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Processo n.º 1074/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. Por decisão sumária de fls. 454 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal pela sociedade A. – no qual a recorrente pretendia a apreciação da norma do artigo 668º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que para o cumprimento do dever de fundamentação (de facto e de direito) das decisões judiciais, não é necessário que o silogismo judiciário resulte inteligível e convincente (cfr. resposta ao despacho de aperfeiçoamento de fls. 444 a 449) –, pelos seguintes fundamentos:
“[...] Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto processual a aplicação, na decisão recorrida, da norma (ou interpretação normativa) cuja conformidade constitucional o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. Este pressuposto processual não se encontra, porém, preenchido no presente recurso. Com efeito, embora a recorrente não tenha explicitado, na resposta ao despacho de aperfeiçoamento, qual a decisão da qual recorria para o Tribunal Constitucional (supra, 6.), a verdade é que nem no primeiro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (supra, 3.), nem no segundo dos seus acórdãos (supra, 4.) foi perfilhada a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade a recorrente censura. Dito de outro modo: quer a decisão ora recorrida seja a primeira decisão do Supremo, quer seja a segunda decisão, em nenhuma delas foi perfilhada a interpretação normativa que a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, pelo que nunca poderia considerar-se preenchido um dos pressupostos processuais típicos do presente recurso. Na primeira decisão do Supremo Tribunal de Justiça (supra, 3.) não foi manifestamente interpretado o artigo 668º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil no sentido de que para o cumprimento do dever de fundamentação
(de facto e de direito) das decisões judiciais, não é necessário que o silogismo judiciário resulte inteligível e convincente. E isto porque, como se retira do
último trecho transcrito do correspondente acórdão (a fls. 425), o Supremo considerou que, relativamente ao acórdão da Relação, não se colocava qualquer problema de nulidade da decisão mas, quando muito, de erro de julgamento em matéria de facto. Assim sendo, o Supremo não aplicou a norma do artigo 668º, n.º
1, alínea b), do Código de Processo Civil; aplicou, sim, as normas desse Código relativas aos poderes de cognição do próprio Supremo. Na segunda decisão do Supremo Tribunal de Justiça (supra, 4.), aplicou-se a norma do artigo 668º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, mas numa interpretação distinta daquela que a recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional: concretamente, aplicou-se tal norma, na interpretação segundo a qual só uma ausência absoluta de fundamentação integra a nulidade prevista naquele preceito. Não tendo a interpretação normativa que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade sido perfilhada pelo Supremo Tribunal de Justiça, conclui-se que não está preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso, não sendo consequentemente possível conhecer do respectivo objecto.
[...]”.
2. Notificada da decisão sumária, A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional
(fls. 479 e seguintes).
Depois de identificar a questão que, aquando da interposição do recurso, pretendera ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, bem como de transcrever partes da decisão sumária reclamada, descreveu a reclamante assim as razões da reclamação:
“[...]
1 – Dispõe o artigo 659 do C.P.C. o seguinte: Número um – «A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, fixando as questões que ao Tribunal cumpre solucionar». Número dois - «Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final». Número três - «Na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos, ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo um exame crítico das provas que lhe cumpre conhecer».
2 - Assim, cumpre, em primeiro lugar analisar a questão dos pagamentos efectuados pela Ré ao autor.
3- Note-se que, no artigo 1° da petição inicial o autor alegou o seguinte:
«O autor, a pedido da firma Ré executou para esta diversas obras mediante orçamentos prévios calculados ao metro, aceites por ambas, sendo o pagamento a pronto».
4 - No artigo 7° da contestação reconvenção deduzida pela ré esta alegou que para além do montante de 1.496.000$00 pagou ao autor a quantia de 700.000$00, que o autor recebeu para pagamento da totalidade dos trabalhos prestados naquela obra e para adiantamento de outros trabalhos por ele a efectuar, conforme doc. n.° 4 que juntou.
5 - Aquele documento 4 junto à contestação/reconvenção, mais não é do que um cheque naquele montante entregue ao autor e cujo montante por ele titulado foi recebido pelo autor.
6 - No que diz respeito a resta matéria, nas respostas aos quesitos, mais propriamente na resposta ao quesito 10°, consta o seguinte: Quesito 10°: provado apenas que, para além do referido em A) da especificação (ou «factos assentes»), a ré entregou ao autor a quantia de PTE 700.000$00, mediante cheque datado de
11.12.2000 junto por fotocópia a fls. 146, para pagamento de trabalhos por ele realizados anteriormente aos mencionados nas respostas aos quesitos 1° a 7°, embora com referência às mesmas obras.
7 - No entanto, nada se diz relativamente a que tipo de trabalhos se deveu esse pagamento.
8 - As facturas n.ºs 7 e 8 embora conste a data de emissão de 30 de Novembro de
2000, foram entregues à ré e prontamente pagas, em conformidade com o alegado pelo próprio autor no artigo 1° da p.i.
9 - Quanto à quantia de 700.000$00 titulada pelo cheque entregue ao autor em 11 de Dezembro de 2000, não existe qualquer factura a que o mesmo diga respeito.
10 - O que resulta expressamente dos autos é que o mesmo foi entregue ao autor após a conclusão das obras realizadas em S. Pedro da Cova, que, segundo até como refere o autor terminaram em 7 de Dezembro de 2000.
11 - Passados 5 dias o autor recebeu o montante de PTE: 700.000$00 e só em 2 de Março de 2003, passados três meses é que se lembra que a quantia referente à empreitada de S. Pedro da Cova, ainda não tinha sido paga, quando o pagamento era efectuado a pronto, em conformidade com o alegado pelo autor no artigo 1° da petição inicial.
12 - De todos os elementos supra explanados não restam dúvidas que, todas as obras realizadas em S, Pedro da Cova se encontravam pagas desde 12 de Dezembro de 2000.
13 - Atente-se no facto de a factura n.° 7 datada de 30 de Novembro, junta aos autos pela ré diz o seguinte: Quantidade – 2320 – Designação – «Tubo PVC – colocação na v/ obra em Gondomar – referente ao mês 11 (Novembro) Factura essa que foi paga logo que recebida na sede da ré.
14 - Sendo certo que, tudo ficou pago ao autor relativamente aos trabalhos por ele prestados em S. Pedro da Cova com a entrega do cheque no montante de PTE.
700.000$00.
15 - Assim ao contrário do referido na douta sentença a ré demonstrou já haver pago ao autor, até em excesso, as obras por este executadas a sua solicitação, designadamente juntando documentos que faz corresponder a pagamentos do preço aqui reclamado pelo autor (cfr. docs. de fls. 143 a 146, juntos com a contestação).
16 - Ficou demonstrado que realmente efectuados pela ré ao autor, dizendo respeito às mesmas obras de S. Pedro da Cova e de Fragoso.
17 - No entanto, segundo o decidido na douta sentença tais pagamentos reportam-se a trabalhos executados em data anterior àqueles cujo preço o autor aqui reclama.
18 - Mais se refere não existir a pretensa duplicação e que os valores reclamados pelo autor referem-se ao preço de trabalhos realizados e ainda não pagos pela ré, ainda que também relativos àquelas mencionadas obras, já que a liquidação do preço dos trabalhos era efectuada sucessivamente à medida do andamento dos mesmos.
19 - Tal conclusão é contrária ao que consta nos documentos juntos aos autos e não está de acordo com o que as partes alegaram nos seus articulados.
20 - No modesto entendimento da recorrente a própria matéria de facto dada por assente impunha, nesta parte um decisão diversa da que foi proferida em primeira instância e confirmada pelo douto acórdão ora recorrido.
21 - Não se pronunciou o douto acórdão recorrido sobre as invocadas contradições existentes na matéria dada por assente, o que a serem consideradas levaria a uma conclusão em termos de Direito completamente distinta.
22 - Ora, no modesto entendimento da recorrentes, tais matérias são sindicáveis pelos poderes atribuídos por lei a este Venerando Tribunal nos termos do disposto nos artigos 729° e 730º do C.P.C.
23 - Assim não entendendo – e sempre salvo o respeito devido por diferente opinião esse Venerando Tribunal uma vez que confirma a douta decisão proferida pela Relação, interpreta o disposto no art. 668°, n.º 1, al. c) do CPC no sentido de que, para o cumprimento do dever de fundamentação (de facto e de direito) das decisões judiciais, não é necessário que o silogismo judiciário resulte inteligível e convincente.
24 - Mas o normativo do art. 668°, n.º 1, al. c) do CPC, assim interpretado, viola o Princípio Constitucional do Estado de Direito, devendo ser recusada a respectiva aplicação.
25 - O que na verdade está em causa é a manifesta contradição entre a decisão proferida nas diversas instâncias entre os factos dados por assentes e que fundamentam aquelas decisões e as decisões propriamente ditas.
26 - Embora no modesto entendimento da recorrente, tal situação manifeste uma clara violação do disposto na al. c) do n.° 1 do artigo 668°, do C.P.C., traduz também uma interpretação do disposto no art. 668°, n.º 1, al. c) do CPC no sentido de que, para o cumprimento do dever de fundamentação (de facto e de direito) das decisões judiciais, não é necessário que o silogismo judiciário resulte inteligível e convincente.
27 - No modesto entendimento da recorrente, o pressuposto processual do presente recurso encontra-se preenchido.
[...].”.
3. Na resposta à reclamação (fls. 492 e seguintes), sustentou o recorrido B. que a interpretação normativa que constitui o objecto do recurso não fora perfilhada pelo tribunal recorrido, pelo que, como se concluíra na decisão sumária reclamada, não se encontrava preenchido um dos pressupostos processuais do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Na decisão sumária ora reclamada (supra, 1.) considerou-se que a interpretação normativa que constituía o objecto do presente recurso não fora perfilhada pelo tribunal recorrido, sendo dois os fundamentos de tal conclusão: a) Na primeira decisão do Supremo Tribunal de Justiça não foi manifestamente interpretado o artigo 668º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil no sentido de que para o cumprimento do dever de fundamentação (de facto e de direito) das decisões judiciais, não é necessário que o silogismo judiciário resulte inteligível e convincente, pois que, como se retira do último trecho transcrito do correspondente acórdão (a fls. 425), o Supremo considerou que, relativamente ao acórdão da Relação, não se colocava qualquer problema de nulidade da decisão mas, quando muito, de erro de julgamento em matéria de facto. Assim sendo, o Supremo não aplicou a norma do artigo 668º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, mas as normas desse Código relativas aos poderes de cognição do próprio Supremo; b) Na segunda decisão do Supremo Tribunal de Justiça, aplicou-se a norma do artigo 668º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, mas numa interpretação distinta daquela que a recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional: concretamente, aplicou-se tal norma, na interpretação segundo a qual só uma ausência absoluta de fundamentação integra a nulidade prevista naquele preceito.
Como é evidente, a presente reclamação só poderia proceder se a reclamante impugnasse os fundamentos da decisão sumária, assim demonstrando a incorrecção das respectivas premissas.
Sucede, porém, que a reclamante não impugna tais fundamentos, antes se limita a descrever o processado e a censurar o decidido pelo tribunal recorrido e pelas instâncias, concluindo depois, sem fundamentar, que “o pressuposto processual do presente recurso encontra-se preenchido” (supra, 2.).
Não tendo a reclamante impugnado a fundamentação da decisão sumária ora reclamada, não existem motivos para abalar a conclusão, a que aí se chegara, de que o tribunal recorrido não perfilhara a interpretação que constitui o objecto do presente recurso, não sendo, como tal, possível conhecer-se do respectivo objecto.
III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação e confirma-se a decisão sumária reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 16 de Março de 2005
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos