmbito do Direito Criminal, basta a ‘imputação do facto à responsabilidade
social do seu autor’
Concluindo, diremos que, não estando legalmente determinado que o «fim» da
sociedade infractora conduza à extinção da sua responsabilidade
contra-ordenacional, é a sua sucessora a responsável, como manda o art. 112°,
a), do CSC.
III
Nos termos sobreditos - e considerando o decidido parte integrante do Acórdão
que antecede - delibera-se indeferir a pretensão formulada. [...]'
Inconformado, o banco A., SA., recorreu deste acórdão para o Tribunal
Constitucional 'na parte em que:
I
Considerou que o artigo 112.º, a) do Código das Sociedades Comerciais, ao
determinar a extinção da sociedade fundida, não deixa de transmitir para a
sociedade incorporante todos os direitos e obrigações da sociedade extinta,
incluindo a responsabilidade por infracções contra-ordenacionais cometidas por
esta.
Tal interpretação do referido artigo 112.º, a) do Código das Sociedades
Comerciais, é materialmente inconstitucional por violação do artigo 30.º, n.º 3
da Constituição da República Portuguesa, na medida em que implica uma
sub-rogação da responsabilidade contra-ordenacional, incluída na referida norma
constitucional.
II
O supra referido Acórdão do Tribunal da Relação da Coimbra é recorrível, por ter
aplicado normas inconstitucionais, artigo 70º , n.º 1, alínea b) da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro.
O Recorrente tem legitimidade para recorrer, nos termos do n.º 1, alínea b) e do
n.º 2 do artigo 72° da citada Lei n.º 28/82.
Pretende-se pois que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade do artigo 112.º,
a) do Código das Sociedades Comerciais.
O Recorrente considera que foi violado o artigo 30º, n.º 3 da CRP. [...]'
O recurso foi admitido. A recorrente concluiu a sua alegação nos seguintes
termos:
1. A fusão, por incorporação, de uma sociedade comercial noutra, com a
consequente transmissão do património da sociedade incorporada em favor da
sociedade incorporante, após o registo da referida fusão na inscrição feita na
competente Conservatória do Registo Comercial, conduz à extinção da sociedade
incorporada ex vi do disposto no artigo 112° alínea a) do Código das Sociedades
Comerciais.
2. Com a extinção da sociedade incorporada, extingue-se também a
responsabilidade contra‑ordenacional.
3. Nos termos do disposto no artigo 2° do Regime Geral das Contra-Ordenações
Laborais, aprovado pela Lei nº 116/99 de 4 de Agosto, a estas contra-ordenações
aplica-se subsidiariamente o regime geral das contra-ordenações que consta do
Dec-Lei nº 433/82 de 27 de Outubro com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei
n° 356/89 de 17 de Outubro e pelo Dec-Lei n° 244/95 de 14 de Setembro.
4. De harmonia com o preceituado no artigo 32° do citado Dec-Lei n° 433/82, as
normas do Código Penal aplicam-se no que respeita à fixação do regime
substantivo das contra-ordenações.
5. Nos termos do artigo 127° do Código Penal a responsabilidade criminal
extingue-se pela morte.
6. E nos termos do artigo 128° do mesmo Código a morte do agente extingue, tanto
o procedimento criminal, como a pena ou a medida de segurança.
7. O princípio da não transmissibilidade da responsabilidade criminal ou
contravencional consagrado nas citadas disposições do Código Penal, e no artigo
30° n.º 3 da Constituição da República, aplica-se também no âmbito do direito
contra-ordenacional ex vi do disposto nos supra referidos artigos 2° do regime
aprovado pela Lei n.° 116/99 e 32° do Dec-Lei n° 433/82.
8. O que quer dizer que, também nas contra-ordenações, a morte do agente (se se
tratar de uma pessoa singular) ou a sua extinção (se se tratar de uma pessoa
colectiva) têm como consequência a extinção da responsabilidade e do
procedimento contra-ordenacionais.
9. O que bem se compreende por não haver contra-ordenação sem negligência e a
negligência, como elemento subjectivo da infracção, não poder separar-se da
pessoa do agente.
10. Tendo-se extinguido o agente da infracção noticiada, nos termos supra
mencionados, extinguiu-se também, e simultaneamente, a responsabilidade pela
contra-ordenação a que o auto de noticia alude, bem como o respectivo
procedimento contra-ordenacional (citados artigos 30°, n.º 3, da Constituição da
República e 127° e 128° do Código Penal, aplicáveis por força do disposto nos
artigos 2° do regime aprovado pela Lei n.° 116/99 e 32° do Dec-Lei n° 433/82,
supra referidos).
11. A condenação da sociedade incorporante conduziria sempre a uma situação em
que a entidade jurídica condenada nem sequer havia sido acusada no processo, o
que não deixa de ser contrário a princípios basilares do direito constitucional
e criminal.
12. O artigo 112.º, alínea a), parte final do Código das Sociedades Comerciais,
quando estatui a transmissão de todos os 'direitos e obrigações para a sociedade
incorporante ou para a nova sociedade', reporta-se apenas aos direitos e
obrigações de natureza cível e não penal ou contra-ordenacional.
13. O artigo 112.º, alínea a) do Código das Sociedades Comerciais, quando
interpretado no sentido defendido no Acórdão sob recurso, isto é, de que a
responsabilidade por contra-ordenações imputadas à sociedade incorporada se
transmite para a sociedade incorporante é materialmente inconstitucional, por
violação do artigo 30.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que com o douto suprimento de V.Exas deve ser julgado inconstitucional
o artigo 112° alínea a) do Código das Sociedades Comerciais quando interpretado
no sentido de que a responsabilidade por contra-ordenações imputadas à sociedade
incorporada se transmite para a sociedade incorporante, por violação do artigo
30.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
Por seu turno, o representante do Ministério Público neste Tribunal, em
contra-alegação, concluiu:
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1 - Sendo diferente a natureza do direito penal e do direito de mera ordenação
social, os princípios fundamentais inerentes ao primeiro têm aplicação no
segundo.
2 - As normas e os princípios constitucionais com relevo em matéria penal valem,
no essencial, no campo contra-ordenacional.
3 - A não transmissão da responsabilidade penal consagrada no artigo 30°, n° 3
da Constituição abarca a matéria referente às sanções aplicadas pela prática de
contra-ordenações.
4 - Sendo realidades diferentes, não são automaticamente aplicáveis às pessoas
colectivas todas as normas e regras de que são fundamentalmente destinatárias as
pessoas singulares, tendo-se que atender à específica natureza e características
daquelas.
5 - A fusão por incorporação de uma sociedade noutra, sendo algo
substancialmente diferente da sua dissolução com liquidação, não é equiparável à
morte de pessoa singular, para efeitos de extinção de responsabilidade penal ou
contra-ordenacional.
6 - Não viola, por isso, a norma constitucional da insusceptibilidade da
transmissão da responsabilidade, aceitar que a recorrente tem que responder pela
prática da contra-ordenação cometida pela sociedade que incorporou.
7- Termos em que deverá improceder o presente recurso.
2. Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre decidir.
Visa a sociedade recorrente a apreciação da constitucionalidade da norma contida
no artigo 112º alínea a) do Código das Sociedades Comerciais, interpretada no
sentido de que a extinção da sociedade fundida não deixa de transmitir para a
sociedade incorporante todos os direitos e obrigações da sociedade extinta,
incluindo a responsabilidade por infracções contra-ordenacionais cometidas por
esta, interpretação normativa que violaria, no entender da recorrente, o
disposto no artigo 30º n.º 3 da Constituição.
Sobre esta matéria tem o Tribunal Constitucional jurisprudência firme.
Assim, no acórdão 153/04 de 16 de Março de 2004, desta 1ª Secção
(http://www.tribunalconstitucional.pt) ponderou-se:
'[...]*/-
5. O artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, dispõe como segue:
“Artigo 112º
(Efeitos do registo)
Com a inscrição da fusão [de sociedades] no registo comercial:
a) Extinguem-se as sociedades incorporadas ou, no caso de constituição de nova
sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e
obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade;
[...].”
Decorre da delimitação do objecto do recurso a que procedeu o recorrente (supra,
2. e 3.) que a questão de constitucionalidade de que cumpre apreciar se cinge à
norma do referido artigo 112º, alínea a), interpretada no sentido de que, com a
inscrição da fusão de sociedades no registo comercial, se extingue a sociedade
incorporada, transmitindo-se a responsabilidade por infracções
contra-ordenacionais cometidas por esta para a sociedade incorporante.
Segundo o recorrente, tal interpretação ofenderia o disposto no artigo 30º, n.º
3, da Constituição, que determina que a responsabilidade penal é insusceptível
de transmissão.
[...]
8. Analisado, nos seus traços gerais, o instituto da fusão de sociedades, o seu
processo e os seus efeitos (transmissão de direitos e obrigações), vejamos agora
se a interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido de algum modo afronta a
proibição constitucional de transmissão da responsabilidade penal e
contra-ordenacional, como sustenta o recorrente.
Interessa analisar, para este efeito, o artigo 30º, n.º 3, da Constituição.
A propósito deste artigo 30º, n.º 3, que na anterior redacção estatuía a
insusceptibilidade de transmissão das penas (e não da responsabilidade penal,
como agora sucede), afirmam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição
da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 197-198):
“As penas são intransmissíveis (n.º 3), estando sujeitas ao princípio da
pessoalidade, o que implica: (a) extinção da pena e do procedimento criminal com
a morte do agente; (b) proibição da transmissão da pena para familiares,
parentes ou terceiros; (c) impossibilidade de subrogação no cumprimento das
penas. A intransmissibilidade das penas não obsta à transmissibilidade de certos
efeitos patrimoniais conexos das penas (indemnização de perdas e danos
emergentes de um crime), nos termos da lei civil (cfr. Cód. Penal, art. 128º).”
Um dos problemas que, a propósito do referido artigo 30º, n.º 3 – quer na sua
redacção anterior, quer na sua redacção actual –, imediatamente se coloca, é o
de saber se a proibição nele contemplada se estende também à responsabilidade
contra-ordenacional, até porque o artigo 32º, n.º 10, na sua letra, se limita a
assegurar ao arguido, nos processos de contra-ordenação, os direitos de
audiência e defesa (nada dispondo sobre a questão da transmissão da
responsabilidade).
Todavia, este problema só assumiria autêntica relevância no caso de se concluir
que tal proibição se justificaria perante situações em que, não obstante a
extinção da personalidade jurídica da sociedade que praticou a infracção, “são
aproveitados os elementos pessoais, patrimoniais e até imateriais” dessa
sociedade (cfr. Raúl Ventura, ob. cit., p. 230).
Ao colocar a questão deste modo, não se pretende afirmar que a proibição
constitucional de transmissão da responsabilidade penal apenas poderia ter
relevância nos casos em que se comprovasse não existir fuga ou tentativa de fuga
a essa responsabilidade: dito de outro modo, não pode ser invocado contra a tese
do recorrente o argumento segundo o qual tal tese permitiria fugas à
responsabilidade penal.
Com efeito a questão é outra. E traduz-se em saber se a proibição estabelecida
no artigo 30º, n.º 3, da Constituição – admitindo, por hipótese, a sua extensão
aos casos de responsabilidade contra-ordenacional – tem em vista situações em
que o “transmissário” só formalmente é um terceiro, pois que, de facto, o agente
da infracção como que se perpetua, por via da incorporação ou absorção
verificada, nesse transmissário.
Ora, só é possível responder a tal questão se se atender à teleologia da
proibição de transmissão da responsabilidade penal. Que terá o legislador
constituinte pretendido evitar com tal proibição? Que sujeitos terá querido
proteger?
9. Parece evidente que, com tal proibição – que se encontra reflectida nos
artigos 127º e 128º do Código Penal –, se dá ainda guarida ao princípio da
culpa, decorrente da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição).
Responsabilizar alguém por facto praticado por outrem significaria prescindir,
em relação ao visado, da verificação do dolo ou negligência e da censurabilidade
da própria conduta. A pena ficaria desprovida de qualquer finalidade de
prevenção, retribuição ou ressocialização, perdendo qualquer fisionomia
distintiva.
Tão justificada se apresenta a proibição que dificilmente se encontram, na
doutrina, teorizações a propósito dela. Apenas o princípio da individualidade da
responsabilidade criminal (cfr. artigo 11º do Código Penal), também relacionado
com o da pessoalidade das penas, tem merecido maiores desenvolvimentos.
Ora, no caso de fusão por incorporação, a transmissão da responsabilidade
contra-ordenacional à sociedade incorporante só formalmente é uma transmissão.
Como sustenta o Ministério Público nas suas contra-alegações (supra, 4.), “a
fusão por incorporação de uma pessoa colectiva noutra não conduz a uma
verdadeira extinção da sociedade equiparável à morte de pessoa singular, já que
subsiste a realidade sociológica que justifica a responsabilização pela prática
da contra-ordenação”.
A circunstância de, nos casos de fusão por incorporação, não existir liquidação
(nem dissolução, se com este termo se pretender significar a abertura do
processo de liquidação) da sociedade incorporada, aliada à do aproveitamento dos
elementos pessoais, patrimoniais e imateriais da sociedade extinta, permite
concluir que tal realidade não merece a protecção dispensada pela norma do
artigo 30º, n.º 3, ainda que se admita a sua aplicação no âmbito da
responsabilidade contra-ordenacional.
Com isto não se nega a aplicação da norma do artigo 30º, n.º 3, às pessoas
colectivas. Apenas se rejeita a sua aplicação automática a situações de extinção
de pessoas colectivas que substancialmente não sejam equivalentes à morte de
pessoas singulares e que, por isso, não possam estar abrangidas pelo fim de
protecção daquela norma.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional
decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 112º, alínea a), do Código das
Sociedades Comerciais, interpretada no sentido de que, com a inscrição da fusão
de sociedades no registo comercial, se extingue a sociedade incorporada,
transmitindo-se a responsabilidade por infracções contra-ordenacionais cometidas
por esta para a sociedade incorporante;
[...] '
Decisão idêntica foi retomada nos acórdãos 160/2004, 161/2004 e 200/2004
(http://www.tribunalconstitucional.pt).
Por exemplo, no primeiro dos citados arestos ponderou o Tribunal Constitucional,
a propósito da norma que constitui o objecto do presente recurso – o citado
artigo 112º alínea a) do Código das Sociedades Comerciais –, o seguinte:
'[...]
Foi efectivamente esta a norma legal invocada pela decisão recorrida para cobrir
a solução de transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional, e é
esta norma, com esse sentido, que tem de ser aferida pelo padrão constitucional,
que a entidade recorrente sedia no n.º 3 do artigo 30º da Constituição – a qual
determina, desde a última revisão constitucional, que “A responsabilidade penal
é insusceptível de transmissão.”
A evolução do texto constitucional – que anteriormente previa a
insusceptibilidade de transmissão de “penas” – não se ficou, porém, a dever a
qualquer intenção de transcender o domínio do direito penal (como, aliás,
resulta claramente também da nova redacção), mas sim evitar que o princípio da
intransmissibilidade se confinasse às situações em que a decisão de aplicação da
lei penal transitara em julgado, sobrevindo apenas na fase da aplicação da pena.
Ora, não obstante a doutrina e a jurisprudência constitucionais irem no sentido
da aplicação, no domínio contra-ordenacional, do essencial dos princípios e
normas constitucionais em matéria penal, não deixa de se admitir, como se
escreveu no citado Acórdão n.º 50/03, a “diferença dos princípios
jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a
que se submetem as contra-ordenações”. Diferença, esta, que cobra expressão,
designadamente, na natureza administrativa (e não jurisdicional) da entidade que
aplica as sanções contra-ordenacionais (como se decidiu no Acórdão n.º 158/92,
publicado no DR, II Série, de 2 de Setembro de 1992) e na diferente natureza e
regime de um e outro ordenamento sancionatório (cfr. v. g. Acórdãos n.ºs 245/00
e 547/01, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 3 de Novembro de 2000
e de 9 de Novembro de 2001).
Nestes termos, a intransmissibilidade de um juízo hipotético ou definitivo de
censura ética, consubstanciado numa acusação ou condenação penal, não tem de
implicar, por analogia ou identidade de razão – que não existe – a
intransmissibilidade de uma acusação ou condenação por desrespeito de normas sem
ressonância ética, de ordenação administrativa.
Nem sequer se pode, pois, a partir da referida norma, obter um padrão
constitucional previsto a partir do qual se pudesse censurar o referido
entendimento do artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais. Não
o impõe, também, o artigo 30º da Constituição, referido aos “Limites das penas e
medidas de segurança”; não o impõe o artigo 32º, n.º 10, da Constituição, que
estende apenas os direitos de audiência e defesa do arguido aos processos de
contra-ordenação e a quaisquer outros processos sancionatórios; e não o impõe a
lógica de tutela do arguido que justificou a jurisprudência constitucional em
matérias como o princípio da legalidade, ou a aplicação da lei mais favorável
(v.g., Acórdãos n.ºs 227/92 e 547/01, publicados, respectivamente, no DR, II
Série, de 12 de Setembro de 1992 e de 15 de Julho de 2001).
Mais do que verificar a desconformidade de um certo sentido da norma impugnada
em relação ao parâmetro invocado, conclui-se, pois, pela inexistência do
pretendido parâmetro, aplicável para o efeito pretendido. E, nestes termos, que
improcede totalmente o segundo recurso intentado.[...]'
Resulta, assim, do exposto que é constante a jurisprudência deste Tribunal no
sentido de que a norma do artigo 112º alínea a) do Código das Sociedades
Comerciais, na contestada interpretação, não é contrária ao disposto no artigo
30º n.º 3 da Constituição; em aplicação da mencionada doutrina, cumpre aqui
formular idêntico juízo de constitucionalidade.
3. Em consequência, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20UC.
Lisboa, 2 de Novembro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Artur Maurício