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Proc. nº 655/95
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A., foi condenada, por sentença de 29 de Junho de 1993, do Juiz do 4º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, «a despejar o telhado do prédio urbano situado na ....
.................., em ...........», propriedade de B..
Considerou o Juiz, naquela sentença, que ao contrato em causa, pelo qual a recorrente arrendara a «cobertura do prédio
[...] para um reclamo luminoso», eram aplicáveis as regras gerais da locação, concretamente os artigos 1054º e 1055º, nº 1, alinea c) e nº 2, do Código Civil, por se não tratar de um arrendamento urbano.
2. Inconformada, a recorrente interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando nas respectivas alegações a questão da inconstitucionalidade 'da não aplicabilidade do artigo 1083º em detrimento da aplicabilidade directa do artigo 1055º, ambos do CCivil, a um contrato de arrendamento de um prédio urbano (necessariamente excluído das contadas excepções das diversas alíneas do nº 2 do art. 1083º do mesmo e referido Diploma Legal)'.
Como se pode ler nas suas alegações, entende a recorrente:
ai. Nos termos dos arts. 205º e 206º da Constituição da República Portuguesa, na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos para o que estão sujeitos à lei;
aj. Desde já se poderá adiantar que qualquer interpretação da lei que conclua pela não aplicabilidade do regime geral do arrendamento urbano a um contrato de arrendamento de um prédio urbano não incluído nas contadas excepções enumeradas nas diversas alíneas do nº 2 do art. 1083º do Ccivil, decidindo-se pela aplicabilidade do regime geral da locação civil, em detrimento do primeiro regime referido é resultado de uma incorrectíssima interpretação da lei porque determinadas normas da locação civil, enquanto interpretadas como de aplicação a esse contrato, mormente os arts. 1054º e 1055º do CCivil, são materialmente inconstitucionais por violação do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade e atento ainda a que se estará, não mais do que a
'criar' um regime especial de arrendamento urbano, essas normas quando interpretadas como sendo aplicáveis a esse contrato padeceriam ainda de uma inconstitucionalidade orgânica por violação do nº 1-h) do art. 168º da C.R.P..
Para sustentar a sua posição, cita o Acórdão nº 257/88, de 9 de Novembro, deste Tribunal.
A recorrida apresentou contra-alegações, nas quais considerou que 'o que a R. põe em causa é a inconstitucionalidade da decisão judicial. E em vez de dizer que essa decisão interpretou e aplicou erradamente uma norma, vem referir que foi criada uma outra norma, bem aplicada, essa sim inconstitucional. Encontrou assim a inconstitucionalidade de todas as decisões judiciais com que não concorda...'
Por acórdão de 12 de Janeiro de 1995, o Tribunal da Relação de Lisboa, confirmando a sentença recorrida, negou provimento ao recurso.
3. Após requerer a aclaração do acórdão, o que lhe foi indeferido, veio a recorrente arguir nulidades daquele mesmo acórdão que lhe negara a apelação, o que também lhe foi indeferido.
Interpôs, então, recurso para este Tribunal, ao abrigo do nº 1, alínea b), do artigo 70º da LTC, tendo por objecto
'a interpretação que, no caso concreto dos presentes autos, este Tribunal faz da conjugação das normas dos arts. 1083º, 1054º e 1055º do Código Civil, para concluir que ao contrato de arrendamento do prédio urbano, em questão nos presentes autos, não seria aplicável o regime geral do arrendamento urbano mas, pelo contrário, o regime geral da locação civil pelo que o senhorio poderia denunciar livremente o respectivo contrato. Tal interpretação é materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade'.
4. Admitido o recurso, e distribuídos os autos no Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou as suas alegações, que concluiu pela forma seguinte:
1. A., vem interpôr recurso para este prestigiado Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação de Lisboa, de 12.01.95 que, relativamente ao contrato de arrendamento do telhado do prédio urbano concretamente em questão, celebrado com o fim de implantação de estruturas para afixação de reclamos luminosos, que o actual senhorio e proprietário do prédio, ora recorrido, alega ter sido celebrado durante o ano de 1967 (portanto há mais de vinte anos), interpretou o regime jurídico do Código Civil de 1966, relativamente à forma de extinção do respectivo contrato de arrendamento, como sendo livremente denunciável, nos termos dos artigos 1054º e 1055º do mesmo diploma, em detrimento da aplicabilidade da regra imperativa do artigo 1095º, uma vez que na 'leitura' normativa do acórdão tal contrato se integraria na excepção do nº 2-b) do artigo 1083º, todos do referido diploma;
2. No caso concreto dos autos, fez-se uma interpretação por analogia do caso tipificado na norma excepcional do nº 2-b) do artigo 1083º do Código Civil (que, necessariamente, não pode comportar interpretação por analogia) tendo a Relação de Lisboa, no acórdão recorrido, concluído pela integração do caso concreto dos autos nessa excepção, com o fundamento absurdo que o presente arrendamento não só estaria contra a função normal dos prédios(?), uma vez que a sua função normal seria o aproveitamento do seu espaço interior mas, mais, que tratando-se de publicidade se estaria perante um fim especial transitório;
3. Por um lado, conforme jurisprudência pacífica firmada por este Tribunal Constitucional, o preceito constitucional do 'regime geral do arrendamento urbano' abrange quer o arrendamento para habitação quer o arrendamento para outros fins e razão alguma há, quer de ordem lógica, sistemática ou histórica, para restringir o seu âmbito;
4. Por outro lado, também conforme jurisprudência pacífica firmada por este Tribunal, o preceito constitucional do 'regime geral do arrendamento urbano' - e salvo contadas excepções - é caracterizado pela regra imperativa da renovação obrigatória do contrato a favor do inquilino;
5. Assim, com tal interpretação normativa, o acórdão recorrido, no caso concreto dos autos, violou de forma grosseira um preceito com assento constitucional: 'o regime geral do arrendamento urbano' que é matéria de reserva relativa de legislação e que é ainda matéria respeitante a direitos fundamentais;
6. Com tal interpretação normativa, o acórdão recorrido, no caso concreto dos autos, violou ainda os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade com referência ao 'regime geral do arrendamento urbano'.
Termos em que se requer a declaração de inconstitucionalidade material das normas dos artigos 1054º e 1055º, enquanto interpretados como o foram, no acórdão recorrido (em detrimento da aplicabilidade do art. 1095º do mesmo diploma) por violação do preceito constitucional do 'regime geral do arrendamento urbano' e ainda, relativamente a esse preceito, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
Pela recorrida não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre, então, decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. Quanto à questão da eventual inconstitucionalidade orgânica suscitada pela recorrente, facilmente se verifica que ela não se reporta a qualquer norma jurídica, mas apenas às decisões judiciais proferidas nos autos.
Com efeito, a recorrente não invoca - nem, por manifestamente absurdo, poderia invocar - que as questionadas normas do Código Civil hajam sido aprovadas por órgão - no caso, o Governo - que, à data da sua edição, não dispunha da necessária competência para as emitir, dado que esta mesma competência pertence à Assembleia da República. O que a recorrente pretende é que o tribunal recorrido, ao aplicar erroneamente ao caso o disposto nos artigos 1054º e 1055º do C.C., em vez de aplicar os artigos correspondentes do arrendamento de prédios urbanos (concretamente, os artigos 1095º e segs.), acabou por alterar o 'regime geral do arrendamento urbano', contra ou à margem da vontade expressa do legislador parlamentar.
Só que tal inovação se dirige, obviamente, a uma decisão judicial e não a uma norma jurídica, sendo certo que os recursos para fiscalização da constitucionalidade, cuja competência está atribuída a este Tribunal, só podem ter por objecto normas jurídicas e nunca decisões judiciais, como se vem afirmando constante e uniformemente (cfr., por todos, os acórdãos nº 128/84 e nº 274/88, Diário da República, II Série, respectivamente, de 12 de Março de 1985 e de 18 de Fevereiro de 1989).
Assim sendo, não há que apreciar a referida questão de «inconstitucionalidade orgânica» - isto, independentemente da questão, que se afigura evidente, de o artigo 168º da CRP se reportar à repartição de competências legislativas entre o Parlamento e outros órgãos legiferantes, e não visar a actividade interpretativa dos tribunais, na aplicação da lei aos casos concretos.
6. Quanto à suscitada violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, pode-se, desde já, adiantar que ela não existe.
Com efeito, assenta ela no entendimento de que, caso «não se considerassem os diversos meios ou suportes como verdadeiros e próprios estabelecimentos comerciais, ainda assim dir-se-ia, sem a estabilidade dos contratos através dos quais é proporcionado a instalação e permanência desses suportes ou meios publicitários, tal actividade ficaria «nas mãos» da vontade dos diversos proprietários e senhorios dos prédios onde esses meios ou suportes estão instalados e, portanto, sem qualquer estabilidade ou possibilidade de sobrevivência por parte das empresas que os exploram, com a consequente perda de postos de trabalho e mais empresas na falência e isto, sem qualquer contrapartida em termos sociais, atendendo a que a extinção do(s) contrato(s) que possibilitam a manutenção desses meios ou suportes, implica, por natureza das coisas, o respectivo desmantelamento com tudo o que isso representa em «menos-valia» social e atendendo ainda a que essa denominada menos -valia suportada pelo arrendatário não corresponde qualquer «mais-valia» social ou qualquer vantagem, em termos de interesse público, adquirida pelo senhorio e proprietário do prédio, atendendo até a que se está perante um espaço que não poderá ser adaptado para habitação ou sequer para qualquer outra actividade comercial, que não aquela, ou seja, só se está perante uma unidade produtiva enquanto, nesse espaço concreto, permanecer o meio ou suporte publicitário».
Este entendimento, porém, não convence. É que, com efeito, existe uma manifesta diferença entre o arrendamento de um prédio para aí se instalar a própria habitação ou um estabelecimento comercial ou industrial e a mera locação de um espaço para instalação de um anúncio luminoso.
Neste último caso, e ao contrário do que invoca a recorrente, não se põe necessariamente em causa a subsistência da actividade económico-social desenvolvida pela locatária, pelo que não ocorrem as mesmas razões que justificam o regime de denúncia estabelecida na lei para os contratos de arrendamento urbano.
Não se vê, assim, que seja constitucionalmente exigível o mesmo regime de denúncia dos contratos para ambas as situações, dado que elas não são substancialmente idênticas (neste sentido, aliás, o veio a entender o RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 278/93, de 10 de Agosto, no seu artigo 5º, nº 2, alínea e), em que expressamente se prevêm os arrendamentos para afixação de publicidade).
III - DECISÃO
7. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 21 de Maio de 1997 Luís Nunes de Almeida Bravo Serra José de Sousa e Brito Fernando Alves Correia Messias Bento (vencido,
quanto ao conhecimento do recurso, nos termos da declaração de voto que junto) Guilherme da Fonseca (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmº Cons. Messias Bento e remetendo para a declaração de voto junta ao Acórdão nº 971/96) José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO:
Entendi que não devia conhecer-se do recurso, uma vez que, nele, se não questiona a constitucionalidade de certa interpretação de determinadas normas jurídicas, mas antes a aplicação dessas normas, em vez de outras.
De facto:
1. O artigo 1054º do Código Civil prescreve que, 'se nenhuma das partes o tiver denunciado no tempo e pela forma convencionados ou designados na lei', o contrato de arrendamento, findo o prazo acordado, renova-se por prazos iguais e sucessivos ou, tratando-se de arrendamento com duração superior a um ano, pelo prazo de um ano.
O artigo 1055º estabelece que a denúncia do contrato tem que ser comunicada ao outro contraente com uma antecedência, cujos mínimos, aí indicados, varia em função da duração do prazo do arrendamento.
De acordo com o que prescrevem estes artigos 1054º e
1055º, o contrato de arrendamento de prédio não urbano pode, assim, ser livremente denunciado pelo senhorio, findo o respectivo prazo.
Diferentemente se passam as coisas com os arrendamentos de prédios urbanos, pois que, nestes - prescreve o artigo 1095º - o senhorio
(salvo o caso do artigo 1096º do Código Civil) não goza do direito de denúncia do contrato. E, por isso, a menos que o arrendatário o denuncie nos termos do mencionado artigo 1055º, o contrato renova-se, automaticamente e obrigatoriamente, por períodos sucessivos e iguais.
2. Pois bem: no caso, a decisão recorrida qualificou o contrato de arrendamento da cobertura de um prédio urbano para aí instalar um reclamo luminoso como arrendamento não urbano, não o enquadrando, assim, no artigo 1083º. Por isso, aplicou-lhe a regra da livre denunciabilidade, consagrada nos artigos 1054º e 1055º, e não a da renovação automática e obrigatória, constante do artigo 1095º do Código Civil.
3. Ao interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o recorrente questionou 'a interpretação' que o tribunal recorrido fez 'da conjugação das normas dos artigos 1083º, 1054º e 1055º do Código Civil, para concluir que ao contrato de arrendamento do prédio urbano em questão nos autos não seria aplicável o regime geral do arrendamento urbano, mas, pelo contrário, o regime geral da locação civil pelo que o senhorio poderia denunciar livremente o respectivo contrato'. E disse: 'tal interpretação é materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade'.
Como se vê, o recorrente não questiona a constitucionalidade da interpretação feita pela decisão recorrida dos artigos
1054º e 1055º do Código Civil, segundo a qual neles se contém a regra de que os contratos aí previstos podem ser livremente denunciados pelo senhorio no termo do respectivo prazo, nem a de qualquer outra interpretação desses normativos. O que ele questiona é a qualificação do contrato de arrendamento como de arrendamento de prédio não urbano - arrendamento que, por isso, não cabe no artigo 1083º, do Código Civil, e ao qual se não aplica o artigo 1095º, mas antes os artigos 1054º e 1055º.
Dizendo de outro modo: o que o recorrente questiona é a decisão do juiz, que, tendo que pronunciar-se sobre se o contrato era ou não livremente denunciável pelo senhorio, e deparando-se, para tal decidir, com os artigos 1054º e 1055º (que consagram a regra da livre denunciabilidade do contrato pelo senhorio) e com o artigo 1095º (que consagra a regra da renovação automática e obrigatória do contrato), optou por aplicar aqueles normativos, em vez deste último.
É essa opção (e a consequente aplicação dos artigos
1054º e 1055º, em vez do artigo 1095º) que a recorrente diz ser uma interpretação materialmente inconstitucional. Isso decorre com clareza do seguinte trecho das suas alegações: 'inconstitucionalidade material dos artigos
1054º e 1055º do Código Civil, enquanto interpretados como o foram no acórdão recorrido (em detrimento da aplicabilidade do artigo 1095º do mesmo diploma) por violação do preceito constitucional do 'regime geral de arrendamento urbano' e, ainda, [...] por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade'.
A recorrente questiona, pois, a decisão judicial, e não uma determinada interpretação dos artigos 1054º e 1055º do Código Civil. E isso, tanto quando considera violado o 'regime geral do arrendamento urbano', como quando sustenta haver violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.